Vanguarda e tradição: leitura de

"Reyerta",

de Federico García Lorca

 

 

Magnólia Brasil Barbosa do Nascimento

Universidade Federal Fluminense (UFF)


Resumo:

O domínio dos mais variados discursos artísticos é marca da genialidade do poeta espanhol Federico García Lorca.A leitura de "Reyerta", tem como objetivo buscar elementos da transfiguração erudita da tradicional forma romance, para acompanhar a apropriação poética de uma forma cristalizada e o jogo, também poético, que resgata o universo cultural espanhol. Ao metaforizar o cotidiano em seu trabalho inovador, Federico García Lorca integra vanguarda e tradição e constrói uma das mais importantes obras poéticas do século XX.

Resumen:

El dominio de los más variados discursos artísticos es marca de la genialidad del poeta español Federico García Lorca. La lectura del poema "Reyerta", tiene como objetivo buscar elementos de la transfiguración erudita de la tradicional forma romance. De esa manera, acompañamos la apropiación poética de una forma cristalizada, además del juego, también poético, que rescata el universo cultural español. Al metaforizar el cotidiano en su trabajo innovador, García Lorca integra vanguardia y tradición, además de construir una de la más importantes obras poéticas del siglo XX.


1. APRESENTAÇÃO

 

Na volumosa e valiosa obra deixada por Federico García Lorca, o mais famoso dos poetas espanhóis evidencia sua genialidade no domínio de variados discursos artísticos. Integrado à sua época histórica, participante ativo da ebulição cultural da Europa das primeiras décadas do século XX, Lorca assimilou o cosmopolitismo e a satisfação caracterizadoras da vanguarda mantendo, sempre, os pés firmes na tradição. Reproduzimos aqui as palavras do Professor André Luiz Trouche: "Paradoxalmente, quanto mais convive com o cubismo, discute e vivencia o surrealismo, quanto mais se abre para o internacionalismo e se interessa pelos caminhos do futurismo e do dadaísmo, mais o discurso poético de Lorca se nutre do elemento regional andaluz e espanhol ". 1

Não é a "España de pandereta", como querem alguns, o que marca e seduz no discurso lorquiano, mas o resultado de um mergulho na tradição para resgatá-la e fazer dessa tradição matéria prima de poemas numa recriação artística absolutamente inovadora. É assim no Romancero Gitano 2, publicado em 1928, conjunto de poemas que obedecem à tradicional forma do romance: série de versos octossilábicos, de rima em assonância nos versos pares, com estrofação funcional, à maneira do Romancero Tradicional espanhol. Lorca não faz uma imitação, não se apodera do recurso meramente formal para utilizá-lo de modo erudito. O talento de Lorca opera uma transfiguração poética do gênero ao situar sua produção poética vanguardística no que há de mais representativo da tradição.

 

2. LEITURA

 

É nessa perspectiva que propomos uma leitura do poema "Reyerta"3, do Romancero Gitano, para buscar elementos da transfiguração erudita da forma romance. Eis o romance lorquiano, objeto deste estudo:

 

REYERTA

A Rafael Méndez.

 

En la mitad del barranco

las navajas de Albacete,

bellas de sangre contraria,

relucen como los peces.

Una dura luz de naipe

recorta en el agrio verde,

caballos enfurecidos

y perfiles de jinetes.

En la copa de un olivo

lloran dos viejas mujeres.

El toro de la reyerta

se sube por las paredes.

Ángeles negros traían

pañuelos y agua de nieve.

Ángeles con grandes alas

de navajas de Albacete.

Juan Antonio el de Montilla

rueda muerto la pendiente,

su cuerpo lleno de lirios

y una granada en las sienes.

Ahora monta cruz de fuego,

carretera de la muerte.

*

El juez, con guardia civil,

por los olivares viene.

Sangre resbalada gime

muda canción de serpiente.

Señores guardias civiles:

aquí pasó lo de siempre.

Han muerto cuatro romanos

y cinco cartagineses.

*

La tarde loca de higueras

y de rumores calientes

cae desmayada en los muslos

heridos de los jinetes.

Y ángeles negros volaban

por el aire de poniente.

Ángeles de largas trenzas

y corazones de aceite.

 

Formalmente, o poema está estruturado em três estrofes, a primeira de 22 versos, a segunda e a terceira de oito versos cada uma, versos octossilábicos, de acordo com a métrica espanhola. A rima é em assonância nos versos pares, uma rima do tipo -e -e (Albacete / peces / verde/ jinete / mujeres etc).

Lendo Reyerta, que em português é luta, encontramos a estruturação tradicional do Romancero: a primeira estrofe, de 22 versos assonantados ( e-e ) conta a história numa narração poética com acentos líricos, segundo o estilo e o propósito do próprio Lorca, que afirmava: "[...] He querido hundir el romance narrativo con el lírico, sin que pierda ninguna calidad..." 4

A segunda estrofe expressa a visão crítica de Federico García Lorca, poeta do século XX e homem do seu tempo, através da intervenção de novos personagens (o juiz, a guarda civil, etc.) . Na terceira surge a participação da natureza (a tarde, o ar do poente), de elementos símbolo da Espanha andaluza (azeite, tranças negras) e o fluir do tempo (a tarde que cai). Em todos os sentidos trata-se, pela forma e estruturação temática, de um romance a que Lorca dá um tratamento poético de intensa expressão lírica, procedimento possível apenas nos quadros de uma transfiguração poética de um modelo formal, e não numa tentativa de imitação desse modelo.

O poema se inaugura com um marco espacial bem definido: "En la mitad del barranco " que nos coloca diante de uma outra evidência. Desde que a luta começou já transcorreu algum tempo, pois "las navajas de Albacete " não estão acima nem abaixo, caminharam (subindo ou descendo o barranco) até a metade; ou seja a reyerta está em pleno desenvolvimento - possivelmente em seu momento culminante.

E assim como, através de um brilhante jogo metafórico, o marco espacial se transformou em marco temporal, também os instrumentos/objeto (as navalhas de Albacete) se transformam em sujeito da ação. A exemplo de Jorge Luis Borges em seu conto "El encuentro" 5, onde o narrador afirma: "... las armas, no los hombres pelearon...", Lorca nos apresenta a situação concreta da luta com uma arma branca - a navalha - e de Albacete, ou seja, um elemento que tem vida própria porque se fez famoso por sua qualidade, pela qualidade única de seu aço, tanto mais simbólico por sua associação imediata à idéia da morte.

Se pensamos em obras como Bodas de Sangre, do próprio Lorca, vemos a navalha como ameaça, morte, força maligna, inapelável símbolo de destruição na fala de um personagem denso como La Madre: "[...] La navaja, la navaja... malditas sean todas y el bribón que las inventó. [...] No sé cómo te atreves a llevar una navaja en tu cuerpo, ni cómo yo dejo a la serpiente dentro del arcón."6 . Essas navalhas enfeitadas com o sangue inimigo ("bellas de sangre contraria ") mostram-nos a agilidade e a destreza de quem as empunha, no verso: "relucen como dos peces ", fugidias e rápidas em seu brilho de aço.

O motivo dessa reyerta, dessa luta, ilumina-se no verso "una dura luz de naipe ": a briga por jogo é a causa de tudo, daquela cena sofrida onde até o verde, normalmente símbolo de uma natureza tranqüila e bem organizada, está precedido pelo adjetivo agrio; como em tantos outros romances - "Romance de la Luna Luna", "Preciosa y el Aire", "Romance Sonámbulo", "La Casada Infiel", etc. - a natureza, cúmplice ou adversária, participa da ação, assimila e expressa características, emoções e sentimentos que compõem o clima geral do poema.

A "dura luz de naipe ", mais do que dar o motivo da luta, deixa-nos diante dos verdadeiros personagens centrais, os jinetes, apresentados apenas por seus perfis, que em outro magnífico processo metonímico transpõem para seus cavalos a fúria que os domina.

Dois octossílabos mais para sabermos que aqueles jinetes têm pessoas que lhes querem bem, e choram, não só por eles, mas por toda a sina que acompanha seu povo. São duas mulheres, "viejas mujeres ", que, normalmente, não deveriam estar no alto de uma oliveira. Uma primeira leitura nos dá a idéia de uma ruptura com o logicamente esperado; as mulheres estarão, certamente, à sombra desses olivos. Na cena ancorada no símbolo olivo/oliveira, o poeta expressa dor com o lloran e mostra essas velhas mulheres como seres sábios e oniscientes: elas não choram apenas pelo que vêem, mas por toda a sina de um povo. E choram também pela intensidade da luta, quando o poeta, apropriando-se de uma típica expressão espanhola absolutamente exageradora: "un buey de agua ", usada para significar grande quantidade, e adaptando-a ao momento, mostra a luta intensificando-se através da hipérbole:

el toro de la reyerta

se sube por las paredes.

 

No dístico seguinte, anjos negros já esperam com material próprio para aliviar as feridas e conter o sangue; os inesperados anjos negros não trazem água, pura e simplesmente, mas "agua de nieve ", mais fresca e mais suave, quem sabe mais aliviadora.Terão acudido várias pessoas, homens e mulheres vestidos de negro, ciganos, talvez, para socorrer os contendores, aparentemente desconhecidos e não nomeados, até aqui indicados, apenas, pelos perfiles do verso 8. O negro/dor do verso 13 desaparece no verso 15, quando permanecem os anjos, agora com suas asas metaforizadas nas armas da luta:

Ángeles con grandes alas

y navajas de Albacete.

 

O resultado é fatal: um cigano morre, Juan Antonio el de Montilla, único nomeado em todo o poema. Seu nome, com a orgulhosa referência ao local de origem, Montilla, forma um verso octossilábico e soa com altivez e nobreza, contrapondo-se à realidade: ele está morto e rola barranco abaixo com seu corpo exangue, empalidecido pela morte ("su cuerpo lleno de lirios ") e a fronte coberta de sangue / granada, preparado para a cavalgada final, montado em "cruz de fuego ", na estrada "de la muerte ".

A ordem estabelecida surge por entre as plantações de oliveiras: aproximam-se o juiz e a guarda-civil - a sociedade organizada. O dístico seguinte, altamente metafórico, evidencia toda a dureza e a sangrenta conseqüência da luta: o sangue espalhado pelo chão, grita em silêncio, denunciando... Outra vez rompe-se o esquema do logicamente esperado. O juiz não dá importância ao fato: é uma briga comum, entre rivais antigos, seculares. A referência aos romanos e cartagineses marca não só o tempo; serve também, para acentuar o antagonismo, a rivalidade; é mais um elemento simbólico, neste universo de símbolos que é o romance de Lorca.

A terceira estrofe vai, outra vez, ao encontro da natureza participante, para representar a aspereza nas higueras, que, no "Romance Sonámbulo", também figuram como partícipes de uma situação trágica. A figueira, árvore de folha áspera, desagradável ao tato, é associada popularmente ao ruim - por ser a árvore do enforcamento de Judas - e à infertilidade - como atesta a expressão popular: "figueira brava é a que não dá fruto". Em "Reyerta", higuera recupera o campo semântico traçado pelo dura, pelo agrio da primeira estrofe.

Nos três primeiros versos desta última estrofe, o poema situa temporalmente o final da luta: a tarde que cai, a anteceder a noite, uma tarde humanizada por uma transposição qualificativa pois o atributo desmaiada/cansada/ sofrida - "cae desmayada en los muslos "- normalmente seria aplicado aos jinetes, mas aqui foi empregado em relação à tarde solidária com os ciganos, "tarde loca de higueras/ y de rumores calientes ". Tantas desventuras, ódios, brigas cansaram-na e ela "cae desmayada ".

O tempo da ação, sugerido indiretamente nos primeiros versos pela luz do dia, que fazia reluzir as navalhas de Albacete, completa-se neste entardecer poético e sofrido.

A última estrofe encerra-se e com ela o romance, retomando os anjos da primeira estrofe, voando agora ao por-do-sol, anjos simbólicos, não mais negros, não mais com asas/navalhas, mas rotulados como personagens do mesmo mundo hispânico dos jinetes pelas longas tranças e corações de azeite.

 

3. CONCLUSÃO

 

Ao permitir que o próprio texto, através de seu jogo poético, evidenciasse os aspectos tradicionais e vanguardísticos que lhe dão forma, apresentamos um poema do século XX cuja matriz geradora, uma forma poética tradicional - o romance -, tem enorme importância na fixação do universo cultural espanhol. Desse modo, acompanhamos no poema "Reyerta", de Federico García Lorca, a apropriação poética de uma forma cristalizada e a tranfiguração erudita dessa forma popular e tradicional, vanguarda e tradição integrados, marca da arte de um poeta iluminado. Passados 60 anos da morte de Lorca, seus poemas continuam a emocionar leitores de todo o mundo, enquanto espalham pelos quatro cantos seu grito poético entranhadamente espanhol e absolutamente universal. Federico García Lorca é o mais lido e conhecido dos poetas de língua espanhola. Ao morrer fuzilado, parou de produzir mas não emudeceu: sua voz ecoa em defesa do homem oprimido, sua voz ecoa celebrando a vida, sua voz ecoa denunciando a opressão. Com um pé na tradição, metaforiza o cotidiano e dá a conhecer a rica e sedutora cultura espanhola; em seu trabalho inovador, Lorca vai à fonte, ao povo, onde colhe a matéria prima que, reelaborada poeticamente, transfigurada, integra uma das mais importantes obras poéticas do século XX.

 

Notas Bibliográficas

 

1. TROUCHE, André Luiz Gonçalves. Notas de aula; curso sobre: A poesia de Lorca, Instituto de Letras, UFF, 2º semestre de 1993. Retorna ao texto

2. GARCÍA LORCA, Federico. Obras completas. Madrid, Aguilar, 1996, p. 353-395. Retorna ao texto

3. ______. Id., ibid. p. 356-357. Retorna ao texto

4. ______. Apud LISBOA, José Carlos. Verde que te quero verde. Rio de Janeiro. Zahar / INL, 1983, p.13. Retorna ao texto

5. BORGES, Jorge Luis. "El informe de Bradie". In: Obras completas. BuenosAires. Emecé, 1974, p. 1039-1043. Retorna ao texto

6. GARCÍA LORCA, Federico. Op. cit., p.1172. Retorna ao texto


Magnólia Brasil Barbosa do Nascimento é Doutora em Literaturas Espanhola e Hispano-Americana, pela USP. Professora Adjunta de Letras Hispânicas, Instituto de Letras, UFF. Título da tese: O diálogo impossível. A ficção de Miguel Delibes e a sociedade espanhola de pós-guerra.


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