CONFIGURAÇÕES DO SUJEITO FEMININO NA FICÇÃO

MODERNA

 

Vera Queiroz

Universidade Federal Fluminense


RESUMO:

Discussão de tópicos da crítica feminista das representações a partir da crítica feita por Andreas Huyssen sobre o estatuto autoral, a questão da representação em romances do séc. XIX e a emergência do feminismo em sua relação com a cultura de massas.

 

ABSTRACT:

Discussion about some questions regarding the feminist criticism's representations focusing on A. Huyssen's thematization of problems related to the authorial character, the representation in 19th century novels and the uprising of feminism connected with mass culture.

 


Abordando o modo como o século XIX efetuou a exclusão da mulher do reino da grande arte, Andreas Huyssen inicia o ensaio Mass culture as woman: modernism's other com uma discussão a respeito da relação entre o tipo de romances que a personagem Emma Bovary lia e as leituras feitas pelo próprio Flaubert durante o período de sua formação no Colégio de Rouen, que incluíam igualmente os romances românticos. Huyssen cita um trecho de Mme. Bovary, onde Flaubert descreve, de modo irônico, o tipo de literatura preferido de sua personagem: romances-folhetim lacrimejantes e centrados em peripécias amorosas. O encaminhamento da questão proposto a seguir pelo ensaísta é feito nos seguintes termos: Evidentemente, é bem conhecido que o próprio Flaubert foi capturado pela mania dos romances românticos durante seus dias de estudante no Colégio de Rouen, e as leituras de Emma Bovary no convento têm de ser compreendidas contra esse pano de fundo da história da vida de Flaubert -- um ponto que os críticos raramente mencionam. Entretanto, há amplas razões para se perguntar se o adolescente Flaubert lia esses romances do mesmo modo que Emma o teria feito, se houvesse realmente existido -- ou, quanto a essa questão, como mulheres reais daquele tempo os liam. (HUYSSEN,1987:44).

O que nos propõe Huyssen aqui não é apenas uma aproximação original quanto à relação entre autor/obra/personagem, mas uma leitura crítica do modernismo [1] numa perspectiva firmemente gendrada, a partir da qual se desenvolve o tema específico por ele recortado: a exclusão da cultura de massas (associada à mulher) do reino da grande arte e da cultura autêntica (prerrogativa dos homens) foi efetuada em homologia com a exclusão da mulher da sociedade industrial burguesa emergente. Nesse sentido, Huyssen observa que na época do socialismo nascente e dos primeiros grandes movimentos de mulheres na Europa, as massas batendo no portão eram tam-bém mulheres, batendo no portão de uma cultura dominante masculina. (HUYSSEN, 1987: 47).

Daí a problematização do dictum flaubertiano -- Madame Bovary c'est moi --, no qual aprendemos a reconhecer uma certa grandeza no gesto de entrega do autor à profunda cumplicidade com seu personagem, tanto mais inequívoca porquanto formulada por um escritor cuja impassibilidade e rigor formais a tradição crítica tem reconhecido como traços que constituem sua alta literatura. A questão é que Flaubert não era Mme. Bovary e esse dado faz toda a diferença para uma crítica na perspectiva feminista, como se coloca a de Huyssen aqui, e um de seus argumentos a respeito das inscrições de gênero no debate sobre a cultura de massas é que a mulher (Madame Bovary) é situada como leitora de uma literatura inferior -- subjetiva, emocional e passiva enquanto o homem (Flaubert) emerge como escritor da genuína, autêntica literatura -- objetivo, irônico e no controle de seus meios estéticos. (HUYSSEN, 1987: 46). O mito da impassibilidade de estilo do autor contrasta com a confidência de uma cumplicidade que a realidade dos fatos na série literária e na série social nega. Exatamente porque não era Mme. Bovary é que Flaubert pôde distanciar-se com relação à subjetividade feminina para criar sua personagem, e igualmente porque não era Mme. Bovary pôde utilizar sua bagagem de leituras românticas, feitas na adolescência, e ironizar sobre elas quando experienciadas por sua protagonista. Se o pronome de terceira pessoa empregado por Flaubert em seu romance serviu-lhe de álibi para sua defesa (ao tomar o distanciamento que o caracteriza como prova de que não fora ele, autor, quem infringira a moral da época, mas a personagem do romance), a primeira pessoa do dictum comporta uma série de outras questões, relativas ao estatuto do sujeito, da subjetividade e do gênero, problematizando a função do pronome 'eu' como dêitico de pessoa [2] ; a função autoral e sua relação com o mundo ficcional; a representação literária e o estatuto das personagens em sua relação com as imagens de mulher que as obras, sobretudo as do realismo clássico, configuram; a construção de imagens de subjetividade e de identidade com marcas específicas de gênero. Esses são temas vitais para a crítica feminista e tanto Catherine Belsey, na perspectiva do realismo, quanto Linda Hutcheon [3], na da pós-modernidade, já analisaram o estatuto dos papéis conferidos aos sujeitos ficcionais femininos. Situando o modo como o sujeito ficcional é engendrado na literatura do humanismo liberal, Belsey observa que a forma do texto realista clássico atua em conjugação com a teoria da expressividade e com a ideologia, interpelando o leitor como sujeito. O leitor é convidado a apreender e a avaliar a 'verdade' do texto, a interpretação coerente, não-contraditória do mundo como ele é apreendido por um autor cuja autonomia é a origem e a prova da verdade da interpretação. (BELSEY, 1982: 75).

É talvez essa autonomia e essa completude que comprometem a frase-confissão flaubertiana, na medida em que a posição de sujeito que ocupa -- seja como autor, no espaço das trocas sociais, seja, por outro lado, como o narrador privilegiado do romance, no espaço da ficção que cria -- é incompatível com a posição de sujeito passível de ser ocupada pela imagem de mulher que Emma Bovary representa.

O estatuto do sujeito que a estética modernista [4] subscreve está comprometido, fundamentalmente, com a noção de racionalidade e com o espírito emancipatório advindos do Iluminismo. A defesa de tal concepção passa a interessar a uma determinada vertente da crítica feminista (anglo-americana, sobretudo) na medida em que ela reconhece no feminismo um componente essencialmente emancipatório com relação ao sujeito mulher, definido por suas práticas sociais, por seus modos de representar-se e de ser representado nas diversas formas de expressão culturais, pelas marcas de gênero que caracterizam as diferentes funções atribuídas aos indivíduos do sexo masculino e feminino. Se, por um lado, a questão da representação na obra literária não pode ser confundida com a expressão de uma identidade real do/a autor/a, a partir da qual se julgam os preconceitos que regeriam de- terminada construção de personagem feminino, por outro lado, o romance realista do século XIX está carregado de várias historicidades: a historicidade da forma (ele situa-se como 'modelo' de uma determinada escrita); a historicidade dos conteúdos de mudança social (ele emerge como expressão da nascente sociedade industrial burguesa); a historicidade do gênero (ele inaugura aquilo que se compreende hoje como o romance moderno); a historicidade das relações entre representação e mundo representado (toda uma discussão posterior a respeito da idéia de mimesis repousa sobre essa relação). O que a crítica feminista vai acrescentar a essas historicidades múltiplas e heterogêneas é ainda outra historicidade: a da relação entre o surgimento do romance moderno e o estatuto da identidade e da subjetividade da mulher, cuja interação começa agora a ser mapeada. Nesse sentido, a primeira observação a ser feita diz respeito ao fato de que o romance surge tendo como público privilegiado a leitora mulher; a segunda, diz respeito à função da arte como um dos elementos da cultura aptos a contribuir para a organização das subjetividades e das identidades tanto de homens, quanto de mulheres [5]. Do novo mundo burguês que surgia, promovendo a emancipação e a independência do indivíduo com relação às formas de sujeição social, no entanto, as mulheres estavam excluídas, porque estavam excluídas naturalmente -- isto é, por sua própria natureza -- do universo da razão, reduto privilegiado do sexo masculino. Cora Kaplan, analisando (a partir de uma perspectiva socialista) o modo como os temas da subjetividade, da classe e da sexualidade aparecem na obra da escritora e feminista do final do século XVIII, Mary Wollstonecraft, observa como Rousseau, um dos mais proeminentes filósofos do humanismo das Luzes, cujas idéias foram assimiladas pelas primeiras feministas, aborda a questão da educação e da formação dos futuros cidadãos, homens e mulheres, no Émile (1762), obra que "descreve o crescimento e a educação do novo homem, progressista e burguês, capaz de exercer as liberdades republicanas de uma sociedade reformada". (KAPLAN, 1990: 155). No trecho citado por Kaplan [6] , do livro V, Rousseau adverte que as mulheres necessitam ser sujeitadas toda sua vida, sob a restrição mais constante e severa que é aquela do decoro; faz-se também necessário acostumálas desde cedo a tal confinamento que ao final ele não lhes custe excessivamente... devemos ensiná-las acima de tudo a manter um controle rigoroso sobre si mesmas. (KAPLAN, 1990: 155-156).

Em face de tais limites, Kaplan observa um dos modos possíveis de a mulher lidar com a contradição expressa por uma sociedade que punha na racionalidade do sujeito uma das condições de sua emancipação e de seu progresso, ao mesmo tempo que expunha, através da representação romanesca, a intrínseca natureza corruptiva e desregrada da mulher, quando deixada à mercê de si e de seus impulsos naturais (leiam-se impulsos ligados ao exacerbamento das paixões, dos sentidos): no caso de Wollstonecraft, para defender as mulheres quanto à não-razão que Rousseau lhes confere, bem como no intuito de subverter a força fatídica "da descrição rousseauniana da sexualidade infantil inata da mulher (KAPLAN, 1990: 157) ela, contraditoriamente, reafirma o aspecto sexual de suas constituições, mas para professar a crença em que a natureza pode ser domada pelas constrições sociais, pelo uso das regras da boa racionalidade, instrumento para o domínio das paixões. Daí a crítica feita por Wollstonecraft ao excessivo consumo das novelas sentimentais feito pelas mulheres que, ao invés de reforçar a prática do controle das emoções, induziam as mentes femininas às evocações eróticas. Nesse sentido, observa Kaplan, embora Wollstonecraft acrescente que ela prefere que as mulheres leiam romances a não lerem nada, ela situa uma interação particularmente sexualizada e gendrada entre as mulheres e o texto imaginativo narrativo, de tal modo que as mulheres tornam-se, em última instância, leitoras receptivas facilmente movidas para a atividade imoral pela representação ficcional da intriga sexual. (KAPLAN, 1990:159).

Particularmente sexualizada e gendrada porque a relação instrumental estabelecida entre os discursos das narrativas ficcionais (de ordem artístico-cul- tural) e das narrativas político-ético-sociais (da ordem do aprimoramento moral do novo homem, requerido pela nova sociedade) visava particularmente ao controle da imaginação das mulheres e de seus valores morais, ambos vigendo em estreita dependência. Se os discursos emancipatórios podiam ser proclamados com orgulho pelo homem da razão, à mulher, estando-lhe interditada a esfera pública em que tal domínio efetivava-se, convinha o desenvolvimento de uma outra moralidade, alimentada no espaço físico da casa, das relações privadas na família e dos valores inerentes às suas funções nessas esferas. O romance folhetim oferecia-lhe uma porta de saída, através da imaginação (criadora e receptora), para o impasse entre a emancipação e a liberdade (na esfera pública) e as restrições impostas pelos papéis (na esfera privada), ao mesmo tempo em que educava e formava as subjetividades femininas em consonância com os valores morais então requeridos para ela [7] : punir severamente as heroínas, infratoras dos padrões de conduta prescritos às mulheres, podia ser um dos artifícios dessa pedagogia. Essa também poderia ser uma das razões por que o dictum flaubertiano não passaria de uma frase de espírito, de cunho levemente cínico (mais que irônico, talvez), de um ponto de vista feminista -- pois o livro de Flaubert não foi censurado por causa de sua suposta imoralidade para a época, mas precisamente porque tal imoralidade consistia em abrir para a sua personagem feminina (e, na perspectiva de então, para a sua leitora) as portas de uma imaginação lasciva e adúltera [8]. Uma das razões por que a visada crítica feminista sobre os universos da representação literária na época moderna tematiza necessariamente a questão do sujeito e da subjetividade está ligada ao fato de que tais temas constituem um dos fundamentos dessa estética -- e de uma determinada ética. Igualmente, uma das razões pelas quais essa mesma visada crítica aparece, contemporaneamente, como um projeto marcadamente ambivalente, entre inovador para os estudos literários, por seu aporte de gênero e, de certo modo, déjà vu, reside nessa nova aproximação feita às obras da literatura moderna: quando toda uma tradição crítica já formulou um cânone oficial de leituras de tais obras, a crítica feminista volta a elas (e isso significa retomar um longo, estabelecido e estabilizado acervo de obras e de críticas a elas) para freqüentemente apenas lembrar: mas não esqueceram alguma coisa em toda essa história, não?. Essa alguma coisa, o estatuto do gênero, seja na concepção dos personagens, seja nas leituras e comentários da tradição crítica masculina, nem funda um método, nem faz tabula rasa dessa tradição -- ela a rasura, a lê de viés, desarranja o concertado. Isso é pouco, irrelevante, até, para uns. Isso é muito, fundamental mesmo, para outras.

Se o acervo de obras modernas (românticas e realistas) fornece à crítica feminista um largo campo para explorar as relações entre os modos de representação da subjetividade e do sujeito, isso se dá porque um dos vetores que regulam a economia de tais obras é a centralidade conferida aos sujeitos -- das classes sociais, dos conflitos sentimentais, das relações familiares -- em consonância com as discussões sobre os atributos do novo sujeito, exigido então pela sociedade que emergia. Pontuar o aspecto também gendrado presente em tais relações é o enfoque original proposto pela crítica feminista e sua contribuição aos estudos literários nesse âmbito se mostra indiscutível. A questão fica mais complicada quando se trata de compatibilizar a necessidade de resgate de um sujeito feminino, em sua relação com um sujeito mulher, com a vertente pós-moderna da crítica, que coloca em xeque a concepção mesma de um sujeito, considerando-o nesse caso um efeito de discurso, produzido em linguagem, mais do que uma enteléquia.

Se mapearmos os modos como as diversas linhas críticas feministas têm abordado o tema, é possível observar que, em termos amplos e sem implicações de excludência, a questão do sujeito, vinculado ao tema da subjetividade, desenvolve-se no campo da crítica feminista francesa subordinado aos postulados do modelo psicanalítico com que trabalham suas mais fecundas representantes; à perspectiva desconstrutivista em que tais teóricas se inscrevem; à ênfase no aspecto repressivo da linguagem, enquanto tal um constructo das sociedades falologocêntricas; à crença numa linguagem feminina subversiva per se, associada às obras dos escritores de vanguarda e a uma certa jouissance, marca textual de diferença e em diferença. Por outro lado, o tema do gênero tem sido mais sistematicamente discutido pelas teóricas feministas anglo-americanas, preocupadas com o aspecto repressivo a que as sociedades patriarcais têm submetido tanto a experiência, quanto a expressão da mulher, observando tais experiências e expressões como integrantes de um contexto de produção e de recepção culturais, de ordem sociopolítica e ideológica, de que fazem parte igualmente as diferenças entre classes e raças, bem como aquelas entre comunidades heterogêneas de mulheres, unidas por interesses específicos e/ou que se distinguem intergrupos. Essas duas vertentes [9] são enfocadas tanto a partir de categorias epistemológicas advindas das diversas disciplinas das ciências humanas, quanto dos conhecimentos ligados a estratégias de ações, mantendo em comum o projeto de uma crítica que tem por objetivo, no seu sentido amplo, dar visibilidade ao universo cultural e psíquico da mulher. A partir do reconhecimento de uma força afirmativa para os elementos da cultura em que ela possa estar inscrita (seja como produtora, seja como receptora, seja como significante imagético/textual), a crítica feminista percorre os campos da vida, do trabalho e da linguagem -- para Foucault, os elementos a partir de cuja representação, imprimida aos mundos da biologia, da economia e da filologia, o homem da época moderna inaugura as ciências humanas -- ativando as marcas de gênero que, não explicitadas, encontram-se, entretanto, neles disseminadas.

Do ponto de vista da estética pós-moderna, a via emancipatória da crítica feminista seria um campo minado por contradições e, mesmo, nela residiriam as grandes aporias de seu projeto. As razões para isso não são difíceis de identificar: nascido de um impulso liberatório tardio, no sentido da busca de uma igualdade social que o capitalismo (e sua versão liberal) deixou de garantir também ao homem trabalhador; contrapondo-se a culturas patriarcais que não estigmatizam apenas a mulher, enquanto elemento mais frágil no jogo de correlação das forças políticas e econômicas (grupais, institucionais), mas igualmente outros grupos ditos minoritários (não porque sejam numericamente inferiores, mas porque constituem grupos com características não hegemônicas com relação ao conjunto amplo dos valores que regem as práticas e trocas sociais); trabalhando teórica e criticamente no seio de concepções contemporâneas que privilegiam o descentramento do sujeito, da razão, da verdade, da origem, em favor de múltiplos e móveis pontos de referência a partir dos quais sujeito e objeto são ambos constitutivos e constituintes do saber em que estão implicados, a crítica feminista, daquele ponto de vista, só pode ser compreendida como um projeto necessariamente contraditório, na medida em que busca incorporar os objetivos emancipatórios de cunho iluminista -- que não funcionam isolados dos corolários relativos à fé num sujeito (male) dotado da racionalidade, à crença numa verdade somente facultada pela ciência, com sua conseqüente superioridade em relação à ordem da natureza -- e, ao mesmo tempo, procura fortalecer-se, como movimento social, no seio das micropolíticas de saber e de poder, sustentando um caráter intervencionista e uma tática de guerrilha para conquistar espaços, tanto nas instituições acadêmicas, que conservam e divulgam o conhecimento acumulado pela tradição, quanto naquelas que formulam políticas culturais formadoras de opinião, veiculadas sobretudo pela mídia. Talvez não seja o caso de lamentar, com Baudrillard, a estranha e feroz cumplicidade do movimento feminista com a ordem da verdade ao intentar apagar de uma só vez o imenso privilégio do feminino de nunca ter tido acesso à verdade, ao sentido, e de ter permanecido senhor absoluto do reino das aparências (BAUDRILLARD, 1991:13), mas de observar que ela (a verdade e seus conceitos correlatos, derivados do idealismo iluminista) permanece como um depósito, como resíduo (utópico) no movimento reivindicatório geral que alimenta os vários feminismos -- que isso não se dê sem contradições constitui um dos sustentáculos de sua força e de sua dinâmica.

Os argumentos utilizados para vincular o(s) sujeito(s) do(s) feminismo(s) às vertentes do pensamento de extração moderna ou, ao contrário, àquelas oriundas da pós-modernidade, oferecem um ponto de consenso no seio de suas divergências intrínsecas: ambas postulam para si um caráter de utilidade com relação às estratégias mais adequadas ao projeto de questionamento das amplas esferas da cultura empreendido pela crítica feminista, ou seja, a questão comum -- questão que pertence, sobretudo, à esfera de uma ética utilitária -- seria a de saber se é mais eficaz abrigar-se sob a égide de uma modernidade que se legitima sob valores emancipatórios entretanto negados às mulheres, ou sob a multiplicidade e a heterogeneidade dos valores pós-modernos, em que os discursos das representações de grupos, de raças e de classes buscam situar-se ocupando as margens, desestabilizando os centros hegemônicos e trabalhando nos espaços das trocas inter e intragrupos, numa postura cética quanto a qualquer pretensão de totalidade. Assim, tanto as contradições internas da(s) crítica(s) feminista(s) a respeito de sua filiação seja à modernidade, seja à pós-modernidade, quanto o compartilhamento de temas comuns a esses três universos discursivos, são ques- tões suscitadas a partir de uma perspectiva contemporânea e estão, portanto, fundamentalmente comprometidas com os debates, sobretudo nos campos da cultura e da arte, produzidos nas sociedades de capitalismo avançado e, de certo modo, geridos teoricamente por elas.

 

 

NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] Além da crítica do modernismo na perspectiva de uma releitura de seu caráter possivelmente 'conservador' com relação ao descrédito da cultura de massas e das mulheres (na época do socialismo nascente e do primeiro grande movimento feminista na Europa, as massas batento no portão eram também mulheres, batendo no portão da cultura dominante masculina), Huyssen mostra discordância igualmente com relação a algumas vertentes do pensamento crítico francês, especialmente com as visadas de Julia Kristeva e de Jacques Derrida que, segundo ele, vêem a escrita experimental modernista como feminina por si mesma. HUYSSEN, Andreas. After the great divide. Modernism, mass culture, postmodernism. Bloomington & Indianapolis: Indiana UP, 1987, p. x. Retorna ao texto

[2] Huyssen coloca a questão do sujeito que diz 'eu', na frase flaubertiana, nos seguintes termos: Só precisamos pensar no gritante contraste entre a confiante confidência pessoal de Flaubert "Madame Bovary c'est moi,, e a famosa "impassibilidade" do estilo do romance para saber que há uma diferença. Dada a fundamentalmente diversa constituição e validação social e psicológica da subjetividade masculina e feminina na sociedade burguesa moderna, a dificuldade em dizer "eu" tem de ser necessariamente diferente para uma escritora mulher, que pode não encontrar na "impassibilidade" e na concomitante reificação do 'self' no produto estético um ideal tão atrativo e constringente quan to o faz o escritor homem ['the male writer']. O homem ['the male'], afinal , pode facilmente negar sua própria subjetividade em proveito de um objetivo estético mais alto, já que ele a tem assegurada no nível da experiência de vida cotidiana. (HUYSSEN, 1987: 46). Retorna ao texto

[3] Na verdade, Hutcheon retoma muitas das considerações de Belsey (assim como as análises das práticas semióticas fílmicas feministas empreendidas por de Lauretis) relativas ao estatuto do sujeito no romance realista clássico, para embasar suas próprias análises dos aspectos formais de descontinuidade e descentramento no romance pós-moderno The white hotel, de D. M. Thomas. A base teórica comum a ambas é tomada a Émile Benveniste, que estabelece ser a subjetividade uma propriedade fundamental da linguagem (É dentro e por meio da linguagem que o homem se constitui como 'sujeito', porque só a linguagem estabelece o conceito de 'ego' na realidade). HUTCHEON, Linda. "The post-modern ex-centric: the center that will not hold". In HUTCHEON, L. (ed.) Feminism and institutions - dialogues on feminist theory. Cambridge: Basil Blackwell, 1987, p.215; BELSEY, Catherine. A prática crítica. Trad. Ana Isabel S. S. Carvalho. Lisboa, Porto: Edições 70, Col. Signos 38, 1982. Retorna ao texto

[4] O termo modernista deve ser compreendido no contexto em que o utiliza Huyssen, ou seja, como sinônimo de moderno, correspondendo ao momento artístico-cultural que, a partir da segunda metade do século 19, comporta novos atores sociais na cena da modernidade, a partir das novas formas assumidas pela relação capital/trabalho e que, no plano das artes e da cultura, exemplarmente tematizadas por Baudelaire, caracteriza-se pelo maior alcance de seus produtos, inscritos agora em tensão com os objetos do mercado, como 'mercadorias'. Nesse sentido, o termo modernista difere da caracterização dada por Sergio Paulo Rouanet, que vai chamar 'modernista' o terceiro dos três ciclos estéticos que compõem a Modernidade: o primeiro seria por volta de 1800, quando surgem as teorias sobre o Romantismo, em oposição ao Classicismo; o segundo, por volta de 1850, quando Baudelaire reflete sobre os conceitos de modernidade na arte e surgem as estéticas pós-românticas; o terceiro, por volta de 1900, aparece com as vanguardas históricas, e é a esse ciclo que Rouanet chama Modernismo. (ROUANET, 1987: 265). Outro debate em questão é aquele que procura fazer a distinção entre modernidade cultural e modernidade social, em sua relação com uma possível faceta conservadora da pós-modernidade, empreendido por representantes das vertentes do pensamento francês (Foucault e Derrida) e do pensamento alemão (Habermas). Nesse debate, estão em jogo duas diferentes visões da modernidade, descritas por Huyssen nos seguintes termos: A visão francesa de modernidade começa com Nietzsche e Mallarmé e está assim bastante próxima do que a crítica literária descreve como modernismo. A Modernidade para os franceses é primariamente -- embora não exclusivamente -- uma questão estética relacionada com as energias liberadas pela destruição deliberada da linguagem e outras formas de representação. Para Habermas, por outro lado, a modernidade ancora-se nas melhores tradições do Iluminismo, que ele tenta salvaguardar e reinscrever no discurso filosófico presente sob nova forma. [...] A oposição de Habermas à visão francesa pós-nietzscheana de 'modernité' como simplesmente anti-moderna ou, como foi colocada, pós-moderna, implica nela mesma uma compreensão por demais limitada da modernidade, ao menos no que diz respeito à modernidade estética. (HUYSSEN, 1987: 203). Retorna ao texto

[5] Nesse sentido, Catherine Belsey vai observar que o realismo clássico, que continua a ser o modo popular dominate do drama literário, do cinema e televisivo, coincide cronologicamente de modo imperfeito com a época do capitalismo industrial. Desempenha, gostaria de sugerir, a função da ideologia, não só na sua representação de um mundo de sujeitos consistentes que são a origem de sentido, conhecimento e ação, mas também na apresentação, ao leitor, como posição a partir da qual o texto é mais facilmente inteligível, da posição do sujeito como origem da compreensão e da ação decorrente dessa compreensão. (BELSEY, 1982: 74). Retorna ao texto

[6] Kaplan utiliza a tradução inglesa de Rousseau. No original francês, o trecho é o seguinte: Elles seront toute leur vie asservies à la gêne la plus continuelle et la plus sevère, qui est celle des bienséances. Il faut les exercer d'abord à la contrainte, afin qu'elle ne les coûte jamais rien; à dompter toutes leurs fantaisies, pour les soumettre aus volontés d'autrui. [...] Dans nos insensés établissements, la vie de l'honnête femme est un combat perpétuel contre elle-même. ROUSSEAU, J. J. Émile ou de l'éducation. Paris: Garnier Frères, 1961 p.461-462. Retorna ao texto

[7] A questão da generalidade implícita no pronome 'ela', com relação a um sujeito 'mulher' dotado de características imanentes e intrínsecas, seja de ordem cultural, seja de ordem psíquica, ou a não relevância quanto às diferenças entre 'mulheres' de mesma raça, mas de classes distintas, ou entre mulheres heterossexuais e homossexuais, constitui mesmo um dos temas fundamentais para a crítica feminista. O ensaio de Cora Kaplan trabalha com a idéia de que tanto feministas radicais, quanto liberais ou conservadoras deixaram de observar o modo como as protagonistas dos romances do séc. 19 relacionavam-se com as personagens femininas de classes inferiores, sobretudo porque o discurso de classe fica subsumido no discurso de representação do gênero. Ao contrário, Kaplan observa, as obras literárias são discursos particularmente ricos nos quais as linguagens de classe, de raça e de gênero são produzidas e representadas através da incorporação de outros discursos. O foco da análise feminista deveria ser nessa heterogeneidade inerente ao literário, nessa íntima relação aí expressada entre todas as categorias que ordenam o significado psíquico e social. KAPLAN, Cora. "Pandora box: subjectivity, class and sexuality in socialist feminist cirticism". In GREENE, G. KAHN C. (Eds.). Making a difference: feminist literary criticism. London & N. York: Routledge, 1990, p. 149. Retorna ao texto

[8] É evidente que se poderia pensar também, com relação a esse aspecto, que a grandeza de Flaubert (um dos aspectos da grandeza de sua obra) foi a de ter podido compreender as minúcias da alma feminina de então e, ao compor o retrato de sua personagem com a paixão com que o fez, possibilitar a suas leitoras identificar em Emma as aporias de sua própria condição. Tal é a leitura que tem prevalecido na tradição crítica. É possível mesmo que sem tal paradigma de leituras, em que a exploração dos limites da imaginação e da fantasia abria um mundo de possibilidades às mulheres reais, sujeitadas sob diversos aspectos, tais mulheres tivessem tido menores oportunidades de exercitar e de fecundar seus próprios impulsos emancipatórios. O que a crítica feminista observa, a par disso, é que tais obras, em última instância, reduplicavam o viés de uma moralidade que atuava sobretudo no sentido de punir uma sensualidade e uma sexualidade ativas e de corroborar o sentimento de culpa feminina pela 'força fatídica' de tais impulsos. Não seria difícil a uma leitura crítica gendrada feminista percorrer as obras do realismo (e do romantismo, sob outro viés) sustentando tais hipóteses. Retorna ao texto

[9] Rita Felski sumariza esses aspectos distintivos das vertentes críticas nos seguintes termos: Tentativas recentes de desenvolver análises das relações entre gênero e literatura inscrevem-se em duas categorias dominantes. A primeira propõe uma distintiva consciência ou experiência da realidade da mulher [female consciousness or experience] como legitimação para uma estética feminista; a segunda baseia-se na lingüística, é anti-humanista e apela para uma noção do 'feminino', compreendida como uma disrupção ou transgressão de uma ordem simbólica falocêntrica, mais do que como uma característica da psicologia da mulher [female psychology]. Jane Gallop localiza uma razão para a diferença nas posições opostas adotadas pelas teorias feministas francesas e americanas a respeito da relação entre subjetividade e linguagem: "As americanas como Nancy Chodorow falam da construção de um 'rijo centro do self', enquanto as francesas -- como Josette Féral -- falam da 'subversão do sujeito'... O 'self' implica um centro, um indivíduo potencialmente autônomo; o 'sujeito' é um lugar na linguagem, um significante que já se encontra alienado numa rede intersubjetiva". FELSKI, R. Beyond feminist aesthetics - feminist literature and social change. Cambridge,Mass.: Harvard UP, 1989, p. 19-20. Retorna ao texto


Vera Queiroz é Professora Adjunta dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação da Universidade Federal Fluminense e autora de O vazio e o pleno - a poesia de Adélia Prado. Goiânia: CEGRAF, 1994 e Crítica literária e estratégias de gênero. Rio de Janeiro: EDUFF, 1997 (no prelo)


Retorna ao Índice