O AMOR: DA POSSE À PERDA

 

(Um estudo sobre a experiência da dor amorosa)

 

 

Ana Maria Macedo Valença

Universidade Federal de Sergipe

 


RESUMO:

O trabalho estuda a separação amorosa. Na primeira parte, o tema é descrito com base em Georges Bataille e Igor Caruso. Na segunda, é feita a análise do texto Cartas Portuguesas, de Sóror Mariana do Alcoforado. As duas partes completam-se para descrever o abalo ontológico provocado pela separação. Com a análise do texto confirma-se que a separação se caracteriza pela descontinuidade trazendo a experiência da morte dentro da vida.

 

RESUMÉE:

C'est notre but d'etudier la séparation amoureuse. Dans la première partir on se fonde sur les théories de Georges Bataille et Igor Caruso. Dans la seconde, on fait l'analyse des Lettres Portugaises, de Soror Mariana do Alcoforado. Les deux parties s'intégrent pour décrire le bouleversement ontologique provoqué par la séparation. D'après l'analyse on conclut que la séparation se caractérise par la descontinuité qui entraîne l'experience de la mort ao cour même de la vie.


 

"Como todas as grandes criações do homem, o amor é duplo: é a suprema ventura e a desgraça suprema." (PAZ, 1994:187)

 

"(...) estudar a separação amorosa significa estudar a presença da morte em nossa vida." (CARUSO, 1984:12)

 

"Se a união de dois amantes é o efeito da paixão, ela invoca a morte, o desejo de matar ou o suicídio. O que caracteriza a paixão é um halo de morte." (BATAILLE, 1987:20)

 

 

É do título de um livro ainda inédito que saem as principais reflexões deste texto. Partida como confete, de Rita Barreto, é um título que nos remete a uma realidade passional: a da dor provocada pela separação amorosa. Enquanto partida significa estar ferida / cortada / dilacerada, a expressão como confete intensifica a comunicação da experiência, apontando-nos uma forma peculiar e extrema do sofrimento humano. Estar partida como confete é sentir-se dizimada e reduzida a tão pequeninos pedaços que parece impossibilitar-se naturalmente qualquer forma de reintegração. Por isso, a expressão é capaz de nos transmitir o cerne do problema humano sobre o qual pretendemos discorrer. Mas temos a ampla certeza de que nos será impossível a comunicação total da experiência dolorosa provocada pela separação. A linguagem poética será mais capaz de nos falar da falta, não para preenchê-la, mas simplesmente para dizê-la, o que nos possibilita alcançar o conhecimento:

 

Como todas as atividades humanas (a partir da própria fala), a literatura nasce da vivência da falta e da aspiração à completude. Essa completude, a literatura não nos pode dar. O que ela nos pode dar, isso sim é uma forma de conhecimento que satisfaz: não uma verdade abstrata e dada, mas uma verdade corporificada na obra." (PERRONE-MOISÉS, 1990:110)

 

Nesse trabalho, tomamos como ponto de partida a expressão poética partida como confete para em seguida descrever o processo que conduz a dor e, na segunda parte, buscar o conhecimento da dolorosa experiência através da literatura. Vamos remeter ao texto Cartas Portuguesas [1], cuja autoria, até hoje nunca comprovada, é atribuída a Sóror Mariana do Alcoforado, uma religiosa portuguesa que nasceu em Beja em 1640 e faleceu em 1723. Trata-se das cartas que ela escreveu ao Marquês de Chamilly, após ter sido vítima do seu abandono. O texto de Sóror Mariana, ao dizer a falta, ao falar sobre ela, é capaz de possibilitar um conhecimento mais amplo da tragédia amorosa. Por outro lado, como se trata de um discurso produzido por uma mulher, serve de apoio para a feminilidade contida na palavra partida da expressão em pauta.

 

1. A experiência da dor

Hoje, no final do século, as sociedades parecem já não conceder ao amor e à paixão o lugar de destaque outrora ocupado por esses sentimentos. Octávio Paz fala clara e lucidamente sobre esse "paulatino crepúsculo da imagem do amor nas sociedades", (1994:142) esclarecendo sobre o poder do dinheiro, que vem corroendo a liberdade de amar. Hoje, permite-se que a liberdade erótica seja confiscada pelos poderes do capital, do mercado e da publicidade. O corpo vem sofrendo a dessacralização e vem sendo utilizado a serviço da propaganda. Sobre tudo isso, é contundente o discurso de Otávio Paz:

 

"A sociedade capitalista democrática aplicou as leis impessoais do mercado e a técnica da produção em massa na vida erótica. Assim a degradou, embora como negócio tenha sido grande sucesso." (1994:142)

 

A conseqüência apontada em A dupla chama - Amor e Erotismo é a de que o amor, que foi suporte moral e espiritual das sociedades durante milênios, está ferido de morte. De um lado, a promiscuidade traz uma pseudo-liberdade erótica que, subvertendo o afeto, transforma-o em passatempo. De outro, o poder do dinheiro, o apego ao patrimônio e ao desejo de preservá-lo. Nesse contexto, o amor é impossível, não há espaço para ele. Da lucidez do pensamento de Octávio Paz podemos deduzir que a dupla chama (amor e erotismo) em seu sentido mais puro e essencial, ligada à profundidade do prazer íntegro, espiritual e pleno, vem sendo paulatinamente abafada.

Nesse contexto de apagamento do afeto situa-se a experiência da dor amorosa, ainda reservada aos que, deixando-se envolver afetivamente, embarcam na utopia de alcançar o amor do outro. Ora, a problemática da relação amorosa envolve um eu que deseja o tu e com ele tem um período de encanto, de amor e de posse. Mas a relação amorosa torna-se um jogo arriscado e cruel, porque a sintonia de sentimentos entre as pessoas é apenas temporária. O que vem depois para o que continua amando é a constatação da perda. Podemos exemplificar recorrendo ao romance O primo Basílio, de que Eça de Queirós. Luísa, a protagonista do livro, após vivenciar o extraordinário através dos seus encontros eróticos com Basílio, vai constatando a degeneração passional do seu amante:

 

"As suas palavras, os seus beijos arrefeciam cada dia, mais e mais! Já não tinha aqueles arrebatamentos de desejo em que a envolvia toda numa carícia palpitante, nem aquela abundância de sensação que o fazia cair de joelhos com as mãos trêmulas como as de um velho!... Já não se arremessava para ela, mal ela aparecia à porta, como sobre uma presa estremecida!... Já não havia aquelas conversas pueris, cheias de risos, divagadas e tontas, em que se abandonavam, se esqueciam, depois da hora ardente e física, quando ela ficava numa lassidão doce, com o sangue fresco, a cabeça deitada sobre os braços nus! Agora! trocado o último beijo, acendia o charuto, como num restaurante ao fim do jantar!" (1971:156)

Eça de Queirós é tão explícito ao tematizar a exaustão amorosa que, em seguida, também nos diz:

 

"É que o amor é essencialmente perecível, e na hora em que nasce começa a morrer." (1971:159)

 

Diante do discurso queirosiano, podemos ampliar nossas reflexões afirmando que a felicidade amorosa já traz em si a possibilidade da sua reversão, o que explica o lado cruel e arriscado do envolvimento. A felicidade alcançada poderá depois, num espaço de tempo impossível de ser previsto, ser substituída pela dor da perda. Embora percebida e imaginada como infinita, a posse do outro pelo apaixonado é temporária e é justamente esse choque contraditório entre a percepção ilusória e a realidade da perda que constitui o processo agônico. Enquanto a posse traz o encantamento, a passagem para um mundo singular, luminoso, a perda representa o regresso ao desencanto. É essa viagem de volta que perfaz o percurso da dor, mais intensa ou menos forte a depender não só da intensidade do encanto vivido como também da forma de ruptura, se gradual ou brusca.

Quando Bataille, em "O erotismo", fala sobre a paixão, ele diz que sua essência é a substituição de uma descontinuidade persistente por uma continuidade maravilhosa entre dois seres. Para ele, a humanidade se esforça desde as eras mais remotas para alcançar a continuidade libertadora. A paixão amorosa surge como a via capaz de levar à apreensão da continuidade original, libertando o ser da nostalgia e do isolamento. A posse amorosa se constitui como solução, como possibilidade de reversão do quadro de inadaptação existencial:

 

"Ao amante parece que só o ser amado - isto tem por causa correspondências difíceis de definir, acrescentando à possibilidade de união sensual a união dos corações - pode neste mundo realizar o que nossos limites não permitem, a plena fusão de dois seres, a continuidade de dois seres descontínuos." (1987:19)

 

Bataille deixa bem claro que sofremos com nosso isolamento, limitados por nossa individualidade descontínua.

A paixão amorosa situa-se como resposta à fragmentação, como antítese desse vazio. É da perda dessa possibilidade de alcançar a felicidade ontológica que provém a dor, uma dor que se faz lancinante à medida que tem início o regresso à disforia presente na descontinuidade do cotidiano.

Conforme Bataille, a paixão amorosa e o erotismo que lhe é inerente possibilita ao indivíduo superar os limites impostos pelos interditos culturais. Somos seres podados, castrados pelo universo das proibições. O amor/paixão é a força capaz de movimentar a estabilidade do mundo instituído. Representa a antítese da fragmentação descontínua e traz a percepção do extraordinário. Perder essa chance é regressar à mortificação: é voltar ao isolamento e aos limites da existência social. A dor se situa nessa viagem de volta: do encanto ao desencanto, do extraordinário ao comum.

Difícil será escapar desse sofrimento pois ele é inerente ao processo amoroso. Não há posse sem o seu reverso; por isso, a paixão amorosa é quase sempre trágica. Nesse ponto crucial opera-se o dilaceramento do apaixonado, inevitável, segundo nos diz, ainda, Bataille:

 

"A paixão nos engaja assim no sofrimento, uma vez que ela é no fundo a procura de um impossível e , superficialmente, sempre a busca de um acordo dependente de condições aleatórias." (1987:19)

 

Mas, apesar de constituir-se como a busca do impossível, não é assim que o apaixonado a percebe. Luísa, a protagonista do romance de Eça, imersa na felicidade dos encontros amorosos com Basílio, não teve a percepção da superficialidade dos sentimentos do amado. No período que corresponde à posse (que é ilusória, sendo talvez uma pseudo-posse), o apaixonado não tem a perspectiva da perda, o que a torna sempre brutal e de difícil assimilação. Na vida, qualquer perda significa constrangimento, tornando-se dolorosa a depender do grau de apego ao que se perde. Em se tratando da perda amorosa não só a dor mas a sua intensidade é assegurada, porque se trata de não ter mais a via de acesso ao mundo luminoso que a continuidade pode trazer.

Definindo o problema existencial acarretado pela separação dos amantes, Igor Caruso abre o seu livro dizendo que uma das mais dolorosas experiências na vida humana é a separação definitiva daqueles a quem se ama. Propõe-se a estudar o tema da separação no sentido estrito de separação amorosa (a que se dá entre os amantes) e dedica seu trabalho a todos que sofreram a perda, acrescentando que não é um acontecimento raro, vivido apenas por uma minoria. O que Caruso nos diz ao longo do seu livro completa a nossa exposição, até aqui apoiada em Bataille: a dor provocada pela separação amorosa inscreve-se entre as mais difíceis de suportar porque se trata de uma situação em que o prazer perdido (segundo Bataille provocado pelo acesso à continuidade ontológica) é muito grande. Para definir o caráter extremo dessa experiência que equivale a uma catástrofe humana, Caruso traça uma fenomenologia da separação, cuja tese é a comprovação de que a perda amorosa traz a experiência da morte para quem a vivencia:

 

"Na verdade, a separação significa a eclosão da morte na consciência humana, não de forma "figurada" mas de modo concreto e literal. A separação pode tornar-se um "escândalo" maior do que aquele provocado pela morte física: para garantir a sobrevivência, provoca-se a morte da consciência de um ser vivo dentro de outro ser vivo." (1984:19)

 

No centro da experiência da perda, no seu cerne, está o gosto da morte. Esse fato explica a dor. Há uma sentença de morte dupla: com a separação, o apaixonado sabe que morreu dentro do outro. Tem que aceitar a vivência dessa morte ao mesmo tempo em que vai lutar desesperadamente para matar o outro que ficou dentro de si. Nessa hora, atinge-se o clímax do processo doloroso: aceitar a própria morte (que ocorreu na consciência do outro) e produzi-la interiormente, constitui o ponto fulcral da experiência. Se tivesse ocorrido a morte física do ser amado, a dor seria sensivelmente menor, a perda seria aceita com mais naturalidade porque estaria ausente o mal-estar causado pelo sentimento de rejeição. É nesse ponto que a experiência da dor se completa através de um mosaico de sentimentos: o abandono fere o orgulho, abala a vaidade, traz a dor da traição, acirrada pela quase certeza da substituição por outro (a). É a morte ontológica que está na raiz do processo doloroso e que conduz, freqüentemente, ao homicídio. O crime passional constitui a conduta extrema, assegurada pela idéia de que é menos cruel eliminar o outro do que perdê-lo. Waldir Trancoso Peres, advogado criminalista dedicado aos crimes passionais, explica que a pessoa abandonada é invadida por um desejo onipotente de desaparição física do ex-parceiro. A suspeita e/ou comprovação de traição amorosa faz a passionalidade explodir em crime porque ela se torna um estado de onipotência interior, um impulso incontrolável, que pode também ser visto como um mecanismo de defesa contra o medo da perda:

 

"Veja bem, o medo de um homem que se sente traído não é simplesmente o medo de perder a amada. Ele tem medo também de entregá-la para o outro. A perda é muito maior, incomparavelmente maior, sem dúvida. Porque o objeto de sua paixão vai ter um usufrutuário dela. Por isso ele opta pelo desaparecimento. (1994:10)

 

Matando fisicamente o outro ou não o fazendo, a vítima do abandono amoroso não escapa de vivenciar o gosto da morte. Para Caruso, o tema da separação identifica-se com a eclosão da morte psíquica na vida dos seres humanos. Quando se perde o outro, que era tudo, o que fica é o nada, o vazio, uma ausência tão profunda que só pode ser equiparada à da morte.

O ser amado, ao ser o tudo, passa também, numa operação psíquica de transporte da identidade, a ser o próprio eu do apaixonado. A sensação é a de que há um prolongamento do eu no outro. Ora, com a perda do outro vem junto também o desabamento psíquico do eu e aí está a catástrofe em seu aspecto mais funesto: a separação amorosa é sobretudo mortificante porque provoca um abalo ontológico correspondente à perda de si próprio. Os que vivenciam essa crucifixão têm a percepção da auto-desintegração. Por isso, a expressão partida como confete, do início deste ensaio, apresenta-se semanticamente potente porque nos remete à atomização do ser e seu desabamento na existência.

A experiência da dor, que acabamos de descrever, é inerente à paixão amorosa: a posse, por natureza, traz o seu reverso. A história do amor, vista através da literatura e da arte, aponta incessantemente para a separação dos amantes. Há sempre os intransponíveis obstáculos a separar os que se amam. Colocando o obstáculo e a transgressão como elementos constitutivos do amor, Octávio Paz reconhece e nos diz:

"Por isso, todo amor, incluindo o mais feliz, é trágico." (1994:101)

No passado, a separar os amantes estavam os impedimentos morais, religiosos, familiares, sociais. Hoje, numa sociedade cujo suporte espiritual já não é mais o sentimento amoroso, a tragédia da separação dos amantes consolida-se principalmente através dos impedimentos econômicos. Hoje, o desejo do sucesso profissional, o apego ao patrimônio, ao consumo e a tudo que o mercado possa oferecer, faz do amor a ausência trágica. Para os que ainda amam, a experiência será a da trágica ausência do outro.

Através dos tempos, portanto, a dor do amor permanece inserindo-se entre as outras faltas da vida e, por isso, será tema constante na literatura e na arte.

Quem chega à agonia da dor é porque viveu a felicidade da posse. Teve a percepção do sentimento de continuidade ontológica. Sentiu-se imortal. Rompeu os limites espaciais e temporais que oprimem. Saboreou o extraordinário. A separação é a viagem de volta, o retorno à insignificância. Por isso, é tão cruel quanto a morte.

A dor é o preço. É o risco. Completa a aventura, a fantástica aventura de amar. Faz parte do jogo: faz parte da vida, contribuindo para que possamos entender nosso lugar no mundo.

 

2. O tema da separação amorosa em Cartas Portuguesas

 

Da dor provocada pela separação amorosa nasce e se desenvolve o texto de Sóror Mariana do Alcoforado. Chamilly, o amante da freira, fora intimado a voltar a sua pátria, a França, o que consuma a separação física entre os amantes. Com a distância vai ocorrer o descompasso afetivo: Mariana continua ardentemente apaixonada mas o marquês já não corresponde:

 

"Toda gente está impressionada com o meu amor. Só tu permaneces nessa indiferença, sem me escrever senão cartas frias, cheias de banalidades: metade do papel vem em branco e parece que estás morto por acabar depressa." (1966:65)

 

Em sua gênese e em seu desenvolvimento, o eixo do texto é a constatação da perda amorosa e a expressão da dor por ela provocada:

 

"Saio o menos que me é possível do meu quarto, onde vieste tantas vezes, e olho sem cessar o teu retrato, que me é mil vezes mais caro do que a vida. É ele que me dá alguma alegria; mas provoca-me também um grande sofrimento, quando penso que talvez nunca mais te volte a ver. E por que há-de ser possível que nunca mais te veja? Ter-me-ás abandonado para sempre? Estou desesperada! A tua pobre Mariana já não pode mais: desfalece ao acabar esta carta. Adeus, adeus! Tem compaixão de mim." (1966:35)

 

O fragmento transcrito sugere que Mariana teve a posse física do amado: é explícita a referência das visitas do marquês aos aposentos da freira. Se pensarmos na situação proibitiva da vida conventual e da época, veremos o quanto Mariana foi avançada para o seu tempo: capaz de romper os interditos da vida religiosa, a freira mergulhara de fato na vivência da paixão com o seu amado. Trata-se de um dado importante para a inserção histórica do amor erótico como transgressão aos interditos. Em outros pontos, o texto revela a subversão social de Mariana:

 

"Enfureço-me contra mim própria quando penso em tudo quanto te sacrifiquei: perdi a minha reputação, expus-me ao furor dos meus parentes, à severidade das leis deste país contra as religiosas e à tua ingratidão, que me parece a maior de todas as desgraças." (1966:45)

 

"Quero que todos o saibam e disso não faço mistério, que estou encantada por ter feito por ti tudo quanto fiz contra toda a espécie de decoro. A minha religião e a minha honra, faço-as consistir unicamente em te amar loucamente por toda a minha vida". (1966:33)

 

Foi, portanto, contra todas as proibições históricas que o amor de Mariana pelo marquês se desenvolveu. Mas, em seu comportamento transgressivo, a religiosa não teve a percepção da perda amorosa: ao colocar a reputação em jogo, ao enfrentar a ira da família e a severidade das leis, havia uma coragem pessoal cuja base era a crença na manutenção da felicidade erótica. Um dos componentes da dor é justamente a surpresa da ruptura, o abalo causado pelo estupor diante do abandono, que nem sempre é esperado ou previsto. Ao longo de Cartas Portuguesas, o que transparece é, de um lado, a perplexidade diante da separação definitiva e, de outro, a dificuldade de absorção do fim amoroso. As cartas de Mariana revelam que a dor é ainda mais contundente porque se constitui diante de um ato que se torna brutal por conta do seu caráter inesperado. Com a partida do amado, não era o abandono o que a religiosa esperava:

 

"Como estou longe de quanto havia previsto! Esperava que me escrevesses de todos os lugares por onde passasses e que as tuas cartas fossem muito longas. Esperava que alimentasses a minha paixão com a esperança de voltar a ver-te, que uma total confiança na tua fidelidade me daria um certo repouso, que ficaria, em qualquer caso, num estado bastante suportável, sem extremos de dor..." (1966:41)

 

É, de fato, brutal o choque entre uma expectativa que não se cumpre e a realidade imprevista. No interior dessa supresa funesta vem a dor causada pelo abandono, cuja aceitação nunca pode ser imediata. Cartas Portuguesas se caracterizam por uma representação dupla: de um lado, o estupor. De outro, a dificuldade em aceitar o abandono, por vezes até a ausência de uma certeza absoluta sobre ele:

 

"E por que há-de ser possível que nunca mais te veja? Ter-me-ás abandonado para sempre?" (1966:35)

 

Mas não é tão fácil descrever a complexidade da dor que está representada nas cartas da religiosa. O que está em pauta no texto é a eclosão de uma inusitada variedade de sentimentos opostos. Diante do estupor causado pelo abandono imprevisto, ocorre a relutância na aceitação do abandono ao lado de uma lenta mas nunca provável evolução para a resignação. É um desconforto psíquico, um mal-estar ontológico cujo trânsito conduz a autora a oscilar entre forças opostas: ela vai do amor ao ódio, do desejo de esquecer ao desejo de reviver, do passado ao presente; e, de tal forma são fortes as oposições que a autora reconhece:

 

"Eu não sei nem o que sou, nem o que faço, nem o que desejo: encontro-me dilacerada por mil movimentos contrários. Poder-se-á imaginar estado tão deplorável?" (1966:45)

 

Em outro ponto do texto é ainda mais evidente que a intersecção dos contrários perfaz a dor amorosa:

"Sim! Sinto escrúpulos, se não te dou todos os momentos da minha vida. Que faria eu, pobre de mim! sem tanto ódio e tanto amor como os que enchem o meu coração? Poderia eu sobreviver àquilo que me ocupa sem cessar, para levar uma vida tranquila e sossegada? Um vazio assim, e uma tal insensibilidade, não poderiam ser para mim." (1966:65)

 

O primeiro momento da dor amorosa é constituído pela mistura de sentimentos o que, de fato, constitui o dilaceramento da identidade. A ausência de um ponto fixo, o trânsito do amor ao ódio, o estado turbulento, tudo isso caracteriza a desagregação causada pelo abandono. Na raiz do processo está a percepção do vácuo que se formou. O vazio a que se refere o texto corresponde à descontinuidade, definida por Bataille através da imagem do abismo:

 

"Entre um ser e outro há um abismo, uma descontinuidade.

Esse abismo situa-se, por exemplo, entre vocês que me escutam e eu que lhes falo. Tentamos nos comunicar, mas nenhuma comunicação entre nós poderá suprimir uma primeira diferença. Se vocês morrerem, não sou eu que morro. Nós somos, vocês e eu, seres descontínuos." (1987:12)

 

Ora, a perda amorosa traz o abismo da descontinuidade existencial. Cartas Portuguesas revelam a viagem de volta: o que a freira lamenta e o que faz sofrer atrozmente é a perda dos "prazeres bastante surpreendentes" (1966:59), que lhe davam a percepção da continuidade, assim traduzida:

 

"A minha felicidade teria sido grande demais se tivéssemos passado juntos a nossa vida." (1966:63)

 

Agora, com o abandono, Mariana regressa, defronta-se com o abismo e o trânsito da dolorosa viagem é o núcleo do seu texto. Ao perder a perspectiva da felicidade erótica, resta o desencanto do mundo:

 

"(...) e o desgosto que sinto por todas as coisas. A minha família, os meus amigos, este convento, tudo me é insuportável! Tudo o que sou obrigada a ver e tudo o que tenho de fazer por absoluta necessidade me é odioso." (1966:64)

 

Diante de si Mariana vê o abismo da descontinuidade. Perdida a possibilidade de atingir a continuidade ontológica, a religiosa se vê diante do isolamento do claustro, tornando ainda mais aguda a dor pelo abandono do amado. Antítese do prazer, o claustro, o "malfadado claustro" (1966:19) será o espaço da infelicidade: Mariana diz e sabe que dele é impossível sair. O claustro tem o gosto do túmulo, porque é de morte o sabor da perda amorosa. Para Mariana, Chamilly representava a única possibilidade de vencer o claustro. Através da luminosidade inerente ao amor, a religiosa iluminava a vida conventual. Agora, perdida essa chance, o convento transforma-se em túmulo porque é a morte que passa a nortear a existência:

 

"Estou viva, infiel que sou!, e faço tanto para conservar a minha vida como para perdê-la!" (1966:47)

 

Ao longo de Cartas Portuguesas, a autora entrega-se ao que Igor Caruso definiu ao traçar a fenomenologia da dor: simultâneo ao desejo de matar o outro que está dentro de si, ocorre o gosto da desagregação ontológica, que equivale à própria morte. De fato, é a percepção da morte que permeia todo o texto e se concretiza na repetição constante do signo:

 

"Mata-me o pensar nisso e morro com o receio de que nunca tenhas sentido bem a fundo todos os nossos prazeres." (1966:43)

"Adeus! Promete que me lamentarás com saudade se eu vier a morrer de dor!"

 

A leitura de Cartas Portuguesas permite concluir que a dor provocada pela separação amorosa, por seu caráter extremo, contribui para desequilibrar a inserção social do sujeito. No primeiro momento vem o estupor, uma surpresa tão brutal que inviabiliza a aceitação do abandono e provoca a incredulidade: a vítima ainda não acredita na separação e deixa-se absorver por uma dúvida insuportável. Seria o abandono definitivo? É essa a pergunta fatal que percorre o texto da religiosa. Em seguida, ao lado da cruel certeza que lentamente se estrutura sobre a perda amorosa, ocorre uma multiplicidade de sentimentos contrários, uma ausência absoluta de um desejo fixo: o apaixonado transita do amor ao ódio e à revolta e, se demonstra por um lado querer aniquilar o amado, por outro, vive um certo prazer em relembrar o passado e sofrer com o presente. No texto em estudo é constante em todas as cartas um apego mórbido ao sofrimento, de tal forma que a autora implora:

 

"Adeus! não posso mais! Adeus! e ama-me sempre e faze-me sofrer ainda maiores males." (1966:21)

 

Além do gosto em sofrer o que está plasmado em todas as cartas de Mariana é o registro de um desencanto profundo, equivalente à descontinuidade do ser. Em seu cerne, a dor do amor contém a fragmentação ontológica, uma desagregação interior que provoca a sensação de morte. Uma morte que o apaixonado é obrigado a experimentar ainda que esteja fisicamente vivo. É um flagelo; a pior das mortes, motivada pela perda do outro que referenciava o eu. Com a ausência desse apoio abre-se o grande abismo, diante do qual, Mariana, desesperada, só tem um recurso: escrever as cartas. O texto produzido não se constitui como proposta de solução mas é, certamente, o atalho que desvia do abismo. Escrevendo, Mariana vence a descontinuidade porque sai do isolamento possibilitando a recepção universal do seu sofrimento.

As cartas, que chegam bem vivas até nós, hoje, tantos séculos depois, levam a concluir que a escrita se organiza como contraponto da dor. Escrevendo, a religiosa encontrava o consolo. Nem sequer tinha certeza de que o marquês receberia as cartas, mas não era isso o mais importante:

 

"Escrevo mais para mim do que para ti, e aquilo que procuro é consolar-me. Por isso vais-te assustar com a extensão da minha carta e nem a chegarás a ler..." (1966:75)

 

Ao tempo em que alcança o leitor universal, Mariana vai perdendo a referência do marquês como receptor do seu texto e, dessa forma, encontra o atalho indispensável à fuga do abismo. Escrevendo sobre a dor, Mariana vence o desencontro da separação porque se encontra com a palavra e, através dela, chega até hoje permitindo-nos assegurar que a dor do amor perpassa a História.

Consolidando-se como fato irreversível, o abandono amoroso constitui a falta na vida da religiosa. Mas ao escrever sobre essa necessidade profunda, Mariana muda a perspectiva do vazio e, se não o preenche, possibilita a si própria e aos seus leitores um conhecimento decisivo sobre os meandros da paixão amorosa. Como dissemos no início deste trabalho, a literatura, ao dizer a falta, possibilita exorcizá-la, apontando para a descontinuidade, que não está apenas no indivíduo mas provém do mundo que o cerca. A respeito da insuficiência do real e de sua expressão pela literatura quem tem a palavra é Leyla Perrone-Moisés, a quem recorremos no início e, agora, para fechar este trabalho:

 

"Na sua gênese e na sua realização, a literatura aponta sempre para o que falta, no mundo e em nós." (1990:104)


Notas:

[1] Cartas Portuguesas apareceu pela primeira vez em Paris, no ano de 1669, sob o título de Lettres Portugaises traduits en Français. Não havia indicação de autoria, nem da tradução, nem do destinatário. Mas, no "Prefácio", o editor afirmava que o texto foi escrito por uma freira portuguesa. No mesmo ano, em Colônia, na Alemanha, o texto aparece com a indicação de seu destinatário - o marquês de Chamilly - e de seu tradutor - o sr. Guilleragues. Como há ainda hoje uma polêmica envolvendo a autoria, Guilleragues é, em muitos estudos sobre a origem das Cartas, considerado como o autor. O problema da autoria continuará sem solução, uma vez que não se descobriu o texto original escrito em Português.


Referências bibliográficas

 

ALCOFORADO, Sóror Mariana. Cartas Portuguesas. Europa-América, 1966.

BATAILLE, Georges. O erotismo. Porto Alegre: L & PM, 1987.

CARUSO, Igor. A separação dos amantes. São Paulo: Cortez Editora, 1984.

PAZ, Octávio. A dupla chama: Amor e Erotismo. São Paulo: Siciliano, 1994.

PERES, Waldir Trancoso. "Amor mortífero: entrevista." São Paulo: Revista Veja, 30/11/94, pp. 7-10.

PERRONE-Moisés, Leyla. Flores da escrivaninha: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1990

QUEIRÓS, Eça. O primo Basílio. São Paulo, Ed. Abril, 1971 (os imortais da literatura universal, 24).

 


Ana Maria Macedo Valença é Mestre em Letras pela PUC-RS; Professora de Crítica Literária, Literatura Portuguesa e Produção de Texto no Departamento de Letras da Universidade Federal de Sergipe.

Endereço Residencial: Rua: José Ramos da Silva, 306 - Ed. Antares aptº 402 - Praia 13 de Julho - 49020-200 - ARACAJU - SE.

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