POESIA QUE VEIO PARA AMAR

E SER AMADA

 

Yasmin Jamil Nadaf

 

 

 

Em agosto de 1996, na Bienal Internacional do Livro de São Paulo, o Poeta matogrossense Manoel de Barros lançou o Livro sobre nada - cume de contemplação e absorção do "inútil", do "nenhum"; êxtase de reflexão sobre a existência, avesso do nada.

Este é o 13º. livro do escritor de uma coleção literária impressa já consagrada pelo público. Estreou, em 1937, com a obra Poemas concebidos sem pecado e de lá para cá publicou Face imóvel (1942); Poesias (1956); Compêndio para uso dos pássaros (1961); Gramática expositiva do chão (1969); Matéria de poesia (1974); Arranjos para assobio (1982); Livro de pré-coisas (1985); O guardador de águas (1989); Gramática expositiva do chão - Poesia quase toda (1990), que reúne os títulos anteriores; Concerto a céu aberto para solos de ave (1991); e O livro das ignorãças (1993).

Vaidoso-tímido, o Poeta Manoel abre estrada na Poesia brasileira com uma característica que lhe é muito peculiar - valorizar o "inútil", o "nenhum", o "rejeitado", e desfrutá-los. Sua poética, que ele auto-define de "Estética da Ordinariedade", embeleza as "coisas mais pequenas", refina o sem-valor, sublima as "pobres coisas do chão", delas extraindo razão maior: Ser e Estar.

 

Prefiro as máquinas que servem para não funcionar:

quando cheias de areia de formiga e musgo - elas

podem um dia milagrar de flores.

 

(Os objetos sem função têm muito apego pelo aban-

dono.)

 

Também as latrinas desprezadas que servem para ter

grilos dentro - elas podem um dia milagrar violetas.

 

(Eu sou beato em violetas.)

 

Todas as coisas apropriadas ao abandono me religam

a Deus.

Senhor, eu tenho orgulho do imprestável!

 

(O abandono me protege.)

 

[Barros, Livro sobre nada, p. 57]

 

Lição de humilde, no que não é humilde. Para o Poeta Manoel, o viver melhor para si, que em sua obra se transfere à humanidade, reside nas (in)significâncias, ou melhor, nas lições de sabedoria que se pode abstrair das (in)significâncias que estão ao nosso redor. Daí o universo literário deste escritor compreender "besouro", "musgo", "caracol", "caneco enferrujado", "bule sem boca", "lata furada", "sapo", "prego", "pedra", "botina", e tantos outros elementos facilmente encontrados em seu quintal - o Pantanal - mas que sabemos bem poderem estar, e estão, em qualquer lugar do mundo. A diferença, aqui, é que eles fazem parte do mundo de vivência e convivência do Poeta com o Sertão - o Pantanal - desde a sua infância. Manoel de Barros nasceu em Cuiabá, à beira do rio que leva o nome da cidade, em dezembro de 1917. Passou uma longa temporada no Rio de Janeiro onde fez os estudos, mas depois retornou ao chão de Mato Grosso para administrar uma fazenda herdada do Pai. No Livro das ignorãças, o próprio escritor confessa: Me criei no Pantanal de Corumbá, entre bichos do chão, pessoas humildes, aves, árvores e rios.

Este universo é a vida literária de Manoel de Barros e vice-versa. A familiaridade e a informalidade com que surge aos olhos do Poeta, ou é por ele buscado em sua escrita, facilita a simbiose perfeita que se estabelece entre ambos, no jogo semântico e sintático despojado que já se consagrou como estilo em sua obra. Cabe a lembrança de que, se nos primeiros livros, o Poeta Manoel principia retratando o que está ao seu redor, no decorrer de sua trajetória poética, à medida que segue apresentando essa realidade também irá progressivamente assimilá-la, ao ponto de, nos últimos escritos, tornar-se ele próprio o seu universo, incorporado, mimetizado. O Poeta é então o "besouro", "musgo", "caracol", "caneco enferrujado", "bule sem boca", "lata furada", "sapo", "prego", "pedra", "botina"... enfim é a sua própria poesia.

 

Eu queria crescer pra passarinho ...

[Barros, Livro sobre nada, p. 30].

 

Às vezes passo por desfolhamentos.

Vou desmorrer de pedra como um frade.

[Barros, Livro das ignorãças, p. 59]

 

Só sei por emanações por aderência por incrustações.

O que sou de parede os caramujos sagram.

[Barros, Arranjos para assobio, p. 16]

 

Belo exemplo de comunhão entre o Ser (o Poeta) e o seu Universo resulta, assim, de sua obra. Belo canto de preocupação do Poeta com aquilo que está dentro e fora do seu "eu" (o Homem), até mesmo o aparentemente sem grandeza, o que é pouco ou nunca lembrado, ressoa de sua poética. "Besouro", "musgo", "caracol", "caneco enferrujado", "bule sem boca", "lata furada", "sapo", "prego", "pedra", "botina" ... não dão manchete de jornal, com exceção, é claro, quando se fala na obra deste escritor. Entretanto, são elementos como estes que bastam e sobram ao Poeta Manoel para questionar, como muito bem questiona em sua escrita, os princípios de conduta e racionalidade do homem sobre a existência e a não-existência.

Conhecendo profundamente o artefato lingüístico, Manoel de Barros expõe toda esta sua metafísica num discurso inaugural. É ofício em sua obra a busca, na linguagem poética, de um novo mundo e de um novo homem: Notei que descobrir novos lados de uma palavra / era o mesmo que descobrir novos lados do Ser (Concerto a céu aberto para solos de ave). Escrita que transcende. Literatura que questiona sobre o "existir" principiando pela própria palavra enquanto signo.

Neste intento, o Poeta Manoel trabalha incansavelmente a palavra. Busca em sua obra uma nova forma de linguagem. Aquela ainda não dita, em estado de infância e de pureza absoluta, uma linguagem que possa nomear novo sentido a vida, e transfigurar a realidade. Uma linguagem onde o Verbo assume função de relevo, e passa a ser a sua força motriz. Novamente, é o próprio Manoel que declara em sua obra o Livro das ignorãças: No descomeço era o Verbo. / Só depois é que veio o delírio do verbo (...) e, com ele, vem toda a revolução que este Poeta faz para subverter a sintaxe e a semântica em seus versos:

 

De noite o silêncio estica os lírios.

[Barros, Livro sobre nada, p. 33]

 

Sábia de setembro tem orvalho na voz.

De manhã ele recita o sol.

[Barros, Concerto a céu aberto para solos de ave, p. 18].

 

Com a boca escorrendo chão

o menino despetalava o córrego

de manhã todo no seu corpo.

[Barros, Gramática expositiva do chão, p. 137]

 

Há ainda que se considerar que a técnica estrutural deste novo dizer em sua escrita, segue o ritmo crescente assimilativo da interação Poeta-Universo em sua obra. Na medida em que o Poeta Manoel vai se transformando em seu próprio universo temático, a linguagem também vai surgindo mais fragmentada, mais lúdica e encantada, desencadeando um festival de belas imagens poéticas que jorram sucessivas de sua obra.

O zerar metafísico e lingüístico da escrita deste autor, ou seja, este começar tudo de novo, (des)aprender, renomear a palavra, traduz-se em Poesia etérea. Uma Poesia que veio apenas, e tudo, para amar e ser amada.


Yasmin Jamil Nadaf é Mestre em Literaturas de Língua Portuguesa pela UNESP/Campus de Assis; Técnica do Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional da UFMT; Membro da Academia Matogrossense de Letras e autora do livro Sob o signo de uma flor (Sette Letras, 1993)

E-mail: lfilipe@usa.net


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