A POESIA PORTUGUESA APÓS O 25 DE ABRIL


MÁRIO C. LUGARINHO

UFF (Universidade Federal Fluminense)


RESUMO:

Estudo de três exemplos da poética portuguesa em torno de 1974.

 ABSTRACT

Study of three examples of the Portuguese poetry produced around 1974.


 

Ao Gonçalo Diniz


Herdeiros de uma longa e profícua tradição poética, os poetas portugueses que se destacaram nos últimos vinte três anos, compõem, ao se tentar estabelecer linhas dominantes de produção, um mosaico fluido, para utilizar a expressão já consagrada do crítico português Fernando Pinto do Amaral [AMARAL, F. P. (1991)]. Mas o mosaico possui matizes que, se não dominantes, determinam zonas de cores. O que se almeja é verificar uma produção portuguesa recente, que se desenvolveu em torno do tempo da Revolução dos Cravos, particularmente pouco conhecida no Brasil, informando que em Portugal, hoje, há mais poetas e poesia do que Camões ou Pessoa.
Se a década anterior havia sido marcada exemplarmente pelo aparecimento polarizado de duas tendências principais, as décadas de 70, 80 e 90, tendo o 25 de Abril como marco, são uma autêntica profusão de poetas e poéticas que trazem questões frente às novas realidades que o tempo da Revolução trouxera. A Poesia 61- que avançou por sobre o conceito de discurso, impondo uma poesia centrada no significante, na palavra como artefato - e o movimento da Poesia Experimental - inspirada no concretismo brasileiro - não interferem no capítulo seguinte da poesia portuguesa na medida em que são facilmente reconhecidas como respostas a um tempo de censura e fascismo que, agora, se pretendia deixar de lado. A nova produção poética, que forma aquele já mencionado mosaico fluido, passa a não aceitar mais o conceito de escola ou movimento, uma vez que vamos encontrar a primazia do fazer poético sobre conteúdos programáticos de estéticas vanguardistas ou político-sociais. O debate será centrado, sobretudo, no lugar que a poesia ocupará no novo quadro cultural que a Democracia, a Independência das colônias e a integração na Europa unida passavam a impor.
Na década de sessenta, 1965, surgira a obra de Manuel Alegre, Praça da Canção, poeta que se destacara como um dos principais opositores da Ditadura e, após o 25 de Abril, como um político de relevância, comprometido com a reconstrução da Democracia portuguesa. Produzindo até hoje, com o recentíssimo Che, sua obra pode ser considerada a crônica poética portuguesa da História recente e revela um poeta que busca incessantemente a tradição literária, propondo-lhes uma nova leitura. Alegre passa ao largo dos debates acadêmicos e estéticos que pontuam os trinta e dois anos de sua obra.
A sua produção das décadas de oitenta e noventa revela uma incessante preocupação com o destino português frente aos desafios representados pela integração na Europa. Investe na tradição poética e histórica alegorizando-as, ao revesti-las de elementos simbólicos e referenciais do presente histórico:

Sou de uma Europa de periferia
na minha língua há o estilo manuelino
cada verso é outra geografia
aqui vai-se a Camões e é um destino.
(...)
Verás na minha língua a outra margem.
Os símbolos os ritmos os sinais.
E Europa que não mais Mestre não mais.

("Fala", Sonetos do Obscuro Quê, 1993, p. 74).

A primeira perspectiva da obra de Manuel Alegre focalizou a História da Cultura em Portugal a fim de redimensioná-la sem as interferências das tradições míticas que formularam a própria fundação da cultura e foram potencializadas pela Ditadura. Nos anos sessenta, retomar o passado histórico e literário significava o encontro com um fio perdido da História, tomada pelo fascismo. Este projeto inicial de Alegre caracterizou-se pelo embate entre mitos e História, em que cabia ao poeta redefinir as relações que o discurso histórico e o discurso sobre a História travavam com a origem e a gênese de Portugal. O poeta não abria mão da herança cultural, porque nela se encontrava a fonte para constituir um discurso suficientemente poderoso que se opusesse ao do Estado Novo. A obra de Alegre, a partir deste recurso, assumiu a sua condição de alegoria, no sentido forte de Walter Benjamin - desnaturalizava História e lhe impunha uma dialética temporal. O louvor à poesia de Camões, por exemplo, traduz a condição alegórica pretendida - Os Lusíadas são tomados como alegoria, não mais fundadora da nacionalidade como o fascismo sustentava, ma, com Alegre, é o canto da resistência cultural, é o cerne da identidade nacional, não pelo louvor ao Império, mas pelo próprio ato poético de cantar a nacionalidade, como no seguinte poema:

E cheira a Ceuta ainda. E cheira a mar.
Olhai o canto que nos chama ainda
por toda a parte. Olhai a minha vida
como rosa dos ventos conjugada
em sete mares de mágoa e de aventura.
("1", Crónica do Português Errante, Atlântico, 1981, p.53)

Esta proposição ainda pode ser notada em sua obra, em 1992, em Com que pena: vinte poemas para Camões, Alegre escreve:

Teu canto e tu são nossa singradura
Singapura Camboja e partes do Oriente
nossa cidade de Tavaí e nosso reino de Sião
naufrágio Dinamene amor ausente
caravelas partindo nas vogais
amar e mar e nunca ter senão
desterro despedida e nunca mais.

("1", Com que pena, 1992, p. 9-10).

A partir dos referenciais do discurso épico fundador, Alegre recusa o Mito como fundação da Memória e se dirige para uma outra História onde há lugar para aqueles que não participaram da demanda épica do Império Colonial. Sua obra desdobra-se, assim, para uma autêntica perspectiva lírica capaz de interrogar diretamente a História a partir de um ponto de vista subjetivo dado pela nova memória despojada dos mitos tomados pelo fascismo.
Esta perspectiva, todavia, é contrastada com a sua produção do início dos anos oitenta, Babilónia (1983), quando, diante da irreversibilidade do tempo e da História, a realidade portuguesa, após a euforia revolucionária, apontava para o desencanto e para o fim das utopias.

Eu quero ouvir agora o grande canto subterrâneo dos comboios eléctricos por dentro das palavras
a multidão descendo à pressa os corredores da alma
o saxofone lancinante na estação do Metro
Caminhámos tanto para chegar a esta
desolada paisagem interior
("1", "Babilônia", Babilónia, 1983, p. 9-10).

O fim das utopias marca, na obra de Alegre, um abandono do traço épico e um investimento na capacidade lírica do poema, assim, o lugar da utopia é deslocado para o poema. Se o canto em desconcerto atrai para si as imagens do cotidiano europeu:

Este é o século e Babilónia vai contigo.
Ouves? É o canto da grande dispersão.
Os anjos sentam-se nos degraus das estátuas
e fumam lentamente o cigarro do não.
("4"," O sermão da montanha", Babilónia, p. 65),

há o reinvestimento na Poesia, muitas vezes de maneira metapoética, que marcará sua obra até as últimas publicações. O poeta e sua função são questionados. Sem a utopia que a História conjugada de maneira poética oferecia cabe a ele voltar-se para o próprio poema:

(...)
Subirás ao monte e verás a Terra
Mas não a palavra prometida
Talvez no último oásis
o poema.
("4", "O reino e a rosa", Babilónia, p 73).

Manuel Alegre aproximava-se, assim, da linha dominante da produção poética portuguesa dos anos oitenta e dos primeiros anos da década de noventa, um discurso em que a presença do desencanto e da melancolia foram uma constante [cf. BARRENTO, João (1995) p.157-67].
As experimentações da vanguarda dos anos sessenta levaram as poéticas subseqüentes a buscarem definir o seu próprio papel no contexto literário. O investimento no poético, e até no metapoético, foi característica da poesia dos anos que se seguiram ao fim do fascismo. Outro poeta, Nuno Júdice, escritor, crítico literário e professor de Literatura, em 1972, quando da publicação de seu primeiro livro, A noção do poema, busca a compreensão do fazer poético, recuperando uma discursividade perdida pela poesia da década anterior. Lançando mão, muitas vezes, de procedimentos narrativos no interior do poema, Júdice tem como proposta poética investigar profundamente uma linguagem que se constitui a partir da escrita e da leitura: o poeta é leitor no mais forte sentido proposto por Barthes em S/Z, jogar sistematicamente com a digressão, (forma mal assimilada pelo discurso do saber) na escrita do próprio comentário, e deste modo observar a reversibilidade das estruturas de que o texto é tecido [BARTHES, Roland (1980) p.18]:

Experimento intensamente o prazer da literatura
neste fim de tarde, com um livro de poemas aberto no índice
e a luz do quintal a incidir no chão. é um índice
de primeiros versos, e ao lê-lo é um outro poema que se forma,
uma única e longa estrofe que a paginação precisamente numera, verso a verso. Nem me dou conta de certos saltos absurdos
fazendo supor versos desaparecidos, riscados pelo poeta,
ou simplesmente perdidos no correr dos anos. uma pausa
faz-me imaginar, por outro lado, que cheguei a um possível
fim de poema: mas logo retomo a leitura, já no início, e as primeiras palavras ferem-me o ouvido...
(...) Enredado em labirintos.
Onde vejo que
a verdade, afinal, é que a janela estava fechada,
era noite, chovia - e todo esse tempo enquanto eu,
com um livro aberto à frente, escrevia um poema
.
("Actos de circulação", Partilha de mitos, 1982, Obra poética, p.246).

Reconhecer-se nesta condição de leitor é uma atitude permanente de sua obra. Em inúmeros poemas, Júdice põe em evidência as formas de produção poética, fazendo do próprio poema o seu objeto privilegiado:

(...) Vagueio como uma sombra sem memória
entre as recordações e as relíquias, eu próprio sou parte de um outro
tempo, e de outra gente, crepúsculo sem noite nos lugares abandonados
do pensamento. Venho então para o litoral do poema, debruço-me atento
para o movimento inútil das palavras sobre as palavras. Durmo na perpétua
imobilidade do poema, nos recantos esquecidos de uma praia inacessível,
litoral eterno de viajantes sem navio. E o poema é essa casa
abandonada, o rosto belíssimo de imagens mortas.
("Os corredores do poema", A noção do poema, 1972, Obra poética, p.43-4),

ou, ainda:

Eu pensava que escrever era uma escolha rigorosa de temas determinados,
E mais - que a progressão no poema, sem confundir um tema e outro,
Pelo contrário iria estabelecer uma rigorosa separação. Entre,
Por um lado, o interior dos sons, e por outro o rebordo
exterior do sentido, evoluindo este último segundo os efeitos próprios dos sons
em cada diversa sensibilidade.
Assim estabelecidas, as múltiplas zonas "poéticas" eu poderia designar
O que está escrito, e assim mesmo irá ficar,
Como um estudo de poética - ou "arte do poema".
("Arte do poema",Pavão Sonoro, 1972,Obra poética, p.61)

Júdice, assim, investe na composição de uma arte poética permanente, estabelecendo com o seu leitor um jogo constante em que fosse verificado no próprio poema construído a poética que enuncia. Sua produção mais recente, no entanto, já traz uma outra postura em que a poética se traduz numa sensibilidade física. O poema, decididamente, se constrói a partir de um universo referencial e se escreve a partir de quadros cotidianos que propiciam uma profunda reflexão a respeito da condição do poeta como sujeito:

De manhã, apanho as ervas do quintal. A terra,
Ainda fresca, sai com as raízes , e mistura-se com
A névoa da madrugada. O mundo, então,
fica ao contrário: o céu, que não vejo, está
por baixo a terra; e as raízes, sobem
numa direcção invisível. De dentro
de casa, porém, um cheiro a café chama
por mim: como se alguém me dissesse
que é preciso acordar, uma segunda vez, para que as raízes cresçam por dentro da
terra e a névoa, dissipando-se, deixe ver o azul.
("A ordem do mundo", Meditação sobre ruínas, 1995, p.105).

O poema passa a ser instrumento de visualização do mundo, acesso possível para a interrupção do cotidiano através de um caleidoscópio verbal que sua obra celebra. O poema promove novos ângulos, rompendo decisivamente com os mecanismos automatizados do cotidiano. Em Meditação sobre ruínas escreverá:

(...)
Estou no outono, a meio de uma ponte
Cujo arco, incompleto, oculta um centro
Submerso pelas águas que correm sem
Que eu saiba para onde. Da ponte
Não se vê o horizonte; e, a meio da ponte,
o ruído das águas impede que se ouça
o vento, os pássaros, e as vozes que indicam
qual dos lados fica a saída.
("Carta de orientação", Meditação sobre ruínas, p. 106).

Desautomatizar este cotidiano é a perspectiva fundamental desta poesia que se escreve ao insurgir contra uma apropriação do mesmo por sobre o Outro. O sujeito poético que se funda na obra de Júdice resiste a esta apropriação procurando encontrar meios capazes de, através de seu olhar/escrita, indicarem novas alternativas à submissão a uma ordem, dita natural, de coisas. O poético é o estranhamento necessário a fim de que sejam atravessados os automatismos do cotidiano. Ir além das aparências, ir além das ordem natural, ir além daquilo que o olhar apresenta:

Não me sentei em nenhuma mesa da confeitaria
Colombo, num dia de janeiro em que o calor
subia do alcatrão para o céu, e o céu lhe retribuía
com mais calor. mas ao entrar na confeitaria
Colombo, e encostar-se ao balcão de mármore
que me punha no centro de um universo provisório
de cúpulas e de vitrais, eu aprendia de que forma
se constrói o mundo - a partir de que transparência,
e sobre que pedra.
("Imagem brasileira", A fonte da vida, 1997, p.134-5).

Esse ir além é, também, característica marcante na obra do poeta e artista plástico Al Berto, recentemente falecido, e que iniciou a publicação de sua poesia em 1974, depois de longo exílio. O poeta investiu diretamente numa obra que encontrava raízes para além daquelas convencionadas pela tradição poética portuguesa. Levou inicialmente a Portugal uma certa escrita beatnick, eivada de paisagens lisérgicas e comportamentos que o cotidiano mesquinho do Estado fascista elidira. A partir dessas paisagens e dos comportamentos urbanos sua obra traz à baila, em alguns momentos, um outro cotidiano que o poeta, também, buscava desautomatizar, revelando uma outra vida por trás das aparências visíveis. É o que revela neste poema a propósito do quadro de Kandinsky,

"Com o arco negro":
muito antes de ter adoptado formas
rigorosamente geométricas (para fugir à anarquia)
pintei este arco negro ligando duas zonas
da mesma paisagem: ponte escura
por onde - tu que olhas - podes passar
ao encontro da intensa chama das manhãs
e do outro lado do arco onde o vento e a árvore
se perdem na euforia de suas próprias cores
- escondido atrás da tela - vejo-te
cada vez mais próximo como se avançasses
pela desintegração do átomo ou pelo deslumbramento
dos lumes te acercasses de mim: o olhar envolto
na tela harmoniosa de colorida música

("Kandinsky escondido atrás da tela", A secreta vida das imagens, 1985, O medo, p. 427).

Al Berto, neste livro, problematiza as relações entre a poesia e as outras artes, discutindo o lugar daquela frente a estas. A pintura é privilegiada por ser a mais próxima possível do poema. O quadro, em A secreta vida das imagens, é pensado como poema, e o poeta investiga discute redimensiona sua própria condição de sujeito e artista. Mas, se por um lado, o poeta elege a pintura como o lugar onde a poesia pode manifestar a sua transgressão do ato de olhar, já que quem olha é, claramente, o pintor por detrás do quadro, e o poema tem o lugar do sujeito poético tomado pelo pintor, por outro lado, Al Berto será o poeta dos desejos incontidos, dos frêmitos de uma paixão inconfessável, do amor transgressor e do prazer proibido. Este lado de sua produção poética alimenta o veio pouco explorado da poesia portuguesa que Fernando Pessoa, através do heterônimo Álvaro de Campos, e Mário de Sá-Carneiro inauguraram. Sua obra não possui limites para esta paixão, elege o inusitado e o inexplorado, afastando-se e recusando diretamente a vida cotidiana, como se vê no seguinte fragmento do longo poema em prosa intitulado "Equinócios de Tangerina":

um vapor lilás imenso e transparente
as paisagens sucedem-se semelhantes às que já conheço desde a infância. o ácido voo é translúcido e mole, afia a memória, vai a lugares insuspeitos, atinge remotas camadas do corpo e do pensamentos. no início Tangerina é uma flor branca, nasce do corpo e nele se alimenta e envenena. nele vive e cresce lentamente, transborda, sufoca e morre. morre.
alguém loiro, esbelto, come um bife apimentado. colarinho mole, usado, pescoço liso, sem fios de ouro nem pedrarias. dedos esguios, serenos gestos delicados, quase esquecidos porque ninguém os olha. é Nervokid, é Tangerina ou Nému, perdendo-se na sombra do restaurante. (...)
às vezes, escrevo coisas assim, unicamente para ter o prazer de me reler. saborear o que sobejou da noite, duma realidade qualquer, talvez para avaliar o meu próprio lixo e amar-me um pouco mais.
("primeiro equinócio", À procura do vento num jardim de agosto, 1974, O medo, p.13-4).

O sujeito poético faz-se andrógino, até hermafrodita, em alguns momentos. Tangerina é dotada de diversos órgãos sexuais, a identidade sexual se problematiza e, assim, abre espaço para uma poesia que tem como um dos fulcros o erotismo em suas possibilidades menos convencionais na poesia portuguesa. Neste aspecto encontra-se uma linha não declarada que liga Al Berto à obra esquecida de António Botto. Contudo, a lírica homoerótica de Al Berto não encontraria par senão nos escritos de Genet, Guinsburg ou Kerouac. Se, ao princípio, foi necessária a criação de um outro para falar deste mesmo, como se pode perceber no poema acima, Al Berto, no decorrer de sua obra, foi deixando esta fala crescer até vir a tomar conta de um lugar específico na produção poética portuguesa. Esta produção homoerótica, muito elogiada, apesar de pouco comentada, institui um discurso capaz de fazer frente a uma tradição da lírica amorosa convencional, sob este aspecto, sua obra ganha contornos heróicos numa sociedade em que a alteridade é convencionada como estigma:

Ao acaso encontrei-te encostado a uma esquina
Olhar vazio varrendo a multidão, parei
Sorri e tu vieste, fomos andando
Os ombros tocavam-se, em direcção a casa
(...)
sorri ao enumerar os restos que a manhã encontraria pelo chão
manchas de esperma, ténis esburacados, calças sujíssimas, blusão
cheio de autocolantes, peúgas encortiçadas pelo suor
as cuecas rotas, sujas de merda
e tuas mãos, recordo-me
sobretudo de tuas mãos imensas sobre o peito
teu corpo nu, à beira da cama, em sossegado sono
("Truque do meu amigo da rua", Dispersos de mil fontes, 1979, O medo, p. 175).

O cotidiano que a vivência de sua homossexualidade atravessa impõe práticas que são ocultadas pela vida da superfície social. Sua poesia vai ao encontro de uma experimentação profunda da marginalidade, o sujeito poético se expressa através de elementos repugnantes à prática sexual asséptica burguesa, sua experimentação vem das ruas, das praças, dos becos e do cais., de sua obra emerge uma Lisboa não manifesta, uma Lisboa noturna, silenciosa e desconhecida, já antevista em Cesário Verde e Álvaro de Campos, mas jamais aprofundada como nesta crônica do cotidiano:

(...)
E a cidade crescia noite adiante sob a tempestade
Os passos ecoavam apressados pelo cais
- Como te chamas? perguntou
mas o rapaz não respondeu... e nada em redor
tremeluzia
o homem levantou-se
indiferente à revelação da alba titubeou tossiu
apoiado no magro ombro do rapaz
desapareceram pelas ruas estreitas do mar
entre redes cordas quilhas e remos
onde se embarca para o medo esquecido de mais um dia
("Retrato de um amigo enquanto bebe", Alguns poemas da rua do Forte, 1983, O medo, p. 243)

Neste cotidiano instala-se uma fala capaz de relativizar os centros, relativizar o estabelecido e instituir a transgressão. Afinal, à margem se escreve uma obra plena da dor de uma existência, ampliada pelo gozo interditado. Poesia, escrita suplementar, fazendo-se parte e todo de uma angústia, a obra de Al Berto traz à cena literária portuguesa o "ex-cêntrico" pós-moderno, como quer Linda Hutcheon [HUTCHEON, L. (1992) p. 88 e ss.], ao problematizar um discurso que se pretendia homogêneo no que tange às formas convencionais de polarização entre masculino e feminino. Se no princípio de sua obra havia o discurso andrógino de Tangerina, sem dúvida, desta androginia, também problematizante, haverá a derivação homoerótica de sua poesia na virada da década de setenta para oitenta. Neste discurso o privilégio dado às imagens lisérgicas cede lugar àquelas paisagens urbanas do bas-fond, o poeta está na rua, mas numa rua diversa da rua de Manuel Alegre ou de Júdice: se antes, em Alegre, encontrava-se a Praça como lugar de canto e poesia, lugar de agrupamento, de encontro do poeta com o povo, e, depois, em Júdice, estes espaços urbanos são o lugar do tédio cotidiano que o olhar do poeta desautomatiza ao nomeá-lo, agora em Al Berto os espaços urbanos tornam-se lugar de exposição de corpos conferindo à cidade um novo estatuto para além do convencionado:

o lugar do encontro e da vivência e superação da angústia dos desejos não realizados:
a memória está perfumada de violetas
desprende-se dos pulsos escorre pela cal dos corredores
persigo-me pela madrugada suja das palavras
com o pressentimento de ter morrido longe de meu corpo
encosto-me às esquinas disponíveis da cidade
amachuco a vida dos sóis que te evocam
oferecendo a espuma da boca a todos os desconhecidos
("Persiana de água", Alguns poemas da rua do Forte, 1983, O medo, p.243).

As características heterogêneas de cada poeta cuja obra se desenvolve ao redor do 25 de Abril apontam, necessariamente, para a discussão da poética da pós-modernidade, certamente tais discursos são possíveis a partir do momento em que Portugal foi se afastando do seu passado de centro e se foi integrando a uma nova realidade que o tornava periferia, que o fazia se perceber como uma sociedade plural, de diversos matizes em que convivem europeus, asiáticos e africanos, brancos, amarelos e negros, homens, mulheres, homossexuais, cristãos, judeus, hindus e muçulmanos. A transição da ditadura à democracia, a nova realidade da integração européia, desautorizando os velhos discursos imperiais, relativizaram os estatutos de uma poesia que se alimentava continuamente de uma tradição tão larga quanto canônica (desde Camões a Pessoa), aprisionada no velho labirinto da saudade. Certamente, esta relativização aponta para uma auto-superação, para o encontro de novos rumos e para o estabelecimento de uma outra perspectiva que aponte ex-centricamente para diversas direções, para além de movimentos homogeneizantes das ditaduras dos programas, escolas e estilos. Alegre, Júdice e Al Berto, díspares entre si, são meras escritas de vários centros para as diversas margens.


Bibliografia:


ALEGRE, Manuel. Babilónia. 2ª ed. Lisboa: O Jornal, 1986.
------. Com que pena: vinte poemas para Camões. Lisboa: Dom Quixote, 1992.
------. Sonetos do obscuro quê. Lisboa: Dom Quixote, 1993.
AMARAL, Fernando Pinto do. O mosaico fluido: modernidade e pós-modernidade na poesia portuguesa mais recente. Lisboa: Assírio&Alvim, 1991.
BARRENTO, João. "O astro baço: a poesia portuguesa sob o signo de Saturno". in: REVISTA COLÓQUI/LETRAS, 135/136 (1995) 157:67.
BARTHES, Roland. S/Z. Lisboa, Edições 70: 1980.
BERTO, Al. O medo: trabalho poético 1974-1990. Lisboa: Contexto/Círculo de Leitores, 1991.
HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria e ficção. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
JÚDICE, Nuno. A fonte da vida. Lisboa: Quetzal, 1997.
------. Meditação sobre ruínas. 2ª ed. Lisboa: Quetzal, 1996.
------. O movimento do mundo. Lisboa: Quetzal, 1996.
------. O processo poético. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1992.
------. Obra poética 1972-1985. Lisboa: Quetzal, 1991.
LUGARINHO, Mário C. Ortografia da História: mito, memória e utopia na obra poética de Manuel Alegre (tese de doutorado). Rio de Janeiro: Puc/Departamento de Letras, 1997.


MÁRIO C. LUGARINHO é professor adjunto na Universidade Federal Fluminense, Niterói/RJ, onde ensina Literatura Portuguesa e Literaturas Africanas de Língua Portuguesa


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