VIDAS SECAS - UMA NARRATIVA

BIOGRÁFICA

 

 

Edilene Matos

Universidade Católica da Salvador

 


Resumo:

Com este artigo, pretende-se fazer uma amostragem de instâncias biográficas com diversos graus de ficcionalidade, evidenciadas em três momentos da obra de Graciliano Ramos. a saber: Infância , Vidas Secas e Memórias do Cárcere.

Busca-se, sobretudo, pontuar a questão da narrativa biográfica, aqui exemplificada pelo romance Vidas Secas, em que se tem um pluridimensionamento dos personagens evocados nas vozes narrativas, uma inserção arqueológica de vivências traduzidas pela memória de onde se extrai o estatuto de ficção.

 

Resumée:

Cet article veut faire une démonstration des instances biographiques, avec plusieurs degrés de fiction, évidentes en trois moments de l'oeuvre de Graciliano Ramos: Infância , Vidas Secas et Memórias do Cárcere.

On cherche faire, surtout, une ponctuation sur la question de la narrative biographique, ici exemplifiquée pour le roman intitulé Vidas Secas, où il y a une dimension pluriel des personnages evoqués aux voix narratives, une plongée archéologique des expériences traduites pour la mémoire, space où le statut de fiction a son accueil.


 

Todos os meus tipos foram construídos por observações apanhadas aqui e ali, durante muitos anos. É o que penso, mas talvez me engane. É possivel que eles não sejam senão pedacos de mim mesmo e que o vagabundo, o coronel assassino, o funcionário e a cadela não existam. (Graciliano Ramos)

 

 

Vidas Secas não é um livro que possa ser lido como obra ficcional, sem que se questionem os graus de ficcionalidade ali entretecidos à autobiografia. Queremos, de inicio, apontar para a conceituação de narrativa biografica, entendida como uma presença de um conjunto de vozes, sem háver, necessariamente, a intromissão do autor. Aqui, importa não o próprio eu, antes conferido pelo discurso da biografia, mas a obra em si referendada sob a forma de nós, numa fusão do social com o pessoal. A narrativa biográfica contemporânea faz um percurso no sentido de esmagar o individual, visto que ultrapassa esse individual, aniquilando-o, de modo a não permitir uma visão unilateral do mundo circundante.

Graciliano Ramos nos surpreende à medida em que sua obra atinge graus diversos de ficcionalização abrangendo modalidades como a autobiografia ficcional e a narrativa ficcional. Com isso, estamos nos referindo ao fato de que toda a sua obra, mesmo a memorialística lato sensu considerada, aqui chámada de autobiografia, exemplificada por Memórias do Carcere, perpassa pela ficcionalidade, impossível não dar voz ao escritor:

também afligiu a idéia de jogar no papel criaturas vivas, sem disfarces, com os nomes que têm no registro civil. Repugnava-me de-formá-las, dar-lhes pseudônimo, fazer do livro uma especie de romance; mas teria eu o direito de utilizá-las em história presumivelmente verdadeira? Que diriam elas se se vissem impressas, realizando atos esquecidos, repetindo palavras contestaveis e obliteradas? 1

Em Infância, tomamos contato com um grau um pouco mais acentuado de ficcionalidade, para o qual usamos a nomenclatura de autobiografia ficcional, onde os fatos são expostos sem linearidade, com o narrador intercalando memória e fantasia, em intervalos cada vez menores.

Finalmente, a narrativa ficcional, exemplificada com Vidas Secas, objeto desse estudo, compondo um mosaico, a partir de vários quadros, onde a experiência do autor, apenas, subjaz - retratada na pluralidade de eus: Fabiano, Sinhá Vitória, o menino mais velho, o menino mais novo, a cachorra Baleia, Seu Tomás da Bolandeira.

Exemplo modelar de contenção, Vidas Secas evoca uma tradução conscientizada dos sentimentos do seu autor que está pluridimensionada em cada um dos personagens, que são, exatamente, as vozes narrativas.

Graciliano Ramos captura as experiências pessoais vividas no momento da sua escritura, estabelecendo determinados traços mnemônicos, que fazem ligação do passado com a fantasia.

A participação intelectiva tem função disciplinadora à medida em que a absorção do mundo vaza, constantemente, pela reflexão. Sobre isso, tomemos as palavras de Valery a respeito do processo de composição de Edgar Allan Poe e inserido na sua Art Poétique:

 

Tudo o que imaginou, sonhou e planejou será passado por um crivo pesado, filtrado, submetido a uma forma e condensado ao máximo possível, de modo a ganhar em força, o que perder em extensão.2

Com os elementos filtrados e banidos da inconscientização, a imaginação lapidada atraves da ação do intelecto, Graciliano Ramos, ao codificar o universo de Vidas Secas, retoma parte de sua memoria em contato com vaqueiros nordestinos, pertencentes ao seu hábitat, e cria o vaqueiro Fabiano e também as vistosas saias de chita em ramagens cor de sangue e veste Sinhá Vitória.

Quanto à alusão a personagens identificados com animais, há incidência em Vidas Secas do que relata em sua autobiografia ficcional - Infância. O tema é mais uma vez abordado, agora de maneira mais contundente, ocorrendo uma espécie de metamorfose não explicitada, um meio termo entre o mundo racional e o irracional: nem se é homem por completo, nem se é completamente bicho. Isso perpassa pelos personagens Fabiano, Sinhá Vitória, o menino mais velho, o menino mais novo e Baleia, a cachorra que sonha com preás gordos e enormes, atividade reservada aos homens.

Essa metamorfose indica, portanto, um aspecto punitivo que o personagem narrador se impõe, sem sabê-lo, provocada pela própria condição subumana de vida:

Fabiano, você é um bicho, aparecera na fazenda como um bicho, entocara-se como um bicho.3

Esse estado limitrofe entre o homem e o animal se estende para toda a família, num momento de proposição de um sentido duplo, pelo caráter alegórico representado via metamorfose:

Fabiano parecia um macaco.

Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele.4

Alongando a nossa discussão no tocante à tipologia da narrativa biográfica em Vidas Secas, tomamos a presença das crianças, inominadas, sem carinho e sem compreensão por parte dos pais embrutecidos e, ao estabelecer comparação com a escritura da sua autobiografia ficcional, verificamos que esses meninos estavam definitivamente encerrados na memória do seu criador. Para tratar do assunto, convém buscar respaldo no pensamento de Freud, para quem a imaginação é identificada com a memória, pois tudo se constrói buscando o passado, mesmo que esse passado apareça transformado com novas roupagens.

Quanto a esse aspecto da memória identificada com a fantasia, lembramos o estudo de Sarah Kofman quando, ao fazer uma releitura de Freud, acentua que no instante em que uma criança vive uma experiência, ela ainda não tem a capacidade de compreender, o que só fará mais tarde, e é aí que a lembranca se converte em fantasia.

É através da ação da consciência nessas lembranças vividas que o escritor adulto Graciliano Ramos efetua, em Vidas Secas, uma ruptura com o modelo linear da biografia convencional, ocasião em que a sua escritura perfaz um movimento de uma obra de arte, pela interferência da lucidez.

Vidas Secas apresenta uma narrativa pautada pelo equilíbrio, podendo-se afirmar a predominância do caráter apolíneo, o que vale dizer que não são os impulsos emocionais das experiências vividas pelo autor simplesmente transplantadas para a sua criação, e sim após um intenso labor, trabalho de carpintaria. Os impulsos dionisíacos são refreados, submetidos a lúcida reflexão e reelaborados meticulosa e artisticamente.

Estudos no sentido de se analisar a obra de Graciliano Ramos, partindo dos reflexos de sua personalidade já foram empreendidos, mesmo fora do Brasil, a exemplo da tese de doutoramento de Helmut Feldman, apresentada a Universidade de Colonia, Alemanha, que redundou, segundo Franklin de Oliveira em artigo escrito para O Globo, 1975, e, posteriormente, incluído na Fortuna Critica de Graciliano Ramos (Civilização, 1977), em insolita provocação.

A inferioridade do personagem Fabiano, reflexo do homem sofrido do Nordeste, em relação ao poder simbolizado em Vidas Secas pelo patrão e pelo soldado amarelo e o aproveitamento ficcionalizado do temor e fragilidade evocados em Infância:

Medo. Foi o medo que me orientou nos primeiros anos, pavor. 5

E ali permaneci miúdo, insignificante, tão insignificante e miúdo como as aranhas que trabalhávam na telha negra. 6

A desconfiança no ser humano, o horror e, ao mesmo tempo, o sentimento de impotência diante das injustiças dos homens e das autoridades desencadearam, por sua vez, no escritor a composição do patrão e do soldado amarelo, que acentuavam a condição de errância do homem nordestino, em virtude da presença dos castigos impostos pelo sertão inóspito e é em Vidas Secas condensado no vaqueiro Fabiano.

Para compor Seu Tomás da Bolandeira, Graciliano Ramos utilizou elementos de sua parte de homem culto, inspirador de respeito, cortês, com acesso à cama de lastro de couro, tão sonhada por Sinhá Vitória.

A obra de arte se constrói de intenções. A intencionalidade de Vidas Secas aliada às lembrancas formam um rico e poderoso ambiente humano, onde o romancista encontrou campo para o auto-expandir-se.

São, portanto, as associações atuando no pré-consciente que devem ser coerentes, conduzindo o escritor para um mundo imaginado, mundo esse que se ergue a partir de dados do real concreto.

Se o narrador de Infância refere-se à dureza dos calçados a magoar-lhe os pés, o assunto vai ser reabordado em Vidas Secas, inspirando-o para a inaceitação dos calçados em Fabiano e Sinhá Vitória.

Em Vidas Secas, o narrador anota o relacionamento do menino mais velho com a mãe, no instante em que a pergunta O que é inferno? é formulada. Semelhante incidente é narrado em Infância, com tonalidades ficcionais em níveis diferenciados, conforme referência acima.

A personagem Sinhá Vitória é admiravelmente construída com seus momentos de mau humor, mas com sentimentos femininos arraigados na tradição, a maneira de unir o sonho à praticidade - ela é quem sabe fazer as contas, sendo admirada pelo marido sob esse aspecto, e a pessoa que sabe raciocinar:

Ele era bruto, sim senhor, via-se perfeitamente que era bruto, mas a mulher tinha miolo.7

E, ao mesmo tempo, é a que tem a capacidade de sonhar mais alto e de insistir no sonho, afastando-se do real em suas divagações:

Sinhá Vitória, queimando o assento no chão, as mãos cruzadas segurando os joelhos ossudos, pensava em acontecimentos que não se relacionavam: festas de casamento, vaquejadas, novenas, tudo numa confusão. 8

Sinhá Vitória desejava possuir uma cama igual à de Seu Tomás da Bolandeira. Doidice.9

Além dessa capacidade de sonhar, de dar fluência ao imaginário - um dos componentes da criação artística - a singular personagem feminina de Vidas Secas traz acentuadas as marcas que lhe conferem feminilidade, como o instinto de maternidade, ao proteger os pequenos do que denominava brabeza do pai, e o entristecimento ao se sentir objeto de zombaria por parte do marido:

Efetivamente os sapatos apertavam-lhe os dedos, faziam-lhe calos. Equilibrava-se mal, tropecava, manquejava, trepada nos saltos de meio palmo. Devia ser ridicula, mas a opinião de Fabiano entristecera-a muito. 10

Sinhá Vitória afasta-se mais do irracional que Fabiano, apresenta-se com ares de humanidade nos dois pólos - o da fantasia e o da logicidade. Justamente, o duplo movimento processado pelo escritor, que retoma o real, desrealiza-o, para, novamente, dar-lhe sopro de vida, através da elaboração de sua obra.

Desse modo, Graciliano Ramos se inclui no rol dos criadores cujas obras se inscreveram na história, pelo vigor.

Vale acentuar que Graciliano Ramos, ao realizar com Vidas Secas uma obra de arte, atinge o modelo que absorve o tradicional e reinstala um novo discurso biográfico, com teor de desconvencionalização, o que aqui se denomina narrativa biografica.

Vidas Secas adquire proporções de um obra de arte, elaborada no momento da escritura pela linguagem, extraindo da estrutura material e corpórea o estatuto de ficção. Mobiliza os dados efetivos, apaga-os e, finalmente, os recompõe numa parábola do real.

Partindo das experiencias vividas pessoalmente, Graciliano Ramos atinge a universalidade proposta pelo fazer literario, pois não mais o individuo age sozinho. Agora, na escritura, ele está envolvido visceralmente com o coletivo.

Em Vidas Secas, o eu de Graciliano Ramos não é egocêntrico, à medida em que atua como espaço refletor do coletivo e é nesse âmbito, que esse autor realiza um retrato social utilizando as cores da linguagem.

O escutar obssessivo da realidade, que marca os momentos da escritura em Vidas Secas, consegue, através da linguagem, que essa particularidade tenha a sua forma modificada, disfarçando o real, apresentando-nos outro mundo - um mundo coberto de penas. 11

 

 

Notas bibliográficas:

1.RAMOS, Graciliano. Memórias do Cárcere. Rio de Janeiro, Record, 1972, v. I, p. 33. Retorna ao texto

2.VALERY, Paul. Art Poétique. Paris, Gallimard, 1928, p.23. Retorna ao texto

3.RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. Rio de Janeiro, Record, 1976, pags.19,20. Retorna ao texto

4.Op.cit. p.21 Retorna ao texto

5. Infância. Rio de Janeiro, Record, 1975, p.14. Retorna ao texto

6.Op. cit.. p.35 Retorna ao texto

7.RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. Rio de Janeiro, Record, 1976, p.99 . Retorna ao texto

8.Op. cit. p. 11 Retorna ao texto

9.Op. cit.. p. 25 Retorna ao texto

10.Op. cit.. p. 43 Retorna ao texto

11. Um mundo coberto de penas, título inicial do romance, de Graciliano Ramos, que foi publicado como Vidas Secas. Retorna ao texto


Edilene Matos é Professora de Literatura Brasileira na Universidade Católica de Salvador - Bahia -, doutoranda em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Tem diversos trabalhos publicadps em livros, revistas e periódicos da área de Literatura Brasileira, sobretudo relacionados com as questões da poética, da oralidade e das culturas populares.


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