J. Carlos Quiroga D.
Universidade de Santiago de Compostela
RESUMO:
Visita ao quarto mais antigo e esquecido da casa-comum da lusofonia. A Galiza. Sobretudo para lembrar que o é. Sobretudo aos brasileiros. Mas cabem todos os olhos. Abre-se com chave literária a porta deste canto ocidental da Europa e passam por instantes algo da sua história que nos liga, algo do divórcio a que nos obrigaram, algo do presente da língua galega, do debate entre ortografia espanhola ou portuguesa para ela.
ABSTRACT:
A visit to the oldest and most forgothen room of the common-house of the"lusophony". Galicia. Especially to remind us that it is so. Especially to the Brazilians. But it is open to all eyes. This western corner of Europe can be opened with a literary key and, for several instants, we can see howquickly something in its history that joins us, something of its divorce to which we were obliged, something in the current history of Galician, of the polemics between Spanish and Portuguese orthography, go in front of eur eyes.
Pessoa abre Mensagem com um poema em que a Europaposta nos cotovelos (um Itália, outro Inglaterra) "Fita, com olhar 'sfíngico e fatal,/O Ocidente, futuro do passado". Já sabem que "O rosto com que fita é Portugal". Mas sabem que fica lá na testa, nos "românticos cabelos/Olhos gregos, lembrando", que toldam esse olhar?
Olhem agora para a Europa os brasileiros, futuro do passado. Aí, na esquina capilar com que o rosto fita o Atlântico podem achar talvez o seu passado ainda presente, a partícula de quase 30 mil Km2 chamada Galiza. Um 5,8 % do território espanhol, uns 3 milhões de habitantes. Um território que sendo Espanha não é bem Espanha. Conheço vários brasileiros que andam por cá (Cláudia no teatro, Júlio e Roberto fazendo doutoramento, algum professor de passagem, como o inesquecível Luís Filipe, alguns alunos), e nenhum teve de mudar a sua forma de falar para entender-se aqui.Tanto tempo de dominação espanhola não conseguiu apagar a base do que a todos nos une. Sabem os da Terra de Santa Cruz, a posteriormente chamada Brasil, que a sua língua geral nasceu aqui, neste cantinho atlântico? Alguns devem saber. Mas sabem também que aqui continua falando-se o galego, que hoje tem co-oficialidade com o espanhol, que temos Parlamento próprio, ensino, TV, cultura em galego, e ainda um debate entre os partidários de uma ortografia espanhola (a postura oficial) e os partidários de uma aproximação ao português (a postura de alguns de nós)?
ALGO DE HISTÓRIA
O português é língua falada actualmente em amplas regiões do mundo por mais de duzentos milhões de pessoas. Idioma oficial em sete estados, presente em numerosos organismos internacionais. Fala-se até em diversos territórios não soberanos onde a sua oficialidade não está reconhecida. Todo o mundo sabe. Mas, não podendo ter sido sempre assim, valeria a pena lembrar aos brasileiros algo da sua história que menos parecem lembrar, a parte em que a semente da árvore abrolhava em origem, antes de ser-lhes levada em ramo pelos portugueses, para depois voltar a olhada de novo ao presente dessa reduzida terra da planta original. A nossa história.
Os romanos chegam à Península Ibérica no ano 218 a. de C., e tem de passar quase dois séculos para que Augusto, com sua presença e um enorme exército (ano 26 a. de C.), comece a apagar definitivamente as guerrilhas resistentes do Norte. Aí estávamos nós. Aí aconteceu o mítico suicídio do monte Medúlio, onde se amparavam grande parte das tribos galaicas, que preferiram a morte antes do submetimento. Com a vitória romana, a língua e os costumes envolvem todo o território. Em 212 o imperador Caracalla estende o direito de cidadania a todos os súbditos livres do Império. Incorporamo-nos a falar o imperial latim. Seguramente já havia peculiaridades na forma de fazê-lo nos diversos cantos do Império, mas a coesão política durante a época imperial (comunicações, administração, serviço militar) mantinha em certo grau uniforme esse latim "vulgar". No ano 409 invadem a Península os Alanos, Vándalos e Suevos. Estes últimos assentam-se na Galiza por mais de um século. A cultura romana secular é vista ainda como superior, e a sua língua fica, mas desfeito o Império, e convertidas as províncias em estados bárbaros, isoladas umas das outras, entre os séculos VI e IX aparecem diferenças notáveis entre o latim falado na área galego-portuguesa e nas outras. Os visigodos, aproveitando e adapatando-se aos quadros administrativos que encontraram, não alteram em essência a fisionomia social e linguística da Península (pelo contrário, isolando-a do resto do Império, acentuam o carácter conservador e arcaizante), deixando apenas formas léxicas, topónimos e antropónimos. Nesta altura, as tribos dispersas da Arábia iniciam a guerra santa. Em 711 os caudilhos Tarique e Muça iniciam a conquista da Península Ibérica, quase completando-a em em sete anos (haverão de passar vários centos até serem expulsos pelos hispanos). Quase, porque o Norte nunca teve uma dominação permanente, recebendo ataques esporádicos, como o saque desta cidade em que escrevo em 997 por Almançor. Linguisticamente a influência árabe foi mínima, pois traziam uma língua semita e não indoeuropeia. Mas será provavelmente no século VIII quando o latim peninsular se fragmenta, aparecendo vários domínios linguísticos coincidentes com blocos geo-políticos que lutam contra os mouros. Os filhos do latim começarão a descer reconquistando desde o Norte: catalão, aragonês, castelhano, astur-leonês e galego-português. No sul, sob dominação árabe, teriam ficado cristãos utentes ainda de uma modalidade desse latim: o chamado moçárabe, mal conhecido e sem restos, incorporando-se paulatinamente aos reconquistadores. Deixamos de parte o único resto de língua anterior aos romanos, o euskera, viva então e agora (constituindo na actualidade a referência nacionalista mais enérgica da Espanha, inclusive com luta armada em prol da independência), que ocupando a zona norte passa também a território francês. A vária sorte da guerra prolongada determina que o castelhano corte a passagem para o sul aos falares vizinhos, ficando apenas, desde a Idade Média até hoje, três grupos linguísticos românicos fortemente constituídos pela tradição, pela literatura, e pela firme vontade dos seus habitantes: o castelhano no centro, o galego-português e o catalão aos lados; essas línguas, junto com o euskera, são as hoje existentes. Também é essa sorte que determina que nesse momento (séc. XII) o território da Galiza fique integrado no bloco político aglutinado pelo castelhano, enquanto o território entre Minho e Douro continua avançando com os repovoadores cristãos até ao sul de Portugal. A um e o outro lado da fronteira emprega-se então o mesmo "falar", o galego-português em que na IdadeMédia se recolhe o inestimável tesouro lírico formado pelas cantigas, guardado geralmente em várias recopilações denominadas Cancioneiros. Completada a Reconquista pelo reino português,com a incorporação de todos os territórios da faixa ocidental peninsular salvo a Galiza, Portugal iniciará uma segunda fase expansiva, esta vez de tipo marítimo, que o vai levar muito além das fronteiras do mundo então conhecido: conseguem passar além do cabo Bojador em 1437 por meio de Gil Eanes (espécie de fronteira mítica porque se supunha o último lugar habitável para o sul), e a partir desse momento sucedem-se os descobrimentos ao longo da costa africana. Diogo Cão chega até ao rio Zaire em 1482, Bartolomeu Dias ultrapassa o cabo da Boa Esperança em 1488, e fica aberta definitivamente para Portugal a rota da Índia, aonde chega Vasco da Gama em 1498. Em 1513 os portugueses entram já em contacto com a China e em 1541 chegam ao desconhecido Japão. Por outro lado, entre 1500 e 1502, chegam também a Groenlândia, Terranova e ao Canadá, e até se crê que também puderam ter visitado Austrália. Respeito ao Brasil que me lê, há fundadas suspeitas de que também tivessem arribado às suas costas antes da famosa viagem de Cristóvão Colombo (1492). Seja como fosse, PedroÁlvares Cabral ia chegar já, por casualidade ou não, àquelas terras em 1500. De Pero Vaz de Caminha e de tanta coisa que seguiu já devem saber os brasileiros mais do que eu.
A NEGRA SORTE
E que passou, no entanto, com a Galiza? Nesse ano de Colombo, em 2 de Janeiro, o último rei mouro de Granada chamado Boabdil rende-se aos Reis Católicos, acabando a Reconquista. O casal régio, formado por Isabel I de Castela e Fernando II de Aragão, reinava sobre Castela desde 1475; como em 1479 Fernando herda a coroa de Aragão, ficam unidos os dois reinos, que supõem no final de contas a Espanha actual (após Portugal se ter desvinculado do projecto com os Braganças). A unificação busca apagar as diferenças, mesmo linguísticas, sendo o castelhano a língua oficial do novo conjunto. O Reino da Galiza, que se tinha alinhado nas anteriores guerras civis e dinásticas da coroa de Castela sempre com o perdedor, vai receber um duro castigo, um dos tantos que a História lhe aplicou. Começa então "la doma y castración de Galicia", em palavras do historiador dos Reis Católicos, Zurita. A nobreza galega autóctone já tivera de exilar-se ou ficara empobrecida e dizimada, substituída por outra de origem castelhana. Serão os camponeses e marinheiros os que conservem o seu idioma como dialecto vulgar, entrando o castelhano como língua cultural. Assim começa a castelhanização do português de aquém-Minho, que até perde memória da suas ligações com o português, o galego de além-Minho. Assim entra a Galiza no que se conhece por "Séculos Obscuros", em que o galego é quase só língua oral. Desde o século XVI a XIX só existe alguma normal "material literário" escrito em galego apenas como forma de contraste estilístico (uns sonetos renascentistas, uns poemas de festas minervais, alguns poemas académicos, e textos políticos em prosa de inícios do XIX, devidos à invasão francesa e a discussões políticas). Todo galego que sabe escrever nesta época escreve em castelhano, e se nas Festas Minervais de 1697 aparecem escritores que usam por escrito o dialecto "galego" é por buscar esse efeito de contraste ou surpresa. É quase nos limites entre romantismo e realismo que se inicia a renascença ou "Ressurdimento" da literatura galega. Por volta de 1850 já eram conhecidas as primeiras poesias de Camino, Anhom, Valhadares e Turnes, que podem considerar-se os primeiros frutosdo novo espírito. Em 1853 aparece o primeiro livro deste Ressurdimento: A Gaita Gallega, de Pintos. Os iniciadores da etapa não conheciam a literatura galega medieval. O problema da língua literária apresentava-se-lhes pleno de dificuldades. Ensaiam simultâneas ou sucessivas soluções na construção do instrumento de expressão, ora usando do coloquialismo dialectal (falas locais, preenchendo ocos com o castelhano). Ora interessando-se pela fala dos seus colegas (tomando outras variantes comarcais do galego popular, num interdialectalismo combinado), ora buscando já um galego comum supradialectal. Os três grandes nomes que elevam o galego oral ao nível escrito da literatura são Rosalia de Castro, Curros Henriquez e Eduardo Pondal (o nosso actual Hino procede de um poema deste último). Nos finais do séc. XIX começa a conhecer-se a tradição medieval, e os escritores vêem nestes documentos vocabulário perdido e características morfológicas consideradas antes vulgares. As "Irmandades da fala" (1916), a revista"Nós" (1920), o Seminário de Estudos Galegos (1923), em que brilham nomes como Risco, Vilar Ponte ou Otero Pedraio, marcam um caminho de superação do ruralismo e evolução da língua e cultura galegas rumo à unificação e purificação descastelhanizadora. Caminho brutalmente cortado pelo golpe militar de 36. A restauração do galego literário após a Guerra Civil Espanhola de 36-39 reencontrou os velhos problemas , agravados pela demora e dificuldes que uma ditadura uniformadora em castelhano trouxe de novo. Nos anos 50 consente-se publicar alguma poesia, nos finais da ditadura começa a haver até docentes (perseguidos) que usam o galego nas aulas. O período de transição divide Espanha em"autonomias", uma fórmula para solucionar os disferencialismos das chamadas nacionalidades históricas (Catalunha, Euskadi e Galiza), e o galego começa a ter co-oficialidade com o castelhano ou espanhol neste cantinho atlântico.
O QUADRO PRESENTE
E, voltando ao princípio destes parágrafos: temos Parlamento, TV, ensino em galego, e quase mais que quanto sonharam Castelao e tantos outros líderes políticos e intelectuais antes da guerra.Mas... o nosso presidente autonómico é um ex-ministro de"Información y Turismo" da época franquista. O seu partido ("Partido Popular") é o da direita teoricamente espanholista que agora governa também em Madrid o Estado Espanhol. O PP assumiu na Galiza uma face "galega" conseguindo imbricar-se nas estruturas caciquis do povoamento disperso e ainda muito rural. O PP fala em galego, aliás como os outros partidos estatais que aqui procuram o voto, mas usam do idioma de um modo litúrgico, como do vestido tradicional da terra. O Partido Socialista Operário Espanhol anda mais ou menos na mesma orientação neste sentido, embora reclame uma postura mais "progressista". O terceiro partido estatal, Esquerda Unida, nunca conseguiu aqui muita representação parlamentar. A terceira força política na Galiza é o BNG (Bloco Nacionalista Galego), única entidade política que conseguiu ir crescendo à medida que moderava o seu discurso independentista, e que aglutina vários partidos galeguistas de esquerda. São estes últimos os únicos em que se reconhece um compromisso real com os interesses galegos, embora os outros partidos, especialmente o PP desde o poder, tenham vindo a aparentá-lo na cosmética da sua forma de governo.
Quanto ao galego escrito, reencontra os mencionados velhos problemas de antes da guerra e da ditadura, que podem ser agrupados em dois grandes tipos, um de ordem política e outro de tipo técnico. O político, em que não vamos aprofundar, é o de sempre, resultante de estarmos inseridos dentro de uma unidade estatal chamada Espanha.O técnico refere-se à ortografia. Há mais de 10 anos foi oficializada pelo Parlamento da "Xunta" (o nosso governo autonómico) uma normativa ortográfica que utiliza os critérios e soluções do espanhol para escrever o galego. Mas o debate de fundo não é apenas o do vestido da língua, mas o da postura quase filosófica e sobretudo política em relação à língua. O que se debate é se o galego normal há de constituir-se independentemente de toda influência das demais modalidades do iberorromânico atlântico ou há de tê-las dalgum jeito em conta. Ou seja, se o galego padrão há de fazer-se em contacto com o português normativo ou sem contar com ele. A posição chamada isolacionista pretende "conservar" as "essências" do galego frente ao português. Na sua forma mais radical sustenta a opinião separatista, segundo a qual o galego e o português são línguas distintas desde as suas origens. Em forma mais moderada, admite que existiu uma língua galego-portuguesa (ou galega primitiva) da qual a partir do século XV se desprenderam o galego moderno e o português. Desde esta postura, galego e português seriam hoje substancialmente diferentes, e para formar o galego padrão teríamos que fundar-nos no galego falado, por muito castelhanizado que apareça, e rejeitar todo lusitanismo. Como escreve Mestre Carvalho Calero, moderadamente crítico em relação a essa postura: "Se nom se quer com este isolacionismo para com respeito do português precipitar a dialectalizaçom do galego com respeito ao castelhano, pretenderá-se suster o galego independente frente aos seus dous poderosos vizinhos, como um David heróico -ou herói-cómico?- que com sua funda de pegureiro mantivesse à raia os dous poderosos Golias, de moderna e esmagadora panóplia, que abalam as suas maças de ferro nos limites - ou mais bem dentro dos limites- do pequeno cantom lingüístico do iluso pastor. O que se propom, pois, é uma atitude de independentismo total, como pode cumprir ao euskara, que, por nom ter parentes nas suas fronteiras, pode elaborar uma normativa inteiramente autárquica".
O REINTEGRACIONISMO
A posição reintegracionista contrária aglutina uma corrente de opinião favorável à cooperação com o português. Fechar os olhos a ele seria, seguindo as palavras do escritor e professor Ricardo Carvalho Calero, renunciar a aproveitar para resolver os problemas do galego uma série de soluções codificadas que nos poupariam muitos esforços antieconómicos, por um lado, e por outro, ao explorar sistematicamente as diferenças que o influxo da colonização lingüística castelhana determinou no galego, seria propiciar a sua centralização, isto é, a sua absorção pelo castelhano-espanhol. Os flamengos não fecham os olhos perante o holandês; os valões não fecham os olhos perante o francês. Em Suíça há cantões que falam francês, italiano ou alemão sem deixarem de sentir-se helvéticos. A cooperação com o português favoreceria a difusão dos nossos textos literários num horizonte crescentemente extenso. A reintegração do galego, em quanto for possível, no iberorromânico ocidental, quer dizer, a restituição do galego na sua integridade, mediante a limpeza de castelhanismos, suporia uma aproximação do português enquanto libertação da pressão do castelhano. Não se pretende nem assumir sem mais o português nem adoptar como galego de hoje o do século XIII. Simplesmente, o reintegracionismo supõe o razoável reingresso na comunidade lingüística a que realmente pertence o galego, único jeito de evitar a sua absorção pelo hispânico central. Isto implica, desde já, uma ósmose entre os distintos representantes do antigo romanço ocidental; ósmose em que, segundo o sentir de Carvalho Calero (o formulador mais certeiro destas ideias que estamos glossando), o galego não só pode manter as suas normas dentro do sistema senão que pode propagá-las (sequer como variante estilística) além das suas fronteiras políticas, como pode aceitar outras que, procedentes doutras normativas, acaiam ao sistema e não sejam estranhas ao galego. O que não parece lógico é dar as costas às formas normativas irmãs.
É claro que tudo isto só preocupa na Galiza a quem tem o desejo de manter a sua identidade, alvo do nacionalismo. Só com esse desejo se reconhece na língua, signo visível de comunhão, o melhor instrumento para manter a identidade. Os brasileiros sabem, após a independência em 1822, que a língua não confere a nacionalidade, porque embora Brasil não se confunda com a antiga metrópole tem essencialmente a mesma língua. Mas também sabem que há nações plurilíngües. E sobretudo sabem muito bem que uma nação é uma vontade colectiva de destino comum. Se agora procuro explicar aos brasileiros que ainda conservamos uma língua própria ao lado do espanhol de fora, pondo de parte os parentescos dessa língua com os prolongamentos lusos,compreenderão os brasileiros a preocupação por este signo vital de identidade que ainda nos resta. Daí a preocupaçãopor uma Galiza que talvez no futuro não fale galego, em vista da presença esmagadora dos mass media espanhóis. Por exemplo, uma Galiza absolutamente castelhanizada. Ou, se queremos pensar numa situação menos radical, uma Galiza onde o galego seja respeitado, mas não promovido. Ou mesmo uma Galiza onde o galego seja considerado como uma relíquia histórica, como uma típica modalidade folclórica a conservar com fins turísticos, como uma terra com reservas nas quais um grupo de camponeses e de intelectuais vivessem subsidiados pelo Estado, consagrados a falar, escrever, cantar, rir e chorar em galego com acompanhamento de gaita. Neste sentido dá igual a normativa a empregar, e até seria mais preferível aquela mais perpassada de castelhano.
LÍNGUA E NAÇÃO
Mas há a tradição anteriormente aludida ("Irmandades da fala", revista "Nós", Seminário de Estudos Galegos, Risco, Vilar Ponte, Otero Pedraio, Carvalho Calero...) que aspira a outra fortuna para o galego que não seja a de uma relíquia na vitrina da UniãoEuropeia como língua minorizada. A tradição daqueles intelectuais e instituições que propugnaram o galego como língua da Galiza. Para muitas pessoas ainda agora não há outra fórmula satisfatória. Não vemos a Galiza falando noutra língua que a nossa. O ideal implica problemas de organização, devidos ao estado em que a língua se encontra, à presença social do castelhano e à existência dum idioma oficial da Administração central. Problemas que devem resolver os políticos (no fundo o problema é fundamentalmente político). Aos amantes da palavra corresponde-nos fornecer a informação precisa para essa resolução.À reinstauração definitiva do galego na vida da Galiza, à qual todos são convocados com respeito e amor nas palavras de Carvalho Calero, não está a conduzi-lo uma normativa ao colo do espanhol. O mais triste de tudo isto é que muitos companheiros e companheiras foram e são fortemente discriminados por ter esse ideal e defender a via reintegracionista. As "autoridades" do galego descobriram-se de repente sábios supremos de uma língua única. Com dinheiros públicos pagamos as suas viagens e estadias até no Brasil para explicar requintes de gramática galega a quem fala essencialmente a mesma língua. Não é o mesmo saber de dialectologia de um sistema que saber de um novo sistema, e muitos professores de que me consta aquele ideal inicial da identidade nacional, acabaram por ficar atrapados pelas árvores sem ver o bosque. As editoras, os prémios literários, os postos docentes, fascinam e envilecem. Cansei-me de ver amigos escritores, intelectuais, mais críticos do que eu nos tempos de estudante, entregando-se aos confortos e prémios da postura oficial. Algum poderá confessar como pecado venial de aventureiro uma juventude "lusista" ou "reintegracionista" (no tom insultante com que pode usar a etiqueta algum ex-funcionário da ditadura espanhola, em geral malinformada), mas terá de reconhecer que era o caminho lógico quando não se antepunham outras "prioridades". "Não estou disposto a perder o meu lugar na História da Literatura Galega por causade uma normativa", disse um escritor meu conhecido há cinco anos, como se tal coisa existisse com essas maiúsculas para o planeta (por certo, a melhor dessas "Histórias" continua sendo a elaborada por Carvalho Calero, no tempo em que não existiam computadores). Tenho visto cair os paus demasiado perto, e até recebido algum de leve, para não ser compreensivo com tanta mudança. Já o disse Camões no soneto célebre. Mas espanta ver como "já não se muda como soía", e como se obriga a mudar em coisas importantes por misérias humanas. O que subscreve deve admitir que a fortuna lhe permitiu não ser precipitadamente reintegracionista e trabalhar com o português para ir confirmando serenamente esse pensamento que outros acolheram precipitadamente em momentos de entusiasmo. Embora me manifeste assim, devo indicar também que não alinho com posturas radicais que estão a promover movimentos juvenis que exibem certa violência verbal. No mês de Outubro celebrou-se na minha Faculdade o Congresso do ILGA (Instituto da Língua Galega), o núcleo representativo da postura oficial, e no seu encerramento houve lugar para infelizes manifestações desta violência. Os professores reintegracionistas (poucos, por razões óbvias que nos dificultam entrar, mas bons e generosos, pelas mesmas razões) pudemos comprovar mais uma vez como éramos indicados de instigadores. O poder deveria saber que nenhum favor nos faz nem isto nem o insulto nas paredes, e que o próprio poder costuma gerar violência na sua intransigente prática violenta (como até fisicamente se demonstrou no infortunado dia). Nenhum favor à Galiza que se joga o futuro com as moedas da língua e da nação. No mês de Novembro celebrar-se-á em Vigo o trianual Congresso Internacional da Língua Galego-Portuguesa na Galiza, promovido pela AGAL(Associaçom Galega da Língua), que assume a liderança académica da postura reintegracionista. É pena que os dois congressos, de inspiração tão diferente, não chamassem conjuntamente os participantes para um entendimento dentro das duas polaridades. Participar algum de nós naquele (embora algum reintegracionista menos conhecido sim estivesse apresentando comunicação) seria visto como desafiante por parte deles; imagino que eles participarem neste daria na mesma (com a diferença de que a sua postura de poder não lhes permita nunca rebaixar-se a questionar o seu posicionamento, porque seria questionar o seu poder). Assim estão as coisas.
Mas tudo isto último já foi muito além do propósito desta Carta de Achamento. Entramos em pormenores que indicam sobradamente a necessidade de acharmo-nos antes a nós próprios em muitos sentidos. Mas vale a pena que forme parte do conjunto como matiz da realidade controversa que alguns vivemos. Agora é assim. Muitos brasileiros podem olhar para o rosto da Europa que os olha, e pensar quê pensa essa testa por cima dos românticos cabelos, toldando a vista do passado sobre o mar, e até do mesmo presente sobre a língua.Alguns de nós gostaríamos que pensasse no Brasil como Rei, e não toldasse a vista do futuro.
Santiago de Compostela, Outubro de 1996.
CARLOS QUIROGA (1961), Licenciado em
Hispânicas e em Galego-Português, Doutor europeu com uma
tese sobre Fernando Pessoa, é actualmente professor na
Univiversidade de Santiago de Compostela. Foi bolseiro da
Fundação C. Gulbenkian e do Instituto Camões,
director da extinta Revista Galega de Criação,
«O Mono da Tinta», autor de modestos trabalhos no
domínio artístico e do estudo literário.