Jane Eyre: o vazio que anseia ser preenchido

 

Maria Conceição Monteiro

UFF (Universidade Federal Fluminense)


 


Resumo
:
Este trabalho visa demonstrar como a narrativa de Jane Eyre subverte a ideologia doméstica do século XIX. Para tanto, descreve como a protagonista muda a direção da tradição feminina na literatura vitoriana, contrariando o modelo Pamela de Richardson, que até então servia de exemplo para as heroínas do século XIX. Com base nas questões da sexualidade e da diferença, argumento que o foco do romance está nas alternativas oferecidas às mulheres, de como a personagem se faz sujeito da história, afirmando a sexualidade como uma categoria maleável. Jane Eyre mostra que pode existir uma aliança entre o gênero masculino e feminino, onde se dá a complementaridade e a harmonia das diferenças.
Palavras-chave: Sexualidade, Narrativa do Desejo, Gênero, Diferença.

 

Abstract:
This work aims at showing how the narrative of Jane Eyre subverts the domestic ideology of the 19th Century. In order to do so, it describes how the protagonist changes the direction of the feminine tradiction in Victorian literature, contradicting the model of Richardson's Pamela, which up till then served as the example for the 19th Century heroines. Based on questions of sexuality and difference, I argue that the focus of the novel is in the alternative offered to women of how the character becomes the subject of the story, affirming sexuality as a pliable category. Jane Eyre shows there can be a bond between the masculine and feminine genders, where the complementarity and the harmony of difference is realised.
Key words: Sexuality, Narrative of Desire, Gender, Difference.

 


 


Em 1836, Charlotte Brontë escreve no seu diário:


Glorioso! aquele sopro foi poderoso, me lembrou de Northamgerland. Oh! ele despertou um sentimento que não posso satisfazer - milhares de desejos surgiram com o seu chamado, mas eles têm que morrer comigo pois nunca serão realizados. Agora, eu deveria ser torturada se não tivesse um sonho sobre o qual repousar - sua existência, sua forma, suas cenas para preencher um pouco do vazio que anseia (apud Barker, 1944, p. 225-226).


Charlotte se refere a um vazio que anseia. É como alguém que busca mergulhar o nada da sua própria existência na largueza e profundidade do devir para embebê-la de sentido e valor. O sonho da adolescência de Charlotte Brontë tornou-se um romance que manifesta o desejo nas suas formas múltiplas, mas, particularmente, na que emerge da paixão sexual.

No romance Jane Eyre, a protagonista é narradora da sua própria estória. A autora opta por uma narrativa trovejante[1] quanto ao corpo e à alma, num mundo marcadamente sexual. A forma como naturalmente deixa jorrar os sentimentos e desejos, quer de ódio, quer de paixão, faz de Jane Eyre uma heroína que mudou a direção da tradição feminina na literatura vitoriana do seu tempo.

A cena de abertura de Jane Eyre revela ao leitor a posição da heroína: Subi no banco da janela e fiquei de pernas cruzadas como um turco; e, tendo fechado a cortina vermelha, fiquei entumbada num duplo retiro (Brontë, 1966:39). Por ser excluída do círculo familiar que consiste de tia e primos, Jane busca um espaço onde, pela cortina vermelha, tanto se protege do mundo interno corrupto, quanto do mundo externo, frio e severo.

Jane Eyre é órfã e dependente de parentes que a hostilizam. Entretanto, a obra Jane Eyre é um paradigma da narrativa do desejo por aproximação do outro, por reconhecimento, ou seja, pela percepção de que a vida humana possui um caráter dialógico (Taylor, 1992, p. 32).

Já na parte inicial do romance, tornam-se nítidos alguns aspectos da postura político-social assumida por Jane. É o que se pode comprovar no episódio da briga com o primo, John Reed, que acabara de atingi-la com um tapa, provocando-a por ser pobre e dependente. Mesmo na sombria posição de quem vive na morada alheia, de favores, ela reage com toda a paixão, em defesa da sua própria identidade, lutando contra os que queriam sufocá-la: Garoto malvado e cruel! És um assassino - um senhor dos escravos - um imperador romano (Brontë, 1966:43). É com fervor e paixão que Jane sai em defesa de tudo o que acredita, atacando com veemência o que julga ser injusto. Por ser mulher, ela tem consciência de que está exposta à brutalidade física masculina; por ser economicamente desfavorecida, sabe que ocupa uma posição vulnerável numa sociedade que se molda pela hierarquia de classes.

Presa no red-room Jane declara: Meu coração batia forte, minha cabeça fervia. Entre soluços, conclui: Creio ter tido um ataque (Brontë,1966:49,50). O que parece mais importante para Jane é recusar o papel de vítima, ou, como simboliza o red-room, ser tratada como prostituta e louca. Essas figuras são representativas do status ambíguo de Jane Eyre como preceptora em Thornfield, uma preceptora vitoriana que se encontrava numa situação indefinida e conflituosa, por não ser propriamente um membro da família e por não ser também uma servente. Jane mostra, claramente, que recusa os dois papéis: o de vítima e o de prostituta, conseqüentemente, para ela não haverá red-light.[2]

O contexto de opressão em que Jane vivia se espelha claramente na conversa que mantém com o reverendo Brocklehurst:

- "Não existe nada mais triste do que uma criança desobediente", ele falou, "especialmente uma menininha desobediente. Sabes para onde os malvados vão depois da morte?"
- "Eles vão para o inferno", foi a minha resposta imediata e ortodoxa.
- "E o que é o inferno? Podes me responder?"
- "Um buraco cheio de fogo."
- "Gostarias de cair nesse buraco e lá arder para sempre?"
- "Não, senhor."
- "O que deves fazer para evitar que isso aconteça?"
- "Devo manter boa saúde e não morrer" (Brontë, 1966:64).

A rebelião de Jane traduz a luta política entre gender e gerações. Jane Eyre luta contra a dominação do outro, representado pela figura paterna do reverendo. Apesar da agressão verbal de Jane contra o discurso institucional parecer política, Charlotte Brontë não está oferecendo resistência à opressão política quando ela faz Jane distorcer o catecismo. Ela desloca o conflito de classe para relações sexuais (Armstrong, 1987).

A estratégia discursiva de que se utiliza o reverendo denota um escamoteamento da maneira de falar do sexo. Segundo Foucault (1990), encerram-se as crianças numa teia de discurso que fala delas, um saber que lhes escapa - tudo isso permite vincular a intensificação dos poderes à multiplicação do discurso (Foucault, 1990, v. I, p. 32)
.
Observa-se aqui a genderização[3] do poder. O homem do Senhor, para manter o controle e compactuar com a ideologia, submete Jane Eyre a um questionário, em que precisa desnudá-la para controlá-la. Sem dúvida, Jane já revela a sua sexualidade, o que, para a igreja, é algo demoníaco que precisa ser exorcizado, extirpado, controlado. Para isso, é preciso investir todo um aparelho de discurso, de análise e de conhecimento que se processa através de uma incitação ao discurso, regulada e polimorfa (Foucault, 1990, v.I, p. 34-35).

Ao invés de render-se ao mundo hostil da família, Jane rebela-se, e, por isto, é mandada para Lowood, uma instituição de caridade onde a tirania, a pretensão e a hipocrisia são retratadas com um realismo que vai além do mundo ficcional, ficando evidente que a autora objetiva um ataque às instituições em vigor.

Consciente da importância do poder, Jane se afasta triunfante da presença autoritária e tirânica do primo, mas não escapa de uma situação ainda mais representativa do sistema patriarcal, que é o reencontro com o reverendo Brocklehurst, em Lowood: uma pilastra negra - assim me pareceu à primeira vista, reta, estreita, [...] no topo, o rosto cruel, como uma máscara esculpida (Brontë, 1966:63).

Essa imagem fálica do reverendo simboliza a sexualidade masculina que é, ao mesmo tempo, associada ao sadismo e à morte. As garotas de Lowood School nunca poderão assumir funções tradicionalmente atribuídas às mulheres de classe superior. Não fazem parte do grupo de artigos negociáveis, como as filhas do reverendo, símbolo do poder e riqueza do seu dono. São meninas que, pela pobreza, são destituídas de sexualidade e individualidade e, acima de tudo, do próprio sentido humano. E Brocklehurst é o agente efetivo dessa destituição, ao insistir que elas tenham os cabelos cortados e que sejam vestidas, todas, da mesma forma, lúgubre e infantil: não devemos nos submeter à natureza (Brontë, 1966:96 ).

A narradora de Jane Eyre mostra que o reverendo mascara o discurso com a presença da natureza que neste contexto remete a uma ausência, que é a cultura. Assim, natureza e cultura tornam-se significantes com o mesmo significado, ou seja: devemo-nos submeter à cultura. De acordo com Marx, a moralidade funciona simplesmente como uma forma de controle ideológico (apud Young, 1990). O objetivo de Lowood era exatamente moldar seres sem identidade e assexualizados, de conformidade com o ideal vitoriano: criaturas espiritualizadas, os anjos do lar.

Paradoxalmente, Lowood provê Jane de elementos básicos para o seu desenvolvimento social. Nessa escola, as alunas têm a mesma posição sócio-econômica. Conseqüentemente, Jane não se sente estranha e tampouco inferior. Consegue fazer amigas. E é através de Maria Temple, membro importante da instituição, que Jane é estimulada na sua luta por independência, na recuperação do orgulho e na construção de sua identidade. Observa-se aqui o inverso da opressão pela dominação masculina.

Outra figura importante para Jane em Lowood é a colega Helen Burns, que é construída como o oposto de Jane. Helen tem espírito submisso, não almeja nada, exceto a morte. Enquanto Jane submete-se aos sentimentos de ira e paixão, Helen rejeita-os, o que pode ser considerado também uma forma de rebeldia. Por isso, Helen instiga com a sua submissão a revolta no outro. Quando ela permite ser, injustamente, açoitada, a cruel Miss Scatchard fica duplamente enfurecida e a considera uma garota insensível (Brontë, 1966:86). Essa cena remete o leitor de volta ao episódio do red-room, onde Jane Eyre se revolta e se fortalece para agir e reagir no mundo. Helen Burns, ao contrário, opta pelo perdão e abnegação como forma de suportar a maldade do mundo, princípio estabelecido pela doutrina calvinística. E é pela prática da virtude e abnegação que Helen aspira a mighty home (Brontë, 1966:91). Helen Burns tem função importante na narrativa. Ela vai trazer através de burns (fogo, queimaduras), a presença de uma ausência que vai se fazer presente na figura de Rochester. Ela é a prefiguração do rosto de Rochester, desfigurado pelo fogo. Burns é um pre-texto. Helen é um anjo destruidor. A figura do jogo do fogo e o fogo do jogo. O prenúncio do encontro com Rochester, fogo, destruição. O nome serve de moldura narrativa simbólica que consome Helen, mutila Rochester e o faz renascer do fogo.

Entretanto, nenhuma dessas mulheres, embora importantes na vida de Jane, conseguem ser modelo de comportamento para Jane[4]. O que Jane absorve das duas mulheres em Lowood é o afeto. Todavia, Jane Eyre quer novas experiências e faz disso uma ambição, um compromisso consigo mesma:


... desejava liberdade, por liberdade suspirava, por liberdade rezei uma oração. Liberdade estava espalhada pelo vento (...) Abandonei-a e fiz uma súplica mais humilde (...) 'Então', gritei meio desesperada: 'dê-me, pelo menos, uma nova servidão' (Brontë, 1966:117).

Com esses desejos, aos dezoito anos, depois de já ter adquirido instrução suficiente para impor-se como pessoa, Jane Eyre decide deixar Lowood à procura de algo mais que se escondia por trás das colinas do horizonte: desejava um mundo que ultrapassasse aquele limite, o qual pudesse me levar ao reboliço das cidades, regiões cheias de vida (...); mais comunicação (Brontë, 1966:140-141).

Em sua incessante busca de liberdade, Jane vai trabalhar como preceptora em Thornfield. Lá torna-se preceptora de Adèle, tutelada de Rochester.

Jane Eyre é uma história de paixão: uma luta de uma pessoa apaixonada pela livre expressão. Os diálogos de Jane com Rochester são quentes e sensuais, carregados de erotismo, fazendo arder as personagens e queimar as páginas. Este erotismo deve-se, principalmente, ao fato de a heroína ser essencialmente independente, o que lhe dá o direito de ousar, transgredir.

Em Thornfield, a visão que a narradora passa deste novo espaço para o leitor é extremamente detalhada e poética. Jane chega lá ao entardecer. Escuridão e fogo marcam a narrativa. São elementos que mais somam e menos contrastam, ao mesmo tempo que servem de prenúncio para o que está por vir:

a luz da vela brilhava por trás de uma janela cortinada; tudo o mais era escuridão. [...] dentro de uma sala onde a iluminação dupla da lareira e da vela me ofuscava, contrastandocom a escuridão (Brontë, 1966: 127).

Através dos olhos de Jane, a casa é vista como um espaço misterioso, como um ter e um ter-se (habere, habitar). Uma vez mais, ela mergulha no mundo da imaginação, dando substância e qualidades aos seus medos, aspirações e conflitos. Quando Rochester aparece, torna-se parte desse mundo interior, um objeto de desejo, uma causa de ansiedade. Rochester, com seu cachorro e cavalo, está associado ao mundo fantástico das estórias contadas a Jane por Bessie, na casa dos Reeds: estórias contadas por Bessie, nas noites de inverno [...] alimentava nossa atenção ávida, com passagens de amor e aventura dos contos de fadas e baladas antigas (Brontë, 1966:41).

O encontro entre Jane e Rochester se dá num espaço em que os elementos da natureza se recobrem de erotismo, levando-os à manifestação do desejo. Jane descreve esse espaço como: os poderosos e antigos espinheiros, fortes, largos, nodosos (...) explicavam a etimologia da designação da mansão (Brontë, 1966:131). Essas imagens fazem uma fusão fantástica da energia da sexualidade masculina e o poder da imaginação da heroína.

Rochester é, incansavelmente, objeto focalizado de Jane: um grande penhasco, ou um grande carvalho (...) tinha o rosto moreno, com traços pesados e sobrancelhas densas (...) os seus olhos eram irados e penetrantes (Brontë, 1966:143, 145, 152). O modo como Jane vê Rochester evoca a imagem dos espinheiros que cercam a mansão, onde o tamanho físico revela o poder sexual imaginário. Apesar do aparente mistério que envolve Rochester, pois nas palavras da governanta, nunca se sabe se ele está sério ou brincando, se está satisfeito ou não, ele é penetrável. Como bem diz Weisser (1997), existe uma entrada feminina para este segredo, disponível a uma aventureira pronta para se arriscar a suportar o poder da sexualidade masculina (Weisser, 1997: 62).

Entretanto, devido a sua situação, Jane pode agir mais espontaneamente. Tanto Rochester quanto Jane podem interagir de forma mais livre, fugindo da repressão geralmente associada à forma tradicional de desempenho do homem e da mulher. Comunicam-se em um novo nível, onde podem revelar-se emocional e intelectualmente. A paixão sexual entre os dois é conseqüência dessa atitude; e essa paixão é, sem dúvida, retratada com um tipo de vivacidade difícil de ser encontrada em um romance inglês. O erotismo marca e permeia os diálogos que se travam entre os dois. É uma emoção que pleiteia expressão física, como visto acima. As formas de Rochester seduzem Jane. É a masculinidade de Rochester que desperta a feminilidade de Jane.

Jane mostra, desde cedo, uma percepção interior que a faz distinguir entre sentimentos intensos que podem levar a uma realização maior e aqueles que podem levar à auto-destruição. O tempo que Jane passou em Thornfield é de capital importância. É aí que ela se torna mulher adulta e é confrontada com escolhas definitivas sobre o que significa, para ela, ser mulher:


Quem pode me acusar? Muitos, sem dúvida (...). A inquietação estava na minha natureza (...). Espera-se que as mulheres sejam calmas. Entretanto, sentem da mesma forma que os homens. Precisam exercitar suas faculdades, assim como precisam de um campo para os seus esforços, tanto quanto seus irmãos. Sofrem de limitações, abnegações, da mesma forma que os homens sofreriam. É uma limitação, por parte das suas companheiras, achar que devem confinar suas vidas a fazer pudins, coser, tocar piano e bordar. Seria irresponsável condenar aquelas mulheres que procuram fazer mais ou querem aprender mais do que o costume declara necessário ao sexo (Brontë, 1966:141).


Nesse famoso discurso feminista, a narradora vai de uma defesa individual a um argumento moral sobre o direito que tem a mulher de procurar fazer mais ou querer aprender mais que o costume declara necessário ao sexo. A noção que Jane tem de si como mulher - igual ao homem e com as mesmas necessidades como ser humano - está próxima do que era considerado um caso de insanidade na Inglaterra dos anos 40 do século XIX. E, como exemplo disso, vive na mesma casa a louca Bertha.

Em nome de todas as mulheres, Jane refuta o ideal de mulher vitoriana e a condição de anjo sem identidade, ao afirmar que as mulheres sentem da mesma forma que os homens.

Divagando sobre Rochester, Jane acredita que compreende a linguagem do seu rosto e movimentos por ela ser semelhante a ele, assimilada (Brontë, 1966:204).

Na filosofia ocidental, como bem diz Robert Young (1990), quando o conhecimento inclui o outro, a alteridade desaparece, pois o outro se torna parte do mesmo. Em todos os casos, continua Young, o outro é neutralizado: a ontologia se iguala à filosofia do poder, um egoísmo em que a relação com o outro é realizada pela assimilação.

É exatamente este tipo de neutralização que Jane vai experimentar quando se torna noiva de Rochester. Entretanto, Jane tem que desafiá-lo e, para isso, não hesita em demonstrar coragem e profundidade de sentimento, o que denota um impulso feminista:

Achas que por ser pobre, obscura, sem graça e pequena, sou desalmada e sem coração? Estás errado! Sou tão forte quanto tu (...) Se Deus tivesse me presenteado com beleza e riqueza, tornaria as coisas difíceis para não me deixares, como é para mim, agora, deixar-te. Não te falo por meio de costumes convencionais (...) É o meu espírito que se dirige ao teu espírito, como se ambos estivessem atravessando uma sepultura, e nos colocássemos aos pésde Deus, iguais - como somos! (Brontë, 1966:281).


Ao que Rochester, mais adiante, responde: minha noiva está aqui (...) porque és minha imagem e semelhança (Brontë, 1966:282).

Observa-se que Jane, como noiva de Rochester, é agora seu objeto, sua posse, uma extensão de si, uma demonstração do seu gosto, uma insígnia da sua posição, uma prova da sua masculinidade:

Serás minha, inteiramente minha (...) Colocarei um colar de brilhantes em volta do teu pescoço (...) Farei com que o mundo reconheça tua beleza (...) Cobrirei minha Jane de cetim e renda (Brontë, 1966: 283, 287, 288).

Ao sentir escapar-lhe a independência e apagar-se a sua identidade, Jane tenta resgatar o controle da situação. Quer ser amiga e companheira de Rochester e insiste que a rudeza é preferível à lisonja. Insiste em ganhar o seu sustento mantendo-se preceptora de Adèle (Brontë, 1966:298). Começa, aos poucos, a entender o significado da dependência, as conotações da inferioridade de classe e as sutis implicações que ambas exercem nas relações sexuais:

Ele riu. Pensei que seu riso fosse como de um sultão que, no momento de prazer, o daria a uma escrava enriquecida pelo seu ouro e pedras preciosas. Esmaguei vigorosamente sua mão que procurava a minha, e a joguei de volta para ele, vermelha da pressão ardente (Brontë, 1966: 297).

Por outro lado, Jane teme a sexualidade de Rochester, por reconhecer nela a profundidade da sua própria paixão, ou seja, a capacidade de entregar-se. Quer manter Rochester e ela própria à margem do abismo (Brontë, 1966:301). Esse abismo que tragou Bertha Mason, e de que ambos têm consciência. Bertha representa, para Rochester, o agente do mal: atormentou-lhe a juventude, tornando-o um homem amargo e desiludido; conseguiu separá-lo de Jane e levá-lo, por fim, à decadência física. Observe-se que Bertha se apresenta ao leitor através dos diferentes estágios da percepção de Jane. Ela funciona como uma advertência contra as conseqüências do desejo de Jane por liberdade emocional, seu desejo de fugir das restrições convencionais. Como diz Helen Moglen (1984), é a forma ameaçadora da resistência de Jane à autoridade masculina. O temor da entrega sexual que selará sua dependência da paixão: sexualidade irracional, sentimento sem controle.

Em Jane Eyre, a vulnerabilidade sexual e as diferenças de classe poderiam desaparecer no momento em que Rochester propõe casamento à preceptora. Entretanto, o aviso de Mrs Fairfax, a governanta, não passa despercebido: homens na sua posição não costumam casar com suas preceptora (Brontë, 1966: 294). Charlotte Brontë, ao mesmo tempo que idealiza a vida da preceptora, não deixa de assinalar as muitas dificuldades que ela tem de enfrentar no mundo real. Em um certo momento da narrativa, Jane sente perder o sentido de poder sobre Rochester (Brontë, 1966:294). Agora, ela tem, também, um grande inimigo: o desejo, o vazio que anseia ser preenchido. Rochester tornara-se para ela o mundo; e mais que o mundo; quase a minha esperança do céu (Brontë, 1966:302). Ao contrário de Pamela, que foi literalmente aprisionada pelo amante, Jane entrou, por sua própria vontade, na prisão do amor, no império dos desejos.

O casamento fracassado de Jane revela um escândalo sexual. De todas as aventuras sexuais da estória de Rochester, Jane descobre o escândalo maior, ou seja, um casamento baseado em dinheiro e luxúria que impede um relacionamento de iguais. Esse casamento tinha que ficar fora da cultura. Jane Eyre precisa desvelar esse relacionamento para sentir que aquilo que precisa viver não é um encontro mercantil, mas o desejo em que a sexualidade não é mercadoria comprável. O casamento de Rochester com Bertha havia sido feito nessas bases.

A questão ideológica é exposta por Charlotte Brontë ao resolver casar Jane com Rochester. Quando Rochester fala a Jane das suas ex-mulheres, uma louca, outra prostituta, acentua a marca da diferença. Essas mulheres não podem ser esposas legítimas. Uma simboliza o racismo: Bertha, jamaicana, tem a sua loucura atribuída à sua origem. A outra simboliza o preconceito nacionalista: Céline, francesa, é amoral devido também à sua origem. Se Jane aceita a proposta de Rochester para tornar-se sua amante, estará desta forma, assumindo o papel de uma das duas: se me tornasse a sucessora dessa pobres mulheres, um dia ele nutriria por mim o mesmo sentimento que agora, na sua cabeça, profana as suas memórias (Brontë, 1966:339). Ao rejeitar o papel de amante, Jane não está sendo moralista, apenas não quer que ele a veja como agora vê as outras amantes do passado:

Era uma maneira humilhante de existência; não viveria dessa forma novamente. Manter uma amante é pior que comprar um escravo: ambos são, por natureza, e sempre por posição, inferiores. E viver familiarmente com inferiores é degradante. Agora, odeio as lembranças do tempo que passei com Céline, Gracinta e Clara (Brontë, 1966:339).

Em outras palavras, percebe que qualquer mulher que não seja a esposa é, automaticamente, como a preceptora, um ser dependente, ou como a prostituta, um ser mantido (Poovey, 1989: 250).

Em História da Sexualidade, Foucault diz que no século XIX o casal legítimo, com sua sexualidade regular, tem direito à maior discrição e tende a funcionar, talvez, como uma norma mais rigorosa, porém mais silenciosa (Foucault, 1990: v.I, 39). Para Foucault :

... o que se interroga é a sexualidade das crianças, a dos loucos e dos criminosos; é o prazer dos que não amam o outro sexo; os devaneios, as obsessões, as pequenas manias ou as grandes raivas. Todas estas figuras, outrora apenas entrevistas, têm agora de avançar para tomar a palavra e fazer a difícil confissão daquilo que são (Foucault, 1990: v.I, 39).

Ao sentir o poder de Rochester, Jane resolve observá-lo, e preparar-se, caso fosse necessário, para partir como missionária e pregar a liberdade àquelas que foram escravizadas (Brontë, 1966: 297). Não é um temor sexual que leva Jane a pensar dessa forma, mas sim pensamentos e afirmações políticas. Jane precisa encontrar força emocional em vez de expressões de fraqueza. Na realidade, essa sempre foi a situação de Jane Eyre. A sua falta de status e impotência fizeram com que Rochester a visse, inicialmente, como a noiva apropriada e vulnerável. Jane passa a entender isso e compreende que, se ficasse, se tornaria mais uma das mulheres do seu passado, sua escrava. Mas por desejá-lo, decide deixá-lo
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A narrativa de Jane Eyre subverte a ideologia doméstica do século XIX. Apesar de não ser louca nem prostituta, Jane, ao recusar Rochester como amante, usa expressões que lembram as mulheres que os comentaristas da classe média associavam à preceptora. Jane, no conflito de aceitar ou não a condição de amante, associa o ceder à paixão a um estado de loucura: manter-me-ei fiel aos princípios que recebi quando era sã e não louca - como estou agora (Brontë, 1966:344). Por outro lado, os seus princípios têm valores que são mais fortes que ceder à tentação e aos prazeres de tornar-se amante de Rochester: Eles [os princípios] têm valor - sempre acreditei nisso (Brontë, 1966:344). A louca e a prostituta, metaforicamente invocadas nos conflitos de Jane, estão literalmente presentes na vida amorosa de Rochester.

A narrativa de Jane Eyre mostra uma certa obsessão pelo desconhecido, pelos lugares escuros e vazios da vida, numa tentativa de descobri-los, preenchê-los. Segredos que não são de todo revelados no texto. Entretanto, observa-se a crescente significação do desejo que é livre, solto em Jane Eyre, essa heroína que é fortemente atraída pelos valores agressivos, ambiciosos, egoístas, que são associados à masculinidade na sociedade vitoriana. E é esse desejo da heroína-mulher que define e carrega a responsabilidade do problema pelo mundo afora (Weisser,1997). É a vida que leva a sombra errante.

Fugindo da tentação, Jane vai parar na casa dos primos, St John, Mary e Diana, em Marsh End, ou seja, vai encontrar o seu final no pântano.

Com os primos, Jane cria um círculo familiar baseado em uma solidariedade feminina. Uma comunidade feita de respeito, trabalho, independência e companhia intelectual. O primo, St John, aos poucos vai vendo em Jane o ideal para esposa missionária. Tenta persuadi-la a renunciar ao amor carnal e mundano, substituindo-o pelo amor celestial.

Charlotte Brontë mostra claramente, através da narradora independente, a tensão entre o poder e a necessidade ideológica de disfarçá-lo, fato observado nas vacilações de julgamento. Jane Eyre oscila entre ser independente e seguir com o primo para outras terras no papel de pseudo-esposa missionária. O seu conflito aumenta, quando ele lhe diz: Deus e a natureza te moldaram para ser esposa de um missionário (...) Serás minha, te reinvidico - não para meu prazer, mas para servir a meu soberano (Brontë, 1966: 428). Apesar de saber que jamais amaria um homem como John Rivers, que tem beijos de mármore (Brontë, 1966:424), está pronta a partir com ele para a Índia: Estou preparada para ir com ele para a Índia, se puder ir livre (Brontë, 1966:430).

Jane Eyre, como sujeito, emerge quando rompe as amarras que a prendiam a St John: Meus poderes estavam no jogo e na força (Brontë, 1966:417). O desejo determina o sujeito na sua existência. O poder parece significar tanto uma capacidade imaginativa e intelectual, quanto a capacidade de sentir, de amar.

Através da percepção do seu próprio desejo, Jane Eyre se rebela contra o padrão cultural vitoriano, que a atiraria nos braços de John Rivers, e aprende a ouvir o seu próprio desejo. Dessa forma, renega e despreza o amor sem fogo do primo: desprezo a tua idéia de amor (...) desprezo o falso sentimento que ofereces: sim, St
John, eu te desprezo quando o oferece (Brontë, 1966:433).


E é por querer algo mais do que esse pouco querer que Jane é impulsionada a sentir e descrever um dos momentos mais eróticos na vida da personagem-mulher. Num sonho, Jane deseja Rochester fisicamente. No silêncio do espaço onírico, explode a voz da paixão, desvelando o que é socialmente reprimido:

Tinha sonhos estranhos à noite. Sonhos coloridos, agitados, estimulantes, tempestuosos. Sonhos que no meio de cenas desconhecidas, carregadas de aventuras arriscadas e românticas encontrava Mr Rochester no meio de crises excitantes. Então, a sensação de estar nos seus braços, ouvindo sua voz, encontrando seus olhos, tocando suas mãos e rosto, amando-o e sendo amada por ele. A esperança de passar o resto da vida juntos seria renovada com toda força e ardor. Assim, acordei (...) Sentei na cama, tremendo (...) a noite escura testemunhava a convulsão de desespero e ouvia a explosão da paixão (Brontë, 1966: 393: ênfase minha).

Nessa cena orgástica, Jane se dá conta de que não poderia manter o fogo da natureza continuamente baixo, forçá-lo a queimar para dentro e nunca emitir um grito, embora a chama aprisionada consumisse órgãos vitais (...) isto seria insuportável (Brontë, 1966:433). Essa metáfora da chama, do fogo, é a liberdade para Jane Eyre.

Jane retorna a Thornfield, precisa ter a carne mortificada, o hímen rasgado pelo thorn (espinho), o sonho concretizado . Jane é levada por premonição e paixão; parte pronta para tornar-se amante de Rochester:

Se pudesse vê-lo! Neste caso, certamente, não deveria ser louca e correr para ele? Não posso dizer - não tenho certeza. Se assim o fizesse - o que aconteceria? Deus me abençoe! O que aconteceria? Quem se machucaria por eu, mais uma vez, saborear a vida que seu olhar me daria? (Brontë, 1966:448-449).

Mas fogo e sangue precisavam destruir Thornfield para que o fogo (paixão) e o sangue (ruptura do hímen) possibilitassem o casamento. Como um Sansão, Rochester está cego e mutilado; desprovido de tudo o que mais valorizava: o poder e o orgulho da masculinidade. Observa-se, aqui, uma inversão de papéis. Ao vê-lo, Jane o compara a uma besta ou pássaro selvagem (...) uma águia enjaulada, cujos olhos dourados a crueldade apagou (Brontë, 1966:456). Vale lembrar que no passado era Jane que representava para ele um pássaro no ninho.

A mutilação de Rochester é o contraponto necessário para a independência de Jane: o casamento de iguais. Além disso, conforme diz Carolyn Heilbrun (1973), a demanda de Jane Eyre por autonomia ou alguma medida de liberdade ecoa politicamente nos gritos de todo indivíduo sem poder. É preciso que Rochester passe por sofrimentos terríveis, mas necessários, para que, assim, abdique de parte do seu poder em favor do outro que, antes, nada possuía. Desta forma, Jane e Rochester estão socialmente iguais, preparados para compartilhar uma vida.

A obra de Charlotte Brontë ganha relevo ao mostrar, através de Jane Eyre, que as mulheres têm alternativas: paixão, ambição, independência. Charlotte Brontë faz a sua heroína triunfar sobre todas as mulheres, à medida que afirma a sua diferença. Triunfo que, aparentemente, a todas nivela, naquilo que as revela. Com efeito, a autora mostra que a mulher não é para ser idolatrada e tampouco imobilizada; deve, simplesmente, ser mulher, com direito a mostrar a sua independência e a viver a sua sexualidade. É uma afirmação da diferença na identidade de ser mulher.

A narrativa se fecha com um casamento e se abre com a realização sexual da heroína. Pondo em relevo a relação homem, mulher e desejo, o texto dá novo tratamento à questão de gender, subvertendo o papel submisso da mulher. Em Jane Eyre, sexualidade e gender são vistos como categorias historicamente maleáveis.

Jane rebela-se contra as soluções tradicionais do casamento no que diz respeito à identidade feminina numa sociedade patriarcal opressora. A narrativa mostra que a ideologia pode ser questionada. O texto pode ser visto, no seu tempo, como perturbador dos valores morais dominantes que envolviam as mulheres e a sexualidade, levando futuras gerações de leitores a fazer novas perguntas à velha estória da narrativa da fábula do desejo.

Vale lembrar, por último, uma das conversas entre Jane e Rochester em volta da lareira. Rochester pede a Jane para sentar-se e formula algumas perguntas sobre os desenhos feitos por ela: Esses olhos na estrela, deves ter visto num sonho (...) quem te ensinou a pintar o vento? (Brontë, 1966:158) Jane, que foi inspirada pelo vazio que anseia por ser preenchido, por uma necessidade inquietante de busca, usa a imaginação para desenhar e, assim, delineia o desejo que petrifica o olhar de Rochester: crítico da sua arte e da sua alma. O contato com as pinturas de Jane se transforma em meio de conhecimento. A tela se faz espaço narrativo, onde Jane é lida como objeto de desejo. Ao mesmo tempo a tela se abre em porta por onde escapa o tempestuoso espírito do vento, que entrelaça as vidas de Jane e Rochester no redemoinho da paixão.

Passada a fúria do vento, Jane e Rochester conseguem caminhar juntos, lado a lado. São afirmações vigorosas dessas sombras errantes que mutuamente se integram no se entregarem. Agora a paixão é vivida entre iguais: não há mais senhor, não há mais escravo. Surge uma nova aliança entre o gênero masculino e feminino (Irigaray, 1996:11), onde se dá a complementaridade e a harmonia das diferenças.

[1] De acordo com Gaskell (1975), Charlotte Brontë assinava Charles Thunder na correspondência dirigida aos amigos mais íntimos, fazendo um tipo de jogo com o próprio nome e sobrenome, já que Brontë quer dizer trovão em grego (p. 202).

[2] O termo red-light indica um local de prostituição.

[3] Este termo é utilizado por Evelyn F. Keller, 1985, para significar o gênero masculino e feminino como sendo socialmente construído.

[4] Alguns críticos são contrários a essa idéia. Helen Moglen, por exemplo, diz que "Miss Temple e Helen Burns fornecem a Jane modelos, assim como um universo de valores e oportunidades" (Moglen, 1984, p. 114).


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Maria Conceiço Monteiro é Doutora em Literatura Comparada e Professora Adjunta de Literatura Inglesa do Departamento de Línguas Estrangeiras Modernas - UFF . Autora de Sombra Errante: a Preceptora na Narrativa Inglesa do Século XIX.( Niterói: Eduff, no prelo) e de ensaios e artigos em periódicos nacionais e estrangeiros.Atualmente pesquisa o discurso do desejo na narrativa de escritoras inglesas do século XVIII.
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