MACUNAÍMA NO REINO HISPÂNICO
(A propósito de tradução)

 

Heloisa Costa Milton

UNESP - CNPq


RESUMO

Este trabalho visa a destacar alguns recursos de tradução presentes em Macunaíma el héroe sin ningún carácter, a versão ao espanhol da rapsódia de Mário de Andrade. Realizada pelo poeta mexicano Héctor Olea, a tradução é um ritual de passagem que intensifica a dimensão continental da obra, e, como se sabe, uma das intenções manifestas do próprio original.

 

ABSTRACT

This paper, aims at pointing out some translation devices found in Macunaíma el heroe sin ningún carácter, which is a translation of Mário de Andrad's rhapsody. This translation by the Mexican poet Héctor Olea is seen as a passage ritual which enhances its continental dimension. One of the intensions disclosed in the very source text.


Em 1977, no ensaio "Mario de Andrade y Guimarães Rosa en el contexto de la novela hispanoamericana", o crítico uruguaio Emir Rodríguez Monegal fabula um curioso jogo de imaginação. Sua intenção é situar dois grandes romances brasileiros -- Macunaíma e Grande Sertão: Veredas -- no universo da narrativa hispano-americana contemporânea, e exaltar, com todas as honrarias, a dimensão continental de ambas as obras.

O jogo consiste no seguinte: depois de reafirmar o contexto cultural brasileiro como o espaço onde essas obras são e devem ser lidas, reconhecendo inclusive o grau de obviedade dessa colocação, Rodríguez Monegal indaga sobre o que aconteceria se nos imagináramos que ambas obras fueron escritas en español y publicadas en un país de América Latina que no existe pero que se parece sospechosamente al verdadero Brasil? (1977, p.11) E mais: o que aconteceria se Macunaíma estuviera escrita en la lengua original de Wenceslao Pietro Pietra (al fin y al cabo el gigante antropófago venía del Perú), y si la gran novela de Guimarães Rosa se llamase Gran pampa: caminitos? (1977, p.11).

Após tais colocações, o crítico ressalva, porém, que não quer propor um jogo inútil. Em seguida, chama atenção para o fato de que a compartamentalização da cultura latino-americana só serve aos interesses dos grandes impérios, e passa a reivindicar uma leitura cruzada de textos, dentro da realidade americana.

No mesmo ano de 1977, o poeta mexicano Héctor Olea publica, na Espanha, a sua versão espanhola da rapsódia Mário de Andrade, com prefácio de Haroldo de Campos. Denomina-a, no novo território, Macunaíma, el héroe sin ningún carácter. Dentre as suas intenções de poeta-tradutor, destaca-se o desejo de instalar, pela exploração dos diversos recursos da linguagem, a obra brasileira numa esfera cultural de ordem continental.

Assim, entre a fabulação de Rodríguez Monegal e a prática discursiva de Olea surge de fato um reino mais amplo para Macunaíma: a sua residência continental. A língua que faz essa passagem não apenas outorga um matiz hispânico aos mitos e motivações presentes na rapsódia modernista, como também comporta um universo considerável de leitores, permitindo a divulgação das frases e feitos do herói de nossa gente a um mundo grande, como é o do mundo hispânico. Vale lembrar que, antes de Olea, em 1944, Raúl Brié e Carybé (Hector Bernabó) também versaram para o espanhol a obra modernista, que se fez acompanhar de 38 ilustrações de Carybé. O fato, contudo, é que este Macunaíma el héroe sin ningún carácter permanece até hoje inédito, embora os desenhos tenham ilustrado a edição de luxo de Macunaíma, dos "100 Bibliófilos do Brasil".

O objetivo deste trabalho é verificar como se elabora no Macunaíma de Héctor Olea o ritual lingüístico de passagem. Um ritual que torna flagrante como os matizes de coloração americana, já presentes na rapsódia, somados a uma versão ao espanhol, redundam numa peça literária que está perfeitamente adequada à proposta de uma dimensão continental para a obra. Tal dimensão, como se sabe, foi reivindicada por Mário de Andrade e perseguida por ele através da projeção do homem dentro das esferas brasileiro-americano-universal. Nesse sentido, pode-se afirmar que a versão de Olea, comparativamente, faz as vezes do papagaio verde de bico dourado, companheiro final de Macunaíma, com a diferença de que o papagaio, agora, abre as asas não somente no "rumo de Lisboa", mas voa também para cantar as proezas do herói brasileiro a todo hispano-falante disposto a escutá-las.

Neste ponto, a riqueza e a complexidade da obra modernista levam-nos a indagar sobre as possibilidades de sua transposição a um novo código lingüístico, sem prejuízo das características poéticas que lhe são imanentes, de seu jogo discursivo e de suas multisignificações. Ora, é fato que qualquer obra literária está exposta sempre a circuitos universais de interrelação e que, como afirma Haroldo de Campos, quanto mais inçado de dificuldades esse texto, mais recriável, mais sedutor enquanto possibilidade aberta de recriação. (1976, p.24).

Héctor Olea corre o risco e aceita o desafio, conciliando e metamorfoseando, simultaneamente, o que Mário considera fundamental na rapsódia: a sua essência poema-herói-cômico. O poeta mexicano perfaz, no seu trabalho, os movimentos de partida e de regresso ao texto de origem, num ir e vir revelador que não desdenha, por certo, uma sensibilidade crítica para o gesto de traduzir e a consciência de que se trata de uma operação literária de transformação do original. Concretamente, Olea transmuta a obra modernista, dignificando-a no contexto hispânico.

De que artifícios o ele se vale, que soluções estético-estruturais encontra e a que resultados chega? Como consegue preservar e ao mesmo tempo recriar um texto com as especificidades de Macunaíma? É nosso propósito lidar com tais indagações através do confronto de fragmentos do texto brasileiro e do espanhol, para destacar alguns recursos como emblemas do potencial da tradução.

Fundamentado numa vasta pesquisa lingüística sobre o material dinamizado poeticamente em Macunaíma (mitos, lendas, costumes, folclore, fauna, flora, etc.) e numa acurada sondagem das possibilidades de sua transferência ao idioma espanhol, entendemos que Héctor Olea utiliza basicamente três mecanismos para recriar o original brasileiro: transformação, adaptação e transposição. Estes três procedimentos, por sua vez, articulam-se em geral nos níveis fônico-morfológico, sintático e semântico, e em função dos objetivos específicos que orientam o projeto do tradutor. Ressalve-se ainda que transformação, adaptação e transposição são denominações amplas e suficientemente elásticas, que estabelecemos com a finalidade de analisar os resultados do Macunaíma em espanhol.

Chamamos transformação o recurso de transmutação de certas partes do texto, quando o tradutor altera substancialmente o conteúdo e a forma de tais passagens, visando conferir uma coloração hispano-americana a fatos e motivações presentes na narrativa original. Nota-se aqui a intenção de transmitir, com eloqüência, significados essenciais do texto de partida, pela exploração de suas potencialidades no novo idioma. Por outro lado, entendemos por adaptação a operação que realiza uma ou outra modificação no texto brasileiro, alterando-o parcialmente e com menos intensidade. Ela visa tornar determinados motivos mais legíveis para um hispânico, seja porque há o interesse em estabelecer correspondência com motivos similares presentes na cultura do idioma segundo, seja pelo propósito de preservar relativamente certa forma e/ou conteúdo originais. Por fim, a transposição revela o ato de aproveitar integralmente trechos do texto brasileiro, sem outra modificação que não a mera transferência lingüística.

Neste ponto, é importante esclarecer que a recriação permeia qualquer um dos três mecanismos, até mesmo a pura transposição, pois a simples colocação de um dado elemento num contexto inédito já o recobre, no mínimo, de um instigante efeito de estranhamento. Por outro lado, em alguns momentos os limites entre transformação e adaptação tornam-se quase que imperceptíveis devido à aproximação entre os dois procedimentos, assim como não é rara a incidência das três operações num mesmo fato traduzido.

Observemos, então, algo desse minucioso artesanato verbal que transparece do Macunaíma de Héctor Olea.

Considerando em primeiro lugar o aspecto das transformações que a tradução opera sobre o original, constatamos que vários são os recursos de transcriação, em denominação de Haroldo de Campos, envolvidos neste mecanismo. O tradutor transmuta o original, recorrendo à alteração da organização textual de vários trechos, para obter novos sentidos. Nessa medida, ele tanto acrescenta rimas, jogos de palavras, provérbios, unidades sonoras, refrãos ou cantigas ao acervo original, como chega também a reduzir a carga semântica de um determinado grupo de palavras, visando um específico efeito estético. E mais: algumas vezes ele insere elementos afinados com o campo semântico do trecho que está transformando, com a intenção de fornecer ao leitor uma sutil mas esclarecedora explicação, ou dar pistas que facilitem a percepção do significado de um dado fato. Vejamos alguns exemplos que atestam tais procedimentos.

No capítulo XIV, Macunaíma está contando ao chofer e à criadinha a história de Palauá e, em certo momento de seu discurso, relata: Vai, ela (Palauá) abocanhou dois vagalumões e seguiu com eles nos dentes para alumiar o caminho. (M.A., 117). O trecho correspondente em espanhol inicia-se com uma onomatopéia, relativa a jogos infantis, o que confere um novo ritmo e amplia os efeitos lúdico e musical do fato em questão. Confira-se: ¡Qué patatín patatán! se atragantó dos luciernagotas y siguió con ellas entre los dientes para alumbrar el camino. (H.O., 182).

Esta espécie de jogo musical vai incidir, com relevância, sobre várias passagens, configurando uma preocupação freqüente com a recriação do teor de musicalidade que estrutura e marca a obra de Mário de Andrade. Em outra passagem do mesmo capítulo, o gigante Piaimã está prestes a morrer e, balançando-se sobre uma macarronada, exclama: -- Afasta que vos engulo! (M.A., 120). Na tradução a fala articula-se desta forma: -- A un lado que os trago ¡matarilirilirón! Este elemento sonoro na fala de Piaimã remete ao próprio movimento de balançar, funcionando como um ícone da ação proposta.

Por outro lado, é comum o acréscimo de refrãos ou de frases rimadas, que se inserem no texto não só como elementos de sonoridade ou brincadeiras musicais dinamizadoras de componentes folclóricos e populares, mas também como recursos de ênfase ou de intensificação da carga semântica do que está sendo narrado. No "Epílogo", por exemplo, quando o cantador dos feitos de Macunaíma encontra o beija-flor, a ave canta desta forma: "--Bilo, bilo, bilo, lá... tetéia! (M.A., 147). Já o texto em espanhol apela a um refrão que é pura musicalidade: --Rique rín rique rán, aquí hacen rín allá hacen rán. (H.O., 235).

No episódio em que o tequeteque trapaceia, vendendo a Macunaíma o gambá que, supostamente, faz suas necessidades fisiológicas em moedas de prata, o mascate diz, referindo-se ao animal: --Tem aca mas é coisa muito boa! Quando faz necessidade só prata que sai! Vendo barato pra você! (M.A., 102). A versão hispânica, por sua vez, incorpora ao trecho uma frase mais enfaticamente rimada, o que funciona como um recurso a mais de persuasão para a compra do animal. Além disso, calcada no original, a escrita reproduz a fala oral popular: --Está catingoso pero es cosa buena. Cuando hace sus necesidades sólo plata es lo que sale. ¡Se lo vendo barato a usté! (H.O., 159).

A mesma estratégia ocorre em outra passagem, cuja ação principal é dada por uma fala irônica e pretensamente ingênua do herói. Este faz com que um bichinho morda a língua de Maanape e, quando isto acontece, exclama: --Está doendo, mano? Quando bichinho me pica não dói não. (M.A., 45). A fala no original tem sua ênfase estilística centrada na dupla negação, no ritmo bem brasileiro que esse tipo de estrutura frasal comporta, enquanto que na tradução a tônica é dada pela rima e pelo uso de um diminutivo de efeito sarcástico, o que acentua a ironia e a intenção pilhérica da ação de Macunaíma: ¿Te está doliendo, mano? Cuando un bichito me pica no me duele nadita. (H.O., 77).

Outro exemplo da exploração rítmico-sonora fornece-nos uma medida mais clara do processo de transferência de Macunaíma para o reino hispânico. Wenceslau Pietro Pietra, ainda antes de morrer, canta o seguinte mote: ¡Acitrón de un fandango, sango sango sabará que si de esta me escapo no comeré más cristianos, con su triqui-triquitrán! (H.O., 186). O mote faz referência, simultaneamente, a uma das marcas históricas da Espanha (os confrontos religiosos), através do emprego do termo cristiano, e a uma dança popular argentina, o fandango, sugerindo assim um todo hispânico que alcança dois continentes. Lúdica, a passagem reveste a morte iminente do gigante de uma atmosfera mais intensa de brincadeira, mágica e cômica ao mesmo tempo. A mesma passagem, no original, também é extremamente lúdica, mas sem nenhuma referência histórica ou à dança popular. Basicamente, ela compõe-se de uma onomatopéia do ato de balançar, que embala o próposito do gigante de não mais comer gente, se sobreviver: --Lem lem lem... si desta escapar, nunca mais como ninguém! (M.A., 120). Como se comprova, o mecanismo da transformação estende o motivo original ao contexto hispânico.

No capítulo VI, quando Macunaíma passa de carreira por Itamaracá e come manga-jasmin, Mário de Andrade reelabora a lenda da manga chamada Jasmin, que trata do amor infeliz entre o Padre Ayres (Antonio Homem de Saldanha e Albuquerque) e dona Sancha Coutinho, segundo assinala Cavalcanti Proença (1969, p.161-162). Na tradução, o episódio recebe, como acréscimo, um refrão que mistura a lenda brasileira a um dito hispânico, ampliando assim a sua contextualizaçào. O trecho no original diz o seguinte: Em Itamaracá Macunaíma passou um pouco folgado e teve tempo de comer uma dúzia de manga-jasmim que nasceu do corpo de dona Sancha, dizem (M.A., 51). Compare-se o acréscimo: En Itamaracá el héroe pasó con cierta huelga y tuvo tiempo para comerse una docena de mangos-jasmín, que se dieron del cuerpo de doña Sancha Sancha si no bebes vino, ¿de qué es esa mancha?, según dicen (H.O., 83). Observa-se no refrão a presença do elemento "vinho", bebida que, embora consumida no Brasil, não é parte integrante de sua tradição, como o é em outros países hispânicos. Assim, a passagem citada, por meio de um dito híbrido, sofre uma ampliação de seu significado e de sua área de influência.

Outro exemplo característico do acréscimo de jogos sonoros na tradução, com todas as implicações já vistas, é o da recriação de um mote através da inserção, no seu interior, de elementos da musicalidade típica das brincadeiras infantis, mas em esfera continental. No capítulo XIV, antes de morrer em mãos de Piaimã, o chofer lamenta: --Ah, si eu possuísse meu pai e minha mãe a meu lado não estava padecendo nas mãos deste malvado!... (M.A., 118). O texto em espanhol assim dinamiza o mote: --¡Ah, de tin-marín de do pingüé si tuviera padre y madre a mi lado, cúcara mácara-títere fue, no estaría padeciendo en manos de este marvado!... (H.O., 185).

Resulta curioso observar que, em meio aos muitos acréscimos que o tradutor manipula, fazendo com que o texto em espanhol ganhe em expressividade, variedade de conteúdo, riqueza de forma, cor hispânica, etc, aparecem também algumas reduções que demonstram o quão livremente ele mergulha na obra marioandradiana sem, contudo, alterar-lhe os significados essenciais. Ao encerrar o capítulo XVI, por exemplo, a propósito do destino da sombra leprosa, conta-nos o narrador no original: E voou pra altura. Desde esse dia o urubu-rexuma que é o Pai do Urubu possui duas cabeças. A sombra leprosa é a cabeça da esquerda. De primeiro o urubu-rei tinha só uma cabeça (M.A., 137). A tradução do trecho diz apenas o seguinte: Y voló a las alturas. Endenantes el rey-zamuro había tenido sólo una cabeza (H.O., 217).

O texto em espanhol prescinde de duas informações do original, aproveitando somente a que introduz a passagem e a que a conclui. No entanto, apesar de não alterar o conteúdo básico desta passagem, parece-nos que a redução produz um desaquecimento narrativo, por tornar o texto mais enxuto e enfraquecer a sua carga lendária. Mas, repetimos, o desaquecimento que se verifica neste e em outros momentos não chega a pesar desfavoravelmente no resultado geral da tradução.

Outra forma de transformação que merece destaque é o recurso ao diálogo direto entre textos, quando então o tradutor, aproveitando um provérbio brasileiro, insere no seu texto outro provérbio de conteúdo semelhante, extraído, porém, de uma fonte literária. Expressa-o, inclusive, por meio de aspas, para marcá-lo como citação. Isto ocorre de maneira marcante no capítulo XV, quando Macunaíma rechaça a linda Iriqui, dando preferência à princesa européia que encontrara. Nesse momento, ele diz ao mano Jiguê: --Iriqui é muito relambória, mano, mas a princesa, upa! Não dê crédito pra Iriqui não! Oi que sol de inverno chuva de verão choro de mulher palavra de ladrão, eieiei... ninguém não caia não! (M.A., 128). Em espanhol, a recriação desta fala dá-se através de um trecho do Canto XV do Martín Fierro, do argentino José Hernández: --Iriquí es muy singracia, mano, pero la princesa, ¡uepa! ¡No, no le des bolilla a Iriquí! `No olvides, me decía Fierro,/ que el hombre no debe creer/ en lágrimas de mujer/ ni en la renguera del perro'. Ayayay, malhaya quien caiga... (H.O., 201-202).

Toda a intertextualidade que estrutura o conjunto discursivo de Macunaíma aparece aqui demonstrada de maneira bastante explícita, revelando-se pontos de contato entre a tradição brasileira e a hispano-americana. A própria proximidade entre o conteúdo do provérbio brasileiro e do canto gauchesco de José Hernández atestam o enlace. A operação tradutora insere o acervo brasileiro na tradição americana, revitalizando os significados originais e indo de encontro à postulaçào do ser brasileiro-americano-universal de Mário.

Dentro dessa perspectiva, o material folclórico do Bumba-meu-Boi, reelaborado pelo escritor brasileiro no capítulo XVI, compõe-se na tradução através dos mecanismos citados -- transposição, alguma adaptação e transformação -- com a substituição de determinadas estrofes do canto brasileiro por outras de cantos de países do continente. Tomando apenas as cantigas do episódio, verificamos as seguintes correspondências:

Meu boi bonito

Aquí traigo ya al torito

Boi alegria

Pero no para torearlo

Dá um adeus

lo traigo para pasearlo!"

Pra toda a família!

µh... êh bumba,

"Voy a dar la vueltecita

Folga meu boi!

Sígueme torito

µh... êh bumba,

Te espero aquí, aquí te espero

Folga meu boi!

Sígueme torito!

(M.A., 135)

(H.O., 214)

Meu boi bonito,

Ahora sí ya te encontré

Boi desengano,

donde me dijo el Maestro

Dá um adeus,

Te encontré y voy a lanzarte

Até para o ano!

para llevarte a la hacienda..."

µh... êh bumba,

"He de regresar ahí

Folga meu boi!

para traerlo a mi tierra

µh... êh bumba,

que venga a sentarse

Folga meu boi!

en la puerta del mirador

que venga a mirar la vuelta

que voy a dar en su honor.

(M. A., 135)

(H. )., 214-215)

"O meu boi morreu,

Murió el toro rebravo...

Que será de mim?

Siento a la niña bonita

Manda buscar outro,

Que dejé en la plaza de Salvatierra

--Maninha,

Lloró cuando me volví a mi tierra.

Lá no Bom Jardim...

(M.A., 135)

(H.O., 215).

Resulta curioso que, em seguida ao canto, o texto brasileiro explique que Bom Jardim era uma estância do Rio Grande do Sul (M.A., 136) e o espanhol expresse que Salvatierra era una hacienda del Río Grande del Norte (H.O., 215), numa colocação intencional de um espaço hispano-americano em território brasileiro e com o deslocamento do eixo Sul, de Mário, para o Norte. Segundo esclarece Héctor Olea no Posfácio a sua tradução, o deslocamento faz sentido porque o Norte é a região brasileira que mais se aproxima de contornos da América hispânica, principalmente pelo léxico e a sintaxe de sua linguagem. Trata-se, portanto, de uma busca mais de similaridades.

A cantiga do boi, subseqüente, é preservada integralmente na tradução e a de Manuel da Lapa, que lhe dá continuidade, sofre ligeira adaptação, para efeito da manutenção do sistema de rimas que compõe o original:

Arretira-te, giganta,

Arretírate, giganta

Que o caso está perigoso!

Que el caso es peligroso!

Quem se arretirou amante!

Quien se retiró amante

Faz ação de generoso!

Hace acción de generoso!

(M. A., 136)

(H. O., 215)

Seu Manué que vem do Açu,

Don Manué que viene del Montón

Seu Manué que vem do Açu

Don Manué que viene del Montón

Vem carregadinho de folha de

Viene cargadito de hoja de marañón!

caju!

Seu Manué que vem do sertão

Don Manué que viene del sertón

Seu Manué que vem do sertão

Don Manué que viene del sertón

Vem carregadinho de rama de

Viene cargadito de rama de algodón!

algodão!

(M. A., 136)

(H. O., 215).

Já o canto posterior sofrerá alteração no texto em espanhol:

Linda pastorinha

Ahora ya lo saben pues

Que fazeis aqui?

señores compañeritos:

donde quiero que me entierren

Vim buscar meu gado,

Entiérrenme en pleno campo

Que eu aqui perdi.

donde se pasea el ganado.

(M. A., 136)

(H. )., 216).

Por sua vez, o canto do "Pai do Urubu" mantém-se quase intato:

Urubu é passo feio feio feio!

Iribu es huella fea fea fea!

Urubu é passo limpo limpo limpo!

Iribu es brinco limpio limpio

limpio!

(M. A., 136)

(H. O., 216).

Por fim, as duas últimas estrofes são trabalhadas na traduação pelos procedimentos de transformação e adaptação. A primeira é substituída por uma cantiga hispano-americana e a segunda, que compõe um refrão, é mantida quase que de forma integral:

Meu boi bonito,

Cuando pase por ahí

Boi Zebedeu

la niñita ha de decir

Corvo avoando,

Dios me socorra que aquí

Boi que morreu

está enterrado, y difunto

mi buen caporal Mayor.

µh... êh bumba,

Oh... eh bumbá

Folga meu boi!

Descanse mi buey!

µh... êh bumba,

Oh... eh bumbá

Folga meu boi!

Descanse en paz!

(M. A., 137)

(H. O., 216-217).

Sobre a incidência da figura do boi no continente, parece-nos conveniente recorrer às próprias afirmaçòes que a respeito formula Héctor Olea no Posfácio já mencionado:

No deja de existir una analogía entre el dislocamiento del espíritu totémico afrovegevetal, culto sedentario de Iroco o Ifá, la santa ceiba (M.A., C. VII) y el del tótem móvil del culto animal de los amerindios, sea el Torotumbo de Guatemala, la Danza del Torito de los mazahuas de la meseta central de México, o el Boi-Bumbá del norte-nordeste brasileño. (...) El Toro (Boi), personaje central de la escenificación y el africanismo Tumbo (Bumbá), que significa percutir, tundir el tambor, no dejan de evidenciar un vaivén, un balanceo, una sacudida social como expresión artística, una vez que la historia es dramatizada. La Danza del Torito, vivenciada por Jacques Soustelle y sus informantes es de tema sencillo: la caza de un toro salvaje que se sacrifica ante la Virgen y que se distribuye entre los cazadores.

E prossegue o tradutor:

Tanto el Bumbá como la Danza del Torito no dejan de estar vinculados a otras fiestas de cuño peninsular. Los Reisados y Pastorís que se introducen en el primero establecen un parangón con las Posadas y Retablos prenavideños aclimatados en México y Guatemala. En ambas representaciones el leit-motiv es un torito (boi) de piel o percal sobre un espinazo de madera, grandes cuernos y ojos de vidrios, que huye, es capturado y posteriormente muerto y repartido. (...) Consideré, pues, de mayor autenticidad intercalar al texto marioandradino, el Ready-made de algunos fragmentos de los Estribillos cantados en la Danza del Torito en vez de intentar reproducir en español las cuartetas del Boi-Espacio que aparecen en la rapsodia. (1977, p.246-247).

Como se pode constatar, a dimensão continental de Macunaíma é intenção e evidência em Olea, atestada, no caso, pela própria relação boi/torito no universo do folclore americano. Ciente de tal evidência, o tradutor faz dessa dimensão o seu alvo estético e, de certa forma, concretiza o jogo imaginário fabulado por Rodríguez Monegal.

No episódio relativo a "macumba", Mário de Andrade finaliza a narrativa com uma enumeração de alguns "macumbeiros", em realidade personalidades consagradas: E os macumbeiros, Macunaíma, Jaime Ovalle, Dodô, Manu Bandeira, Blaise Cendrars, Raul Bopp, Antônio Bento, todos esses macumbeiros saíram na madrugada. (M.A., 63). O texto em espanhol mantém a enumeraçào, ampliando-a, porém, com alguns nomes relacionados ao cenário cultural hispano-americano. Este acréscimo fora sugerido pelo próprio Mário a Carybé, quando o artista trabalhava na versão de Macunaíma. Héctor Olea acata o recurso que, devido a sua abrangência, tão bem vai de encontro ao propósito de ampliar a dimensão da rapsódia brasileira. E o trecho assim se constrói: Y los macumberos, Macunaíma, Jaime Ovalle, Dodó, Manú Bandeira, Blaise Cendrars, Ascenso Ferreira, Raúl Bopp, Antonio Bento, Pierre Verger, Peque Lanuza, Nicolás Guillén, todos eses bemberos, salieron hacia la madrugada. (H.O., 98).

Convém ressaltar também que o tradutor denomina o capítulo Bembé-Macumba (no original ele se intitula apenas Macumba), acrescentando ao título brasileiro um termo afro-cubano, como forma de esclarecimento do sentido de macumba. A propósito, o apelo a outros termos correlatos, com a finalidade de explicitar o significado de um motivo do texto original, é recurso freqüente, que traz como resultado o enriquecimento da tradução. Assim, o uso abundante de sinônimos, de palavras-chave, de palavras como indícios é mecanismo que, eficazmente, cumpre a função de um glossário ou de um conjunto de notas de rodapé, com vistas à recepção do texto. Observemos alguns exemplos.

Ainda no capítulo da macumba, em determinado momento o narrador nos conta: E a consagração do Filho de Exu novo era celebrada por licenças de todos e todos se urarizaram em honra do filho novo do icá. (M.A., 61). A tradução incorpora uma explicação: ...y todos se curarizaron en honor del hijo nuevo del Icá, demonio Cachinauá.(H.O., 95). O mito tem, assim, o seu significado devidamente esclarecido com a carga explicativa de "demonio Cachinauá".

No capítulo VIII, quando Macunaíma, sentindo frio, pede a Capei que o aqueça, esta responde: -- Peça no vizinho! ela fez apontando pra sol que já vinha lá no longe remando pelo paraná guaçu. (M.A., 66). "Paraná guaçu" pode ser uma incógnita, por isso o tradutor, cautelosamente, insere no contexto da frase uma palavra explicativa: ...remando por el océano paraná-guazú. (H.O., 102).

Quando Macunaíma e os irmãos vão procurar tapir na cidade, em frente à Bolsa de Valores, no capítulo XI, temos a seguinte narração: Chegaram lá, principiaram procurando o rasto e aquele mundão de gente comerciantes revendedores baixistas matarazos... (M.A., 91). O nome próprio Matarazzo, tornado substantivo comum no texto, tem a ver com a história sócio-econômica de São Paulo. Como então esclarecê-lo ou ensejar a sua decodificação? A tradução soluciona o impasse com bastante propriedade: Llegaron allá, principiaron por procurar el rastro entre aquel mundón de gentes comerciantes revendedores bajistas matarazzos-italorricachones... (H.O., 140). Mantendo o estilo típico de Macunaíma, o tradutor cria um neologismo com dupla carga informativa (os adjetivos italiano e rico de italorricachones), que especifica tanto a questão da origem como o status social que o nome comporta.

Com relação ao mecanismo que denominamos adaptação, observamos que ele se articula de diversos modos no texto de Olea. Algumas vezes a adaptação ocorre no nível fônico, para possibilitar a transcrição de determinados sons no idioma espanhol. É o caso de nomes ou expressões como Mexê-Mexoitiqui/ língua do lim-pin-guapá/ T'çatê/ Zlezlegue que, traduzidos, se convertem em Mechó-Mechoitiquí/ lengua del len-pén-gua-pá/ T'zaté/ Zlezleg. Outras vezes, ela acontece morfo-semanticamente, originando neologismos em espanhol, tais como caapuerón, que passa a significar cerrado (a raiz caa é voz guarani designativa de erva, relva, prado)/; mueve-moviéndose, agitagitándose, para manter o ritmo e o sentido de mexemexendo; pensamentear para o pensamentear do original, que traduz uma açào menos intensa que a expressa pelo verbo pensar; e assim por diante.

Outras formas de adaptação verificam-se, por exemplo, na pontuação, como é o caso do enunciado e aromava os cabelos com essência de umiri, era linda (M.A., 13), que na tradução tem a vírgula substituída por ponto: y aromatizaba sus cabellos con esencia de humirí. Era linda (H.O., 35). Uma adaptação maior, no que se refere à pontuação, encontra-se no capítulo XII, quando a tradução divide em dois parágrafos um mesmo bloco de frases, fragmentando a seqüência narrativa. Compare-se: Os manos ficaram bem tristes de ver o herói assim e levaram ele para visitar o Leprosário de Guapira, porém Macunaíma estava muito contrariado e o passeio não teve graça nenhuma. Quando chegaram na pensão era noitinha e todos já estavam desesperados. Tiraram uma porção de tabaco de cornimboque imitando cabeça de tucano e espirraram bem. (M.A., 101). Em espanhol o trecho resulta: Los manos se quedaron retristes de ver al héroe así y lo llevaron a visitar el Leprosario de Guapira, pero Macunaíma estaba retecontrariado y el paseo no tuvo chiste alguno./ Cuando llegaron a la pensión era de nochecita y estaban desesperados todos. Sacaron una porción enorme de rapé de una cornucopia simulando cabeza de tucán y estornudaron rebién. (H.O., 157-158).

Cabe ressalvar, porém, que em inúmeros outros trechos a tradução, ainda que subvertendo as normas gramaticais, preserva a pontuação do original integralmente.

No que se refere aos nomes próprios, constata-se que o tradutor move-se livremente, ora mantendo os nomes na forma original, ora alterando-os. Ilustrativo deste procedimento é o capítulo III, em que todos saúdam o filho de Macunaíma e Ci com presentes variados. Em determinado momento, o narrador nos conta: Mandaram buscar pra ele em São Paulo os famosos sapatinhos de lã tricotados por dona Ana Francisca de Almeida Leite de Morais e em Pernambuco as rendas Rosa dos Alpes, Flor de Guabiroba e Por ti padeço tecidas pelas mãos de dona Joaquina Leitão mais conhecida pelo nome de Quinquinha Cacunda. Filtravam o melhor tamarindo das irmãs Louro Vieira, de Óbidos, pro menino engolir no refresco o remedinho pra lombriga. (M.A., 24). O mesmo relato, na tradução, torna-se: Mandaron buscarle en São Paulo los famosos zapatitos de lana tejidos por doña Francisca Leite Morais y en Pernambuco los encajes Rosa de los Alpes, Flor de Guabiyú y Por ti padezco enganchados por las manos de doña Joaquina Lechón mejor conocida como Quincha La Goroba. Filtraban el mejor tamarindo de las hermanas Louro Vieira de Óbidos para que el niño se tragara en el refresco remedio para las lombrices. (H.O., 49).

Note-se que Ana Francisca Leite de Morais é nome mantido em português, apesar da supressão de Almeida, enquanto que Joaquina Leitão e Quinquina Cacunda aparecem modificados, provavelmente por ensejarem, quando traduzidos, maior dose de humor. Por outro lado, em Louro Vieira, nome conservado intato, a supressão da vírgula que introduz a sua referência espacial (Óbidos), tão marcante na fabulação do trecho, produz a impressão de que simplesmente o nome integral é Louro Vieira de Óbidos.

Quanto ao famoso dístico decretado por Macunaíma -- Pouca saúde e muita saúva os males do Brasil são! (M.A., 68) -- o tradutor adapta-o, aproximando-se, porém, do seu sentido essencial: Mucha tambocha y poco bizcocho, luchas son que al Brasil dejan mocho (H.O., 105).

O dístico mantém-se na forma, no estilo, comporta ritmo e rima, mas altera-se na métrica e no conteúdo interno. Tambocha é um colombianismo que designa formiga carnívora, bizcocho pode ser interpretado como pão/alimento, cuja falta ocasiona debilitamento da saúde, e mocho, figurativamente, refere-se a pelado. Assim, o dístico em espanhol acaba aludindo ao mesmo tipo de problema, ou de carência, levantado pelo original, embora não chegue a operar com o jogo de palavra presente no binômio saúde/saúva.

No capítulo XI, quando Macunaíma se encontra com o curumim Chuvisco, perto da casa de Piaimã, a certa altura do diálogo que se dá entre ambos Chuvisco alerta o herói: --Oi, conhecido, tome tento com o gigante! Você já sabe do que ele é capaz. Piaimã está fraco está fraco porém canudo que teve pimenta guarda o ardume... (M.A., 94). O mesmo aviso, traduzido, resulta: --Oiga, conocido, tome tiento con el gigante! Usté ya sabe de lo que es capaz. Piaíma anda debilón debilón pero pajilla que tuvo ají guarda el ardor... (H.O., 144).

No caso, pajilla é um tipo de cigarro enrolado em folha de trigo, correspondente ao nosso cigarro de palha e ají uma qualidade de pimenta, também chamada de chile, além do que, figurativamente, é voz cubana designativa de tumulto. Mantém-se, desta forma, o ditado popular brasileiro, mas com coloração americana. O mesmo ocorre com a expressão Cafundó do Judas (M.A., 14), que se transforma em Donde el Diablo Perdió el Poncho (H.O., 37). Poncho, como se sabe, é marcadamente uma peça do vestuário tradicional de alguns povos da América hispânica, que por si só assegura o contexto da tradução.

Quando Macunaíma e irmãos se deparam com Naipi, o diálogo entre o herói e a cascata se faz através do refrão de um folguedo infantil: --Que é isso?/ --Chouriço! (M.A., 26). O texto em espanhol também se vale de um jogo infantil, um jogo que, a exemplo do brasileiro, é ritmo, é rima, é pura sonoridade: --¿Qué te pasa, calabaza?/ --Nada nada, limonada! (H.O., 54).

A cantiga de embalo que Macunaíma canta enquanto balança Piaimã, antes de matá-lo, sofre uma adaptação fônica, em função da exploração de possibilidades sonoras no idioma espanhol e recebe também um acréscimo sonoro, para efeito de rima. Comparemos o original e a tradução:

Bão-ba-lão

Bano-bano-balán

Senhor capitão,

Señor capitán-tano

Espada na cinta

Espada en el cinto

Ginete na mão!

Jinete en la mano!

(M.A., 119)

(H.)., 186).

O canto ritualístico do feiticeiro Caicãe também é adaptado através da inserção, em seu interior, de elementos que modelam uma sonoridade americana e que visam, ao mesmo tempo, dar conta da sonoridade brasileira:

Vôte vôte coandu!

Vote vote coendú,

Vôte vôte cuati!

De bóbolis bóbolis coatí

Vôte vôte taiaçu!

Vote vote tayazú

Vôte vôte pacari!

De bóbolis bóbolis pecarí

Vôte vôte cangaçu

Vote vote cangazú

Óh!...

Eh...

(M.A., 131-132)

(H.O., 209).

No capítulo XI, quando Macunaíma está fugindo da velha Ceiuci, os provérbios relativos a cavalos são quase que integralmente transferidos para o espanhol. No entanto, o tradutor recorre a pequenas variantes, para efeito de manutenção do sistema de rimas do original. Observemos: a filha da Caapora adverte Macunaíma quanto ao cavalo que deve usar para a fuga: Tome o castanho-escuro que pisa no mole e no duro (M.A., 98). A tradução do trecho é literal: Tome el castaño-oscuro que tanto pisa en lo blando como en lo duro (H.O., 149).

Agora, comparemos os demais provérbios e as pequenas modificações que sofre em sua adaptação:

 

Cvalo cardão-pedrês pra carreira Deus o fez (M.A., 98).

Cballo cárdeno-plomizo pa carrera Dios lo hizo (H.O., 149).

...cavalo gázeo-sarará que nunca prestou nem prestará (M.A, 98).

...caballo garzo-albino que nunca fue ni vino (H.O., 150).

...cavalo melado-calixto que tanto é bom como é bonito (M.A., 98).

...caballo-bayo bajito que tan es bueno como bonito (H.O., 150).

...cavalo bebe-em-branco que é cavalo manco (M.A. 99).

...caballo-de-hocico-blanco que es caballo manco (H.O., 151).

...bagual cardão-rodado que nunca pode estar parado (M.A., 99).

...bagual alazán-manchado que no puede quedarse parado (H.O., 151).

 

Conforme dissemos anteriormente, enquanto alguns provérbios, refrãos e frases feitas são traduzidos pelo mecanismo de adaptação, outros são literalmente transpostos. É o caso do acalanto de Maanape para Macunaíma:

Acutipuru,

Acutipurú,

Empresta vosso sono

Presta su sueño

Pra Macunaíma

Pa Macunaíma

Que é muito manhoso!...

Que es muy mañoso!...

(M. A., 25)

(H. O., 54)

Assim também a frase-brincadeira do Zé Prequeté, pronunciada por Macunaíma: --Zé Prequeté, tira bicho do pé pra comer com café! (M.A., 103). No espanhol, o mote não sofre alteração, com exceção do nome Prequeté, que recebe uma sílaba a mais para efeitos de pronúncia: --Zé Perequeté, sácate las niguas del pie para tomar con café. (H.O., 160). Após a transposição, o tradutor elucida o personagem através do apelo a um correspondente de "Prequeté" no âmbito hispânico, o "Perico de los Palotes". José Prequeté ficou com ódio e insultou a mãe do herói... (M.A., 103), diz o narrador do original, após a fala de Macunaíma. Perico de los Palotes quedó cabrero e insultó a la madre del héroe... (H.O., 160), relata a tradução.

O lamento do caramboleiro, no capítulo XV, é outro exemplo de transposição praticamente literal do texto brasileiro:

Jardineiro de meu pai,

Jardinero de mi padre,

Não me cortes meus cabelos,

No me cortes mis cabellos,

Que o malvado me enterrou

Que el malvado me enterró

Pelo figo da figueira

Por higos del higuerón

Que passarinho comeu...

Que el Pajarito comió...

--Chó chó, passarinho!

--Chó, chó, pajarito, chó!

(M.A., 127)

(H.O., 199).

Outras formas de transposição são a manutenção de palavras brasileiras, tal como rua de Rua Direita (H.O., 128), em oposição ao correspondente calle de calle Líbero (H.O., 143); a reprodução de desvios lingüísticos, com relação à norma culta, presentes na fala popular, como em sangüíche (por sándwích), güísqui (por whísky), mijo (por mi hijo), cosita güena (por cosita buena), pa naa (por para nada), pos sí (por pues sí), marvada (por malvada). O recurso mantém consonância com o tom e o estilo do texto da rapsódia brasileira. Um outro exemplo do cuidado que o tradutor toma com certos termos e expressões do original está na frase Tem mais não com que Macunaíma costuma encerrar seus discursos. A frase em espanhol mantém a mesma sintaxe, ganhando com isso em expressividade, pela transgressão que ocasiona: Hay más nada. Por fim, como última ilustração, temos a transposição de um termo de gíria, satisfa (M.A., 121) que, sofrendo na tradução o mesmo processo de redução, resulta em satisfac (H.O., 191), como decorrência da palavra satisfacción.

O quadro que acabamos de apresentar é tão somente uma pequena amostra dos movimentos de ida e volta que, fiel e ao mesmo tempo livremente, Héctor Olea realiza na obra de Mário de Andrade. A sua tradução, como fica evidente, é um empreendimento de busca do mito americano, através da revitalização dos pólos brasileiro/continental. Asimilarnos a la idea homo brasilicus -- diz o poeta-tradutor -- es un intento de ritualizar el mito americano. Reflexionar sobre nuestro propio reflejo. Revelar y redimir tradiciones inapreciables para que sean vistas por todos. Identificar una utopía que nos es común en un lenguaje plural que redescubra su trasplante. (H.O., 241).

São estas as intenções manifestas de Olea, que efetivamente se realizam no projeto e na prática de sua tradução. Macunaíma el héroe sin ningún carácter redimensiona a poesia contida na rapsódia pelo gesto de desgeograficar, como quis Mário, rompendo os limites internos do continente. Com um acervo que recobre, a partir do Brasil, o Peru, a Venezuela, o Equador, a Colombia, o México e outros reinos; que recupera vasto material da tradição indígena e africana; que faz a sátira universal do homem contemporâneo, bem na medida de Mário; com tudo isso a tradução de Olea acaba refletindo, com abundância de recursos, sobre a questão da integração latino-americana. Aliás, uma das preocupações mais recorrentes em se tratando do pensamento geral sobre o continente.

Nesse sentido, a versão ao espanhol de Macunaíma colabora, no plano literário, para dinamizar um circuito que alcança no mínimo dois pólos, em dupla mão de direção: a narrativa brasileira e a hispano-americana, em suas possibilidades de diálogo. Além do mais, o trabalho de Olea é forma de homenagem ao escritor brasileiro. Merecida homenagem e homenagem com méritos, pois fazer jus às excelências da rapsódia modernista é tarefa das mais complexas. E mais ainda: fazer da tradução uma correspondente cerimônia verbal, convenhamos, só pode ser arte do tradutor.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, M. de Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Ed. crítica de Telê Porto Ancona Lopez. Rio de Janeiro: LTC: São Paulo: SCCT, 1978.

CAMPOS, H. de Da tradução como criação e como crítica. In: Metalinguagem. Ensaios de teoria e crítica literária. 3.ed. São Paulo: Cultrix, p.21-38, 1976.

OLEA, H. (trad.) Macunaíma el héroe sin ningún carácter. Barcelona: Seix Barral, 1977.

PROENÇA, M. C. Roteiro de Macunaíma. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969.

RODRÍGUEZ MONEGAL, E. Mario de Andrade y Guimarães Rosa en el contexto de la novela hispanoamericana. Convergência. Revista Ibero-Americana de Cultura. USP: CEH, v.1, p.11-17, 1977.


HELOISA COSTA MILTON é Pesquisadora do CNPq e Professora de Literaturas Espanhola e Hispano-Americana da UNESP-Assis, onde é Orientadora do Curso de Pós-Graduação em Letras, nas áreas de Teoria Literária e Literatura Comparada e de Literaturas de Língua Portuguesa. Suas pesquisas giram em torno do romance histórico latino-americano e do romance da malandragem brasileiro em relação ao romance picaresco espanhol. Tem divulgado seus trabalhos, com freqüência, em periódicos especializados e em eventos científicos nacionais e estrangeiros.

Endereço para correspondência:

Rua José de Camargo, 830 CEP 19800-000 Assis-SP

Telefone: +55-18-324-3891


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