As várias edições individuais ou quartos (Q)
proporcionam a desmitificação da história textual, porque
expõem inúmeras variações, de versão para
versão. Muitos historiadores acreditam que as edições
posteriores a Q2, 1598, sejam reimpressões do Q1, 1597. Entretanto,
há outros quartos apresentados em ordem cronológica - (Q3)
1598, (Q4) 1608, (Q5) 1615, (Q6) 1634 - onde se observam inúmeras
variações. E na primeira antologia completa das obras de
Shakespeare, o Folio de 1623 (F1), Ricardo II aparece com outras
diferenças textuais.
O in-quarto de 1597 (Q1), a versão mais antiga existente de
Ricardo II ligada a Shakespeare, é o primeiro texto a ser
estudado; trata-se de uma versão nunca abordada, especificamente, porque
a ortodoxia o entendeu como incompleto: não inclui o episódio do
espelho, parte da cena do Parlamento, cuja correspondência se encontra no
Ato 4, cena 1, linhas 162-318, impresso pela primeira vez no quarto de
1608 (Q4), e posteriormente no primeiro Folio de 1623 (F1).
São considerados também três manuais de palco citados, no
catálago descritivo (1965), por SHATTUCK, que embora esteja sendo
revisado, contém listagem correta de títulos à
disposição nas principais coleções de livros
raros.
Os manuais se referem a adaptações para o palco durante os
séculos XVIII e XIX. O primeiro, do acervo da Biblioteca Folger,
é uma cópia da alteração publicada pelo encenador
Lewis Theobald, em 1719, e está relacionado à montagem de 1720,
no teatro Smock-Alley, de Dublin. O segundo, também do acervo da
Biblioteca Folger, é cópia da edição de Steevens,
organizada pelo ator e diretor Charles Kean, para uma montagem no Teatro
Princess's, em Londres, em 1857. A autora estabelece também a
relação desse manual com um livro de "deixas"e a primeira
edição de Ricardo II que Charles Kean publicou em 1857. O
terceiro manual é da Coleção de Teatro da Universidade de
Harvard e é cópia da edição de Richard Wroughton de
1815, com possíveis anotações pelo ator inglês
Edmund Kean para uma montagem em Filadelfia, em 1819.
Observam-se desde o século XVIII, variações extensas -
ortografia, escolha do vacabulário, ausência do diálogo,
ausências de poucas e até centenas de linhas - entre as
versões in-quarto e in-Folio. A
solução encontrada pelos editores foi conflacionar linhas,
trechos e cenas para produzir versões "completas", isto é,
fusões de folio e quartos, em
reconstituições de textos antigos.
Observa a Dra. Margarida Gandara Rauen que
o resultado mais notável dessa tradição editorial,
cujas limitações já
foram denunciadas por BLAYNEY (1997), é que as
pessoas....desde
o século XVIII, não tiveram a oportunidade de conhecer as
peças
"de Shakespear!" (RAUEN, 1999, 17)
A interferência de editores desde 1597 em Ricardo II está
bem evidente pelo controle rigoroso exercido pelo Estado, a partir de 1538,
sob o reinado de Henrique VIII, pois a liberação de qualquer obra
deveria ser autorizada pelo "Privy Council", devendo ser encaminhada pela
"Stationers'Companny, "Sindicato dos gráficos", que, em 1557,
oficialmente passou a controlar a publicação dos livros.
Convém assinalar que a censura continuou durante o reinado de Elizabeth
I (1558-1603).
Em Ricardo II parece haver críticas do dramaturgo ao reinado de
Elizabeth I; o tema é muito sugestivo, no final do século XVI,
pois a rainha corria o risco da deposição e a perda de
popularidade, situações de extrema semelhança com o
reinado de Ricardo II, no século XIV. Segundo SIMPSON (1874), a obra
criticaria a administração de Elizabeth e seria um alerta ao
futuro de seu reinado.
A hipótese da censura continua sendo aceita pelos editores durante o
século XX pela omissão da cena do espelho nos primeiros
quartos e observam que ela pode ter sido encenada antes de sua
publicação no quarto de 1608, KITTRESDGE (1941,vii), o que
assinala o medo de processos entre os profissionais do mercado gráfico.
Embora vários autores defendam a hipótese de censura da cena do
espelho, em pesquisas mais recentes autores como BARROL (1988), BERGERON (1991)
e CLARE (1997) rejeitam a tese da censura e a julgam simplista cultural e
historicamente.
Há, porém, a teoria revisionista de WARREN (1978) e desenvolvida
por URKOWITZ (1980) para explicar as variações textuais das
múltiplas versões de Ricardo II. Cada possibilidade
textual decorre do ponto de vista da encenação teatral.
TAYLOR e WARREN (1983) estimulam o estudo dos quartos e manuais de palco
Shakespearianos - reestruturação dos "scripts"para a
encenação - como documentos teatrais íntegros.
Na última década, deixou-se a análise para a
identificação de versões piores ou melhores e se deu
relevância à coerência dramatúrgica e teatral dos
textos como OSBORNE (apud BULMAN,ed.1996), alertando que a
investigação do Bardo verdadeiro é inútil porque
Shakespeare não deixou nenhum manuscrito original. (RAUEN,
199,p.21)
De acordo com URKOWITZ (1986), e WERSTINE (1988) e outros, cada texto
in-quarto e in-Folio deve ser considerado como
íntegro. Intenções autorais e determinação
de textos autênticos serão sempre frustantes até que
apareçam os manuscritos de Shakespeare.
É nesse contexto que a Dra. Margarida Gandara Rauen discute a validade
do primeiro texto in quarto de Ricardo II pela
análise da dramaturgia e da coerência histórica da
ficção.
Depreendemos a importância de Ricardo II entre textos, os manuais de
palco e a história: de 1597 a 1857, contribuição
valiosa para os estudos shakespeareanos e para todos os estudiosos de
dramaturgia no Brasil; pesquisa séria e profunda realizada na Biblioteca
Shakesperiana Folger, em Washington, D.C., na Biblioteca Nathan Marsh
Pusey/Biblioteca Houghton, e Coleção de teatro de Harvard.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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Esq. And published as it is performed at The Theatre-Royal, Drury Lane. London:
Printed for John Miller, 25, Bow-Street, Convent-Garden. 1815. Price Two
Shillings
and Sixpence (sic) [Harvard Theater Library item TS promptbook Sh 154.311]
Lygia Rodrigues Vianna Peres - UFF
Lygia Rodrigues Vianna Peres é doutora em Língua Espanhola e
Literatura Espanhola e Hispano-Americana, USP/92. A partir de sua tese de
doutoramento, O Maravilhoso no Teatro de Calderón de la Barca:
sonhos, visões e aparições, dedica-se ao estudo do
teatro do "Século de Ouro"espanhol, o século XVII, em
intertextualidade com a pintura, a tradição emblemática, a
História da Espanha. É coordenadora do GT de Dramaturgia e Teatro
da ANPOLL. Lygia@megaline.com.br