A LEVEZA DO CENTAURO

 

 

Marcus Vinicius de Freitas

Universidade Federal de Minas Gerais

Brown University - CAPES


Resumo:

O presente artigo procura analisar os procedimentos narrativos de Moacyr Scliar em O Centauro no Jardim, a partir da teoria do hibridismo, derivada de Mikhail Bakhtin e Donna Haraway. Como elemento de fundo, o artigo procura discutir o papel e os limites do saber teórico, seu lugar como prática cultural.

 

Abstract:

This work aims at analysing the narrative procedures of Moacyr Scliar in O Centauro no Jardim, based on Mikhail Bakhtin's and Donna Haraway's concepts of hibridity. As a parallel argument, the present work discusses the role and edges of theoretical knowledge considered as a cultural issue.


Mi unicornio y yo hicimos amistad

Un poco con amor

Un poco con verdad

Com su cuerno de añil pescaba una canción

Saberla compartir era su vocación.

Sylvio Rodrigues

 

É preciso fazer a arqueologia destas fantasias

para expor a verdade, se é que ela existe.

Moacyr Scliar

 

No Jardim do Paraíso, quem era o monstro e quem não era?

Clarice Lispector

 

INTRODUÇÃO

Em texto recentemente publicado em O Estado de São Paulo , a propósito do livro O Amante da Madonna, da autoria de Moacyr Scliar, Cristóvão Tezza tece, entre muitos comentários, um que parece exemplar sobre o romance O Centauro no Jardim , texto fundamental no conjunto da obra do escritor gaúcho: No mundo de Scliar as coisas são assim mesmo: levemente perturbadoras, mas de uma leveza renitente, absurda, plana, desconfortável, inapelavelmente fora do esquadro. (TEZZA, 1997, 1). A frase de Tezza nos remete a um dos elementos centrais da narrativa de Scliar, qual seja, o fato de que o sentido nunca se fecha, a significação nunca se completa, tornando-se o leitor presa de uma rede infindável de níveis de leitura, que ora se completam, ora se chocam. De fato, diz Tezza, o leitor sentirá sempre o impulso de ler de novo, porque algum resíduo de significado ficou ali atrás (...). (1977, 1).

Seria banal falar aqui em "obra aberta", ou mesmo caracterizar o texto como um "clássico". Na afirmação de Tezza, cabe chamar a atenção para a idéia da desestabilização de sentido que se produz no romance de Scliar. A abertura da narrativa não se dá então por um construtuvismo programático ou por um experimentalismo puramente externo. Sob este ponto de vista, o romance do centauro em busca da "normalidade" está construído de maneira bastante linear, com datas a demarcar o percurso e um entrecho historicamente progressivo. Diferentemente, a pluri-significação se constrói através de um mecanismo de vai-e-vem, em que um ponto qualquer da narrativa remete o leitor à reconstrução de sentidos anteriores dentro da narração. Esse tipo de ponto nodal se caracteriza pela existência de uma palavra, uma sentença ou uma cena, que, condensando elementos anteriores da narrativa, faz o leitor retroceder sobre seus próprios passos, em um ato contínuo de re-significação.

Desta forma, a busca de sentido, por parte do leitor, não se dá numa arqueologia da profundidade, mas no ato de retroceder sobre a própria narrativa, através de determinados nódulos de significação, palavras e imagens que se repetem dentro do narrado, a cada instante com novo um significado, o qual, alimentando-se da nova ocorrência, modifica os sentidos previamente existentes. O cavalo alado, a moça ruiva, a esfinge, os seios de uma bela mulher, a Tunísia, ou mesmo uma expressão como agora está tudo bem , são alguns desses elementos.

Para o leitor deste trabalho, especialmente um que nunca tenha lido o romance, o ato de semear algumas imagens, como fiz na frase anterior, sem antes explicitar minimamente o enredo do livro, poderia constituir uma imagem do procedimento de Scliar. Poderíamos pensar no método tradicional da narrativa policial, em que "pistas" vão sendo semeadas para o deleite do leitor, ou mesmo no recurso de corte e montagem, que obriga o leitor a um processo mental de reconstrução do narrado. Apesar da semelhança inicial, penso que o procedimento narrativo de Scliar é profundamente outro, especialmente porque, como a simples leitura do livro mostra e tentarei aqui reafirmar por diferentes pontos de vista, não há solução final da história. Ao final da leitura, o leitor não se encontra apaziguado, mas desconfortável, fora de esquadro, para usar as palavras de Cristóvão Tezza.

Vejamos, antes de mais nada, os motivos básicos da narrativa, apenas como forma de situar o procedimento analítico. Em uma família de imigrantes judeus-russos, no Rio Grande do Sul da década de trinta, nasce um menino com a forma de um centauro. Dentro de um mundo absolutamente realista, nasce um ser mitológico. O pai se pergunta, por quê? Pensa em pecados, na punição de Deus, na traição da mulher. A mãe culpa o marido: é culpa tua , Leão. Me trouxeste para este fim de mundo, para este lugar onde não há gente, só animais. De tanto eu olhar para cavalos, meu filho nasceu assim. (SCLIAR, 1983, 24). Ao mesmo tempo, a narrativa nos remete aos pogroms da Rússia Imperial, cossacos a cavalo invadindo aldeias judias e semeando o terror: Matavam, pilhavam, incendiavam. Depois sumiam. Na noite atormentada, ficavam ecoando gritos e relinchos (p. 19). Imagens de cavalos, fragmentos de pesadelo que ecoam por toda a narrativa (podemos ver já aqui as coisas, leve e renitentemente perturbadoras, de que fala Cristóvão Tezza). O romance vai narrar a vida do centauro Guedali, seu encontro com Tita, uma centaura, e a luta dos dois para se tornarem iguais aos outros, através de operações e de um aprendizado social que retire, esconda, recalque em cada um a sua parte "monstruosa". Guedali, como Tita, como todos à sua volta, busca explicar-se e explicar sua inserção no mundo.

Mas as perguntas de Guedali sobre sua identidade revelam-se como as perguntas de todo ser humano "normal". Quem é o monstro e quem não é? A partir desta constatação, o próprio conceito de normalidade estará em causa. Aqui entrarão diversos níveis de indagação sobre a normalidade: físico, psíquico, étnico, cultural, histórico. Estes níveis constituem, em última instância, diferentes lugares sociais da fala, na acepção bakhtiniana do termo. Esses planos de discurso estão dialeticamante confrontados, através de um mecanismo de hibridização deliberada, que se dá pela presença simultânea de duas ou mais consciências (línguas; pontos de vista sócio-linguisticamente constituídos) igualmente representadas: an intentional hybrid is precisely the perception of one language by another language, its illumination by another linguistic conciousness. (BAKHTIN, 1985, 359).

A hibridização coloca em causa cada um daqueles níveis anteriormente apontados: o nível físico, através da situação básica do centauro, ser duplo, meio homem, meio cavalo, cuja duplicidade não se resolve enquanto fusão das partes, mas instaura e mantém uma irresolvível tensão; o nível psíquico, através de uma constante indagação sobre os limites entre a realidade e a imaginação, entre o real e o simbólico, entre o real e o imaginário; o nível étnico, pela indagação sobre a condição judaica, colocada em relação à brasilidade e ao estatuto de migrante; o nível cultural, que abarca a questão étnica e migratória, ampliando-as em relação à questão da nacionalidade brasileira em geral, e da cultura gaúcha, em particular; por último, a questão histórica, com o cruzamento da narrativa pela história social do país, em diversos de seus momentos decisivos.

Esses cinco planos de indagação não são absolutos. Cada um deles pode ser muitas vezes dividido, reagrupado. Muitos outros planos não sugeridos aqui poderiam também ser aventados. Cabe lembrar mais uma vez que estes níveis se encontram totalmente articulados dentro da narrativa, sendo impossível dizer exatamente onde um termina e o outro começa. Neste trabalho, pretendo enfocar, a partir de uma análise dos processos de hibridização, algumas destas articulações, especialmente relacionadas com o nível físico, do corpo do centauro, enquanto forma de realçar e compreender os procedimentos narrativos do autor.

 

O CORPO DO MONSTRO, O CORPO DEMONSTRA

Entre todos os níveis de indagação que Guedali coloca sobre si mesmo, o do corpo ocupa lugar privilegiado. Indagando sobre sua própria diferença, sua monstruosidade, a personagem indaga sobre o mundo "normal".

O corpo do monstro é aquele que demonstra em si mesmo a alteridade e, demonstrando-a, coloca em suspenso os limites da normalidade:

Le monstre n´est plus ce que «se» montre, il montre, il renvoie ce qui s'est inscrit sur lui, avec effet d'altération qui est mise au jour d'une alterité: le meme est l'autre, telle est la démonstration que nous propose le monstre. (...) C'est le propre des monstres d'effectuer leur démonstration au pied de la lettre. (DADOUN, 1972, 118).

A afirmação de Roger Dadoun, trabalhando com considerações psicanalíticas acerca da arte, nos coloca no centro da questão do corpo monstruoso, qual seja, o desvelamento da alteridade.

Da mesma forma, mas partindo de diferentes pressupostos e com objetivos muito diferentes, a bióloga e historiadora da Ciência, Donna Haraway, chega a proposições idênticas. Pensando sobre o papel dos cyborgs, na ficção científica, ou no dos primatas, usados nos laboratórios de biologia, diz a autora: as boundary creatures, they actually are monsters - a word that shares more than its root with the word, to demonstrate. Monsters signify. (apud PRINS, 1995, 360). Enquanto primatologista, feminista e historiadora da ciência (um lugar por si mesmo híbrido), Haraway coloca indagações as mais diversas, como por exemplo, o funcionamento social das redes de cientistas, a história pós-colonial, a estética e a política das exposicões e exibições da Natureza. O circo, o zoológico ou o laboratório científico entrariam em seu discurso num mesmo plano, como lugares de produção de sentido sobre os corpos monstruosos. Destruindo tanto a visão consagradamente passiva dos objetos do conhecimento, quanto a ativa dos sujeitos, Haraway propõe que a objetividade nunca é pura, mas constitui sempre um conhecimento situado, histórica e culturalmente. Sob seu ponto de vista, os objetos do conhecimento são também atores, o que faz com que os sujeitos percam sua posição autônoma e transcendente. Exatamente por borrar as fronteiras entre os sujeitos e os objetos do conhecimento cintífico, o discurso de Donna Haraway vem povoado de sujeitos e objetos híbridos. Daí o seu especial interesse por cyborgs , chipanzés de laboratório e toda a sorte de seres que colocam em questão os limites do corpo "normal".

Avançando as colocações de Haraway, Baukye Prins faz afirmações que podem iluminar o largo alcance da questão do corpo monstruoso:

The cyborg represents a (possible) subject formation that destabilizes established boundaries: between organism and machine, between animal and human, between the physical and the nonphysical. But the central opposition that the cyborg undermines is the opposition between nature and culture. (...) Deliberately posing as a monster, a hybrid creature shows the arbitrariness and constructed nature of what is considered the norm(al). (PRINS, 1995, 360).

Voltando ao romance, podemos ver que as oposições entre natureza e cultura, entre normal e anormal, estão no centro das indagações de Guedali sobre seu próprio corpo. Incontáveis são, a este respeito, as referências dentro do romance. Tomo uma que me parece exemplar, retirada exatamente da cena anterior à operação na clínica marroquina, da qual Guedali e Tita emergem como seres humanos:

A operação daria certo, o médico nos tiraria aquelas excrescências - caudas, patas - como se fossem verrugas; verrugas gigantescas, mas nem por isso menos extirpáveis.

E então experimentei um sentimento curioso: uma terna melancolia, uma espécie de nostalgia antecipada. Não, não eram verrugas o que tínhamos em nosso corpo. Eram extensões do nosso ser; no íntimo, também somos centauros, eu pensava, tomando minha cauda na mão e deixando os fios escorrem entre os dedos. Bela, farta cauda. O uso de xampu tornara-a macia e sedosa. Quanto às patas, nunca tinham fraquejado, nunca me tinham traído no galope. Sim, terminavam em cascos - mas, e o atirador de facas do circo, que deixava crescer a unha do mínimo, uma coisa horrenda? (p. 103).

O momento de finalmente tornar-se humano é exatamente aquele em que a personagem se indaga: o que é o humano? De excrescências - verrugas - as patas e caudas passam à condição de essência. Entre a exterioridade do corpo e a interioridade da alma, não há mais fronteira demarcada. O corpo tanto traz em si as marcas do ser, como imprime na essência desse mesmo ser os sinais da exterioridade do corpo. Da mesma maneira, quem é o certo ou o errado, se a unha do dedo mínimo do atirador de facas é que aparece como horrenda, em oposição à dignidade dos cascos ou à beleza da cauda tratada a xampu? A arbitrariedade da norma se desvela aí em toda a sua força.

Vale também atentar para o gigantismo do corpo monstruoso. As "verrugas" são monstruosas, como monstruoso é o pênis, a barriga: Tomo consciência de uma farta e bela cauda; do pênis descomunal. (...) Tomo consciência da barriga - enorme, haja mão para coçar tanta barriga - e das muitas e longas tripas que digerem e assimilam o alimento (p. 35). Bakhtin já apontou, em sua análise de Pantagruel e Gargantua, a importância do gigantismo. A forma gigantesca, com suas excrescências grotescas, faz pensar sobre a normalidade. O corpo grotesco é híbrido em sua excrescência. Seu distanciamento crítico deriva diretamente de seu gigantismo. Da mesma forma, Roger Dadoun enfatiza que é pelo gigantismo que o monstro demonstra, sem qualquer mediação, a sua alteridade. O gigantismo produz seu efeito da maneira mais imediata, durável e universal. Esse efeito resulta em um processo de suspender as normas, de fazer borradas as fronteiras entre a semelhança e a diferença. O mesmo é um outro, e vice-versa, é o que nos diz o monstro.

Se pensando sobre seu corpo Guedali levanta questões sobre a norma corporal, ao ver-se refletido em diferentes corpos monstruosos, o mesmo reconhecimento acontece. Ao ser apresentado a Lolah, a esfinge, são suas as palavras:

Era uma estranha emoção a que eu sentia, um misto de tensão e repulsa, de pena e nojo. E a solidariedade que sentem entre si os inválidos, os defeituosos, os doentes; e a raiva que sentem entre si os inválidos, os defeituosos, os doentes (p. 187).

O corpo de Lolah funciona como espelho para Guedali. Por aquele corpo ele sente atração e repulsa. Através daquele corpo ele pensa sobre os limites de seu próprio corpo. No jogo de espelhamentos, perde-se o sentido do centro, pois, se Guedali é um outro para o mundo à sua volta, Lolah é um absolutamente outro para ele mesmo: Esfinge superava todo o resto em termos de emocionante. Em termos de maravilhoso. superava mesmo as imagens de um centauro galopando no pampa (p. 191). A multiplicidade de outros borra os limites da alteridade e revela o outro como parte do mesmo.

De igual maneira, Guedali se vê espelhado no rosto de um macaco:

Ontem vi na TV cenas de uma enchente. Animais nadavam nas águas barrentas, procuravam refúgio nas copas das árvores que ainda emergiam. A cara molhada de um macaco, mostrada em close, me impressionou particularmente: a inocência desamparada. (p. 13).

O macaco impressiona por sua semelhança diferente, pela extrema proximidade de sua diferença. Próximo do humano, ele é, no entanto, definitivamente não-humano. Nas palavras de Baukje Prins: Apes are close to humans yet are definitely not human. They are closest "others", like mirrors reflecting our image of ourselves (PRINS, 1995, 358). O que o centauro Guedali vê refletido no espelho do vídeo constitui a sua própria alteridade revelada.

Voltando às proposições de Bakhtin sobre o lugar social da fala, vale conferir o discurso médico sobre o corpo do centauro. Tomo aqui a cena do primeiro médico a aparecer na narrativa; não o que fará a cirurgia, mas o Doutor Oliveira, o qual vê Guedali ainda bebê. Analisando o centaurinho, Doutor Oliveira descalça as luvas, senta silencioso em uma cadeira, retira do bolso uma pequena caderneta de couro e faz a seguinte anotação:

Estranha criatura. Provável malformação congênita. Impressiona semelhança metade ínfero-posterior com equino. Até cicatriz umbilical, menino bem conformado, bonito. Após - muar. Rosto, pescoço, torax apresentam pele lisa, rosada; segue-se pequena zona de transição: tegumento espesso, enrugado, torturado, premonição do que virá abaixo. Penugem dourada se torna mais densa e escura - surge brutal, pelame alazão. E pata, lombo, cauda, casco, tudo cavalo. Pênis particularmente chamativo, porquanto monstruoso para bebê de dias. Caso complexo. Cirurgia radical? Impossível. (p. 28).

Temos aí claramente o que Bakhtin denomina "imagem da linguagem". O discurso científico não está apenas sendo reproduzido em si mesmo, mas vemos a estilização de seus fundamentos, ou seja, vemos uma imagem artística do discurso científico. A autoridade dessa fala está então problematizada pelo distanciamento crítico a que foi submetida. Note-se o que há de irônico na postura "científica" da personagem, em sua linguagem telegráfica e plena de jargão. Há um quê de autópsia nessas anotações. A sua pretensa objetividade, com a necessária tentativa de explicação - "provável malformação congênita", é desvelada em espanto e incompreensão. Não apreendemos nessa fala, portanto, apenas o discurso científico, mas o lugar social de produção do discurso científico.

Do ponto de vista discursivo, vemos em ação o hibridismo lingüístico pondo a funcionar a heteroglossia. Se, na sua origem, o discurso científico se constrói pelo viés da autoridade, dentro da narrativa ele passa a ser apenas mais uma voz, uma consciência advinda de um outro sistema de linguagem e ali representada em diálogo com outras formações discursivas. O hibridismo lingüístico evidencia, na passagem, a colisão de diferentes pontos de vista, incapazes de serem reduzidos a uma síntese. A caderneta de couro, a postura silenciosa, o ato de descalçar as luvas antes de escrever, todos estes elementos são também constitutivos de uma imagem da linguagem, que nos traz o lugar social daquela fala.

A certa altura do romance, Guedali volta ao Marrocos, desta vez para convencer o médico marroquino, o qual havia lhe dado forma humana, de que quer voltar a ser centauro. Nesta passagem, a questão do lugar social da fala pode ser visto por um outro prisma, ligado ao que Donna Haraway nomeia como sendo as "redes sociais de cientistas", igualmente um processo de desvelamento do lugar social de produção do discurso científico. Convencido por Guedali a refazer a cirurgia, transformando-o novamente em centauro, diz o médico:

Então, vamos em frente, Guedali! Lutaremos juntos, que diabo! Sei lá por qual razão queres voltar a ser centauro! Não me importa! Sou médico, tu és meu cliente, o que quiseres será feito. Quanto a mim, darei o melhor de meus esforços nesta cirurgia, podes ficar certo. Ela representa tanto para ti quanto para mim. É a minha reabilitação, Guedali. Já imaginaste? Não só fui o primeiro a transformar um centauro em ser humano, como serei o primeiro a tranformar um ser humano em centauro. O mundo médico estremecerá! (p. 185).

O pensamento do médico se dirige menos ao seu cliente, e aos seus problemas, do que à possiblilidade de estremecer o mundo científico. O corpo do centauro deixa de ser aí uma questão estritamente científica para se tornar moeda, valor de troca dentro da comunidade médica.

O mesmo médico já havia sido apresentado, primeiramente, como indigno de confiança:

O médico marroquino não inspirava nenhuma confiança: um homenzinho moreno, de idade indefinida, vestido como um dândi; cabelos cuidadosamente penteados para trás, óculos escuros, unhas manicuradas, um sorriso levemente irônico nos lábios cheios (p. 102)

Em segundo lugar, como cheio de cobiça: Tinha muita curiosidade pelo Brasil: dizem que lá se faz dinheiro rápido, verdade? (p.109); e mesmo como inescrupuloso, como um "exibidor da natureza", para usar os termos de Haraway:

Como estava te contando: concluí que não poderia operar a criatura [Lolah, a esfinge]. Surgiu o problema: o que fazer com ela? Confesso-te que me passou pela idéia exibi-la em público. poderia cobrar bem; já estava então em dificuldades financeiras, precisava do dinheiro (p. 191).

Em todas estas passagens, a suspeição colocada sobre o médico funciona como um processo de revelação da localização social do conhecimento. São todas elas passagens em que o hibridismo lingüístico deixa entrever o lugar social da fala. No último dos trechos, relativo à exibição de Lolah, fica mais uma vez claro o lugar do corpo monstruoso, dentro da narrativa de Scliar, como mecanismo de desvelamento da alteridade: a pergunta do médico para si mesmo, o que fazer com ela?, revela a objetificação a que o corpo foi submetido. Igualmente objetificado se vê Guedali, espelhado na fala do médico sobre a esfinge. Todo corpo monstruoso deve ser exibido, pois é próprio do monstro mostrar-se e mostrar a alteridade do corpo normal.

Lembro aqui que Guedali, quando foge de casa, ainda adolescente, acaba por ir parar em um circo, transformando-se em corpo a ser visto e exibido. Em meio à "fauna" do circo, a diferença do corpo do centauro se reconhece na semelhança dos animais e dos excêntricos personagens que povoam aquele mundo:

Me deixavam em paz. Me achavam um pouco estranho, mas eu não era ali o mais esquisito: o atirador de facas falava sozinho, o palhaço não se dava com ninguém, o trapezista gostava de colocar aranhas e baratas nos bolsos dos anões (p. 77).

Mais uma vez, a indagação sobre o corpo do centauro só faz recolocar a pergunta: quem era monstro e quem não era? Como suprema ironia, o palhaço, profissional do encontro com o outro, não se dava com ninguém. Persona entre personas, o centauro desvela um mundo de máscaras, de representações, de fantasias, sob as quais não há qualquer verdade essencial. Qualquer arqueologia, em busca do sentido primeiro, encontra sempre uma nova máscara. O ser duplo do centauro, o seu estatuto de passagem, seu corpo híbrido, apenas desvelam a ausência de fundo essencial, e jogam o leitor na infindável cadeia significante da narrativa.

CONCLUSÃO?

Entretanto, depois do percurso empreendido, cabe uma consideração fundamental. O termo híbrido corre o risco de se tornar apenas uma roupagem nova para procedimentos descentradores já devidamente previstos como mecanismos culturais de resistência, os quais perdem sua eficácia exatamente pela sua assunção sistemática. Hibridismo seria apenas o nome da moda para sincretismo, bricolage, interculturação, transculturação, intermisturas, etc? Sigamos aqui o raciocínio de Lavie & Swedenburg:

Recently there has arisen a tendency to turn such vibrant hybrid and syncretic practices into prescriptive models or to celebrate them as the only true forms of resistence and oppositionality. (...) Such celebrations (...) tend to dismiss practices that are not so familiarly postmodern and discount them as simply realist, traditionalist, passé and essencialist. A new hierarchy of cultural practices seems to be in the making, in which the hybrid replaces the old category of the exotic, and the Other, now hybrid, is once again reinscribed by the Eurocenter. Hybrizided cultural productions appear outlandish and weirdly funny to white Western consumers due to the persistence of their primordial notions of culture as forever fixed and impermeable. (LAVIE & SWEDENBURG, 1996, 8).

Os autores apontam para uma "cooptação" da teoria, que de alguma forma revela que o ponto de vista do hibridismo, como de toda e qualquer teoria, é socialmente produzido, e portanto histórica e culturalmente localizado. De fato, cabe sempre perguntar onde foi produzida e a que especificidades a teoria do hibridsmo tenta dar respostas. Se a matriz parece ser bakhtiniana, o desenvolvimento da teoria se dá, de maneira especial, nos Estados Unidos da América, como forma de responder a questões colocadas pelos grandes movimentos migratórios deste fim de século e pelo conseqüente aparecimento de práticas culturais de difícil classificação, ou mesmo compreensão. Para uma sociedade que havia, através da campanha dos direitos civis, aprendido a viver e conviver com o conceito de minorias, a perspectiva de que essas minorias se tranformem em maiorias desestabiliza por completo a moldura de compreensão da realidade.

Cabe portanto reiterar o distanciamento necessário em relação à teoria em tela, e não utilizá-la apenas como se fosse mais um método da moda, gerador de dividendos no âmbito da república das letras. A observação se torna ainda mais válida se nos lembrarmos que estou, neste texto, tratando de uma outra realidade cultural, no caso o Brasil, onde a tendência a reduzir as teorias à sua aplicabilidade constitui um mal a combater. Por mais universais que pareçam as questões relativas à monstruosidade dentro do romance de Moacyr Scliar, não há como fugir às contingências do autor: sua condição de escritor em um país periférico, falando a partir de uma cultura regional extremamente marcada e, igualmente, a partir de uma herança judaica que marca sua visão do mundo. Desta forma, uma análise devida do hibridismo no romance não pode prescindir do viés cultural e histórico, como forma de demarcar as especificidades da teoria, no caso brasileiro. Este distanciamento crítico já seria por si só uma forma de evitar o enregelamento da teoria.

Entretanto, é o próprio romance que, não se submetendo por inteiro à teorização, mantendo inapelavelmente sua opacidade, pode nos ensinar os limites, quer operacionais, quer culturais, desta e de qualquer teoria.

A narrativa apresenta, pelo menos, dois finais. Depois de todo o percurso da vida de Guedali, sentados novamente no restaurante tunisino Jardim das Delícias , em que o romance se iniciara, Tita conta sua versão da história para a bela moça ruiva que está a seu lado: Guedali tinha um tumor cerebral que lhe provocava alucinações. Todo o entrecho é então resumido, retirando-se da narrativa o estranhamento que a percorria por todo o livro. Entretanto, esse retroceder do fantástico, que parecia reduzir todo o romance a um episódio clínico, a uma fantasia compensatória, readquire sua força imaginária no momento em que Guedali, ouvindo a história, informa ao leitor que aquela versão de Tita constitui apenas uma estratégia de integração, um mecanismo pelo qual Tita quer convencer a si mesma e a Guedali de que os dois nunca foram centauros. O estatuto da dúvida está novamente instaurado. Mas o romance ainda não terminou. Reparando na moça ruiva, que o atrai pela beleza, especialmente pelos cabelos ruivos como uma juba de leoa, Guedali vê em seu colo, entre as curvas anunciadas dos seios, um colar no qual se encontram, como pingentes, as pequenas imagens de uma esfinge, um cavalo alado e um centauro. Ali estão, metonimizados no colar, os elementos motores da narrativa. Delírio? Fantasia? Não, apenas ficção, pois quando o leitor pensa ter descoberto o enigma, ele se encontra apenas diante do fato de que o ato da leitura permanece em aberto. Um resíduo de significação, irredutível, permanece lá ainda, contra qualquer leitura domesticadora. Um resíduo que pulsa como uma canção pescada ao acaso pelo corno azul de um unicórnio, pelas asas de um pégaso, pelas patas de um centauro no jardim.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. Trad. Yara Frateschi. 2.ed., Brasília/São Paulo: Edunb/Hucited, 1993.

_________. The Dialogic Imagination. Austin, University of Texas Press, 1985.

COSTA LIMA, Luiz. Dispersa Demanda. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981.

DADOUN, Roger. "King-Kong: du monstre comme dé-monstration", in: Littérature. Paris, 8, déc. 1972.

LAVIE, Smadar & SWEDENBURG, Ted (editors). "Introduction" to Displacement, diapora and geographies of identity. Durham: duke University Press, 1996.

PRINS, Baukje. "The ethics of hybrid subjects: feminist constructivism according to Donna Haraway", in: Science, Technology & Human Values. 20 (3), Summer 1995.

SCLIAR, Moacyr. O Centauro no Jardim. Porto Alegre: L & PM, 1983.

TEZZA, Cristóvão. "Livro de Moacyr Scliar perturba com leveza". O Estado de São Paulo, 3 de Maio de 1997, Caderno 2.

YOUNG, Robert. Colonial Desire - hybridity in theory, culture and race. London / New York: Routledge, 1995.


Marcus Vinicius de Freitas é Mestre em Literatura Brasileira (UFMG, 1990), Professor Assistente de Literatura Portuguesa na Universidade Federal de Minas Gerais e Doutorando em Portuguese and Brazilian Studies na Brown University, USA, com bolsa-auxílio da CAPES, onde desenvolve pesquisa sobre a história do gênero crônica em língua portuguesa, dos séculos XV ao XIX. Sob o pseudônimo Marcus Bacamarte, o autor é também poeta, tendo publicado Lírica Seca (Belo Horizonte, Cuatiara, 1992); Contra-Regra do Jogo (Belo Horizonte, Cuatiara, 1992) e Sonetos Eróticos (Providence, Edição do Autor, 1997).


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