NOTAS SOBRE O CONCEITO DE NACIONALIDADE NA CRÍTICA

LITERÁRIA BRASILEIRA DO OITOCENTOS

 

 

Jean M. Carvalho França

Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)


Resumo:

Nosso objetivo neste pequeno ensaio é acompanhar o desenvolvimento do conceito de nacionalidade nos escritos produzidos pela crítica literária brasileira do oitocentos. Buscaremos demonstrar que tal desenvolvimento, coetâneo dos esforços de construção do país enquanto nação independente, ilustra de forma exemplar o processo de afirmação da então embrionária cultura nacional.

 

Summary:

In this essay we aim to survey the development of the concept of nationality in writings produced by the Brazilian literary criticism of the 18th century. We will try to demonstrate that such development, which was contemporary of the efforts to construct the country as an independent nation, illustrates in a very effective way the process of assertion of the then embryonic national culture.


I. Sobre o Conceito de Nacionalidade

 

Em 1833, alguns jovens estudantes pertencentes à Faculdade de Direito de São Paulo, aproveitando o clima patriótico gerado pela Proclamação da Independência (1822), clima extremamente favorável à fundação de agremiações e sociedades culturais, criam a Sociedade Filomática:

Alguns Mancebos ainda no tirocínio, atentando a todas as expendidas considerações de glória, e de utilidade pública, e particular, formaram uma Associação que intitularam Filomática. Foi seu fim criar um pequeno centro de luzes dispersas, procurar desta maneira meios para seu adiantamento individual, e incitar maiores capacidades a reunirem-se para proveito geral. [0]

 

Pouco tempo após sua criação, a Filomática lança um periódico encarregado de tornar público os seus trabalhos. Na introdução do primeiro número, Carneiro de Campos, Bernardino Ribeiro e Silveira Mota oferecem ao leitor um breve resumo dos objetivos do órgão. Assim se expressam eles:

Seu timbre, e sua única meta serão - coadjuvar a marcha lenta, mas sempre progressiva, da civilização brasileira (...). Seus meios - a publicação de memórias úteis sobre as Ciências e a Literatura -; - a crítica das Obras notáveis que aparecerem em nosso país -, a notícia do que forem tendo de mais interessante os povos cultos. [1]

 

Tanto os objetivos da agremiação quanto a meta e os meios da revista não eram estranhos ao período. Ao contrário, a divulgação de conhecimentos diversos em prol da marcha lenta e progressiva da civilização brasileira era o propósito de praticamente todas as sociedades culturais e revistas literárias (as poucas) fundadas até então.

No que tange à literatura, os jovens acadêmicos definiam a posição adotada pela revista nos seguintes termos:

Em literatura nossos princípios serão os da razão, e do bom gosto, combinados com o espírito, e necessidades do século: tão longe estaremos do Romantismo frenético como da servil imitação dos antigos. Desde já estamos convencidos de que a Literatura é a expressão colorida do pensamento da época: esta idéia nos servirá para extremarmos a modificação justa, e adequada nas antigas conveniências - do esquecimento absurdo dos princípios da Natureza. [2]

 

Esta posição que se queria intermediária, um meio termo entre as pretensões românticas e os princípios clássicos, é buscada nos três artigos sobre literatura publicados nos seis números da revista: "Vista de Olhos sobre a Poesia Portuguesa...", ensaio inacabado e sem indicação de autoria; "Ensaio crítico sobre a coleção de Poesias do Senhor D. J. G. Magalhães", de Justiniano José da Rocha; e o longo "Ensaio sobre a tragédia", redigido por J. Bernardino Ribeiro, J. J. da Rocha e A. Augusto Queiroga. Os jovens acadêmicos, contudo, não conseguem trilhar este anunciado caminho do meio. Nos ensaios citados, salta aos olhos o tom anti-romântico e a defesa dos princípios eternos da razão e da natureza aplicados às obras da imaginação. Alguns exemplos ilustram com clareza esta posição. Ao analisar o poema "Camões", de Almeida Garrett, o autor (desconhecido) comenta:

Não nos admiremos porém ao ver semelhantes absurdos (falta de uma definição clara do assunto e da explicitação do lugar e do tempo onde decorre a ação) apoiados por autoridades, que quiséramos respeitar: algumas vezes nascem de descuidos, e faltas de devida atenção, mas outras e hoje principalmente são resultado do cego ardor por inovações, e desse louco horror, que se professa por tudo que é usado (...). [3]

 

A posição anti-romântica dos membros da Filomática alcança seu ponto mais alto no "Ensaio sobre a tragédia". Ao analisar o teatro monstruoso dos alemães , os autores afirmam:

A nova escola recebeu de Schiller o nome de Romântica, com a qual imprimiu a sua Joana d'Arc. O corpo de delito desse gênero ridículo se acha nessa mesma Alemanha de Madame de Staël, onde se pretende encontrar as provas de sua defesa (...). Em despeito dos bons princípios a sanha revolucionária também tem lavrado pela França; Victor Hugo e Alexandre Dumas são os corifeus da nova escola (...). [4]

 

O artigo prossegue ridicularizando as posições de Schelgel e Madame de Staël acerca do espírito romântico, faz algumas considerações sobre o teatro português, aborda os princípios universais do poema trágico e conclui com um sugestivo conselho para os nacionais:

Em uma palavra: em vossos dramas pensai como Corneille, escrevei como Racine, movei como Voltaire! Com estas regras, com estes exemplos O Teatro Brasileiro surgirá com glória e merecerá ser contado no número daqueles que podem servir de modelo. [5]

 

Como se pode observar, os nossos jovens literatos estavam longe da pretendida posição intermediária que anunciavam na "Introdução". Quando o assunto em pauta era literatura, o programa que defendiam enraizava-se nos universais princípios clássicos, nos princípios eternos do gosto e da razão. No entanto, paralelamente a tão conservadoras idéias, os acadêmicos paulistas ansiavam pela constituição de uma literatura nacional e sentiam que tal empreendimento deveria realizar-se através de uma renovação dos cânones clássicos. Justiniano José da Rocha, na sua resenha crítica sobre os Poemas de G. Magalhães, traduz com maestria esses anseios e sentimentos. Acompanhemos mais de perto o desenrolar desse texto.

J. J. da Rocha começa por destacar, numa clara consciência da necessidade de fazer avançar as discussões literárias entre nós, o papel da crítica para o progresso das letras. Passa, em seguida, para uma análise do estágio em que se encontrava a poesia nacional. Nesse terreno o autor detecta o seguinte: de um lado, um número reduzido de composições poéticas que honram o gênio brasileiro e um diminuto apreço do público por essa manifestação; de outro lado, uma mocidade dotada de grande talento e inclinação para a arte de Camões. Para essa situação aparentemente paradoxal, o crítico só encontra uma explicação:

Justificáveis porém são os Brasileiros pelo desprezo com que têm tratado as letras. Ainda há pouco livres do jugo colonial, eles deveriam empregar, e com efeito empregaram, todos os seus esforços em consolidar sua independência e liberdade, nobre e sublime trabalho que bem longe estou de condenar. [6]

 

Feitas essas considerações iniciais, J. J. da Rocha enceta uma breve análise de alguns autores nacionais com o intuito de detectar em suas composições traços que denunciem a influência pitoresca do nosso solo. Em José Bonifácio e Gonzaga, o crítico encontra dois desses traços: a voluptuosidade e o amor, temas que ele acredita serem típicos do caráter brasileiro e, por isso mesmo, fadados a marcar nossa poesia futura. Entretanto, não é no desenvolvimento desses dois temas que se aloja a esperança do crítico de ver nascer uma poesia realmente nacional. Segundo ele, essa deve brotar de uma inspiração maior: a natureza dos trópicos.

Quando porém atento a que nossas paisagens, os costumes dos nossos camponeses, em uma palavra, a Natureza d'América, ainda oferecem quadros tão virgens como ela ao poeta que os quiser pintar; quando me lembro que o azulado Céu dos Trópicos ainda não foi cantado (...), atrevo-me a esperar que nossa poesia, majestosa, rica, variada, e brilhante, como a natureza que a inspira, nada terá que invejar às cediças descrições Européias (...). [7]

Munido dessas reflexões, J. J. da Rocha parte para a análise das composições de Magalhães. De saída, critica alguns lapsos cometidos pelo poeta fluminense como por exemplo o fato de ele, de quando em vez, fazer do verso prosa cortada, e escrita em linhas de desigual tamanho. A seguir tece alguns elogios ao classicismo da linguagem adotada pelo vate e conclui enaltecendo com veemência o patriotismo presente nos seus versos, patriotismo que, segundo Rocha, põe em cena as belezas naturais do país e eleva-o ao nível das nações cultas:

Entre as qualidades que recomendam o Sr. Magalhães não deve ser esquecido o seu amor pelo Brasil. Graças a ele, já a majestosa mangueira substituiu os choupos, e os carvalhos, já o sabiá brasiliense destronou o rouxinol da Europa, e algumas das belezas americanas trajaram as ricas Galas da Poesia. [8]

O artigo de J. J. da Rocha, como afirmamos, oferece-nos uma amostra bastante representativa do pensamento literário brasileiro no período imediatamente anterior à chamada revolução romântica. Nele podemos encontrar algumas idéias bastante características desta fase: o elogio da crítica, atividade então embrionária entre nós; a atribuição de nosso atraso cultural ao jugo colonial e aos esforços despendidos para dele se libertar; a atribuição de uma aptidão nata do brasileiro para as letras; a concepção das belas-letras como um instrumento de consolidação da cultura nacional; e, especialmente, o juízo segundo o qual era urgente definir os elementos constitutivos da nossa literatura, isto é, definir os traços que faziam-na brasileira. Quanto a esse último aspecto, nosso crítico revela de forma clara o impasse vivido na época: sabia-se da necessidade de se introduzir inovações nos modelos poéticos até então adotados para dar-lhes uma feição mais nacional, mas não se sabia exatamente como fazê-lo. As idéias disponíveis levavam ao entroncamento, contudo, não apontavam o caminho a seguir.

É nesse delicado momento de transição que aparece a Niterói, revista Brasiliense. A revista teve publicados apenas dois números, ambos editados em Paris, no ano de 1836, por Dauvin et Fontaine Libraires. Organizada por G. Magalhães, Torres Homem, Araújo Porto Alegre e Pereira da Silva, ela foi financiada pelo negociante brasileiro Manuel Moreira Neves e durou enquanto este mecenas pôde mantê-la. Os seus objetivos em pouco diferiam daqueles visados pela Revista da Sociedade Filomática. Na nota "Ao Leitor", os autores assim sintetizam os propósitos da publicação:

O amor do país e o desejo de ser útil aos seus concidadãos foram os únicos incentivos, que determinaram os autores dessa obra a uma empresa, que, exceptuando a pouca glória, que caber-lhes pode, nenhum outro proveito lhes funde. Há muito reconheciam eles a necessidade de uma obra periódica, que (...) acostumasse ... [os cidadãos] ... a refletir sobre objetos do bem comum, e de glória da pátria (...). Tal é o fim a que se propõem os autores dessa Revista, reunindo todas as suas forças para apresentar em um limitado espaço todas as matérias, que devem merecer a séria atenção do brasileiro amigo da glória nacional. [9]

 

Os meios para levar a cabo essa nobre missão de ilustrar a pátria e colaborar para o seu progresso pouco diferiam igualmente daqueles postos em jogo pela publicação dos jovens acadêmicos de São Paulo. Tratava-se não só de divulgar os recentes avanços do conhecimento europeu em solo nacional como também de utilizar tais conhecimentos como instrumentos de análise da realidade brasileira. Ainda no tópico "Ao Leitor", os coordenadores anunciam o conteúdo da revista nos seguintes termos:

A economia política, tão necessária ao bem material, progresso, riqueza das nações, ocupará importante lugar na Revista Brasiliense. As ciências, a Literatura Nacional e as Artes que vivificam a inteligência, animam a indústria, e enchem de glória e de orgulho os povos, que as cultivam, não serão de nenhum modo negligenciadas. E destarte, desenvolvendo-se o amor e a simpatia geral para tudo que é justo, santo, belo e útil, veremos a pátria marchar na estrada luminosa da civilização (...). [10]

Apesar dessa semelhança de objetivos e meios, a Niterói, justiça seja feita, diferia significativamente das publicações do gênero editadas no país até esse momento. Os quatro jovens que encabeçavam o projeto selecionaram melhor os assuntos a serem divulgados, organizaram com mais bom senso as matérias e, sobretudo, apresentaram-nas numa linguagem cuidadosamente elaborada. Em razão disso, a qualidade final da publicação em muito ultrapassou suas antecessoras.

Mas deixemos de lado os elogios e passemos aos textos publicados. Nos dois números da Niterói que vieram à luz, podemos encontrar três artigos que tematizam a literatura: no primeiro número, o "Ensaio sobre a História da Literatura do Brasil", de D. J. G. Magalhães; no segundo, o "Estudos sobre a Literatura", de J. M. Pereira da Silva, e a resenha de F. S. Torres Homem sobre o livro de Gonçalves de Magalhães, Suspiros Poéticos e Saudades. Desses artigos, o que melhor sintetiza a filosofia literária defendida pelo periódico é o ensaio de Magalhães. Analisemos mais detidamente esse texto e vejamos o que ele traz de novo para a nascente reflexão sobre a nacionalidade da literatura brasileira.

A primeira questão a ocupar a pena de Magalhães é a demarcação do conceito de literatura. Profundamente influenciado pelas idéias de Mme. de Staël, Schlegel e Schiller, o autor, logo no primeiro parágrafo do seu ensaio, busca defini-la nos seguintes termos:

A literatura de um povo é o desenvolvimento do que ele tem de mais sublime nas idéias, de mais filosófico no pensamento, de mais heróico na moral, e de mais belo na natureza, é o quadro animado de suas virtudes e de suas paixões (...). E quando esse povo, ou essa geração desaparece (...), a Literatura só escapa aos rigores do tempo, para anunciar (...): em tal época (...) um povo existia (...), vós (...) se pretendeis também conhecê-lo, consultai-me, porque eu sou o espírito desse povo, e uma sombra viva do que ele foi. [11]

De posse dessa romântica definição (literatura = espírito de um povo), Magalhães parte para a análise das belas-letras nacionais. Seu passo inicial ao penetrar nesse terreno é chamar a atenção para a dificuldade de se levar a cabo tal empreendimento; e isso, segundo o crítico, por várias razões: a produção local é limitada, os documentos disponíveis sobre o assunto são mesquinhos e esparsos e, acima de tudo, não há bons trabalhos, nem nacionais nem estrangeiros, que possam servir como fontes de consulta. Para esse estado de quase completo abandono em que se encontrava a história literária local, Magalhães, fazendo coro com J. J. da Rocha, apresenta a seguinte explicação:

O Brasil, descoberto em 1500, jazeu três séculos esmagado debaixo da cadeira de ferro, em que se recostava um Governador colonial com todo o peso de sua insuficiência, e de sua imbecilidade. Mesquinhas intenções políticas, por não avançar outra coisa, leis absurdas, e iníquas ditavam, que o progresso da civilização, e da indústria entorpeciam. Os melhores gênios em flor morriam (...). [12]

Ao lado dessa causa maior, o crítico enumera outras: a péssima qualidade dos colonizadores mandados para o Brasil, a falta de amor desses imigrantes pelo país, a escravidão (contrária ao avanço da civilização), a desvalorização do trabalho intelectual, o gosto do nacional por coisas estrangeiras e o pouco apreço pelas coisas da pátria.

Feitas essas ressalvas, Magalhães debruça-se sobre o seu objeto. Inicialmente, chama atenção para a pouca brasilidade da nossa literatura até a Independência, uma literatura, segundo ele, transposta do solo europeu e climatizada no Brasil:

... como o pássaro da fábula, despimos nossas plumas para apavonar-mo-nos com antigas galas, que não nos pertencem. Em poesia requer-se mais que tudo invenção, gênio, e novidade; repetidas imitações o espírito embrutecem, como a muita arte, e preceitos tolhem, e sufocam o gênio (...). [13]

 

Ainda dentro dessa perspectiva, numa clara referência aos nossos poetas árcades, continua o crítico:

... tão grande foi a influência, que sobre o Gênio Brasileiro exerceu a Grega Mitologia transportada (...), que muitas vezes Poetas Brasileiros em pastores se metamorfoseiam, e vão apascentar seu rebanho nas margens do Tejo, e cantar à sombra de faias. [14]

Mas, segundo Magalhães, a era dos imitadores, dos homens com o Gênio paralisado, havia ficado para trás. A mudança de estágio da civilização brasileira - iniciada com a chegada de D. João VI, impulsionada pela Independência e consolidada com a chamada Revolução do 7 de abril - teria aberto perspectivas absolutamente novas para a literatura pátria. Tal mutação teria, igualmente, instituído uma ruptura na história das nossas Letras, dividindo-a em duas fases bem demarcadas:

No século XIX com as mudanças, e reformas políticas, que tem o Brasil experimentado, nova fase literária apresenta. Uma só idéia absorve todos os pensamentos, uma nova idéia até ali desconhecida, é a idéia de Pátria; ela domina tudo, tudo se faz por ela, ou em seu nome. [15]

Esta vista geral sobre o avanço da nossa civilização e seu consequente reflexo nas belas-letras conduz o nosso crítico a formular duas questões, consideradas por ele fundamentais para o futuro da nossa literatura, a saber: pode o Brasil inspirar a imaginação dos poetas? E os seus indígenas cultivaram porventura a poesia? [16] A essa última questão Magalhães responde afirmativamente. Calcado em um manuscrito, denominado Roteiro do Brasil, o crítico afirma serem poetas e músicos natos os primeiros habitantes da pátria, sobretudo os tamoios, tribo muito inclinada para essas artes. Lamenta, no entanto, que os feitos poéticos desses povos - aqueles produzidos após o contato com o Cristianismo e a civilização - tenham se perdido através dos tempos ou caído no esquecimento, abandonados em alguma biblioteca de um convento do nordeste brasileiro. Em virtude desse estado de coisas, conclui o crítico, nenhuma influência na nossa poesia pôde exercer tal legado:

Talvez tivessem elas... [as poesias nativas] ...de influir sobre a atual Poesia Brasileira, como os cânticos do Bardo da Escócia sobre a Poesia influíram do Norte da Europa, e hoje, harmonizando seus melancólicos acentos com a sublime gravidade do Cristianismo, em toda a Europa dominam. [17]

No que se refere à primeira questão, Magalhães, como pode prever o leitor, para além de responder positivamente, tece os mais largos elogios à natureza dos trópicos. Segundo ele, tal ambiente, que tanto fascinou os viajantes e naturalistas europeus que por aqui passaram, não só seria capaz de inspirar a imaginação dos nossos vates, como ainda estaria apto a exercer sobre eles um efeito renovador, ou seja, conduzi-los à produção de uma poesia original, verdadeiramente brasileira.

A propósito dessa ligação entre a singularidade da Natureza tropical e a criação de uma nova poesia, vale destacar que, antes de Magalhães, ela havia sido trabalhada por alguns estrangeiros que voltaram os olhos para as nossas letras. Garrett, por exemplo, na sua "Introdução" ao Parnaso Lusitano, chamara atenção para tal ligação. Censurando a inspiração pouco americana de poetas como Santa Rita Durão, Tomás Antônio Gonzaga e, em menor escala, Basílio da Gama, o poeta português comenta:

E agora começa a Literatura Portuguesa a avultar e enriquecer-se com as produções dos engenhos brasileiros. Certo é que as majestosas e novas cenas da natureza naquela vasta região deviam ter dado a seus poetas mais originalidade, mais diferentes imagens, expressões e estilo do que neles aparece: a educação européia apagou-lhes o espírito nacional, parece que receiam de se mostrar americanos; e daí lhes vem uma afetação e impropriedade que dá quebra em suas melhores qualidades. [18]

No mesmo ano (1826), o brasilianista F. Denis, no seu conhecido Resumo da História Literária do Brasil, abordava problema semelhante ao de Garrett. Em algumas páginas dedicadas às letras brasileiras, o francês trazia à cena idéias extremamente relevantes para a formação da nossa consciência literária. Primeiramente, chamava a atenção para o fato de que a literatura brasileira, após o processo de Independência, deveria gradativamente separar-se das letras portuguesas e buscar fontes de inspiração que lhe fossem próprias:

O Brasil, que sentiu a necessidade de adotar instituições diferentes daquelas que foram impostas pela Europa, experimenta já a necessidade de ir buscar sua inspiração poética a fontes que realmente lhe pertencem; e na sua nascente glória ele nos dará, em breve, as obras primas desse primeiro entusiasmo que atesta a juventude de um povo.[19]

Na seqüência dessa notação, Denis tecia algumas considerações sobre o povo brasileiro e suas várias raças componentes, sobre a natural aptidão desse povo para os feitos poéticos, sobre a influência da literatura francesa nesta nascente experiência e, acima de tudo, sobre a necessidade dos nossos poetas rejeitarem o modelo clássico e abrirem-se às novas possibilidades oferecidas pela natureza local:

A América, exuberante de juventude, deve ter pensamentos novos e enérgicos idênticos a ela; nossa glória literária já não pode iluminá-la (...). Nesses belos países, tão favorecidos pela natureza, o pensamento deve engrandecer-se com o espetáculo que lhe é oferecido; majestoso (...), ele deve permanecer independente e procurar seu sentido apenas na observação. [20]

Idéias bem próximas das de Garrett e F. Denis são desenvolvidas por D. Gavet e P. Boucher no prefácio da obra Jakare'-Uassu, ou os Tupinambás, Crônica Brasileira, escrita em 1833. Os autores - árduos defensores da inspiração e do entusiasmo românticos e avessos à imitação clássica -, ao abordarem a poesia nascida no prodigioso solo do Novo Mundo, afirmam:

Neste país de maravilhas em que tudo é novo, em que tudo vive animado por um suco de fogo, em que o pensamento cresce, e se engrandece livre, virgem, singelo, brilhante, nada apareça do que é usado, nem se faça ouvir cousa alguma que se ressinta da lima Européia. [21]

Como se vê, Magalhães não primou pela originalidade quando sugeriu que o poderoso meio circundante dos trópicos deveria dar origem a uma poesia nova, de contornos próprios, uma poesia verdadeiramente brasileira. Isso, no entanto, não diminui em nada a importância do seu artigo para a formação da nacionalidade de nossa literatura. O crítico carioca, original ou não, foi o responsável entre nós pela articulação entre os ideais românticos e os anseios de constituição das letras pátrias. Mas antes de passarmos a descrever as contribuições do ensaio de Magalhães, retornemos a ele e acompanhemos as suas notas finais. Após responder às duas questões anteriormente citadas, o autor, a título de conclusão, afirma:

... se até hoje a nossa Poesia não oferece um caráter inteiramente novo e particular, é que os Poetas, dominados pelos preceitos, atados pela imitação dos antigos, que como diz Pope, é imitar mesmo a natureza (...), não tiveram bastante força para despojarem-se do jugo dessa leis (...) que se arrogam o direito de torturar o Gênio (...). [22]

Eis, em linhas gerais, o importante estudo de G. Magalhães. Entre ele e a resenha de J. J. da Rocha, publicada três anos antes na Revista da Sociedade Filomática, há vários pontos em comum: a visão da crítica literária como um instrumento para o avanço das letras nacionais; a atribuição do atraso de nossa literatura às condições impostas pela metrópole portuguesa; a crença de que a independência política inaugurava um novo estágio da nossa vida cultural; a reivindicação de uma aptidão nata do brasileiro para as belas-letras; e ainda a convicção de que os nossos vates deveriam voltar suas atenções para a bela e exuberante natureza do Brasil, bem como para os hábitos e costumes de seu povo. Os dois artigos comungam ainda de uma intenção nitidamente patriótica, indicativa da clara consciência de que à literatura cabia um papel deveras importante na construção da nossa jovem cultura e na formação do espírito de nacionalidade do povo. Essas semelhanças, todavia, não nos devem iludir. Ao contrário da resenha de J. J. da Rocha, o ensaio de Magalhães - assim como os artigos de Pereira da Silva e Torres Homem, incluídos na mesma revista - não se encontra mais diante de uma bifurcação. Seu texto já indica, com certa precisão, um caminho a ser seguido para a efetiva edificação de uma literatura que se queria nacional. Ele traça, mesmo que na forma de um esboço, de uma carta de intenções, um programa que, bem ou mal, irá dar o norte às nossas belas-letras durante boa parte do século XIX. É verdade que, como veremos mais adiante, à medida que a atividade literária ganhou corpo, os traços desse esboço não só ficaram mais nítidos como sofreram algumas alterações. Mas é verdade também que seus elementos principais, como a definição de literatura, a idéia de um Gênio nacional, a função social atribuída às letras, a estipulação da Independência política como um marco da nossa vida cultural e mesmo a idéia de uma inclinação natural do brasileiro para as letras, permaneceram intactos.

Quanto à articulação entre os conceitos provenientes do romantismo europeu e os anseios por estabelecer a nacionalidade das nossas letras, vale destacar que tal cruzamento histórico, longe de ser um artificialismo, foi oportuno e produtivo. Concepções como espírito de um povo, Gênio Nacional, inspiração, entusiasmo e originalidade, para citar apenas algumas, foram fundamentais para a nossa nascente reflexão literária, pois funcionaram como substrato para a construção da idéia de pátria, isto é, para a construção da idéia de um povo dotado de costumes, história, sentimentos e, consequentemente, literatura próprios. Pereira da Silva, no segundo e último número da revista Niterói, ao apresentar uma síntese dos efeitos da ascensão da nova escola, oferece-nos um bom exemplo desse uso do ideário romântico:

No começo do nosso século a poesia romântica levantou seu estandarte vitorioso (...), honras sejam dadas aos primeiros atletas do romantismo (...), a Chateaubriand, B. Constant, Mme. de Staël, Lamartine, V. Hugo, Manzoli, Foscolo, Pellico! Louvores também a Schiller, Byron, W. Scott, Goethe (...), que nas suas diferentes pátrias, constantemente gritaram pela liberdade e emancipação do Gênio! (...) Assim pois hoje o horizonte da poesia moderna aparece claro e belo, as faixas e vestes estranhas, que sobre nós pesavam, caíram, e já nos adornamos com o que é nosso, e com que nos pertence. No Brasil porém infelizmente ainda esta revolução poética se não fez completamente sentir, nossos vates renegam sua pátria, deixam de cantar (...) as virgens florestas, as superstições e pensamentos de nossos patrícios, seus usos, costumes, e religião, para saudarem os Deuses do politeísmo Grego (...) . Já no 1º nº da Revista Brasiliense (...), proclamou o nosso amigo o senhor Magalhães esta verdade, aconselhando aos Poetas Brasileiros de estudarem a história, natureza, e usos do país, de seguirem suas inspirações ao passo, que elas vêm, sem se submeterem às regras incoerentes, que bebemos com o cativeiro da nossa Pátria. Ainda mais, ele acaba de dar o exemplo do que pode o gênio livre de cadeias. [23]

 

Os conselhos de Magalhães, ou melhor, do grupo fundador da Niterói, causaram grande impacto no seio da inteligência local. Impacto cujos efeitos logo se fizeram sentir. A partir do ano seguinte (1837), com o retorno do grupo ao Rio de Janeiro, a literatura nacional, ao menos nessa cidade, passou a viver um período de grande efervescência: o número de poetas cresceu, a crítica consolidou-se, as revistas literárias avolumaram-se, o romance fez sua estréia e rapidamente conquistou um bom número de leitores, o teatro nacional floresceu, o literato alcançou grande prestígio no meio social, o público consumidor de literatura aumentou, enfim, em reduzido tempo - quatro décadas, pouco mais pouco menos, a contar da edição da Niterói - a tão almejada literatura nacional ganhou um perfil e a vida literária deitou raízes profundas na sociedade brasileira.

São conhecidos os principais nomes e as divisões que marcaram esse alvorecer da literatura nacional. Poucos períodos da nossa produção literária foram tão exaustivamente trabalhados pelos estudiosos locais[24]. Assim sendo, não abordaremos em pormenor os autores e as obras dessa fase. Mesmo porque, isso fugiria inteiramente aos propósitos desse ensaio, dedicado, única e exclusivamente, a acompanhar a construção do conceito de nacionalidade nos textos críticos da época. Limitemo-nos, pois, a esse aspecto.

O impulso inicial que a literatura brasileira recebeu no período posterior à revista Niterói coube, sem dúvida, ao grupo liderado por Magalhães. Embora não fosse composto por literatos dotados de grande talento (exceção feita a G. Dias), esse grupo forneceu à nossa literatura oitocentista boa parte dos temas e motivos em torno dos quais ela iria desenvolver-se: o sentimento religioso e o espiritualismo, o saudosismo, a melancolia, as divagações sobre a mocidade e a velhice, o culto da liberdade e o combate à tirania, a visão amargurada do mundo, a reflexão de cunho histórico, a atividade literária concebida como uma missão reformadora e moralizadora e, acima de tudo, o patriotismo. Esse último ponto nos interessa em particular. Uma rápida visada sobre as formas que ele assumiu nas composições da época nos dará uma idéia bastante precisa do conceito de nacionalidade então vigente. Em verdade, não teremos muitas surpresas, pois a produção da chamada primeira geração romântica traduz com bastante fidelidade o programa proposto pelo Srs. Magalhães e Pereira da Silva nos seus respectivos artigos para a revista Niterói. Destarte, o patriotismo de Porto Alegre, Torres Homem, Teixeira e Sousa, Gonçalves Dias e outros contemporâneos girou, basicamente, em torno de dois temas centrais: a exaltação da exuberante natureza local e o culto do índio. Pouco pode-se dizer sobre o desenvolvimento desses temas que já não tenha sido dito aquando da abordagem dos artigos citados. Como vimos, nesse momento primeiro de construção da literatura brasileira, o conceito de nacionalidade era bastante restrito: nacionais eram aquelas composições que, ao contrário das produzidas no período colonial, iam buscar sua fonte de inspiração nos quadros novos e ricos fornecidos pela natureza dos trópicos, eram aquelas em que o poeta, pondo de lado a imitação dos clássicos, deixava-se levar pelo entusiasmo produzido pelo ambiente circundante e pelos sentimentos provenientes do espírito de seu povo. Quanto ao índio, cabe acrescentar que, desde de 1830, ele transformara-se, para a inteligência local, num objeto privilegiado de análise. Não foram poucos os intelectuais e literatos que se posicionaram em favor de uma maior valorização da cultura desses autênticos representantes do povo brasileiro. Para se ter uma idéia de como o chamado indianismo foi significativo para esse momento primeiro da construção de nossa nacionalidade literária, basta recordar que o poeta maior desta fase, Gonçalves Dias, chegou a escrever a pedido do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro uma memória sobre a civilização indígena brasileira; memória assim saudada pelo Primeiro Secretário Joaquim Manuel de Macedo:

A Oceania e o Brasil, do nosso consócio o Sr. Antônio Gonçalves Dias, sobre o programa que lhe foi distribuído por S. M. para a comparação dos indígenas do Brasil e Oceania nos seus estados físico, moral e intelectual, (...) é um trabalho que faz honra ao seu autor, não só pela habilidade com que o tratou, como pelo desenvolvimento que lhe deu (...). [25]

O crítico Joaquim Norberto, não se mostrou menos entusiasmado com os nossos selvagens. Inspirado no artigo de Magalhães para a Niterói, ele chegou ao ponto de defender, na sua Introdução ao Mosaico Poético, a seguinte posição:

As encantadoras cenas, que em quadros portentosos oferece a natureza em todos os sítios, os inspirava, e de povos rudes e bárbaros faziam-se poetas. No seu estudo, pois, se encerram verdadeiramente as primeiras épocas da nossa história literária (...).[26]

Essa limitada e ufanista definição de nacionalidade literária não durou, no entanto, muito tempo. À medida em que a revolução romântica consolidou-se e que as belas-letras atingiram uma maior maturidade, essa significação inicial incorporou outros elementos. Um sintoma dessa mudança pode ser encontrado na obra Macário, do poeta Álvares de Azevedo. Nesse texto, escrito possivelmente no final da década de 40, o jovem acadêmico paulista introduz, entre seu personagem principal (Macário) e outro de nome Penseroso, um irônico diálogo que bem demonstra como a identificação entre nacionalidade e exaltação da natureza e do selvagem tornara-se demasiado incômodo ao avanço das letras:

PENSEROSO - ...esse americano não sente que ele é o filho de uma nação nova (...)? Não se lembra que seus arvoredos gigantescos, seus oceanos escumosos, os seus rios, suas cataratas, que tudo lá é grande e sublime? (...) Porque antes não cantou a sua América (...).

MACÁRIO - ...Não escutes essa turba embrutecida no plagiar e na cópia. (...) Falam nos gemidos da noite no sertão, nas tradições das raças perdidas da floresta, nas torrentes das serranias, como se lá tivessem dormido ao menos uma noite (...). Mentidos! Tudo isso lhes veio à mente lendo as páginas de algum viajante que esqueceu-se talvez de contar que nos mangues e nas águas do Amazonas e do Orenoco há mais mosquitos e sezões do que inspiração (...). [27]

O poeta, contudo, não nos fornece pista alguma acerca do novo caminho que deveria ser tomado. Mais rico nesse sentido é o artigo, "Da Nacionalidade da Literatura Brasileira", de Santiago Nunes Ribeiro, publicado na revista Minerva Brasiliense em 1843. O ensaio desse crítico é um excelente indicativo de como a definição de literatura brasileira havia se expandido desde os tempos da Niterói e já estava apta a abranger produções novas, como as da segunda geração romântica, por exemplo. Ribeiro inicia o seu texto recusando uma série de teses acerca da nacionalidade (ou não) da nossa literatura e, a partir dessas recusas, vai construindo o seu conceito de nacionalidade. Em primeiro lugar, opõe-se à proposição do Dr. Gama e Castro, segundo a qual a literatura brasileira, por utilizar a língua de Camões, não passaria de uma ramificação daquela produzida em Portugal. Contra tal idéia, o crítico apresenta a réplica seguinte:

Não é incontestável que a divisão das literaturas deva ser feita invariavelmente segundo as línguas em que se acham consignadas. Outra divisão (...) seria a que atendesse ao espírito, que anima, à idéia que preside aos trabalhos intelectuais de um povo, isto é, de um sistema, de um centro, de um foco de vida social. Este princípio literário e artístico é o resultado das influências, dos costumes e hábitos peculiares a um certo número de homens, que estão em certas e determinadas relações, e que podem ser muito diferentes entre alguns povos, embora falem a mesma língua. [28]

Ribeiro prossegue sua réplica chamando a atenção para o fato de que as condições sociais e naturais do novo mundo, tão díspares daquelas encontradas na Europa, não poderiam de forma alguma dar origem a uma literatura semelhante àquela do velho continente, e isso não obstante a nossa comunidade linguística com os lusitanos. Baseando-se na escola histórica de Hegel, o crítico busca demonstrar que os escritores locais e aqueles de além mar estão sujeitos a diferentes determinantes externos do eu e, consequentemente, possuem diferentes caracteres.

O que chama a atenção na argumentação do crítico, e que constitui a novidade do seu conceito de nacionalidade, é a função que ele reivindica para o meio circundante. Primeiramente, a natureza dos trópicos não aparece mais como a determinante maior das letras nacionais, como a grande responsável pelo traço distintivo da nossa literatura e dos nossos literatos. Ela passa a dividir com os hábitos e costumes, com a organização social, enfim, com os elementos culturais esse importante papel. Em segundo lugar, sua contribuição deixa de ser meramente exterior: não é por fornecerem ao literato quadros novos em que pode inspirar-se que as paisagens brasileiras são importantes para a formação de nossa nacionalidade literária, mas sim por atuarem diretamente sobre a constituição da personalidade de nossos homens de letras, fazendo-os brasileiros independentemente do fato de cantarem ou não as belezas naturais que os rodeiam.

Pautado nessa visão ampliada de nacionalidade, Ribeiro prossegue seu artigo tecendo algumas censuras a Denis, Garrett, Torres Homem e G. Magalhães. O cerne de sua crítica aos autores citados aloja-se no seguinte ponto: ele julga que esses estudiosos equivocaram-se profundamente ao acusarem os poetas mineiros de serem copiadores e insensíveis à natureza brasileira. Em favor dos nossos árcades, Ribeiro argumenta que não lhes era possível enxergar a natureza tal qual o século XIX o faz, pois aquilo que se vê é historicamente determinado. Não lhes era possível tampouco escapar da imitação dos clássicos, posto que a linguagem poética da época em que escreveram assim exigia dos praticantes das belas-letras:

A poesia brasileira da época anterior à independência foi o que devia ser. Por ventura poderia ela ser a expressão das idéias e sentimentos de outros tempos? (...) Ninguém pode sentir inspiração completamente estranhas ao seu tempo. [29]

Após esta ponderação de ordem histórica, Ribeiro, para quem os árcades faziam uma poesia genuinamente nacional, afirma:

A poesia do Brasil é filha da inspiração Americana. A inspiração não pode ser comunicada por nenhuma espécie de educação (...). Considerada assim ela é inerente à natureza do homem (...). [30]

Mas não nos alonguemos demasiado. O que foi dito já é suficiente para demonstrar o quanto o conceito de nacionalidade literária tinha avançado. Avanço significativo o suficiente para, ao lado da poesia dos tacapes e borés de Magalhães e G. Dias, abarcar como brasileira a poesia do desalento de Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu e outros jovens desiludidos. Ora, como vimos, a nacionalidade de uma composição não mais decorria do quantum de cenas brasileiras ela utilizava, não decorria tampouco do culto ou não que ela devotava aos primeiros habitantes da América. A nacionalidade havia se deslocado desses aspectos externos para alojar-se no interior mesmo do literato, ou melhor, no seu modo de conceber o mundo, no seu caráter. Assim, tratasse ele dos sabiás e das palmeiras ou das faias e rouxinóis sua obra refletiria sempre o espírito do seu povo.

Esse alargamento do conceito de nacionalidade, ilustrado aqui pelo artigo de Santiago Nunes Ribeiro, não foi, contudo, abraçado por todos os nossos literatos. Da década de 40 ao final dos anos 70, acaloradas discussões sobre tal assunto tiveram lugar no seio de nossa elite intelectual. Durante estes trinta e poucos anos é possível detectar, nos textos críticos produzidos, posições mais ou menos próximas daquela de Santiago Nunes Ribeiro. Joaquim Norberto de Sousa e Silva, por exemplo, que no início da década de 40 encontrava-se em profunda consonância com as idéias advogadas pelos jovens da Niterói, numa série de artigos para a Revista Popular entre os anos de 1859 e 1862, já defende, acerca da nacionalidade da nossa literatura, pontos de vista idênticos aos de Ribeiro. Acompanhemos o que ele afirma sobre a originalidade em literatura:

A originalidade da literatura de qualquer nação se demonstra por si mesma. Transuda de suas obras nessa cor local que provém da natureza e do clima do país. Patenteia-se dando a conhecer nos próprios costumes, usos e leis da sociedade (...). Assim a literatura que não for servilmente modelada por outra (...) apresentará sempre uma tal ou qual originalidade proveniente do espetáculo da natureza que oferece o país; da sensação do clima que o cerca; dos costumes, dos usos, das leis de seus habitantes; da religião que irmana as famílias; da glória, a mais cara de todas as heranças, pois que se apóia na história e nas tradições, que liga o presente ao passado. [31]

Os progressos de Joaquim Norberto contrastam por sua vez com as posições conservadoras dos saudosos da geração de 1836 que, na mesma época dos artigos citados, permaneciam fiéis aos cânones defendidos por Denis, Magalhães e Pereira da Silva. Eram homens cuja concepção de brasilidade não permitia ver com bons olhos os arrojos byronianos de Álvares de Azevedo, Laurindo Rabelo, Bernardo Guimarães e outros. Macedo Soares é um destes conservadores. Num artigo para a Revista Popular, publicado em 1859, ele assim se refere aos imitadores do vate inglês alojados na Academia de São Paulo:

Caracteres como esses de Byron, esgotou-os seu criador (...). Mas a chusma dos imitadores que caíram-lhe sobre o glorioso cadáver, já não achara a seiva que queria recolher com o último suspiro do poeta. Tiraram-lhe pálidas cópias, repetiram-lhe as edições, mas faltou-lhes o verbo criador, e as cópias desmereceram pelo colorido chato com que as emplastraram. [32]

Mas apesar desses refluxos, a marcha das nossas letras seguiu em frente. Gradativamente, o conceito de nacionalidade vigente dilatou-se e abriu espaço para abrigar as tendências supranacionais da nossa produção literária, isto é, aquelas tendências voltadas para questões mais universais. Uma excelente expressão desse alargamento conceitual - preocupado em conjugar o nacional e o universal - nos é oferecido por Machado de Assis no seu ensaio Instinto de Nacionalidade, publicado em 1873 na revista O Novo Mundo (Nova York). Nesse artigo, o literato fluminense faz um balanço do que até então havia sido dito acerca da nacionalidade de nossa literatura. Após algumas considerações sobre as várias posições defendidas, Machado afirma:

Devo acrescentar que neste ponto manifesta-se às vezes uma opinião, que tenho por errônea: é a que só reconhece espírito nacional nas obras que tratam de assunto local, doutrina que a ser exata, limitaria muito os cabedais da nossa literatura (...). Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região, mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir do escritor antes tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem de seu tempo e de seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço. [33]

Não é difícil perceber o quão distante já estava o escritor carioca da geração dos tacapes e borés e quão mais ampla era a sua concepção de literatura brasileira. Uma concepção que, de certo modo, anunciava o fechar do pano de um ciclo das nossas letras.

II. Considerações Finais

O comentário de Machado de Assis põe fim a essa vista de olhos que lançamos sobre o processo de construção da idéia de nacionalidade da literatura brasileira. Através dessa rápida abordagem, pudemos verificar como tal conceito sofreu sucessivas expansões desde sua formulação primeira no texto de Magalhães. Acompanhando a diversificação do fazer literário local e acompanhando acima de tudo o amadurecimento de nossa cultura, a nacionalidade tornou-se cada vez menos um traço explícito, verificável na escolha do tema das composições, e cada vez mais a expressão de um certo modo de ser e de sentir. Ela passou, em suma, a caracterizar um estado de espírito que, inerente ao literato, decorria da sua pertença a uma espécie de comunidade de sentido. O que verificamos, pois, nesse percurso de 40 anos, foi a gradativa consolidação no âmbito literário da consciência nacional. Uma consciência que, à medida que se fortificou e lançou raízes mais profundas no seio da inteligência local e da população em geral, tornou-se menos explícita, menos ruidosa nas suas manifestações.

 

Notas bibliográficas

[0] C. Carneiro Campos; F. Bernardino Ribeiro; J. Silveira Mota, "Introdução", Revista Filomática Brasileira (São Paulo: Tipografia do Novo Farol Paulistano. Edição Fac-similar patrocinada pela Metal Leve S.A., 1977), p. 14.

[1] Id., Ibid., p. 15.

[2] Id., Ibid., p. 16.

[3] Anônimo, "Vista de olhos sobre a Poesia Portuguesa desde os últimos anos do século XVIII, e em particular sobre o Poema Camões geralmente atribuído ao Sr. Garrett", Revista da Sociedade Filomática, pp. 45-46.

[4] J. Bernardino Ribeiro; J. J. da Rocha; A. Augusto Queiroga, "Ensaio sobre a Tragédia", Revista da Sociedade Filomática, p. 137.

[5] Id., Ibid., p. 184.

[6] Justiniano J. da Rocha, "Ensaio crítico sobre a coleção de poesias do Senhor D. J. G. Magalhães", Revista da Sociedade Filomática, p. 48.

[7] Id., Ibid., pp. 50-51.

[8] Id., Ibid., p. 56.

[9] D. J. Gonçalves Magalhães; Araújo Porto Alegre; F. S. Torres Homem; J. M. Pereira da Silva, "Ao Leitor", Niterói (São Paulo: Edição fac-similar coordenada pela Academia Paulista de Letras, 1978), Tomo I, p. 5.

[10] Id., Ibid., p. 6.

[11] D. J. G. Magalhães, "Ensaio sobre a História da Literatura Brasileira", Niterói, Tomo I, p. 132.

[12] Id., Ibid., p. 138.

[13] Id., Ibid., p. 147.

[14] Id., Ibid., p. 147.

[15] Id., Ibid., p. 152.

[16] Id., Ibid., 153.

[17] Id., Ibid., p. 158.

[18] Almeida Garrett, Obras do Senhor Almeida Garrett (Porto: Casa da Viúva Mor, - Editora, 1867), Vol. XXI, p. 209.

[19] Ferdinand Denis, Résumé de l'histoire Littéraire du Portugal, suivi du résumé de l'histoire du Brésil (Paris: Lacointe et Durey, 1826), p. 515.

[20] Id., Ibid., p. 515.

[21] D. Gavet; P. Boucher, "Prefácio dos Autores para Jakare'-Uassu, ou os Tupinambás, Crônica Brasileira", Revista da Sociedade Filomática, pp. 94-95.

[22] D. J. G. Magalhães, op. cit., p. 158.

[23] J. M. Pereira da Silva, "Estudos sobre a Literatura", Niterói, Tomo II, pp. 217-218.

[24] Sobre esse importante período da história literária brasileira, ver especialmente: Antônio Cândido, Formação da Literatura Brasileira (Belo Horizonte: Itatiaia, 1981), 2vols.

[25] Joaquim Manuel de Macedo, "Relatório", Revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, Tomo XXI, 1853, pp. 602-603.

[26] Joaquim Norberto de Sousa e Silva (et. al.), "Introdução", in Mosaico Poético (Rio de Janeiro, 1844), p. 10.

[27] M. A. Álvares de Azevedo, Macário, Noites na Taverna e Poemas Escolhidos (Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983), p. 132-134.

[28] Santiago Nunes Ribeiro, "Da Nacionalidade da Literatura Brasileira", Minerva Brasiliense, I, 1843, p. 10.

[29] Id., Ibid., p. 12.

[30] Id., Ibid., p. 16.

[31] Joaquim Norberto de Sousa e Silva, "Originalidade da Literatura Brasileira", Revista Popular, IX, 1860, pp. 160-161.

[32] Citado por Wilson Martins, História da Inteligência Brasileira (São Paulo: Cultrix, Edusp,1977-78), 2ª ed., Vol. III, p. 113.

[33] Machado de Assis, Obras Completas (Rio de Janeiro: W. M. Jackson Inc., 1955), Vol. 29, p. 134-135.

 


Jean M. Carvalho França é Mestre em Sociologia da Cultura e Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais. Atualmente, desenvolve pesquisa de pós-doutoramento em Portugal e atua como colaborador dos jornais O Tempo (Belo Horizonte) e Folha de São Paulo.


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