PROBLEMÁTICAS FINISSECULARES EM

LITERATURAS PERIFÉRICAS

DE LÍNGUA PORTUGUESA.

 

 

 

Maria Consuelo Cunha Campos

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)


RESUMO

Estudo comparativo de A cidade e as serras , de Eça de Queiroz e de Mad Maria, de Márcio Souza, focalizando o fim de século XIX nas ficções literárias portuguesa e brasileira, relativo a questões como modernidade tardia e liberalismo.

 

ABSTRACT

Comparative study of Eça de Queiroz 's A cidade e as serras(The city and the mountains) and Marcio Souza' s Mad Maria, focuzing the end of XIX century in Portuguese and Brazilian literary fiction related to questions as belated modernity and liberalism.


 

 

FINS-DE-SIÈCLE

 

Fim de século (XIX), início de outro(XX): ontem, como hoje, a transição de uma a outra centúria caracteriza-se por ocorrer, no Ocidente, sob uma ideologia dominante conservadora. O oitocentos ocidental finda sob a hegemonia da crença positivista no progresso, hipostasiado à modernização produzida pela 2ª Revolução Industrial. No período cronológico que recobre o final do século XIX e os primeiros anos do século XX, tanto a Europa periférica de Portugal quanto a América Latina de fala portuguesa constituída pelo Brasil são palco da hegemonia otimista desenvolvida no bojo do capitalismo liberal.

O senso comum associava, então, à ação reguladora do mercado, uma pretensa universalização de bem-estar social: liberadas as pessoas das tarefas mecânicas, transferidas cada vez mais a máquinas, desde a 1ª Revolução Industrial , e franqueado, amplamente, o acesso a novos e vários bens de consumo e a confortos da vida cotidiana urbana moderna, o futuro era encarado radiosamente. A uma utopia hegemônica ( a do livre mercado alavancando o progresso e o bem-estar social), contrapunha-se , contra-ideologicamente, outra, de cunho socialista: crítica da primeira, propugnava a coletivização dos bens da produção como condição sine qua non para uma sociedade sem desigualdades e exclusões sociais.

Neste fim de século XX, no entanto, hegemoniza-se, ao contrário, o consenso acerca da impotência da ditadura do mercado, em versão neoliberal, como produtora de bem-estar social: ao mesmo tempo , arrola-se, entre as verdades ditas de senso comum, a proclamada falência do socialismo real e, com ela, o dito fim das utopias.

Além da hegemonia liberal e neoliberal, estes dois últimos séculos se marcam por uma aceleração de processos de internacionalização ( da economia, das comunicações, etc) conhecidos, respectivamente, por cosmopolitismo e por globalização. Dois momentos de rápido alargamento dos conceitos ligados à mundialização, eles vêem emergir novas ordens mundiais (aquela conseqüente ao término da Primeira Guerra Mundial e aquela conseqüente, emblematicamente, à queda do Muro de Berlim).

O fim de século XX ainda assiste à entrada do planeta na era da informação, ou 3ª Revolução Industrial, já prenunciada pela rápida multiplicação, ao longo da centúria, de meios de telecomunicação, como a televisão e as redes de t.v., o fac-símile , os microcomputadores e as redes de computadores, por exemplo.

Em semelhante contexto, interessa-nos estudar, através de obras de ficção, portuguesa e brasileira, o drama da desconstrução desta ideologia hegemônica finissecular, configurando o avanço das modernizações, a contrapelo do senso comum, como produtor não de utopias mas de distopias. E, desta maneira, verificar como se dá a ler, em língua portuguesa, o drama das modernizações conservadoras tardias periféricas finisseculares.

Para tanto, focalizaremos A cidade e as serras, de Eça de Queiroz, e Mad Maria, de Márcio Souza.

 

CAMPO E CIDADE: DE TORMES A PARIS

 

A Cidade e as serras, de Eça de Queiroz , inicia-se com a narrativa do nascimento do protagonista, Jacinto de Tormes, num palácio parisiense situado na Avenue des Champs-Elysées, 202. De antiga cepa rural lusitana, a tradicional família do rico herdeiro de Tormes deixara os campos do Baixo Douro pelos urbanos Campos Elísios parisienses no bojo da derrota miguelista em Portugal.

Jacinto Galião, avô do protagonista, migrara, então, com a família, para Paris, em solidariedade ao desterro do príncipe D.Miguel. Ao longo da narrativa romanesca, o campo lusitano, inicialmente encarado por seu herdeiro Jacinto de Tormes, a partir do ponto de vista hegemônico então, como lugar do atraso a ser redimido pela transfusão do progresso urbano, se transforma, na nova ótica de seu proprietário, no locus de uma utopia bucólica, revivendo, por esta forma, o mito da Idade de Ouro em versão portuguesa.

É interessante destacar que o locus do nascimento de Jacinto (personagem com nome de flor e com ascendência rural entretanto surgido na cidade por excelência que é a Paris do século XIX) é marcado, na mitologia grega como morada post-mortem dos heróis e lugar de delícias, em moldura campestre. Transformados em emblema da modernização parisiense, os Campos Elísios, no discurso narrativo do romance português, tornam-se, ao contrário, o espaço emblemático da distopia.

Já na narrativa de origem, na genealogia de Jacinto , a construção de uma mitologia pessoal, por seu avô, desempenha importante papel na sua configuração como personagem. Assim, devoto, ele identifica D.Miguel ao Salvador e ergue-lhe um simulacro de altar doméstico, chamando-o "anjinho" e Messias. Tornado São Miguel, montando um corcel , nesta representação imaginária, o príncipe reveste-se da figuração do golpeador do dragão , figuração, por seu turno, do liberalismo político, que se contorceria sob a lança do arcanjo, vomitando a constituição. No combate das forças do bem contra as do mal, segundo a repartição do pensamento conservador, o antagonista seria representado pela figura do pedreiro -livre, D.Pedro, IV de Portugal e I do Brasil.

O palácio da moradia senhorial parisiense da família migrante portuguesa, por sua vez, fora comprado, pelo avô Jacinto, a um príncipe polonês, o qual, desgostoso com a tomada de sua Varsóvia, se fizera frade.

Morada de estrangeiros que se auto-desterraram de suas origens periféricas européias e se enraizaram na capital hegemônica do século, o 202 é uma metáfora da modernização conservadora da época.

No início da narrativa, o campo português, a herdade dos Jacintos, funcionaria , para o protagonista do romance, como uma colônia, no sentido etimológico do termo: local agrícola distante, de onde lhe vêm o sustento e a riqueza. Citadino, essencialmente urbano, civilizado, Jacinto de Tormes é uma flor desenraizada deste campo periférico e enraizada nos jardins urbanos centrais dos Elísios, na capital do século. Príncipe da grã-ventura, membro da camada abastada, este habitante da urbe por excelência torna-se, no entanto, um irremediável entediado. As maravilhas da modernidade (como a luz elétrica, o elevador, o telégrafo, o telefone, os jornais dos centros hegemônicos, as máquinas de escrever e de calcular) que Jacinto acumula em seu palacete, são como brinquedos extras para uma criança, já excessivamente saciada, que só lhe aumentam o tédio do próprio excesso.

Adam Smith, com a emblemática A Riqueza das nações, encadernada a ouro, em lombada verde, na significativa biblioteca do palacete, no meio de oito metros de estantes repletas de obras de economia política, dá bem o tom do fracasso do liberalismo econômico em propiciar bem-estar humano. Hobbes e Platão, também encadernados luxuosa e respectivamente em couro negro e em pelica alva, o acolitam, arautos da exclusão social e da coisa pública restrita à elite, não só nas estantes de Jacinto mas na práxis da modernização conservadora.

As maravilhas da globalização econômica não lhe diminuem o tédio: os cigarros do Oriente, os damascos do Japão, o roupão branco de pelo de cabra do Tibete, os biombos de Quioto que infestam o espaço privado do protagonista, seu espaço da intimidade, singularizando-o como ricaço, em oposição à massa parisiense anônima e excluída, daqueles milhares de pobres que, na metrópole moderna, erram sem pão e sem teto.

Fonógrafos, radômetros, microfones, gramofones, tubos e fios, toda a parafernália, em suma, de que se enche o 202, toda a cultura e o culto da modernidade estampam rasa impotência em contrapor-se ao formidável tédio urbano de Jacinto.

A volta ao campo, nesta perspectiva, e, com ela, o retorno a um tempo anterior ao da modernidade, revela-se propiciadora da felicidade, individual e social. Na herdade ancestral remontando à Idade Média, de costumes tão anteriores ao do capitalismo, em seu estágio liberal de fim-de-século, as desigualdades sociais são aplainadas através do assistencialismo senhorial de Jacinto.

A distribuição voluntarista de sua riqueza previne a miséria dos campônios e sua marginalização. Capital e trabalho utopicamente comungam, neste campo periférico. A frugalidade, a parcimônia, a simplicidade dos costumes que remontam aos ancestrais, anteriores a todo o refinamento urbano das últimas gerações de Jacintos ecoam , no romance finissecular do oitocentos português, o traço das utopias européias das terras longínquas paradisíacas.

Na Europa colonialista e imperialista do oitocentos, a crítica aos ícones urbanos da modernização produzida pela 2ª Revolução Industrial ecoa a do século anterior que, na pena de iluministas e ilustrados utopistas, que conviviam com a primeira metropolização da vida quotidiana européia, radicou nos trópicos, naturais e primitivos, o Éden perdido e então reencontrado. É a figura do bom selvagem, vivendo na natureza, em contraponto às distopias da civilização ocidental.

A proposta queiroziana, de retorno às origens míticas ocidentais, na reinvenção do passado bucólico como Idade de Ouro, reescrevendo Virgílio, entronca-se, por este modo, como versão finissecular do mito, na tradição ocidental dos discursos utópicos. Ao reverter a crença, tanto hegemônica, do liberalismo, quanto não hegemônica, do socialismo marxista (mantidas , é claro, suas diferenças e oposições), numa ordem social laica, e futura propiciadora da felicidade humana, o romance A cidade e as serras se alimenta na tradição ocidental de ubicar o utópico no passado, reinventado e reencontrado: a modernização conservadora, produzida para as classes hegemônicas pelo liberalismo revela sua feição distópica, em lugar da utopia propalada. Neste discurso narrativo, o bem estar social é disseminado no campo pelo voluntarismo individual do grão-senhor Jacinto.

Preenchendo as carências dos camponeses, o grande proprietário rural de volta à herdade ancestral transforma-se no pater familiae, garantindo a sua sucessão senhorial. De volta à pátria dos antepassados, ao periférico Portugal, Jacinto e José Fernandes perfazem o périplo inverso ao da imigração neocolonial em demanda dos centros hegemônicos. Subjaz, ao texto conservador do romancista, a visada nacionalista, que dominou a primeira parte do século europeu romântico, com a consolidação dos estados nacionais contrapondo-se ao cosmopolitismo metropolitano finissecular que internacionalizaria os paradigmas culturais franceses na Europa e na América.

 

A ÚLTIMA FRONTEIRA: A FERROVIA QUE, DO NADA, LEVA A LUGAR NENHUM.

Diz-nos Claude Lévi-Strauss, em seus Tristes Trópicos:

Um espírito malicioso definiu a América como uma terra que passou da barbárie à decadência sem conhecer a civilização. Poderíamos, com maior justeza, aplicar a fórmula às cidades do Novo Mundo: vão do frescor à decrepitude, sem se deter na antigüidade(...). Lembrariam antes uma feira, uma exposição internacional, edificada para alguns meses. Depois desse prazo, a festa termina e esses grandes enfeites definham fachadas descascam, a chuva e a fuligem aí traçam seus riscos, o estilo cai de moda, o ordenamento primitivo desaparece sob as demolições impostas, paralelamente, por uma nova impaciência.(...)

Quem vive ao longo da linha Rondon facilmente se julgaria na Lua. Imagine-se um território do tamanho da França, três quartos inexplorado; percorrido somente por pequenos bandos de indígenas nômades que estão entre os mais primitivos que se possam encontrar no mundo; e atravessado de ponta a ponta por uma linha telegráfica(...)

Nesse mato indefinidamente recomeçado, a trincheira da picada, as silhuetas contorcidas dos postes, os arcos invertidos do fio que os une, parecem outros tantos objetos incongruentes flutuando na solidão, como se vê nos quadros de Yves Tanguy. Atestando a passagem do homem e o seu esforço vão, marcam, mais claramente do que se não estivessem lá, o extremo limite que ele tentou transpor. A veleidade do empreendimento, o fracasso que o sancionou, dão um valor de prova aos desertos circundantes.

Com efeito, quando o efeito modernizante, propulsor do capitalismo mundial chega às fronteiras extremas do Ocidente, embrenhando-se pela selva amazônica, na sua dialética colonialista ele vai abraçar o efeito arcaizante oposto, do trabalho em regime de semi-escravidão, de extermínio ou escravização de nativos.

A função da colônia, então, torna-se menos a função do cultivo, a função desempenhada pelo campo como celeiro da cidade na longínqua metrópole (no distante centro econômico hegemônico) do que a da prisão para os indesejáveis e perigosos, do prostíbulo onde se libera a lubricidade que se deve manter reprimida no espaço metropolitano, quarto de despejo, lugar de refugo, espaço da apartação e do afastamento através dos quais se busca circunscrever e delimitar o sujo, o desterrado, o temível, em prol da segurança daqueles que os excluem.

O acionamento ou a reinvenção de regimes arcaicos de trabalho, na construção de uma ferrovia fantasma, a Madeira-Mamoré, em pleno trópico, episódio que pouco interessou à historiografia tradicional brasileira, vai pôr em marcha a narrativa ficcional do romancista amazonense Márcio Souza, autor de Mad Maria.

Contrastivamente ao romance de Eça de Queiroz, o qual tematiza, em Jacinto de Tormes, o desencanto da modernização urbana hegemônica, no spleen parisiense, o discurso narrativo de Mad Maria focaliza a falência - e seu alto custo humano - do projeto modernizante na selva. Sua temática vai associar-se, então, à problemática da dependência econômica e política, na medida em que a ferrovia fantasma demanda o capital internacional para a sua construção e este coopta as classes dirigentes de um Brasil republicano velho, periférico na ordem mundial, conservadora e tardiamente modernizado.

Sobre a ferrovia fantasma, disse Francisco Foot Hardman, em seu livro Trem fantasma. A modernidade na selva:

A combinação entre imaginação romântica, espírito empreendedor e especulação financeira produziu um tipo característico de capitalista, que dominará o cenário de construção das grandes obras públicas internacionais, em especial no terceiro quartel do século XIX. O sansimonismo é sua melhor expressão.Desenharam um mundo homogêneo e unificado de forma mais ampla e sólida do que os navegantes do Renascimento.

Na concretização de sua versão globalizante do domínio planetário, a convocação de exércitos de proletários nômades, feita nas periferias do sistema capitalista, reveste-se de fundamental importância. Conforme relata Manoel Rodrigues Ferreira, em A ferrovia do diabo, tudo tem início no último quartel do século XIX, mais exatamente a 19 de fevereiro de 1878, com a chegada ao lugarejo de Santo Antônio da empresa Collins.

Visando à canalização de trecho encachoeirado dos rios Madeira e Mamoré - de modo a permitir, ali, a navegação a vapor, emblemática da modernização industrial - a obra constituiria elo de ligação da Bacia Amazônica ao Oceano Atlântico, abrindo esta saída marítima para Bolívia. Consubstanciaria, também, o interesse das potências estrangeiras pelos recursos das nações periféricas e de suas próprias colônias, em expedições coloniais ou neocoloniais, como a contemporânea obra de ligação do Atlântico ao Índico, na África, através das cataratas do rio Congo.

Mad Maria é publicado em 1983: num dos últimos anos do longo regime de exceção militar brasileiro, período também caracterizado pelas obras faraônicas, no tamanho e no custo, material e de vidas humanas. Na ditadura, o projeto modernizante também era invocado como justificativa para tais mega obras, várias das quais abandonadas inconclusas, como a rodovia Transamazônica, outra a levar do nada a lugar nenhum, como a ferrovia Madeira /Mamoré.

No último quartel do século XX, a obra de Márcio Souza revisita um trágico episódio finissecular do oitocentos, em sua atualidade emblemática.

Em nosso fim de século, as fotos de um Sebastião Salgado - expostas em Terra, por exemplo - sobre o drama humano do campo e, também, sobre o trabalho nas mais desfavoráveis e desumanas condições, como nas minas, em Carajás, na Serra Pelada e em muitos outros contextos de exploração e de miséria, nos propiciam um retorno a estes tempos de capitalismo selvagem, infelizmente re-presentificados. A sobre-exploração do trabalho, o universo semi-escravagista do canteiro de obras configuram uma bela síntese da globalização distópica, do final do século XIX.

Mad Maria retoma, em sua narrativa, o episódio histórico da reunião de trabalhadores de várias partes do mundo, internacionalizados não em favor de seu trabalho, mas , sim, do capital: barbadianos, alemães, chineses, espanhóis, portugueses, italianos e alguns brasileiros, todos eles sob o comando de uma minoria de norte-americanos que emblematiza esta desordem mundial.

Ingleses (como Collier), cujo poder neocolonialista de nação hegemônica perde terreno para os Estados Unidos, em ascensão, e americanos sobrepõem-se à massa internacional espoliada, que tenta sobreviver, no Trópico inóspito, contra os desafios conjugados de uma natureza selvagem e de uma exploração da força de trabalho capitalista.

A fabricação de nativos sem-terra, pelo avanço neocolonialista sobre os territórios indígenas, a exclusão e a mutilação dos poucos deles remanescentes são apenas dados a mais, na configuração deste horror econômico.

 

RITORNELLO E CODA

 

Retornamos, na abordagem comparativa dos romances português e brasileiro, ao nosso ponto de partida: a visão da modernidade negativa, comum a ambos, para acrescentar que, todavia, no romance de Eça de Queiroz, o ponto de vista narrativo é o de um contemporâneo à matéria narrada, José Fernandes, personagem secundário e antitético ao amigo protagonista, este emblemático, em sua transformação de adorador e apologeta do progresso, em senhor rural em moldes pré-modernos.

Na virada daquele século, ainda era possível a utopia ficcional, na linha da tradição ocidental que busca a solução bucólica, desde Ovídio e Virgílio até o Arcadismo de finais do seiscentos ao setecentos, cuja variante seria a narrativa exótica do Romantismo, como alternativa ao advento da cidade e da metropolização da vida quotidiana. Quando a função do campo ainda se verifica , na Europa colonialista , que o transferirá às colônias, o recuo à origem, ao passado greco-latino ubica o utópico como espécie de Éden pagão perdido. Ao se transferir o campo europeu para o além-mar colonial, encarregando as colônias da função de celeiro metropolitano, estas já foram mitificadas em paraísos reencontrados nos trópicos. Assim, sua alteridade se transforma em exotismo, sua diferença é reduzida e a estereotipia assim criada servirá às utopias românticas européias e mesmo americanas.

É a contemporaneidade do narrador à narrativa, em A Cidade e as serras , conjugada ao desfecho feliz. Longe de Paris, em pleno campo arcaico, Jacinto se torna feliz e fator de felicidade, no assistencialismo de senhor rural. Já Mad Maria se constrói a partir de um fato histórico praticamente ignorado oficialmente e, já então, centenário. O ponto de vista externo, muito mais o de uma voz autoral que dialoga com seu leitor sobre a matéria que narra, estabelece um distanciamento crítico: se "o capitalismo não tem vergonha de se repetir", também não o terá a política das altas esferas de poder nacional. Assim, o leito, advertido, já à primeira página do livro, facilmente identificará como familiar o horror narrado.

A ética do eu mínimo contemporânea de nosso fim de século, da restrição máxima em vista da sobrevivência individual, com que a narrativa se encerra, dá bem o tom, pois "só os bobos podiam se importar com alguma coisa além da arte de ficar vivo".

No universo entrópico e distópico, a globalização reduz-se a puro horror: a língua franca do inglês, por exemplo, ali servirá, unicamente, para tornar perfeitamente compreensíveis os insultos de barbadianos a hindus. Como se a um Caliban shakespeareano infinitamente multiplicado, a utilidade do idioma de Próspero se restringisse, efetivamente, à maldição.

 

 

Referências bibliográficas:

 

Ferreira, Manoel Rodrigues.A ferrovia do diabo: história de uma estrada de ferro na Amazônia.São Paulo, Melhoramentos/Secretaria de Estado da Cultura, 1981.

Hardman, Francisco Foot.Trem fantasma.A modernidade na selva. São Paulo,Companhia das Letras,1991,pp.119-120

Lévi-Strauss, Claude.Tristes Tropiques.Paris, Plon,1955.Cita-se, traduzindo, a 2ª edição argentina.Buenos Aires, Editorial Universitaria,1973.p.81

Queiroz, Eça de.A Cidade e as serras.Cita-se a edição brasileira da Ediouro, Rio de Janeiro,s.d.

Souza,Márcio.Mad Maria.2a edição.Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1983.


Maria Consuelo Cunha Campos é Professora adjunta de Literatura Brasileira, na UERJ;Doutora em Letras pela PUC/RJ(1978),com a tese A Teia e o labirinto, sobre a ficção de Autran Dourado.Autora dos seguintes livros:Sobre o conto brasileiro, Mineiridade, Inácio de Loyola ,o poema de Deus. Membro das seguintes associações: Internatinal Comparative Literature Association (ICLA),American Conference on Romanticism, Modern LAnguage Association of America, Associação Internacional de Lusitanistas, Associação Brasileira de Literatura Comparada(ABRALIC), SBPC.


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