Cartas muito íntimas -

Escrúpulos de herdeira[1]

 

 

 

Zahidé Lupinacci Muzart

Universidade Federal de Santa Catarina

 


Resumo:

Análise da correspondência do escritor Harry Laus, depositada na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

 

Résumé:

Analyse de la correspondance de Harry Laus, deposée à l'Université de Santa Catarina (UFSC).

 


 

"Será que alguém pode ter dúvidas sobre a incoerência de meus personagens? (1/out/58)"

 

 

 

Certamente, o Conde de Gobineau [2], ministro da França no Brasil de Sua Majestade D. Pedro II, não escreveu sobre o Brasil nas suas cartas íntimas com o propósito de que amigos brasileiros as lessem ou para que nós as lêssemos, hoje! Quando escreveu que a "população [brasileira] é uma população toda mulata, com sangue viciado, espírito viciado e feia de meter medo", e que "salvo o imperador não há ninguém neste deserto povoado de malandros" não pensaria que um dia tudo isso seria publicado e que serviria para estudos e comentários, como o meu...

Comecei o presente trabalho, pesquisando o que haveria, teoricamente, sobre cartas, sobre correspondência. Descobri que a bibliografia teórica sobre epistolografia é muito pequena. Deve-se procurar a teoria pelo viés das biografias, autobiografias, diários, memórias. No entanto, paralelamente, há uma quantidade enorme de cartas de pessoas notáveis, que foram publicadas. Nossa própria história literária começa com a tão famosa Carta de Pero Vaz de Caminha. Temos já publicadas cartas famosas como as da Condessa de Barral a Suas Majestades, as Cartas sobre a educação de Cora, curioso texto sobre educação da mulher no século XIX, escritas em 1849 pelo Dr. José de Lino Coutinho, médico e político baiano, as cartas de Machado de Assis a Euclides da Cunha e as de Euclides a Machado e a abundante epistolografia de Mário de Andrade que, proibidas por ele de serem publicadas, mesmo assim o foram para alegria dos estudiosos.

Essa ausência, ou melhor, o quase vácuo do teórico em benefício do texto é significativo. Em primeiro lugar, porque as cartas sedimentam a maior parte das biografias, fundamentando o quê se diz sobre o escritor. Em segundo lugar, a ausência de teorias mostra que não é um tema muito levado em conta, muito valorizado e como gênero é necessariamente considerado menor. Situação completamente diferente apresentava-se o gênero epistolar, no século XVII, na França quando na literatura o "eu considerado detestável"( le moi est haïssable ) , conforme Pascal, é na correspondência que encontraremos maiores expansões e manifestações da intimidade dos escritores. Tal foi a importância da correspondência nesta época que Madame de Sevigné ficou célebre como epistológrafa, tendo escrito mais de 1500 cartas das quais aquelas escritas à sua filha são as mais importantes, as que conservarão muito da mulher que ela foi e de sua intimidade.

No estudo da correspondência, há que se considerar sempre para quem é enviada, qual o grau de intimidade existente entre o remetente e o destinatário, qual a mola oculta de interesses que move o remetente vis-à-vis de seus destinatários. Qual a máscara usada pelo remetente? E, sobretudo, para nós leitores de hoje, qual o nosso interesse na correspondência do escritor. Que postura deve-se tomar: a de guardião de túmulos? a de aves de rapina em cima de cadáveres? a de arrombadores?[3]

O acervo do escritor catarinense Harry Laus[4] nos foi doado pessoalmente pelo escritor, antes de falecer de câncer, em 1992, doação esta ratificada pela testamentária, sua irmã, a escritora Ruth Laus. A maioria das pastas foi organizada pelo próprio escritor. A nossa postura, até agora foi a de guardiã, tentando organizar o acervo para colocá-lo à disposição dos pesquisadores. Estamos procedendo agora à descrição dos documentos e à informatização para posterior microfilmagem.

Nesta tarefa, tivemos a importante colaboração da bolsista de pesquisa CNPq, a professora Zilma Gesser Nunes e de seu esposo, especialista em informática e também professor licenciado em letras, Luiz Carlos Nunes, que fez um programa especial para o acervo Harry Laus o que nos tem auxiliado de maneira eficaz e segura. Isso foi conseguido porque o programador foi realizando o programa sempre nos consultando, em primeiro lugar sobre nossas necessidades e fazendo em seguida as devidas retificações. O programa mesmo esteticamente está impecável. Abre-se com uma página coberta com a bela assinatura de Harry Laus. Em seguida no Arquivo, temos as entradas seguintes: Originais; correspondência; esboços e notas; documentos audiovisuais; memorabilia; comprovantes de edição, comprovantes de crítica; vida ; obra. O presente programa foi baseado nas indicações da Profª. Maria da Glória Bordini, Manual de Organização do Acervo Literário de Érico Veríssimo[5] que nos serviu de modelo, mas adaptado às nossas necessidades e sobretudo às necessidades do acervo, tendo o programador também criado coisas novas. Segundo este:

Com o objetivo de armazenar os dados catalogados do acervo Harry Laus, de forma a possibilitar acesso aos interessados através de microcomputador, foi construída uma base de dados relacional à qual foi anexado front-end composto de janelas próprias para ambiente Windows.

O conjunto tem o alto desempenho característico das aplicações de Banco de Dados, permitindo acesso facilitado e instantâneo ao item desejado através de índices integrados. Além disso, permite a inclusão, edição e exclusão de dados, bem como, impressão de cada item de forma individualizada.

A aplicação foi desenvolvida em linguagem Visual Basic na versão 4.0, com base de dados no padrão MS-ACCESS 2.0. Dispõe de menus que fornecem um acesso intuitivo às pesquisas e a todo o conjunto de comandos, podendo ser operado com facilidade.

O sistema é composto de dez módulos contendo, cada um a descrição do conjunto de peças do acervo de acordo com o assunto catalogado. Até o momento, foram concluídos seis desses módulos, restando quatro a serem implementados: [6]

 

Módulo

Estágio

ORIGINAIS

Concluído

CORRESPONDÊNCIAS

Concluído

PUBLICAÇÕES NA IMPRENSA

Concluído

ESBOÇOS E NOTAS

Concluído

DOCUMENTOS AUDIOVISUAIS

Em desenvolvimento

MEMORABILIA

Concluído

COMPROVANTES DE EDIÇÃO

Concluído

COMPROVANTES DE CRÍTICA

Em desenvolvimento

VIDA

Em desenvolvimento

OBRA

Em desenvolvimento

A catalogação de acervos literários através de métodos semelhantes, proporciona uma visão completa da descrição dos ítens do acervo, permitindo o manuseio e a consulta por inúmeros pesquisadores, em diferentes lugares.

O pesquisador, ao entrar no arquivo selecionado, pode escolher: ler os resumos das cartas por destinatário, por remetente, por ordem cronológica das datas ou por ordem alfabética o que facilita muito a pesquisa..

Depois da informatização e microfilmagem deste acervo, pretendemos colocar todos os dados, ou seja a descrição dos documentos, na rede, de forma a que todos os pesquisadores interessados em acervos ou pela obra do escritor Harry Laus, possam saber onde se encontram os documentos, o estado de cada documento e a possibilidade de acesso, se são disponíveis para consulta, ou vedados ao público.

Para o presente artigo, analisamos somente parte da correspondência, já catalogada. São mais de 600 cartas e cartões -- 351 foram catalogadas por Zilma Gesser Nunes as outras por mim. Não vou me deter nas cartas mais circunstanciais, de agradecimento, de bons votos de final de ano, informações ou cartas de editores. Os correspondentes de HL são diversos. Há cartas ou simples cartões de escritores como Mário Quintana, Carlos Drummond de Andrade, Dalton Trevisan, Eneida, Jorge Amado, Fausto Cunha, escultores e pintores como Flávio de Carvalho, Pedro Escosteguy, Elke Hering, Antonio Maia, Maurício Salgueiro e outros. Segundo Ruth Laus, e por informação do próprio Harry, muitas cartas foram destruídas por ele. Algumas como as importantes cartas do escritor Mário Faustino foram enviadas ao Prof. Benedito Nunes da Universidade Federal do Pará que as doou para arquivo idôneo, segundo afirma a HL em carta.

Depois de perambular no mar de cartas de HL e para HL, dividi-as em duas linhas dominantes (poderiam ser divididas diferentemente, claro):

- as pessoais, da juventude e as classificadas um tanto erradamente como comerciais/pessoais, de maturidade com a tradutora francesa.

A correspondência da juventude compõe um acervo bastante truncado por eliminação do próprio escritor. Tais cartas são as que se prestariam melhor para o estabelecimento do perfil psicológico do escritor, para uma análise de sua personalidade.

Vou comentar somente as duas linhas mais importantes do acervo: as cartas da intimidade: Cartas de Harry Laus a um correspondente , que chamarei X não contendo o acervo as respostas de X, e as cartas com sua tradutora francesa das quais, temos praticamente todas, tanto as dela para o escritor como as respostas de HL à tradutora. As cartas da intimidade interessam para um estudo da vida do escritor e da ligação vida/obra. As segundas, mais para analisar a atuação da tradutora na obra de HL, em seus últimos textos publicados.

HL conservava seus arquivos em muita ordem, arquivando as cartas em pastas separadas com o nome de cada destinatário, conservando cópias de suas próprias cartas. Por este lado "arquivístico" de sua personalidade, já podemos pensar que ele mesmo concebia seu arquivo como matéria para futuros estudos da parte de pesquisadores razão pela qual, fez ele mesmo uma triagem na correspondência antes da doação do acervo para a Universidade .

As cartas do período X são de 1958. Compreendem 34 cartas, expedidas de Corumbá, MT onde HL fora destacado pelo exército. Exilado, segundo o escritor! Para uma biografia que analise os aspectos psicológicos da personalidade do escritor, as cartas a X são bastante interessantes, mostrando HL como uma pessoa muito carente de afetos, muito solitária, muito dada a impulsos apaixonados. HL era homossexual e, nos anos 50, essa opção era muito pouco aceita. Os problemas enfrentados por ele como homossexual , os enganos, as traições amorosas, os amantes, as festas e bacanais, tudo isso nos é revelado por essas cartas íntimas. Dado o caso de as cartas de HL terem sido doadas por ele mesmo, sentimo-nos mais ou menos livres para comentá-las. Porém as cartas tem um destinatário e este não participou da doação, sendo, de certo modo, ainda dono delas ( ou seus herdeiros). Por esta razão, mesmo na classificação, no resumo dessas cartas, estamos tendo muito cuidado para que não sejam ofensivas à memória de alguém cuja família se sentiria ofendida,ou magoada, por tal publicação.

X era um pintor, vivia no Rio de Janeiro e já faleceu. Foi o grande confidente de HL quando este foi deslocado para Corumbá no Mato Grosso que, se hoje já é uma cidade mais desenvolvida, nos idos dos anos 50, representava um verdadeiro exílio para o belo capitão do exército que era HL, habituado às festas e vernissages do meio artístico da capital do Brasil, o maior centro cultural de então, o Rio de Janeiro.

As cartas de Corumbá trazem passagens acerca da sexualidade do escritor, de suas paixões e de suas ligações amorosas mesmo dentro do quartel. Trazem também reflexões sobre a questão da opção sexual, vista por ele como anormal e como problema de vida. Tudo isso é matéria de ficção, pois como ele mesmo diz, em carta a X:

"Agora cessa tudo e te entristece que vou contar uma besteira. Dia 27, dois meses em Corumbá, saí do sério. Fui para a casa do tenente dentista cuja esposa não se conforma com Corumbá, comecei a beber whisky, ouvir Armstrong, beber cerveja e depois fomos, os três para o La Barranca. Cerveja, champanhe, dansei, só faltou chorar. Bêbado, está na cara.(...) No dia seguinte acordei aborrecido, arrependido, triste até a morte, como disse J. Cristo no calvário. Com esse desacerto, esse desenchimento de saco, pretendo passar outros dois meses no sério.

Nessa noite de tolice pensei muito, como venho fazendo ultimamente, a ponto de perder o sono. Não sei qual o rumo que minha vida vai tomar. Tenho minha profissão certa, de militar, mas não tenho amor a ela; tenho minha mania de literatura mas nada sou literariamente. Não me dedico a isso como devia. Vivo então frustrado, sem nada de concreto, de positivo na mão. Minha vida sentimental é um fracasso e assim será para sempre. Quisera ter o desprendimento de ser apenas bom sem pedir nada em troca, mas é totalmente impossível. Sinto-me infinitamente só, X., sem o carinho de ninguém. Numa cidade grande como o Rio a vida desvairada que eu levava afasta o pensamento dessas coisas e mesmo aquela confusão nos ilude sobre tudo e chegamos a pensar que não somos sós. Aqui, todos os passos medidos e controlados, continências de 5 em 5 metros, de metro em metro, a ligação diária com pessoas normais que têm sua casa, mulher e filhos, tudo isto em constante confronto acaba por arrebentar nossos nervos. E a constante insinuação dos oficiais e esposas sobre noiva, casamento -- é de matar. Dá vontade de gritar bem alto toda a verdade, mandar todo mundo à merda, rasgar a fantasia. É preciso manter-se sempre em vigilância, representando. Isto o que há de pior em Corumbá. Isto e a distância do Rio. Porque vim para uma terra tão longe! A cidade não é má, é afinal como toda cidade do interior, mas a distância do Rio ou de qualquer outra cidade é que mata. Apesar de ser realista e honesto comigo mesmo, algumas vezes me encontro pensando em casar e ter o famoso lar , doce lar. Estou ficando completamente gagá. Paro imediatamente de pensar e me digo que isto será apenas por um ano, que voltarei para meu apartamento, para meus amigos, etc. Mas aí o pensamento arma nova armadilha: pergunto-me o que adiantava a vida que eu levava. Que fazia eu, que construía, que utilidade tinha minha existência posta naqueles termos? É por isto que te digo que não sei que rumo vai tomar minha vida. Por mais que me digam e eu mesmo tente me convencer de que a vida sentimental não tem importância, não consigo me convencer. Ela é a base de tudo. Como jamais resolverei este problema (jamais, X, nunca, é duro de aceitar) também jamais terei paz de espírito.

 

Algo a notar nas cartas de Harry Laus é o humor auto-irônico, que ri de si mesmo, humor que percorre grande parte de suas cartas a X. Um exemplo dessa auto ironia é o seguinte, quando fala a X dos dois amigos no futuro, quando velhos:

 

Quando nós duas, tias velhas, estivermos fazendo crochê em cadeiras de balanço, suspiraremos, de peruca loura, e eu direi talvez como Itala Fausta que o dia mais feliz de minha vida foi em Saquarema, graças a um famoso pintor português que me levou lá com aquele rapaz, te lembras? chamava-se Marcelino. E por falar em português -- dirás com voz trêmula e errando o ponto -- lembras-te daquele que me amou e me deu agulheiro, uvas e tomada de luz? -- Se me lembro, Pomba querida. Neste momento, largaremos o trabalho e choraremos copiosamente, uma nos braços da outra até que a Rádio Nacional inicie novo capítulo de novela." E conclui HL "O que salva a bichesse é a ironia, o pouco caso que elas fazem de si mesmas. Mantenha o seu sorriso."

Um outro exemplo do aspecto ficcional de suas cartas é o seguinte relato:

Domingo aconteceu uma coisa completamente louca: um almoço fluvial. Trezentas ou mais pessoas dentro de um navio, Paraguai acima e abaixo, em benefício do Aero-Clube. Acontece que demoraram muito a servir a comida e quase houve motim em alto rio. Visto de fora, sem fome, acoisa era muito engraçada. Uma pequena multidão faminta, pelos corredores apertados do navio que, volta e meia atracava no porto para pegar mais bebidas. Coisa de cinema americano ou, mais propriamente, comédia dos três patetas. Arrependi-me barbaramente. Quando o prato atingiu-me, chegou sem talher e comi um pouco com a mão depois irritei-me e atirei tudo n'água, com prato e tudo, gesto que foi seguido por parte da plebe ululante.

Como se pode ver, nos exemplos acima, suas cartas apresentam textos mais literários do que propriamente íntimos. O que HL está fazendo é criando uma ficção e usando para isso de tiques de linguagem dos travestis. Apesar da ironia e do humor, subrepticiamente a nota é de amargura.

As cartas de HL podem ser lidas como complementação de seus textos ou como parte deles, pois há uma superposição dialógica entre uns e outras. O escritor é fonte de seu texto e nunca se esforça para não parecê-lo.

As cartas vão mostrar um homem contraditório, influenciável, (V, cartas de C. Cayron), organizado e desorganizado, bêbado e folgazão ao mesmo tempo em que asceta e puro, bom e mesquinho, generoso, amável, amante. Um homem estranhamente dividido entre o molde militar e os impulsos de um temperamento apaixonado e contraditório.

O que Harry Laus constrói tanto em suas cartas como em seus diários é uma ficção autobiográfica. Precupado com sua imagem futura, vai construindo uma personalidade que é também personagem com isso, mesclando em todos os seus escritos sem exceção essa personalidade múltipla que foi a do escritor. E, ao mesmo tempo em que constrói essa ficção, a história vai também aparecendo no meio, com pitadas da vida nacional. Militar, homossexual (traço importante a assinalar), amante das artes HL foi, sobretudo, um homem solitário, capaz de grandes gestos, de grande seriedade e não menores mesquinharias. A pessoa que escrevia e sobre quem escrevia eram uma só e mesma entidade mesclando-se personagens tanto de seus contos como de seus romances , narrador, epistológrafo, memorialista e pessoa numa mesma e única entidade. Por todas essas razões, o estudo das cartas de HL apresenta grande interesse ao biógrafo que nelas reconhecerá sempre o escritor, o autor de Os papéis do Coronel. O estudo de suas cartas pode dar conta da vida monótona e castradora do exército brasileira, da vida louca, oculta e aventurosa de homossexuais brasileiros na década de 50 quando ser homossexual era ser anormal e proscrito, pode dar conta do movimento das artes plásticas nos anos 50/60. Ao final, as cartas da velhice, cartas encantadoras com sua tradutora francesa. São essas últimas que mostram os passos de uma profunda amizade construída pouco a pouco pela correspondência e alicerçada por muitas dores e alguma tragédia. O mais importante, nessas cartas, é o diálogo enfim encontrado entre o vulnerável escritor e uma mulher íntegra, dura consigo mesma e que conseguiu motivá-lo a escrever definitivamente seu último romance além de rever contos e republicar, projetar outros. Correspondência importantíssima na vida de HL, é a Claire Cayron que deve Harry seus últimos sucessos literários. Crítica implacável, soube Claire Cayron fazê-lo refletir sobre sua literatura com isenção e severidade. É toda uma vida que se passa a conhecer, a freqüentar com seus dramas familiares, suas dores, suas brigas, vida enfim... É outro país, outra maneira de ver as coisas, de agir. A tradutora foi no final da vida de HL, seus últimos dez anos de vida, a sua bússola, seu norte. Não que ela lhe tivesse despertado a vocação, o talento. Mas, na velhice, gasto pelos vários caminhos trilhados -- exército, pobreza, alcoolismo, perseguições devido a sua opção sexual, desilusões várias --deve-se a Claire Cayron o redespertar de HL para a literatura. É ela quem vai obrigá-lo a trabalhar mais, no sentido de refazer seus textos inéditos, eliminar textos, repensar, reestudar. Esse trabalho de direção fica flagrante nas cartas. É muito significativo o que diz CC em 05/08/1988, comentando carta anterior de HL em que este lhe dizia que achava que escrevia melhor antes, ela responde:

Talvez você julgue que escrevia com mais facilidade? Por mim, imagino que escrevia com maior paciência. O que faz falta agora: parece que quer ver o trabalho acabado antes de começá-lo... A única coisa lamentável é essa e parece-me que está simplesmente à procura de boas razões para deixar de escrever, isso é consigo. Brevemente resumido: não aceito a cantiga do pobre escritor cansado.

A severidade da tradutora não é somente com HL; ela o é consigo mesma como o mostram diversas cartas mais pessoais. Mas na leitura da ficção de HL, ela é obstinada.

Na Itália, li a última versão de A primeira bala. Perdoe minha obstinação , mas me parece que há ainda trabalho a fazer. Certos "suspenses"ganhariam se fossem deslocados mais para o final da narrativa; por exemplo, a identidade do viajante e também o término do drama. Quando você estiver aqui, colocaremos o texto e a tradução no ponto diante de meu computador.

Já em carta de 14 de setembro de 1988, quando HL está na Casa dos Escritores Estrangeiros em Saint-Nazaire, há um parágrafo de carta de Claire, que completa o que foi dito acima: Impaciente por receber suas notícias (...). Feliz de vê-lo reatar aqui com a santa paciência de escrever e talvez com a alegria de viver que me parecia ter você perdido. Com um fiel abraço. CC.

Em troca de tanto esforço e dedicação, Claire Cayron pode contar com HL que confia nela para a literatura como seu juiz. Até a ordem dos contos para publicação em coletânea lhe é submetida. Mas além dessa parte literária, há uma outra influência de Claire e esta é moral. Ela é toda caráter, seriedade, honestidade. E censura-o muito por agir às vezes da maneira brasileira de levar vantagem em tudo...Em 28 de dezembro de 1988 diz-lhe ela: A amizade não é uma transação! É um lugar de gratuidade e de liberdade. Aprecio na amizade que cada um faça o que pode não sem um grão de loucura de tempos em tempos porque se tem vontade ou necessidade. Do contrário, que prisão é a amizade!

A poeta Elizabeth Bishop, em carta à amiga Ilse Baker escreve o seguinte Tenho pena das pessoas que não conseguem escrever cartas. Mas desconfio também que eu e você, Ilse, adoramos escrever cartas porque é como trabalhar sem estar de fato trabalhando.[7]Também escrever cartas foi para Harry Laus um modo de fazer literatura. HL, em cartas a X pede-lhe o seguinte: Guarda bem minhas cartas. Talvez eu precise delas futuramente. Mesmo para o Diário de Corumbá acho que vou precisar. (...) creio que nas cartas que te escrevi pode haver referência a algum fato interessante que eu possa explorar."(Carta a X, Corumbá, 27/09/58) As cartas seriam utilizadas no livro projetado e escrito mas não editado Monólogo da provação.

É importante, pois, ver como cartas, memórias e obra editada permanecem estreitamente ligadas. Como todo escritor, ele sabe que o que escreve é uma construção literária. A indicação do futuro uso das cartas já mostra o quanto suas cartas eram um exercício literário. Como lhe disse Claire Cayron, na carta de 24/janeiro/1989, um escritor não escreve outra coisa a não ser ficção.

De modo que, no estudo destas cartas, se temos de agir com prudência e escrúpulos no uso das cartas de outros, sem autorização, as do escritor HL foram autorizadas: doadas para uma instituição pública, já tendo sofrido uma triagem de parte do próprio escritor, sendo que as cartas mais íntimas foram remetidas por HL aos seus correspondentes e as suas, algumas já usadas em obra editada, trazem várias vezes a intenção do emprego em sua ficção. Seguramente, antenado com o que se passava nas instituições, à diferença do Conde de Gobineau, as cartas íntimas de Harry Laus foram escritas para serem lidas e analisadas por outros e para serem publicadas, é a minha convicção.

 

Notas:

[1]Trabalho apresentado no painel A veiculação ética de informações privadas. 3º Encontro Nacional de Acervos Literários Brasileiros. Porto Alegre, PUC-RS, 20-22 de maio de 1997. Retorna ao texto.

[2] V. Georges Raeders. O Conde de Gobineau no Brasil. São Paulo, Paz e Terra, Coleção Leitura, 1997. Retorna ao texto.

[3] V. Janet Malcolm. A Mulher calada. São Paulo, Companhia das Letras, 1995, Trad. de Sergio Flaksman, p. 16. Retorna ao texto.

[4] O escritor Harry Laus (Tijucas, SC, 1922 - Florianópolis, 1992) foi um homem de muitas vidas: viveu, conscienciosamente a carreira de militar, aposentando-se em 1964, foi renomado crítico de artes, conhecido no Brasil inteiro por sua intensa atividade jornalística que se estendeu por trinta anos, com coluna especializada no Rio, São Paulo e várias outras cidades. E também foi escritor. Atividade que, somada à de leitor, foi a verdadeira paixão de sua vida. Seus diários (depositados no Núcleo de Documentação e Pesquisa, UFSC) são testemunhas dessas duas constantes.

Obra publicada: Os incoerentes, Ao Juiz dos Ausentes, De-como-ser, Monólogo de uma Cachorra sem Preconceitos, Bis (reedição de Os Incoerentes e Ao Juiz dos Ausentes), O Santo Mágico, Heptacronos, As horas de Zenão das Chagas, Caixa d'Aço, Sentinela do Nada, Os papéis do Coronel ,Indicador Catarinense das Artes Plásticas. Traduzidos em francês; Les Réveils de Zénon des Plaies, La Première Balle, Jandira, Les Jardins du Colonel. Retorna ao texto.

[5] Curso de Pós-Graduação em Letras, PUC-RS, Vol. 1, n. 1, 1995. Retorna ao texto.

[6] Texto do programador Luiz Carlos Nunes, a quem queremos deixar consignado aqui nossos agradecimentos por todo o auxílio, disponibilidade e simpatia. É preciso assinalar que o programa foi realizado graciosamente, por amizade, sem nenhum ônus de nossa parte ou da instituição. Retorna ao texto.

[7] In Robert Giroux. Introdução a Uma Arte. As cartas de Elizabeth Bishop. São Paulo, Companhia das Letras, 1995, p. 7. Retorna ao texto.

 


Zahidé Lupinacci Muzart - Professora do curso de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina. Pesquisadora do CNPq . Publicou, entre outros, Cartas de Cruz e Sousa, Editora Letras Contemporâneas, 1993; Cruz e Sousa, Poesia Completa, Florianópolis, Fundação Catarinense de Cultura/ Fundação Banco do Brasil, 1993. Foi fundadora da revista Travessia e sua editora de 1980 a 1993 (até o número 26).


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