Novo livro de Luiza Lobo recupera o Decameron de Boccaccio.


Jorge Wanderley

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)


Luíza Lobo tem escrito contos, ensaios, poemas e traduções, num percurso que se organiza também ligado à atividade didática; e exatamente da professora de literatura vem uma das marcas estilísticas - a contínua alusividade - dos seus novos contos, neste Sexameron.

Aqui a figura de Margarida de Navarra, autora do Heptameron, de título inspirado no Decamerone de Boccaccio, assume a voz narrativa para fazer chegar ao leitor as histórias "de casamento" que constituem o livro.Daí - da sexualidade que passeia por todo o livro - o nome de Sexameron, e não apenas o Hexameron esperável para este conjunto de seis novelas, como se explica bem nas páginas introdutórias. Não só Boccaccio e a rainha de Navarra estão pairando pelos textos, como também inúmeros poetas e críticos e literatos de toda ordem aparecem aqui e ali, aludidos, citados, metabolizados pela química das histórias e pelo universo cultural e verbal da autora.A linguagem é, por isso mesmo, assinalada por atenções da ordem da poética e da história literária, em tratamento habilidoso, que não falseia nem atropela a narrativa. As personagens são modernas e bem presentes num espaço cultural referente aos nossos dias, embora o grupo de amigos que ouvem tudo esteja num futuro nada utópico, de um mundo - e no Rio de Janeiro - já dizimado pela Aids. Assim, o tempo narrativo está adiante, mas a narração é retrospectiva, de modo que o resultado é o presente, um presente que sabe sem dúvida de tudo que "era" preciso saber para entender realmente o mundo. Assim, há narrativas de viagem, situadas em outros países, ou no Rio das ruas de comércio no Centro, e outras mais, todas elas perfeitamente aparafusadas no nosso presente de hoje e coerentes com ele - o que vale dizer: com sua linguagem, sua cultura, suas formações míticas e sua realidade. Cada narrativa, portanto, presentifica um tempo que estava mais para além, trazendo-o ao nosso e a nós; o cimento dessa estrutura vai se consumar na linguagem, com o que a autora se diverte, ao mesmo tempo em que faz andar as histórias. Este prazer da escrita contamina todo o livro e a leitura, aliás. Mas, retomando o que se dizia: os cortes se fazem, de narrativa a narrativa, através de uma promenade, à maneira de Mussorgski em seu Quadros de uma exposição (como não lembrar do som melancólico mas firme de O Velho Castelo?) e de tantas peças musicais de outros compositores em que um interlúdio dá como que um refrigério neutralizador de efeitos e preparatório-de-efeitos-outros ao espaço que medeia entre momentos descritivos distintos. Esses interlúdios, nas narrativas de Luíza Lobo, são conversas entre as personagens, que ora comentam o que acabaram de ouvir, ora preparam o que se ouvirá em seguida, sempre jogando com considerações também interpessoais ou tiradas filosofantes ou irônicas sobre assuntos diversos. Mas o que importa dizer é que tanto aqui, nos interlúdios, como ali e além em cada uma das histórias narradas, o que mais realça é a presença da voz do autor real, (Luiza) bem mais que a do autor implícito (a pessoa, o espírito redivivos de Margarida de Navarra) ou de qualquer das personagens; um autor real que desfruta continuamente do prazer de narrar somado ao prazer da escrita. São dela, de Luiza, as observações irônicas sobre o mundo e países e gentes, sobre situações e mesmo fatos do nosso dia-a-dia, observações que atestam bem um espírito aguçado e muito humor. O leitor teórico desses textos, o leitor constituído pelo texto, o leitor implícito, enfim, é um ouvinte: o membro do grupo (futuro) que participa da noitada. No entanto, a forma expressiva encontrada pela autora ultrapassa com naturalidade e segurança isto que poderia ter constituído uma limitação (ou pelo menos um emolduramento) do horizonte de destinatários do texto, seus narratários, se me posso permitir mais uma palavra do jargão técnico. Assim, as narrativas logo se libertam de seu horizonte de usuários para se integrarem no âmbito do leitor plural, que somos nós todos, ainda que estando nós além da noitada, aquém no tempo, embora de volta a ele, pelo caráter retrospectivo, como já disse, das exposições.Quanto à natureza do que é narrado, escuso-me de antecipá-la, para deixar ao leitor o prazer de desfrutar das bem-humoradas peças que o aguardam, neste que é mais um bem-sucedido trabalho de Luiza Lobo. É só entrar, para encontrar com as personagens o prazer do vinho e das histórias, no mundo ficcional e variado do livro.

 


Jorge Wanderley é professor do Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Entre suas inúmeras traduções de poesia, constam autores como Paul Valéry, Shakespeare e Dante. Entre seus livros de poemas, destaca-se Adiamentos.


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