Curitiba como um pandemônio

 

Miguel Sanches Neto

 

 

CONTRA O CULTO DA FACHADA

 

Contrariando todas as opiniões formadas sobre sua produção, Dalton Trevisan está de volta com um NOVO livro de contos. Mestre miniaturista, ele vem desenvolvendo uma obra que, a cada volume, experimenta novas formas de expressão. Estas suas inovações, devido à forte presença de um universo que se repete, acabam sendo ignoradas pelo leitor mais apressado que só vê em seus livros a permanência dos anteriores, fazendo vista grossa para as mudanças lingüísticas e estruturais que definem a existência de mais um título na bibliografia já vasta do autor. Os volumes de Dalton não podem ser pensados como uma reunião inconseqüente de peças esparsas. Não existe uma única obra sua que não tenha um projeto bem definido, que lhe dá unidade e coerência. Por trás da aparente multiplicidade de ministórias, há um elemento coesivo a marcar a superação da condição fragmentária da coletânea de contos. Mais ainda, cada livro não pode ser visto isoladamente, mas como módulo de um vasto vitral: o romance da vida provinciana.

O seu mais recente fascículo, 234 (Record, 1997), mosaico composto por narrativas que vão do haicai ao miniconto, investe de forma explícita no ato da leitura. Saboroso elogio da leveza, ele responde à necessidade moderna, proposta por Italo Calvino, de concentração de poesia e de pensamento. Mais uma vez, o contista maior do Brasil (nenhum outro escritor nacional, ao longo de nossa história, se dedicou ao conto com tamanha fidelidade) mostra que continua em plena forma, esbanjando graça e encanto em histórias que não perdoam as misérias humanas. Trevisan, já com uma obra feita e um nome respeitado no exterior, continua não tendo medo de experimentar novas linguagem narrativas, dentro, é claro, das fronteiras de seu universo ficcional.

A grande personagem deste novo livro é a Curitiba como metrópole moderna. Vários aforismos tratam justamente da cidade de hoje, vista, pelo autor, como caótica. A cidade imaginária criada por Trevisan, uma espécie de umbigo do mundo, entra em choque com a outra, a do discurso político local, que cria a fachada de uma urbe de primeiro mundo, separada do resto do Brasil. Isso se dá através de investimentos altíssimos, tanto econômico quanto ideológico, em monumentos que dão um falso estatuto de civilização à cidade. Dalton, sempre avesso ao processo consagratório da província, não perdoa: "Memorial de Curitiba: a nossa Capela Sistina ao merdoso kitsch" (p.73). Esta oposição faz com que duas imagens da cidade sejam colocadas em confronto.

A dicotomia fachada x realidade funda uma cidade cenográfica, em que se encena uma conexão com o primeiro mundo. Essa Curitiba é a irmã de Moriana, urbe arquetípica, criada por Italo Calvino, composta por duas paisagens sem espessuras:

[...] as portas de alabastro transparentes à luz do sol, as colunas de coral que sustentam frontões incrustados de serpentina, as aldeias inteiramente de vidro como aquários em que nadam as sombras de dançarinas com adornos prateados sob os lampadários em forma de medusa. Se não é a sua primeira viagem, o viajante já sabe que esta cidade tem um avesso: basta percorrer um semicírculo e ver-se-á a face obscura de Moriana, uma ampla lâmina enferrujada, pedaços de pano, eixos hirtos de pregos, tubos negros de fuligem montes de potes de vidro, muros escuros com escritas desbotadas, caixilhos de cadeiras despalhadas, cordas que servem apenas para se enforcar numa trave podre.

Em toda a sua extensão, a cidade parece continuar a multiplicar o seu repertório de imagens: no entanto, não tem espessor, consiste somente de um lado de fora e de um avesso, como uma folha de papel, como uma figura aqui e outra ali, que não pode se separar nem se encarar. (Cidades Invisíveis, Cia das letras, 1990: p.97)

Ao eleger como cenário os forros desta cidade, Dalton restabelece a sua face natural, aquela que não é fruto de uma intenção de convencimento, colocando uma diante da outra para que se recupere a espessura perdida com o culto da fachada.

 

A CIDADE COMO UM PANDEMÔNIO

 

Mas Curitiba também está presente na própria estrutura de 234 que, sem a menor dúvida, pode ser colocado ao lado das grandes obras do contista. Na verdade, ele é um mural que representa a capital paranaense, tal como a recortou o artista. Nenhuma outra cidade foi palco de um projeto ficionista tão profundo. Imensos painéis de autoria de Poty, além de obras de outros artistas plásticos, recontam incansavelmente o culto das origens coloniais, notadamente em sua versão imigrante. Os painéis de Poty, indiscutivelmente de altíssima qualidade pictórica, deram onipresença a uma versão da história do Paraná que, incorporada pelo discurso oficial, passou a ser proposta como única. Num certo sentido, Trevisan, em seus livros, e neste em especial, está propondo um antídoto para estas imagens.

A Curitiba por ele retratada não tem o caráter linear dos murais de Poty, que vão do índio à vida moderna, com a longa passagem pelo culto da ascendência européia, numa linha reta que acaba significando (é preciso ler os sentidos que o meio insere nas obras dos artistas) uma maneira de representar o progresso como fruto de uma diferença de configuração étnica. A Curitiba de 234 é recortada pela técnica da simultaneidade que, pela primeira vez na obra de Trevisan, atinge um grau de significação tão elevado. Esta é a grande característica do volume. Vista como umbigo do mundo, a cidade deixa de ser o lugar da exceção, utopia oficial do Brasil que deu certo, para se transformar no ponto de confluência de todos os dramas do Brasil, tanto em suas versões agrárias como cosmopolitas.

Nesse sentido, é de fundamental importância para a própria semântica do livro a capa escolhida por Trevisan. Trata-se de um desenho de George Grosz (1893-1959), significativamente intitulado "Pandemonium". O desenho retrata a praça central de Berlin, onde as mais diversas figuras humanas aparecem numa impiedosa batalha. A imagem metonímica desta concepção da vida em sociedade é a dos três cachorros que se mordem raivosamente. Grozs condensou no coração da metrópole, espaço, por excelência, da legalidade, todos os crimes da urbe, dando-lhes uma hiperbólica visibilidade. Roubos, assassinatos, brigas conjugais, estupros, suicídios, vandalismos... acabam criando uma imagem condensada da metrópole como um inferno na terra. Esta visão apocalíptica do artista alemão funciona de forma magistral como uma poética da obra de Trevisan.

Ressalte-se ainda que, no desenho, este caos é tecnicamente representado pela sobreposição de traços, que embaralha as cenas e cria uma espécie de garatuja gráfica, definindo assim, de forma eloqüente, a simultaneidade destas ações que, na realidade, acontecem em pontos isolados da urbe. Ao colocá-las todas juntas, o artista quis dar a sua definição de metrópole.

 

UMA OBRA EM LASCAS

 

A obra de Dalton Trevisan pode ser concebida como uma literatura em lascas, como pequenos episódios agrupados em feixes e periodicamente entregues ao leitor. A multiplicidade de peças contrasta com a limitação de ocorrências. Recebemos um número mínimo de situações num múltiplo de histórias. Isso remete a uma idéia de fluxo e refluxo que caracteriza as coisas que estão em constante movimentação. Parece ser este o caso da ficção de Trevisan, ficção refratária à idéia de acabamento e de sedimentação, que solapa as certezas de um leitor que recebe o reiterativo impacto das ondas que, sendo as mesmas, são sempre outras. É nesta estrutura de avanços e retornos que se encontra a matriz do conto trevisaniano, explicitada pelo autor num dos mais expressivos haicais do presente volume: "O conto não tem mais fim do que novo começo" (p.121).

O conto só assume um sentido provisório dentro da rede de relações da qual ele faz parte. Assim, a cada novo reagrupamento ele ganha sentido outro, o que permite que seus livros sejam construídos a partir da apropriação de peças já publicadas. O volume de agora é composto por um grande número de haicais inéditos, mas também por alguns reaproveitados de livros anteriores. A idéia de repetição não pode, contudo, ser pensada em se tratando da obra deste contista. O que a preside é uma minuciosa preocupação com a estrutura, com a disposição dos contos dentro de um livro que tem sentido como conjunto. Analisar isoladamente seus contos é correr o risco de cair numa interpretação unilateral e, portanto, equivocada. O sentido de sua obra é sempre proposto na macroestrutura do volume e reside nas interrelações que esta funda.

Definir a sua obra como trágica, humorística, grotesca ou lírica é desrespeitá-la e desentendê-la. Não existe, para o autor, categorias privilegiadas assim como não existem interpretações seguras. Tudo é apresentado dentro de um processo iterativo que, por estar em movimento e por não trabalhar com a perspectiva de finalização, permanece em estado de suspensão. Tal fato se dá devido à sensibilidade contrastiva do autor. É ela que torna o velho novo e o alheio próprio.

Os haicais que Dalton reúne neste livro trazem como marca o paradoxo da distensão e da contração. Assim, muitos de seus haicais são lascas de um tronco maior. Um bom exemplo é a frase que aparece em Guerra Conjugal para definir a amada ("...inteirinha nua, pessegueiro em flor gorjeante de pintassilgos", p. 134); ela se transforma agora, depois da intensificação da linguagem poética, numa peça autônoma: "Todinha nua - pessegueiro em flor pipilante de pintassilgo" (p.16). A substituição da palavra gorjeante por pipilante criou uma série de aliterações (com p e com i) que transmite o lirismo de uma forma muito mais contundente. Esta mudança e o ato de desentranhamento dão um novo estatuto para o texto.

Nem todos os haicais são frutos deste mesmo processo. A maioria foi concebida como uma pequena célula dramática que poderia ser acrescentada a outras ou dar origem a um conto de maior extensão. O autor, mantendo sua predileção pela temática sexual, propõe uma irônica justificativa para este encolhimento: "Haicai - a ejaculação precoce de uma corruíra nanica" (p.110).

A redução do conto a dimensões miniaturizadas, todavia, não é uma simples questão de dificuldade de levar a narrativa adiante. Ela está fundada numa concepção da literatura como múltiplos fragmentos, agrupados não pelo critério de soma rumo a um sentido final, mas sim pelo choque de situações conflituosas que nunca se resolvem. Este tipo de concepção só poderia ser efetivado, em toda a sua potencialidade, dentro do âmbito do conto, uma vez que o romance, por mais granulado que seja, tem sempre uma unidade subjacente sem a qual ele inexiste. O livro de conto, enquanto possibilidade de manifestação do múltiplo, é o meio de expressão mais adequado a um autor que investe numa literatura de des e re-organização.

No sentido inverso do encolhimento, encontramos alguns expedientes de expansão. Um deles é o uso de variações sobre o mesmo tema, demonstrável no conjunto 1, 3 e 5:

 

O nenê chora e a mãe liga o rádio bem alto:

- Qual dos dois cansa primeiro?

 

O marido com dores e a mulher liga o rádio a todo o volume:

- Quero ver quem grita mais alto.

 

A velhinha geme e o velho liga o rádio bem alto:

- Se é o fim, desgracida, rebenta duma vez.

 

Ligar o rádio significa desligar-se do outro. Este aparelho materializa o abismo entre pessoas que mesmo próximas não se compreendem. O contista, instaurando uma série de variações, cria ramificações narrativas - que ainda podem ser encontradas nos haicais que sideram em torno da crítica à cidade ou na série que tem como elemento aglutinador a insônia.

Histórias mais longas também aparecem retalhadas. Entre os fragmentos são colocados outros haicais. Com este fracionamento, o conto é lido intercaladamente com outros que, não raro, apresentam pontos de vista e essências antagônicos. Isso dá ao livro a mesma simultaneidade que Grozs conseguiu com a superposição de traços em seu desenho. 234 (deve ser lido: dois, três, quatro - o que comunica a idéia de seqüência infinita, uma vez que "o conto não tem mais fim do que novo começo") é, estruturalmente, o painel que retrata uma Curitiba vista como espaço caótico de perenes desavenças, onde não existe convivência pacífica, tal como quer o mito provinciano das origens em que bandeirantes, índios e imigrantes constituem uma comunidade feliz. É esta apocalíptica Curitiba imaginária que será visitada, no futuro, pelos viajantes.


Miguel Sanches Neto é crítico literário, autor de Biblioteca Trevisan - Editora UFPR, 1996


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