O ROMANCE HISTÓRICO CONTEMPORÂNEO NA

AMÉRICA LATINA


DA ALEGRIA E DA ANGÚSTIA DE DILUIR FRONTEIRAS: O ROMANCE HISTÓRICO, HOJE, NA AMÉRICA LATINA

 

 

Vera Follain de Figueiredo

Universidade do Estado do Rio de Janeiro


Resumo:

Reflexão sobre o romance histórico contemporâneo no Brasil e na América Hispânica, partindo das origens no século XIX europeu, para traçar a trajetória do subgênero na América Latina.

Abstract:

Reflection on the contemporary historical novel in Brazil and Hispanic America, from the origins in the european 19th century, to sign the trajectory of the subgenre in Latin America.


No final do século XX, observamos, por parte dos autores de ficção, um crescente interesse pela temática histórica. Dois subgêneros narrativos, que atingiram o seu ponto alto no século XIX, voltam a dominar a cena literária - o romance histórico e o romance policial. Pensar a atual "moda" do romance histórico implica retomar as raízes do subgênero, refletir sobre as transformações que sofreu, para tentar entender melhor o fenômeno mais recente, sobretudo o que vem ocorrendo a partir das três últimas décadas.

O romance histórico surge, no século passado, numa atmosfera em que uma série de transformações sociais, políticas e econômicas, ocorridas na Europa, fazem com que o homem comum, as massas populares se sintam num processo ininterrupto de mudanças com conseqüências diretas sobre a vida de cada indivíduo. A revolução burguesa, a consolidação do sentimento nacional, a ascensão e queda de Napoleão com seus efeitos em todo o continente europeu propiciam a compreensão da existência como alguma coisa historicamente determinada e a visão de que a história, afetando o cotidiano do indivíduo, é algo que lhe concerne em termos imediatos.Na França, como nos mostra George Lukács, é somente a partir da revolução burguesa e da dominação napoleônica que o sentimento nacional torna-se propriedade das massas:

Pour la première fois, elles ont éprouvé le sentiment que la France était leur propre pays, la patrie qu'elles s'étaient elles-mêmes créée.1

Trata-se de um momento no qual tanto os defensores da restauração quanto os que procuram manter vivos os ideais da revolução burguesa revelam uma consciência histórica crescente e buscam fazer grandes reinterpretações do passado, seja para idealizar a Idade Média, em contraponto com as contradições e conflitos do período revolucionário, seja para dar ênfase ao progresso humano, ressaltando como passo decisivo a revolução francesa.

Na Alemanha, os patriotas reagem à fragmentação política e econômica do país, que importa da França seus meios de expressão culturais e ideológicos. Essa reação conduz a um retorno à história alemã, à luta por uma grandeza nacional. A Inglaterra, que desde o século XVII vivia enormes transformações políticas e sociais, surgia aos olhos dos ideólogos continentais como um exemplo de progresso, modelo prático para uma nova interpretação histórica.

O chamado romance histórico clássico, cujo paradigma, segundo Lukács, é ditado pela obra de Walter Scott, surge, então, num contexto de profunda fé historicista: o pensamento histórico predominante se alimenta do entusiasmo com uma apreensão realista do mundo. O romance histórico integra o elenco das grandes narrativas de consolidação do sentimento nacional e, ao mesmo tempo, de legitimação do impulso universalizante do Ocidente. O século XIX foi o momento de construção da tradição européia, ou seja, de construção de imagens de um passado privilegiado que fundamentasse as atitudes culturais do presente e lançasse as bases de uma autoridade das nações do continente europeu:

Numa época em que os vínculos e as organizações mais antigas que unem internamente as sociedades pré-modernas estavam começando a ceder, e aumentavam as pressões sociais de administrar numerosos territórios ultramarinos e grandes e recentes eleitorados nacionais, as elites dirigentes da Europa sentiram claramente a necessidade de projetar seu poder sobre o passado, dando-lhe uma história e uma legitimidade que só podiam advir da tradição e da longevidade.2

A filosofia da história de Hegel faz parte desse esforço de criação de uma legitimidade advinda da tradição, inventada pela Europa, que acaba por se confundir com o próprio espírito da História Universal. A Europa torna-se, na reflexão filosófica eurocêntrica, o centro da história mundial. É esse otimismo eurocêntrico que preside o surgimento do romance histórico clássico. Por isso, o romancista do período vai buscar o passado como palco das forças motrizes da história, para evidenciar a experiência da história como processo de evolução - o passado é, assim, a pré-história objetiva do presente e, como tal, é passível de conhecimento pelo homem. Por outro lado, uma das características do subgênero, naquele momento, era a capacidade de despertar o interesse do público. De Walter Scott a Alexandre Dumas, guardadas as diferenças entre os autores, quanto à menor ou à maior ênfase nos aspectos pitorescos do passado, o romance histórico conquistou grande número de leitores.

O século XX se encarregou de abalar progressivamente o otimismo, que já começara a ser minado ainda ao longo do século anterior. Com isso, o romance histórico vai sofrendo transformações (para as quais Lukács já aponta, quando comenta, por exemplo, o romance naturalista e o do pós-guerra), perdendo o vigor que lhe advinha da crença na possibilidade de figuração realista do passado, como passo decisivo para a compreensão e resolução dos conflitos do presente, e perdendo a fé na dialética interna que garante organicamente o processo de evolução. Entretanto, é importante assinalar que, quando a fé historicista sofre seus abalos mais profundos, a imagem da Europa como berço da civilização já está suficientemente consolidada nos corações e mentes de europeus e povos colonizados, ou seja, as grandes narrativas gestadas pelas nações européias já haviam consolidado uma identidade extraída de uma tradição supostamente contínua.

Na América Latina, o século XIX também foi marcado pelo surgimento de uma literatura de fundação, de narrativas que buscavam inventar uma tradição. Ocorre que, como já dissemos em obra anterior 3 , a visão de história que importávamos do Ocidente europeu criava impasses para a compreensão da realidade das nações recém-independentes. A ilusão de uma tradição contínua entrava em choque com as experiências vividas num passado relativamente recente:

La tradición de la ruptura ilustrada por las vanguardias internacionales es una tradición forjada por histórias cuyos resortes dialécticos de afirmación y negación suponen un continuum histórico racionalizado por la conciencia occidental de una temporalidad homogénea. Este modelo de temporalidad uniforme no coincide en nada con los desfases e inconexiones que marcam la formación histórico-cultural latino-americana; produto híbrido de tradiciones mezcladas y de pasados bruscamente yuxtapuestos en sedimentaciones irregulares de memorias fragmentadas.4

A temporalidade moderna, gerada por uma lógica de encadeamento causal entre passado-presente-futuro, esbarrava com a nossa irrupção abrupta no mundo ocidental, com a difícil relação com o passado e com a impressão de que o futuro acabava sendo determinado por uma história que vinha de fora.

O romance histórico brasileiro do século XIX, por exemplo, reflete esse impasse, que encontramos claramente em obras como Iracema e O Guarani, de José de Alencar. De um modo geral, seguindo os procedimentos de toda literatura de fundação da nacionalidade, inclusive a européia, a narrativa romântica latino-americana, procurando elipsar os traumas da conquista ibérica e criar imagens que nos aproximassem do modelo de civilização européia, teve de trabalhar mais com o esquecimento do que com a memória para transcender a diversidade que nos constitui, visando nos emprestar uma face homogênea:

A construção da memória nacional se realiza através do esquecimento.Ela é o resultado de uma amnésia seletiva. Esquecer significa confirmar determinadas lembranças, apagando os rastros de outras, mais incômodas e menos consensuais.5

É somente a partir de meados do século XX e sobretudo na América Hispânica que se vai encontrar um romance histórico capaz de elaborar criticamente a nossa relação com a temporalidade ocidental moderna. Uma ficção narrativa que tenta construir uma nova visão da história, mais compatível com a realidade latino-americana. O romance El reino de este mundo (1949), de Alejo Carpentier, inaugura esta tendência. Trata-se, agora, de criar narrativas que relativizem a visão de história gestada pelo Ocidente moderno:

Carentes de historia y de universalidad - todo lo que es diferente es ilusório, diría Voltaire - los pueblos del Hemisferio Ocidental - salvages, niños o idiotas - nos unimos, sin embargo, en el entusiasmo de la independencia, la fe en el progreso y la negación del pasado, a lo que nos negaba. Quisimos, esta vez, llegar a tiempo a la mesa de la civilización: superar de un golpe lo que veíamos como retrasos indios, negros, mestizos, españoles, coloniales, contrarreformistas. Negamos lo que habíamos hecho - un mundo policultural y multiracial en desarollo - y afirmamos lo que no podíamos ser - europeus modernos - sin asimilar lo que ya éramos - indo-afro-iberoamericanos. El precio político y cultural fue muy alto. Mejor hubiéramos hecho en leer a Vico que a Voltaire.6

A partir desta consciência, cria-se, para usar a expressão de Edward Said, uma "literatura de resistência" que se propõe rever as certezas universalizantes do colonizador. O que move este novo romance histórico é a vontade de reinterpretar o passado com os olhos livres das amarras conceituais criadas pela modernidade européia no século XIX, é a consciência do poder da representação, da criação de imagens e, conseqüentemente, do poder de narrar e de sua importância na constituição das identidades das nações modernas. Daí a necessidade de releitura da história como parte do esforço de descolonização, que se realiza contra toda uma mentalidade perpetuada pelas elites locais, pelos discursos da história oficial.

A narrativa histórica hispano-americana de Alejo Carpentier, Augusto Roa Bastos, Gabriel García Márquez, Carlos Fuentes e outros procura trabalhar com a multitemporalidade que nos caracteriza. Dilui os contornos entre história e lenda, problematizando o discurso racionalista e suas categorias "puras", para contemplar nossa realidade multifacetada. No lugar do tempo retilíneo, trabalha com a simultaneidade temporal, o tempo circular, o tempo mítico ou a mistura de várias concepções do tempo. Escreve-se uma anti-história que denuncia as falácias da história eufórica dos vencedores. Problematiza-se a enunciação com o intuito de relativizar verdades tidas como universais e absolutas.

Essas características aproximam, em certo sentido, o romance histórico hispano-americano que estamos chamando de "romance de resistência" daquilo que Linda Hutcheon chama de "metaficção historiográfica"7 e levam a autora a incluir algumas das obras na sua lista de exemplos da ficção pós-moderna. Confunde-se, aí, a crítica à modernidade, pelos seus aspectos excludentes e eurocêntricos, feita por autores oriundos de um subcontinente onde a modernidade assumiu um caráter inconcluso, de projeto a realizar, sempre adiado, com as objeções feitas ao pensamento moderno a partir de uma sensação de esgotamento dos discursos sobre liberdade, razão, verdade, gestada nos países desenvolvidos às voltas com as contradições decorrentes do capitalismo tardio, marcado pela revolução tecnológica.

A consciência manifesta nos romances históricos de resistência é de que somos o Outro de uma modernidade que teve a Europa como centro e, por isso, fomos negados e obrigados a seguir um processo de modernização compulsória que nem sempre respeitou as necessidades internas de cada país. Esta consciência não implica uma crítica que se possa rotular apressadamente de "pós-moderna", ainda que antecipe algumas questões que serão retomadas pelo chamado pensamento pós-moderno. Mas as diferenças são profundas, sendo a principal delas o fato de essa crítica latino-americana articular-se em diálogo com o projeto utópico de construção de um futuro melhor, ainda que, cada vez mais, a crença neste futuro seja abalada e a utopia torne-se, como diz Carlos Fuentes, a pedra mais pesada de nossos empenhos de Sísifo:

Abierta hacia el futuro, la novela exige, para serlo plenamente, idéntica apertura hacia el pasado. No hay futuro vivo con un pasado muerto. Pues el pasado no es la tradición rígida, sagrada, intocable invocada por los ayatolás para condenar a Salman Rushdie. Todo lo contrario: la tradición y el pasado sólo son reales cuando son tocados - y a veces avasallados - por la imaginación poética del presente.8

Se a contestação da concepção de história como desenvolvimento linear e da idéia de que existiria apenas uma única maneira de viver a história já pode ser vista como manifestação da crise do pensamento moderno, o seu surgimento não vem acompanhado, no primeiro momento, da perda do sentido revolucionário. Ao contrário, cria outras utopias que alimentam a atitude irreverente das vanguardas européias do início do século e as inovações da ficção latino-americana a partir da década de 20, transferindo a esperança para aquilo que foge à razão instrumentalizada, ao pragmatismo capitalista (a viagem de Artaud ao México ilustra bem esse comportamento) e favorecendo a valorização das culturas periféricas. É dessa atmosfera que os autores latino-americanos se aproveitam para afirmar nossas diferenças sem complexo de inferioridade, para privilegiar a margem como ponto de vista.

Deixamos de destacar a literatura brasileira, ao falar do romance histórico de resistência, pelo fato de, entre nós, esse tipo de narrativa não apresentar a força que vem apresentando como tendência na América Hispânica. No Brasil, apesar de o modernismo, na década de 20, ter sido um pioneiro, no subcontinente, na crítica à visão de história gestada pelo Ocidente moderno, através, principalmente, da obra de Oswald de Andrade e do romance Macunaíma, de Mário de Andrade, a revisão do passado com propósitos descolonizadores não fertilizou de maneira mais significativa a ficção posterior. Algumas obras, como Quarup, de Antônio Callado, Incidente em Antares, de Érico Veríssimo, Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro e A casca da serpente, de J.J. Veiga, procuraram apresentar releituras do passado, fazendo a crítica da modernização excludente de que fomos vítimas e relativizando certezas do racionalismo ocidental. Entretanto, em nosso país,cresce, nas três últimas décadas, o número de narrativas de ficção histórica, mas apresentando características distintas daquelas apontadas nos romances de resistência. Obras como Galvez, o Imperador do Acre, de Márcio Souza, O Boca do Inferno, de Ana Miranda, O Chalaça, de José Roberto Torero, Agosto, de Rubem Fonseca, e outras constituem um novo tipo de romances históricos.

O romance histórico clássico era fruto de uma grande fé na história enquanto processo universal de desenvolvimento direcionado para um fim ótimo e se alimentava da crença na possibilidade de um conhecimento objetivo do passado. O romance histórico de resistência voltou-se contra a visão universalizante da história segundo um paradigma ocidental, denunciando as falácias desse discurso tido como científico, mas, ao tentar criar uma outra história, se contrapondo à versão oficial, revelou também, de certa forma, uma crença na história, não mais como verdade única mas como conflito de versões no qual cabe afirmar a visão dos vencidos. Ao travar uma luta contra o esquecimento promovido pelo poder e fazer emergir os aspectos do passado que haviam sido silenciados pelas representações oficiais, é ainda a história que sai engrandecida - mas uma outra história, que uma vez resgatada, tem em si um potencial utópico.

No terceiro tipo de romance histórico que estamos querendo caracterizar, essa tensão que marca o romance histórico de resistência deixa de ser central ou desaparece. São obras que olham o passado com a descrença dos tempos atuais. Em algumas, a história pode ser vista como farsa burlesca, divertindo o público e reforçando a idéia de que, ontem como hoje, tudo se resumiria numa comédia, encenada por arrivistas, a se repetir eternamente. A história do Brasil se oferece como material adequado para o romance folhetim e mereceria, quando muito, o rodapé dos jornais. Trata-se de algo como uma ópera bufa. Parte-se do princípio, tirando partido da atual descrença no estatuto científico da história, de que, se tudo são versões, o autor tem toda a liberdade de apresentar a sua própria versão , seja a partir do exercício puro e simples da imaginação, seja a partir de pesquisas documentais que servem de base para a composição do enredo. A versão ficcional pode se constituir pelo viés do humor, desconstruindo a "grandiosidade" dos gestos consagrados pela história oficial, para oferecer ao leitor cenas dos bastidores, segredos de alcova, mexericos de antigamente. O humor, nesse caso, não é o instrumento através do qual se criticam alguns aspectos do passado em nome de um projeto futuro - e, sim, uma forma de preencher o espaço vazio deixado pela ausência de projeto e, por isso, sua ação corrosiva não tem um alvo determinado, atingindo a tudo e a todos. É o que ocorre, por exemplo, em obras como Galvez, Imperador do Acre, O Chalaça e, no cinema, Carlota Joaquina, Imperatriz do Brasil, de Carla Camurati, as quais se aproximam pela maneira como vêem a história, independente das diferenças de valor estético entre elas. Outras obras, como O Boca do Inferno, trabalham com a crítica de costumes, trazendo à luz aspectos dissolutos da vida privada, motivações mesquinhas que pautam as ações dos poderosos,mas mantêm um nível de heroização de alguns personagens históricos, cuja biografia, reproduzida no romance, desperta a curiosidade do leitor.

Nestes últimos casos mencionados, estamos próximos da chamada narrativa pós-moderna, porque perdemos a ênfase no componente utópico, próprio dos outros dois tipos de romance histórico que comentamos. A ênfase recai, agora, na semiotização da história, que é o que vai propiciar o romance que se debruça sobre o passado para nele colher material que será reciclado, reprocessado, como num laboratório, para gerar novas versões geralmente narradas obedecendo a cronologia linear e sem grande pretensão de inovações formais.

. O romance histórico de resistência também trabalha com a diluição das fronteiras entre ficção e história (ver, por exemplo, a epígrafe de Viva o povo brasileiro), mas para confrontar as representações feitas pelo poder com as representações daqueles postos à margem, afirmando a força da ficção contra o "realismo" cínico do poder, ou, como diria Carlos Fuentes, sobre o romance de Augusto Roa Bastos:

Los temas de este gran autor hispánico son el yo y el otro, el destino individual y el destino histórico visto como destino compartido. Roa Bastos sabe que sólo puede tratarlos escribiéndolos. Al escribir la novela, escribe la verdadera historia, y al escribir la novela y la historia, escribe una vida que sólo puede ser nuestra si asumimos la responsabilidad de comprender la vida del otro. Este esfuerzo convierte a Roa Bastos en un gran escritor de la imaginación del poder en su lucha constante con el poder de la imaginación.9

Já o romance histórico "pós-moderno" tira partido da descrença na possibilidade de conhecer objetivamente o passado para fazer dele um fornecedor de temas para a ficção, concentrando-se, sobretudo, nas particularidades da vida privada dos personagens históricos. Quando as interpretações teleológicas da história estão em baixa, as ações praticadas pelos chamados "grandes homens" ficam reduzidas às suas motivações pessoais, nada existindo que possa dotá-las de um significado que transcenda o interesse particular, conferindo-lhe uma dimensão universal. Veja-se, nesse sentido, como o personagem D.Pedro I surge no romance O Chalaça, de José Roberto Torero. Os episódios que marcaram a vida do Imperador são vistos do ponto de vista do secretário particular, Gomes da Silva, cognominado "Chalaça". Escolhe-se, digamos assim, o ponto de vista do "criado de quarto", o que nos faz lembrar as palavras de Hegel quando condena a abordagem psicológica dos atos dos grandes homens:

"Para o criado de um herói não existem heróis", diz um provérbio, ao qual eu acrescentaria (...): não porque o homem não seja um herói, mas porque o outro é um criado. Este tira as botas do grande homem, ajuda-o a deitar-se, sabe que ele bebe um bocado de champanhe etc. Os personagens históricos, quando descritos nos livros de história por tais criados, adquirem má reputação. Eles são colocados no mesmo nível, ou até algumas vezes degraus abaixo, da moralidade de tais requintados conhecedores do ser humano.10

O retorno atual, por uma literatura que não se assume como direcionada unicamente para os interesses comerciais, a subgêneros de aceitação popular do século XIX - tanto ao romance histórico como ao romance policial - faz parte do movimento mais amplo de progressivo abandono das atitudes reativas, de protesto, surgidas no século passado, mas acirradas com o modernismo, contra a reificação mercantil da obra de arte operada pelo capitalismo. Trata-se da reapropriação e do deslocamento histórico de antigas estruturas a serviço de uma situação qualitativamente diversa.

Retomam-se, hoje, os subgêneros que ocuparam lugar privilegiado na hierarquia, segundo os princípios do sucesso comercial no século XIX. Subgêneros que tiveram raízes na crença no processo histórico e na possibilidade de se atingir a verdade última dos fatos e que tiveram seu tempo áureo antes do estabelecimento da fissura entre uma arte considerada culta e outra vista como produção mercenária. Pretende-se resgatar as próprias origens populares do romance, mas como fazer essa retomada depois de todo movimento crítico contra à submissão da arte ao mercado, desencadeado por escritores como Baudelaire e Flaubert? Bourdieu nos lembra que Flaubert tinha horror à literatura de gênero como vaudeville, romance histórico à maneira de Alexandre Dumas, ópera cômica etc., identificando-a com a subordinação às exigências do mercado. A reflexão que, no passado, deu origem à busca de autonomia da arte não pode ser elipsada na atualidade, pelo menos quando se trata de escritores menos ingênuos, com consciência da própria história interna do gênero. Daí que esta reflexão será trazida para o interior das obras contemporâneas, onde a questão da autonomia da arte fará o papel de fantasma do passado que sempre volta para incomodar e que precisaria ser exorcizado. Rubem Fonseca, por exemplo, inicia "A arte de andar pelas ruas do Rio de Janeiro" 11 com o problema da relação entre arte e dinheiro. Augusto, nos fazendo lembrar o escritor-herdeiro, que, no século XIX, podia criar sem se preocupar com a sobrevivência, só se dedica à tarefa de escrever depois que ganha um prêmio na loteria, garantindo por aí o seu sustento e mantendo "limpa" e livre a sua arte. Como vemos, volta-se aos subgêneros mas não é possível recuperar a inocência primeira que os impulsionou e os autores acabam tentando uma solução híbrida que inclua sedução de um público maior e, ao mesmo tempo, um grau de reflexividade que alivie a culpa pelo recurso aos mecanismos mais fáceis de sedução.

A solução híbrida implica tentar conciliar, no interior de uma mesma obra, os dois pólos entre os quais ela se debate - as exigências do mercado e a rejeição a uma completa subordinação às suas leis. Busca-se, então, o romance policial mas tenta-se evitar que toda a sua fruição seja submetida à revelação final da verdade sobre o crime. Busca-se o romance histórico mas, de preferência, incluindo alusões intertextuais para que o leitor mais esperto possa se satisfazer com a visão semiotizada da história. O esgotamento da atitude de militante da recusa assumida pelos artistas de vanguarda faz cair em desuso o heroísmo de Baudelaire, mas também se sabe que não é mais possível ser Balzac, pelo menos enquanto, para ele, não se colocou a angústia gerada pela separação entre sucesso de público e reconhecimento de qualidade estética. Se Flaubert afirmou que "uma obra de arte digna desse nome e feita com consciência é inapreciável, não tem valor comercial, não pode ser paga"12 e , para Zola, "o dinheiro emancipou o escritor, o dinheiro criou as letras modernas", sendo preciso aceitá-lo sem remorso nem infantilidade, reconhecendo a "dignidade, o poder e a justiça do dinheiro",13 é um personagem de Rubem Fonseca que diz:

O escritor é vítima de muitas maldições, mas a pior de todas é ter de ser lido. Pior ainda, ser comprado. Ter de conciliar sua independência com o processo de consumação. Kafka é bom porque não escrevia para ser lido. Mas por outro lado Shakespeare é bom porque escrevia de olho no shilling que cobrava de cada espectador. (V. Panofsky). Assim como o teatro não se salvará apenas com a coragem de escrever peças que ninguém queira assistir, a literatura também não se salvará apenas com a coragem de escrever outros Finnegans Wake.14

A questão da autonomia da arte, discutida no espaço ficcional, tem a função de conquistar a cumplicidade do leitor cultivado, fazendo com que este perceba os mecanismos de concessão ao gosto do público maior, como um jogo astucioso do autor, com o qual se identifica. A tematização da problemática da autonomia da arte, no interior da obra, torna-se necessária na medida em que, na ausência do componente utópico, o atingir as massas não se justifica pelo sentido de missão, não se explica pelo propósito de conscientização das camadas populares ou de democratização da cultura. Como vimos, no trecho acima, de Rubem Fonseca, fala-se em salvar a literatura, impedir que ela agonize fechada em si mesma, mas não se deixa de mencionar o "shilling", que atraía Shakespeare, ou seja, o lado comercial que limita a independência do escritor, induzindo-o, em muitos casos, a fazer concessões que também poderiam levar a literatura, por outro caminho, a agonizar. Entre a postura de Flaubert e a de Zola, o escritor, nesses novos tempos, ao aceitar o princípio de repetição implícito na idéia de gênero, ao buscar o romance histórico e a trama policial, faz do propósito mesmo de conciliar o inconciliável o princípio estruturador da obra, através do qual procura legitimar artisticamente o padrão híbrido.

 

Referências bibliográficas

1 Lukacs, George. Le roman historique. Trad. francesa de Robert Sailley. Paris: Ed. Payot, 1965, p.24. Retorna ao texto

2 Said, Edward W. Cultura e imperialismo. Trad. Denise Bottman. S. Paulo: Ed. Companhia das Letras, 1995, p.47. Retorna ao texto

3Figueiredo, Vera Follain de. Da profecia ao labirinto: imagens da história na ficção latino-americana contemporânea. Rio de Janeiro: Ed. Imago e Ed. da UERJ, 1994. Retorna ao texto

4Richard, Nelly. "Neovanguardia y postvanguardia: el filo de la sospecha". In Modernidade: vanguardas artísticas na América Latina. Belluzo, Ana Maria de Moraes (org.). S.Paulo: Ed. da UNESP,1990, p.187. Retorna ao texto

5 Ortiz, Renato. Mundialização e cultura. S.Paulo: Ed. Brasiliense, 1994, p.139. Retorna ao texto

6 Fuentes, Carlos. Valiente mundo nuevo: épica, utopía y mito en la novela hispano-americana. México: Fondo de Cultura Económica, 1990, p.34. Retorna ao texto

7Hutcheon, Linda. Poética do Pós-Modernismo: história, teoria e ficção. Rio de janeiro: Ed. Imago,1991. Retorna ao texto

8 Op. cit. nota 6, p.27. Retorna ao texto

9 Fuentes, Carlos. Geografia de la novela. México: Fondo de Cultura Econômica, 1993, p.79. Retorna ao texto

10 Hegel, Georg Friedrich. Filosofia da história. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995, p.34. Retorna ao texto

11Fonseca, Rubem. "A arte de andar pelas ruas do Rio de Janeiro". In Romance negro e outras histórias. S.Paulo: Ed. Companhia das Letras, 1992. Retorna ao texto

12 G. Flaubert, carta ao Conde René de Maricourt, 4/1/1867. Citado por Bourdieu, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. S. Paulo: Ed. Companhia das Letras, 1996, p.101. Retorna ao texto

13 A citação é retirada de Bourdieu, Pierre. Op.cit. nota 12, p.112. Retorna ao texto

14 Fonseca, Rubem. Bufo & Spallanzanni. Rio de Janeiro: Ed. Francisco Alves, 1985, p.177. Retorna ao texto

 


Vera Follain de Figueiredo é Doutora em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Professora Adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ (aposentada), Professora de Literatura Brasileira da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e autora de Da profecia ao labirinto: imagens da história na ficção latino-americana contemporânea. Rio de Janeiro: Ed. Imago e Ed. da UERJ, 1994.


Retorna ao Índice