Carta missiva[1]

 

Eliane Vasconcellos

Casa de Rui Barbosa


Resumo:

Em face das pesquisas realizadas em acervos particulares, fazemos uma breve conceituação das cartas e mostramos as implicações jurídicas que envolvem a pesquisa com este tipo de documento, isto é, as cartas quando ainda inéditas. Apresentamos um resumo das leis que regem os direitos autorais e o direito da intimidade.

 

Abstract:

In spite of the research done in private collections, we present a brief conceptualization of the letters, and show the legal procedures used by this kind of research. Wich involves leters that still have not been published. We also present a summary of laws that preserves the copyrights and the author's privacy.


O uso da carta é encontrado entre todos os povos antigos. Gregos e romanos a escreviam em lâminas ou tabletes de cera que davam ao escravo para levar. A escrita feita por meio de um estilete, era gravada em um só lado da lâmina, que era envolvida por uma fita que, no extremo, levava o carimbo; na parte externa, gravava-se o endereço. Posteriormente foi adotado o papiro ou charta, conhecida desde Alexandre Magno, e que se compunha de duas folhas atravessadas por um cordão, que terminava em nó, com um carimbo.

Os escravos encarregados da correspondência chamavam-se amanuense ou epistolis a manu. Durante a Idade Média o material empregado foi o pergaminho, substituído pelo papel no século XIV. O sinete ou timbre do anel feito em cera de abelha, aplicado à carta, foi largamente usado desde os mais antigos, e este costume perdurou até o século XIV, quando o lacre passou a ter voga.

Como se pode observar pelas características expostas, a carta missiva vem sempre envolta em sigilo, ora envolvida por uma fita, ora marcada com um carimbo, sinete ou lacre. Hodiernamente, estes foram substituídos pelo envelope fechado, muitas vezes acrescido da observação -- confidencial. As cartas têm caráter íntimo e/ou confidencial. Logo, as informações ali registradas fazem parte do espaço privado, inviolável. Em sua essência ela é um gesto privado, não coletivo, envolvendo a pessoa que escreve, o autor ou signatário, a pessoa a quem é dirigida, o destinatário e muitas vezes uma terceira pessoa da qual se fala.

A carta é a conversação com alguém que está ausente, na qual colocamos o que diríamos se estivéssemos presentes. Mudando de acordo com a época, espera-se que traga novidades do cotidiano, da vida política e pessoal, reflexões, confidências e expressões de sentimentos.

Juridicamente a carta vem definida na Lei 6538, de 1978 como

objeto de correspondência, com ou sem envoltório, sob a forma de comunicação escrita, de natureza administrativa, social, comercial, ou qualquer outra, que contenha informação de interesse específico do destinatário.

Podemos ter cartas dirigidas a um destinatário real ou a um destinatário fictício. No último tipo, entre nós, podemos destacar as Cartas Chilenas e no cenário mundial as Cartas Persas. As cartas dirigidas a um destinatário real estão envolvidas em dois aspectos: o documental e o literário. As cartas são hodiernamente consideradas como parte integrante da obra de um autor, pois é comum encontrarmos a correspondência publicada junto à obra completa. Apesar de não haver na correspondência a intenção de se fazer arte, ela pode ser considerada um gênero literário.

A correspondência permaneceu durante muito tempo sepultada nos arquivos públicos ou privados, só recentemente é que passou a ter valor como documento de maior importância. Os pesquisadores têm-se conscientizado de que podem encontrar nelas dados relevantes: ela funciona como testemunho vivo de uma época, pode documentar uma história pessoal, registrar situações, ações e reflexões. Nela há um status peculiar entre o autor (signatário) e o leitor (destinatário), tendo muitas vezes valor de crônica.

No nosso caso específico, estamos falando das cartas missivas que se encontram nos arquivos privados[2] de escritores. Em momento algum perdem suas características: não deixaram de ser cartas, fixam um momento, transformando-se em documento, muitas vezes fonte substancial de pesquisa. O nosso maior missivista Mário de Andrade já ressaltou este ponto:

Tudo será posto a lume um dia, por alguém que se disponha a realmente fazer a História. E imediato, tanto correspondência como jornais e demais documentos não "opinarão" como nós, mas provarão a verdade.[3]

Se de um lado, Mário reconhece a importância da correspondência como fonte documental, de outro sabe também que se trata de uma faca de dois gumes. Mário foi um defensor da privacidade, diz a Manuel Bandeira: "As cartas que mando pra você são suas. Se eu morrer amanhã não quero que você as publique."[4]. Como sabemos felizmente Manuel Bandeira não seguiu a recomendação do amigo, transgrediu este conselho e vai ser o primeiro a publicar-lhe as cartas. Mas para preservar as confidencias de Mário vai suprimir alguns trechos. Deixemos o poeta falar:

Possuo cartas de Mário indevassáveis devido à intimidade das confidências (é o caso das duas cartas em que ele me relatou a breve ligação com a mulher que lhe inspirou o "Girassol da madrugada") ou à rudeza de certos juízos pessoais, fruto muitas vezes de irritações momentâneas. Todos fizemos isso e, arrependidos que estamos, pensamos com inquietação numa possível leviandade dos destinatários.

Nas que aqui se vão ler, cartas tão esclarecedoras da obra de Mário, da sua maneira de trabalhar, da sua visão, tão pessoal, da vida e da literatura, da música e das artes plásticas, uma ou outra passagem seria indiscreto revelar sem a cautela de alguns cortes. Assim procedendo, atendo à confiança com que o grande poeta escreveu e me mandou tantas páginas admiráveis, muitas não inferiores às melhores que publicou em vida. [5]

 

Esta atitude de Manuel Bandeira de respeito e de ética com relação à publicação das cartas de Mário vai ser seguida pela maioria de seus amigos. Oneida Alvarenga vai suprimir também nomes, Pedro Nava não vai publicar algumas cartas e, ao doá-las ao Arquivo-Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa, entrega-as lacradas.

Voltando à explicação de Manuel Bandeira podemos observar que o poeta, ao censurar a correspondência do amigo, levou em conta os seguintes aspectos: intimidade das confidências, rudeza de certos juízos pessoais, cautela sem prejudicar o valor literário da correspondência. Bandeira vai tomar esta atitude pois sabia que em uma carta o signatário raramente faz restrições ao seu pensamento, ele se coloca nu diante do destinatário. O poeta ao fazer cortes estava preservando, entre outras coisas, o direito à intimidade. Por se tratar de um discurso informal, na carta se expõem idéias e sentimentos que são reduzidos e interpretados por um terceiro -- o leitor.

Por este motivo, nós que trabalhamos com correspondências encontradas em arquivos privados, devemos ter em mente alguns problemas de ordem ética e jurídica, que de certa forma encontram suas raízes nas observações feitas por Bandeira ao publicar as cartas de Mário.

Do ponto de vista jurídico, o signatário detém o direito autoral da carta; o destinatário possui o direito material, ou seja, ele é dono do suporte, normalmente o papel, onde a carta foi escrita, e os dois são protegidos pelo direito à intimidade, assim também como aqueles que são mencionados no texto em questão. O arquivo apenas guarda a documentação. Por esta razão ele não pode autorizar a publicação de seu material, no que diz respeito aos dois direitos mencionados: o autoral e o da intimidade.

A Organização da Nações Unidas em 1948 já se preocupava com este tema. Na sua Declaração Universal dos Direitos Humanos no artigo XII, assim se expressa:

Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Todo homem tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques.

A nossa Constituição, no artigo 5, parágrafo X, dispõe sobre a proteção do direito a intimidade:

São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.

E o artigo 153 do Código Penal diz constituir crime:

Divulgar alguém, sem justa causa, conteúdo de documento particular ou de correspondência confidencial, de que é destinatário ou detentor, e cuja divulgação possa produzir dano a outrem.

Foi aprovado, em 24 de janeiro de 1997, o Decreto n.º 2.134, que regulamenta o artigo 23 da Lei n.º 8.159, de 8 de janeiro de 1991, que dispõe sobre a categoria dos documentos públicos sigilosos e o acesso a eles. O referido decreto diz respeito somente aos arquivos públicos, mas por extensão podemos usá-las para os arquivos privados, principalmente o Capitulo IV, Da Intimidade. Nele se estabelece que os documentos relativos à intimidade estarão protegidos por um prazo de 100 anos, a partir da data de sua produção. Para termos uma idéia do que acontece em outros países citaremos alguns exemplos: Nos Estados Unidos, os dossiês médicos ficam reservados por 75 anos; na Holanda, há um prazo médio de 60 anos; no Canadá (Quebec), as leis que legislam sobre a vida privada dão prazos de até 100 anos; na França, igualmente, são de 100 anos o prazo para proteção da vida privada.

Outro problema que devemos ter em mente quando trabalhamos com cartas diz respeito ao Direito Autoral. Esta matéria era abordada na legislação civil e na penal, respectivamente nos artigos 649 a 673 do Código Civil e nos artigos 184 [6] a 186 (Dos crimes contra a propriedade intelectual) do Código Penal. As sanções previstas no Código Penal ainda se encontram em vigor. A lei que rege o Direito Autoral é recente, data de 1973, (lei 5988/73) [7] .

O artigo 6º da lei de Direito Autoral diz:

São obras intelectuais as criações do espírito de qualquer modo exteriorizadas, tais como:

I - os livros, brochuras, cartas missivas e outros escritos. (o negrito é nosso)

E o artigo 21 dispõe: "O autor é titular de direitos morais e patrimoniais sobre a obra intelectual que produziu." E o artigo 33 da mesma lei registra: "As cartas missivas não podem ser publicadas sem permissão do autor, mas podem ser juntadas como documento, em autos oficiais." (o grifo é nosso)

O remetente detém o poder de autoria sobre sua correspondência, o valor estético não está em jogo e o artigo 5º parágrafo XXVII da Constituição lhe dá o direito de publicação ou reprodução, direito este transferível a seus herdeiros, pelo prazo de 60 anos a partir de primeiro de janeiro do ano subseqüente ao do falecimento do autor.[8] Só depois a carta cai em domínio público.

Entretanto, há algumas disposições, na lei de Direito Autoral, que permitem ao pesquisador trabalhar com um pouco mais de liberdade, sem ferir os direitos do autor. O artigo 49 parágrafo 2º da referida lei diz que não constitui ofensa aos direito do autor: "A reprodução em um só exemplar, de qualquer obra, contanto que não se destine à utilização com intuito de lucro." E o parágrafo 3º esclarece igualmente que não constitui ofensa aos direitos do autor "a citação em livros, jornais ou revistas de passagens de qualquer obra, para fins de estudo, crítica ou polêmica". Nelson Teixeira dos Santos, um dos poucos estudiosos desde assunto, ensina: "Assim é que, por exemplo, cartas existentes em arquivos podem ser reproduzidas e utilizadas sem intuito de lucro"[9]. Baseado no artigo 49 parágrafo III, que dá o direito de citar, esclarece:

o destinatário de uma carta, ou mesmo quem a ela tenha acesso, não está impedido de fazer citações. O que não foi o caso de Paulo Mendes Campos, que em sua coluna do Jornal do Brasil (...) transcreveu, ipsis litteris , três cartas que Vinícius de Morais lhe escrevera em 1958.[10]

Entretanto, o mesmo autor em texto apresentado no I Simpósio Nacional de Políticas Arquivísticas, realizado em Ouro Preto em junho de 1996 em resposta a pergunta: Pode um pesquisador citar uma carta? Baseado no artigo III da lei de direito autoral diz que não se pode "extrair trecho de uma carta e citá-lo, mesmo que mencione a fonte, por não se tratar de texto editado".

Trabalhar com cartas missivas requer cautela. Pois temos de resguardar o direito daqueles que nos confiaram sua documentação. Este é um ponto de reflexão das atividades desenvolvidas no Arquivo-Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa. Plínio Doyle, seu primeiro diretor, sempre foi muito cioso deste problema. Além de grande bibliófilo, é advogado e foi o fundador do Sindicato dos Escritores do Rio de Janeiro, logo a postura que tomava diante da documentação que chegava ao AMLB, só podia ser de respeito para com o doador (muitas vezes amigo particular de Plínio Doyle) e para com as informações literárias nela contida. Sua política de reservar documentos atendeu sempre a dois aspectos. Primeiro a vontade expressa do doador, antes ou depois da doação já efetuada. Como exemplo podemos citar o arquivo do editor José Olímpio, doado a Fundação Casa de Rui Barbosa em 1979. Depois do arquivo todo inventariado e decorrido já 4 anos [11], José Olímpio decidiu, por razões puramente pessoais, fechar o arquivo à consulta até 10 de dezembro de 1992, data em que completaria 90 anos. Entretanto, em março de 1991 os seus herdeiros autorizaram a abertura do arquivo à consulta. Como já salientamos Pedro Nava ao doar sua correspondência com Mário de Andrade a lacrou. Paulo Gurgel Valente, filho de Clarice Lispector, decidiu depois de algum tempo que as cartas de seu pai Mauri Gurgel Valente remetidas à sua mãe deveriam ficar reservadas até o ano 2010.

Além deste aspecto da vontade expressa, temos muito cuidado no que diz respeito à proteção à intimidade, à vida privada. Dentro deste item levamos sempre em conta fatos relacionados à vida familiar, amorosa, problemas relacionados à saúde e à vida profissional e financeira, não só do titular como também de terceiros. Toda a correspondência que chega a nossas mão é lida, e sempre que nos deparamos com algum problema consultamos o doador, que nos dá ou não a autorização para reservar.

Carlos Drummond de Andrade, na crônica "O quarto violado do poeta" publicada no Jornal do Brasil, de 2 fevereiro de 1978, abordou o problema do direito a privacidade.

A Mário Quintana, em Porto Alegre: Estou solidário contigo e acho que todos os nossos colegas devem estar. Tua liberdade foi atingida em ponto supostamente menor, porém dos mais delicados; o direito à intimidade, que hoje extravasou dos dicionários e se chama privacidade. À tua revelia, e contrariando tua discrição, penetraram em teu quarto de hotel e filmaram a singeleza de tuas coisas domésticas. E querem exibir o teu quarto num festival de cinema, sob um título de intragável mau gosto. Chamando a isso de homenagem.

Ainda a este respeito, o Código de Ética aprovado pelo Comitê Executivo do Conselho Internacional de Arquivos, durante o XIII Congresso Internacional de Arquivos realizado em setembro de 1996, em Beijing, diz:

Os arquivistas defendem o respeito à vida privada das pessoas que estão ligadas à origem ou que são a própria matéria dos documentos, sobretudo daquelas que não foram consultadas quanto à utilização ou ao destino dos documentos.

No que diz respeito aos direitos autorais o nosso pesquisador é informado da legislação vigente e dos procedimentos que deve cumprir para ter seu trabalho publicado sem problemas legais.

Em resumo, podemos dizer que o AMLB ( Arquivo-Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa) tem consciência do direito da sociedade à informação, mas sabe também que o cidadão tem direito à privacidade.

 

Notas:

[1] Para maiores informações no campo jurídico consultar: SANTOS, Newton Paulo Teixeira dos. A carta e as cartas de Mário de Andrade. Rio de Janeiro: Diadorim, 1994. Esta obra bem como as palestras sobre Direitos Autorais proferidas por Newton Paulo Teixeira Santos servirão de ponto de partida para este trabalho. BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1898. Retorna ao texto

[2] "Conjunto de documentos acumulados em decorrência das atividades de pessoas físicas e jurídicas de direito privado, depositados ou não em instituições públicas". In: CAMARGO, Ana Maria de et alii (org.). Dicionário de terminologia arquivística. São Paulo: Associações de Arquivistas Brasileiros, 1996. Retorna ao texto

[3] Artigo de Mário de Andrade: Fazer a História, citado no livro Cartas a Anita Malfati. Retorna ao texto

[4] BANDEIRA, Manuel. Prefácio. In: ANDRADE, Mário. Cartas a Manuel Bandeira.Tecnoprint, Rio de Janeiro, 1967. p.19. Retorna ao texto

[5] Ibidem. p.20. Retorna ao texto

[6] A pena para violação do direito autoral é de detenção de três meses a um ano, ou multa . Retorna ao texto

[7] Ela foi emendada pela lei 6800/80, quando se regulamentou o artigo 83, que diz respeito à numeração de fotogramas, e alterando ainda o artigo 117, que dispõe sobre as atribuições do Conselho Nacional de Direito Autoral- CNDA, órgão que foi desativados no governo Collor. Em 1987 ela sofreu um acréscimo de um capítulo que trata de problemas relacionados a proteção de programas de computador. Retorna ao texto

[8] Lei do Direito Autoral. Artigos 42 e subseqüentes. Retorna ao texto

[9] SANTOS, N. P. Teixeira dos. A carta e o crime. Revista de Informação Legislativa, n.º 108. out-dez. 1990.p.217. Retorna ao texto

[10] Ibidem p. 218. Retorna ao texto

[11] A carta que solicita para que o acervo seja reservado é de 18 de julho de 1983. Retorna ao texto


Eliane Vasconcellos é Doutora em Letras pela UFRJ, chefe do Arquivo-Museu de Literatura Brasileira, responsável pela organização dos arquivos particulares de Clarice Lispector, Vinícius de Morais, Pedro Nava entre outros e autora de A mulher na língua do povo (traduzido para o francês pela editora L'HArmattan) e de artigos na área de manuscritos.


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