Poesia de Suzana Vargas

 


 

OURO SOB ÁGUA

 

Só me lembro que atrás de nós havia um morro

a mata

No centro, a música, o violão

Fazia frio e nuvens

se aqueciam pelo som.

 

Havia, entre outros,

uma água

um menino cortando cabelo na beira da casa

as tangerinas no pé.

 

Do grupo, um homem

me perguntava

sobre a melhor forma

de começar um banho

sem reparar no profundo da questão

 

- Entro devagar

ou de uma vez por todas? Perguntou

 

- Por todas, respondi

Não há céu ou inferno

que comece devagar

 


 

UM SONHO, UMA ONÇA

 

 

O sonho vela o escuro e é real

E o real é essa onça é esse sol

 

É mais real que as grades, que a comida

Do carcereiro, é mais real que a vida.

 

Com a sua avidez adormecida

A onça sonha, mas não sonha em vão

 

Em vão vai quem se prende à realidade

E imagina ser livre sem as grades.

 

Na verdade uma paixão nos prende a tudo

E mesmo cegos surdos mudos continuamos.

 

Mas pensemos na onça em sua cela

no seu sono velado à luz do dia

 

Que a obriga a dormir com seus limites:

o cheiro, a cor, ruídos rutilantes

 

(instintos e capim e terra e ar)

 

Por que imaginarmos diferente

Se o limite da onça é sonhar?

 


 

BANDAID

 

Moça debruçada na janela,

como é bonito vê-la através

de tantos carros passeando na avenida,

e tendo ao fundo a luz mortiça

de desbotadas paredes

onde repousam tantos tesouros

do tempo - a velha foto da avó -

um poster da seleção,

ainda com Garrincha

 

Você se recosta

e equilibra

toda a loucura do universo

num só braço

o outro cruza

em direção às flores mortas

de um vaso alto e antigo,

desejoso de festas.

 

O sobrado se desgasta,

alguns musgos

o guardam.

No alto,

em letras ancestrais, está escrito - HOTEL -

e quase opacas.

Em baixo,

o luminoso

onde se lê - farmácia -

 

Fique aí,

fixe aí, você

que não sei de onde vem,

que não sabe onde está,

de quem desconheço a história

Mas que pertence ao sobrado,

ao Estado,

ao país.

Longos cabelos negros,

os pensamentos tão longos

presos nos carros que passam - Fique -

com seu bisavô na parede,

a tinta rosa mofando seus vitrais.

 

Enquanto logo abaixo

dos pêlos do seu braço,

o luminoso pisca

pisca e pisca,

Ainda dentro deste século.

 


 

A HÉLIO PELEGRINO

 

O avesso da morte

é movimento, vertigem,

pulsar de músculos,

poros.

Todas as ações desencontradas

na memória:

livros, contas que se pagam.

 

Como

de um dia para o outro

interromper um artigo

um poema,

desprogramar um cinema

deixar para sempre intactos

nosso guarda-roupas e

chave?

E a mulher,

a mulher que nos espera,

Deixá-la longos anos

na marquise

à sombra de verões,

invernos

primaveras?

Abandonar projetos

cobranças

(que se paguem sozinhos)

 

E o principal:

este momento suspenso

no meio-fio do silêncio

 

DEUS é movimento.

 


 

ORTOPÉDICA

 

Nada como não ter pés

para valorizar sapatos.

 

Já sei que não é novo:

o provérbio é mais ou menos

chinês,

e mais ou menos

meu

 

Descobri caminhado

 


 

INSÔNIA

 

São universais:

relógios de parede,

galos que cantam,

o escuro do quarto...

 

...E o anjo que nos fez caretas

a noite toda.

 


 

URBANA II

 

Que sentimento me empurra

por janeiro e o ano inteiro?

Que cavalos, que forças indizíveis

me lançam para a frente e para a frente?

 

De tão apressada engulo,

não mastigo minha sorte.

Não sei se é sede de vida

ou avidez pela morte.

 


 

CONFISSÃO

 

Odiei minha mãe a vida inteira.

 

E ela percebia isso,

Ah, se percebia,

 

(Olhos atentos

ao desapego da filha,

buscaram sempre outros sóis,

outras paragens,

voz de comando evitavam)

 

Eu

bem contrária à brandura preservada

quebrava copos,

repetia quase sempre

o ano nas escolas,

Se pudesse,

meu braço descuidava no encontrão

 

Sonhava crimes incríveis

e entre facas,

uma vez o assassinato aconteceu.

 

Ela, que percebia minha ira,

não vai entender os versos

que lhe escrevo agora -

a raiva duplicada -

 

Porque o ódio

se aproxima e muito

da paixão:

Agredi-la no crepúsculo

ou na aurora

ainda é meu único modo

de tocá-la.

 


 

FIO FÁTUO

 

Não me confino mais

às curvas da cozinha

pois há muito

saí da casca dos tomates

 

e me cortei sozinha.

 


 

SEM RECREIO

 

Um carro correndo na ponte

Um sol que vertia sangue

Sobre o monte...

 

Onde os poemas

não escritos?

 

Onde o poema que

não fiz por

que não tinha empregada

ou

porque a nenén estava

com diarréia?

 

Quando

escrever poemas

no banheiro

Se crianças me

reclamam por inteiro?

 

Meus poemas?

Como encontrá-los

na madrugada

se de noite

me deito

Cansada?

 

Mas eles me acenam:

da água suja do balde

sapóleo branco do piso

Onde meus poemas

o lixo

 

Das aulas que

dou

como louca

E ao diretor custam

Muito pouco?

 

Onde a exata dimensão

freia o que sinto

Corre o que sangro

 


SUZANA VARGAS é gaúcha, de Alegrete. Poeta, autora de Literatura Infantil e ensaísta com vários títulos publicados. É Mestre em Teoria Literária pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde cursou Letras. Trabalha como pesquisadora na Fundação Biblioteca Nacional e participa como editora -adjunta da revista Poesia Sempre. Ministra Oficinas de Poesia e Leitura em universidades e entidades culturais. Idealizou e coordena o Projeto Rodas de Leitura, do Centro Cultural Banco do Brasil . Colabora eventualmente com o Caderno Idéias do Jornal do Brasil na seção de Literatura Brasileira e com o Caderno Prosa e Verso de O Globo. Em 1994, esteve na Alemanha a convite da Haus der Kulturen der Welt, para o lançamento nacional do livro Nachdenken Über Eine Reise Ohne Ende - Brasilien Literarisch (Reflexão sobre uma viagem sem fim - Literatura Brasileira), onde seus poemas foram incluídos. A atividade fez parte dos preparativos para a Feira de Frankfurt, que teve o Brasil como tema. Também tem poemas traduzidos na Itália e nos Estados Unidos e na Argentina. Idealizou e coordena o espaço Estação das Letras, oficinas de leitura e escrita. Possui, entre poesia, literatura infantil e ensaio, 12 livros publicados.

OBRA

POESIA

POR UM POUCO MAIS. Rio de Janeiro. Tempo Brasileiro, 1979.

SEM RECREIO. Rio de Janeiro, Achiamé, 1983.

SEMPRE-NOIVA. Rio de Janeiro, Achiamé, 1984.

SOMBRAS CHINESAS. São Paulo, Massao Ohno, 1990.

 

LITERATURA INFANTIL

 

SERÁ SONHO, FREDERICO? Rio de Janeiro, Orientação Cultural, 1987.

DOCE DE CASA. 2a. ed. Rio de Janeiro, Record, 1988.

DE OLHO NO PIOLHO. Orientação Cultural, 1990.

COCHICHO. 3a. ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1995

O MISTÉRIO DE NINA. Rio de Janeiro, Imago, 1993.

DOCE DE CASA. Rio de Janeiro, José Olympio, 1995

O LIVRO DOS QUASE-AMORES, São Paulo, FTD/Quinteto, 1995.

 

ENSAIO

LEITURA: UMA APRENDIZAGEM DE PRAZER. Rio de Janeiro, José Olympio.1a. ed.1993. Tese de Mestrado em Teoria Literária defendida na Faculdade de Letras da U.F.R.J. em 1989.


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