Comentários de livros


 

UM ENCONTRO VIRTUAL DE SÉCULOS E DE CULTURAS


Jorge Luiz Antonio [1]


 


Regina Célia Pinto.

O branco e o negro com Julien Sorel, incluindo O Jogo da Neblina
.

RJ, cd-rom, edição da autora, (1999-2001
). Texto bilíngüe (português e inglês). Versão inglesa de Sabrina Gledhill.

 

Um cd-rom ("compact disk read-only memory"): disco compacto contendo dados que podem ser lidos mas não alterados. Com ele o ritual de leitura muda de cenário. O leitor-operador apanha sua caixa plástica quadrada, abre-a, tira um disco dela e o coloca no computador. O abrir a página transforma-se no clicar o mouse.

A partir desse ato, iniciam-se duas leituras: a do computador para entender os "softwares" de que compõem o cd-rom; e a do leitor que opera o microcomputador à procura dos elementos para realizar uma leitura fora do livro: "um leitor que navega numa tela, programando leituras, num universo de signos evanescentes, mas eternamente disponíveis, contanto que não se perca a rota que leva a eles" (Santaella 1997).

Assim é possível adentrar O branco e o negro com Julien Sorel, incluindo O Jogo da Neblina, de Regina Célia Pinto. Ou seja: O branco e o negro: reflexões sobre a neblina, como diz o subtítulo da obra. A presente obra digital faz parte de um projeto da autora denominado Biblioteca das Maravilhas.
Para a autora, o cd-rom é um livro-objeto animado e interativo no contexto digital. Antes, O branco e o negro foi livro-objeto, depois saite, para transformar-se em cd-rom. Uma grande inter-relação foi estabelecida, inclusive como projeto da autora: foi inspirada em O Vermelho e o Negro, romance de Stendhal, no poema "Neblina", de Nelson Ascher, e estabeleceu um diálogo com Simulacros e Simulações de Jean Baudrillard. Literatura e poesia, como artes da palavra, que fazem conexões com o sonoro e o visual no contexto da digitalidade. Conforme comentário da própria autora, da leitura de Stendhal e Ascher, ela percebeu que "o ponto em comum entre elas era a dissimulação: o ser humano que esconde seus sentimentos e pensamentos e a neblina que também dissimula a realidade, impedindo que se veja a paisagem"[2].

Na capa, uma figura elegante, que traz alguma semelhança física com o Carlitos de Chaplin, em roupa do século XIX, parece se equilibrar numa espécie de pirâmide branca. Ao fundo, o infinito. E esse Julien Sorel quase no topo da pirâmide convida o leitor-fruidor-operador para uma viagem ciberespacial, para o universo da imaginação e, também, para o mundo digital. Uma viagem interativa e hipertextual. Oferece uma travessia para a literatura e para a poesia.

Preto e branco. Branco e Negro. Vermelho e negro. As cores que imaginamos, além dos diversos tons do branco e do negro. As nuances. O ir e o vir. A rudeza da vida em sociedade. A intertextualidade. As releituras. A hipertextualidade. Regina Célia Pinto, Marie-Henri Beyle / Stendhal (1783-1842), Jean Baudrillard, Nelson Ascher. Mundos, tempos, espaços, países, autores diferentes. Imagens. Palavras. Sons. Movimentos. E a neblina, o véu que dificulta a visão das coisas. Os muitos véus da vida: a palavra, a imagem, o som, a mensagem, nossas próprias limitações, o signo intermediário.

O jogo do claro-escuro, das formas geométricas, e das paisagens de fundo, com os tons de cinza, se aliam a uma obra de rápida e prazerosa leitura-acesso.

O saite que deu origem ao cd-rom fez parte da exposição Poemas Visitados versão preto & branco, na Galeria SESC Copacabana, RJ, de 22.11.1999 a 07.01.2000, sob a curadoria de Marcelo Frazão; da II Mostra Interpoesia, na Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo, cujo curador é Wilton Azevedo, de 9 a 11.10.2001; e do Digital Media Festival - DMF 2001, da Universidade das Filipinas, curadoria a cargo de Fatima Lasay, de 8 a 12.10.2001.

Regina Célia Pinto, formada em Desenho e Plástica, é mestre em História da Arte, Área de Antropologia da Arte na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com a dissertação Quatro olhares à procura de um leitor, mulheres importantes, arte e identidade. Publicou ensaios científicos, apresentou comunicados em congressos, participou de inúmeras exposições individuais e coletivas, e dedica-se à promoção de eventos culturais e curadorias. Lecionou Desenho no Colégio Pedro II, Rio de Janeiro, e atualmente coordena o laboratório de informática da Unidade Humaitá. É editora da revista eletrônica Arte on Line.

Essa obra pode ser vista como uma releitura digital do poema, do romance e do ensaio filosófico. Uma certa relação se estabelece na escolha de Stendhal, que faz lembrar Xavier de Maistre, que recorda Lawrence Sterne, e nos traz Machado de Assis e o Rio de Janeiro. E nos faz pensar em José de Alencar, também, pelas urdiduras da construção de um personagem digital. Finais de séculos e começos de outros dentre todas as releituras feitas. Analogias, alegorias, a universalidade da arte: a França do início do século XIX se mostra nas personagens que se "apresentam" a Julien Sorel, a metáfora da neblina é relida no poema de Nelson Ascher, a filosofia de Jean Baudrillard embasa os conceitos de jogo e simulação, e esse conjunto se transforma numa espécie de filosofia de vida aos olhos dos leitores-operadores do mundo digital. E a literatura e a poesia permanecem vivas, atualizadas, configuradas no ambiente digital.

Grande parte dos romances dos séculos passados abordam as relações humanas um pouco truncadas pela linguagem comedida, polida, cuidadosa, sempre ocultando os reais sentimentos das pessoas. Assim também ocorre em Stendhal, em Machado de Assis, dentre os inúmeros exemplos que poderíamos arrolar. A carta escrita se torna um dos mais eficientes meios de comunicação, às vezes mais eficaz do que a conversa "tête-à-tête". Contudo, o indizível faz parte de todos os relacionamentos de que se tem notícia. Aquilo que gostaríamos de dizer, mas não somos capazes de fazê-lo. Não podemos. Não devemos. Temos que omitir.

Essa é uma das mais importantes perspectivas a que O Branco e o Negro nos apresenta. Aquilo que não dito, que não ficou claro, que está entalado em nossas gargantas. A voz por sair. O pensamento por clarificar. Aí se encontra a estreita relação de uma obra artística digital com uma obra literária que se constrói pelos entrechos, pelo entrever a verdade numa floresta de insinuações, pela dissimulação.

Nessa perspectiva, o Julien Sorel de Stendhal e o de Regina se fundem numa perspectiva humana, que se completa com o eu-poético de Ascher, que é o da procura da clareza das coisas, e do embasamento nas reflexões de Baudrillard. É a hipertextualidade atemporal e universal que nos liga a países, culturas e línguas diferentes. Ou mesmo aquilo de Lajolo denominou de "intermidialidade, quando o que se tem é a inter-relação entre diferentes mídias, tais como imagem/som/movimento e texto mutuamente enredados, que é o que o computador permite." (Lajolo 1998:70). As muitas páginas de Stendhal foram relacionadas aos poucos, mas densos, versos de Ascher, e ambos remetem à linguagem carregada de significados, mas cifrada, do soneto "Aquela triste e leda madrugada", de Camões (Camões s.d.: 182). E esse tecido se reconstrói nas imagens, sons e palavras que se ambientam na obra de Regina.
Assim como o curta metragem Rendez vous à Montréal, de Michel Bret, reúne Marilyn Monroe com Humphrey Bogart (Plaza e Tavares 1998: 50,166), O Branco e o Negro traz Julien Sorel, personagem de Stendhal, a uma expedição ao Brasil. Isso dá um tom romântico à história, e, à semelhança dos romances românticos, usa desse expediente para deixar a história "verídica". Um exemplo disso é Lucíola, de José de Alencar, em que a história da cortesã é contada por um jovem em uma carta a uma senhora.

A narrativa virtual da Regina traz esse tom, nos ludibria, no bom sentido, fazendo a história tornar-se um fato que existiu, o que se mostra como uma recriação de um personagem. O leitor-operador que desconhece a obra de Stendhal, ou o poema de Nelson Ascher, pode observar um relato científico da expedição de Julien Sorel, de 1810 a 1820, até a Serra do Mar, que é apresentado em duas rotas. Só uma leitura mais atenta pode desviar a atenção para o detalhe de que até mesmo a rota é construída sobre a imagem de um mouse.

Acessei o cd-rom na versão inglesa, para ver como ele ficaria em outra língua. Como o cd-rom foi enviado para outros países, tive uma rara oportunidade de obter uma recepção de Fatima Lasay, da Universidade das Filipinas, que, como eu, por não ter lido Stendhal, fez uma leitura da obra como se tivesse relação com uma espécie de romance histórico:

Dei uma olhada no cd-rom da Regina hoje novamente e tentei entendê-lo tanto quanto eu pude. É um trabalho que julgo requerer um bom entendimento das histórias a que ele se refere, como, por exemplo, as expedições de Julien Sorel e as condições de vida no país dele e no Brasil no século XIX
.
Para mim, é uma grande aproximação na criação artística, seja ela poesia, som ou imagem. Embora elas tomem muito tempo para poderem ser entendidas, eu aprecio as obras que têm um conteúdo e contexto culturais específicos na criação e na apreciação.

O Jogo da Neblina, embora perdido no tempo, a mim me parece ser um processo para Julien Sorel entender o mundo e suas circunstâncias. Ele faz um jogo, do qual parece uma jornada perigosa, com o fim de fazer sentido por um povo que se comporta de uma determinada maneira. É como se ele tivesse criado um mito dos elementos de sua jornada num país estrangeiro.

O Jogo da Neblina apresentado no CD-ROM - usando a interface e a metáfora do jogo de dados e de cartelas - para mim é também uma análise e uma simulação da jornada de Sorel. Com o Jogo, eu sinto que estou adentrando as cavernas e escalando os picos que Sorel alcançou e em cada ponto na jornada há um momento de meditação sobre as relações humanas.

O que Sorel tem procurado?

O título "Reflexões sobre a Neblina" me informa diferentes significados. Ele poderia significar que há meditação ou pensamento profundo ocasionado pela presença da escuridão branca da neblina numa jornada solitária. Poderia significar também que há alguma coisa sendo lançada ou refletida na neblina, talvez uma imagem ou uma sombra ou luz, que é materialmente impossível. Mas a neblina pode difundir luz e causar o que pode parecer um reflexo. Eu posso imaginar que a linear e estruturada mente e imaginação do Sorel ocidental pode estar completamente enamorada pela oclusão da luz e da sombra, pelo umidificação da sua visão pela neblina não-linear, aural e onipresente. Uma mente assim poderia procurar organização e estrutura, para colocar neblinas em pequenas caixas e analisá-las até a morte.

O CD-ROM da Regina me trouxe todas essas experiências. É uma peça maravilhosa, que tem um toque frágil e humano que não se encontra em muitas obras digitais.[3]

Da mesma forma que Fatima viu em O Branco e o Negro um personagem que transmite uma mensagem de encorajamento, é possível notar que há uma semelhança, pela cor e pelo tema, ao livro e vídeo Fernão Capelo Gaivota, de Richard Bach.

A obra nos leva a uma reflexão. Como enxergar objetivos através da neblina? Uma das mensagens mais importantes do cd-rom é a dissimulação: "o ser humano que esconde seus sentimentos e pensamentos e a neblina que também dissimula a realidade, impedindo que se veja a paisagem", como disse a autora. As variações do preto e do branco servem muito para mostrar real e metaforicamente a dissimulação e conduzem a uma reflexão diferente: a falta de outras cores nos aguça o sentido para as nuances da escala cinza, e é nesse aspecto que as coisas ficam parecidas, confusas, muitas vezes sem fronteiras e/ou limites.

A estrutura do cd-rom permite acessos lineares ou não: /Julien Sorel/, /Rotas/, /Cartas/, /Análise de Dados/, /? .../, e /Sair/. A interatividade de O Branco e o Negro é composta de muitos diálogos, semelhantes ou diferentes do que Fatima Lasay e eu fizemos ao longo desta resenha. Cada leitor-operador poderá ter acesso a uma seqüência de surpresas (mesmo as que se repetem são interessantes e necessárias) e constatações em uma espécie de cenas ou quadros rápidos e curtos. O caminho a ser seguido é o do leitor-operador, só dele, à semelhança do que esta resenha fez, ou não.

Em /Julien Sorel/, /Rotas/ e /Cartas/, pode-se perceber o percurso de uma vida e de uma expedição imaginárias, que vão sendo apresentadas. Os dados fragmentados apresentam ao leitor-operador uma verossimilhança e empatia: parece-se com um romance histórico digital, mas é uma obra de ficção, que ultrapassa a tessitura das palavras, pois traz recursos como hipertextualidade e interatividade.

/Análise de Dados/ estabelece uma relação entre os locais alcançados por Julien e uma série de figuras geométricas sugere uma sintaxe predominantemente visual que funciona como neblinas geométricas, os cubos feitos de neblina, que condicionam o leitor-operador e o personagem a esta ou aquela visão. Lentes de aumento, visão em close ou distanciando-se, branco mais claro ou não, tudo isso nos dificulta a visão da realidade. E isso traz à memória A Luneta Mágica, de Joaquim Manuel de Macedo, uma novela brasileira que simboliza a procura da visão clara das coisas e das pessoas no mundo em que vivemos, visão essa que é dada pela sociedade, pela língua, pela cultura, pela família, etc.
/Jogo da Neblina/, uma espécie de segunda parte, começa com /"?..."/ e é o momento das metáforas que são representadas por um círculo com seis losangos, que correspondem a seis faces~/números de um dado. O leitor-operador tem a liberdade de escolher o caminho.

Estabelece-se uma relação entre as notas biográficas de Julien Sorel com as notas esparsas sobre os lugares por onde passou, as cartas que enviou às duas mulheres de sua vida, e os textos de Stendhal, Ascher e Baudrillard. A escolha de números e de dados estabelece uma metáfora com a escolha de Sorel, uma escolha real do leitor-operador-fruidor à sua maneira, em ordem numérica ou não.
O Branco e o Negro: Reflexões sobre a Neblina usa e abusa das figuras geométricas (poliedros, cubos) para apresentar os véus e filtros que dificultam a visão da realidade. Mas essa mesma neblina / véu /filtro é a mensagem que fica ao longo da interação com a obra de arte digital, que é o cd-rom de Regina Célia Pinto, pois nos traz a luz colorida das coisas paradoxalmente por meio das nuances do branco e do negro e da falta de nitidez característica. O ponto de partida da criação foi o mundo ficcional de palavras (a literatura de Stendhal e a poesia de Ascher) que se transformou em poesia e arte digitais, congregando tempos real e virtual no contexto multimidiático. É a literatura de sempre promovendo novas criações. Um encontro virtual entre os séculos e culturas que separam os países e os tempos, mas que podem ser unidos pela criação, pela experiência simbólica e pela virtualidade. As artes, em especial a literatura, são o caminho para o conhecimento. A literatura, que é a fonte de todos os saberes, permanece viva com a sua plurissignificação, pois, como disse Barthes: "Se, por não sei que excesso de barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto numa, é a disciplina literária que devia ser salva, pois todas as ciências estão presentes no monumento literário" (Barthes 1995:18).


BIBLIOGRAFIA

ARTE ON LINE. RJ, revista eletrônica. In: http://www.arteonline.arq.br
ASCHER, Nelson (1998). Neblina. In: Holanda, Heloísa Buarque de (org.), Esses poetas: uma antologia dos anos 90. RJ, Aeroplano.
BACH, Richard (1977). Fernão Capelo Gaivota. Trad. Antonio Ramos Rosa e Madalena Rosález (original inglês).. RJ, Nórdica.
BAIRON, Sérgio (1995). Multimídia. SP, Global. (Contato Imediato).
BARTHES, Roland (1995). Aula. Trad. Leyla Perrone-Moisés (original francês). 9.ed. SP, Cultrix.
BAUDRILLARD, Jean (1991). Simulacros e simulações. Lisboa, Relógio D'Água Editorial.
CAMÕES, Luís Vaz de (s.d.). Sonetos. Org. Maria de Lurdes Sariva e José Hermano Saraiva. Protugal, Mira-Sintra, Mem Martins, Europa América (Livros de Bolso 106).
GALERIA SESC COPACABANA (1999). Poemas visitados versão preto & branco: catálogo. Curadoria de Marcelo Frazão. RJ, Persona Press.
LAJOLO, Marisa (1998). Do intertexto ao hipertexto: as paisagens da travessia. In: Revista da Biblioteca Mário de Andrade, SP, v..56, jan.dez 1998, p.64-72.
PLAZA, Julio e TAVARES, Monica (1998). Processos criativos com os meios eletrônicos poéticas digitais. SP / BA, Hucitec / FAPESP / UNEB / CADCT.
SANTAELLA, Lúcia (1997). A leitura fora do livro, in: http://www.pucsp/~cos-puc/epe/mostra/santaella.htm
STENDHAL (Marie-Henri Beyle) (1971). O vermelho e o negro. Trad. De Sousa e Casemiro Fernandes (original francês). 1.ed. SP, Globo / Abril Cultural. (Os Imortais 23).


Notas

[1] Poeta, pesquisador, professor, doutorando em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, pesquisa sobre poesia digital, e está elaborando um catálogo sob o título de Brazilian Digital Art and Poetry on the Web: http://www.vispo.com/misc/BrazilianDigitalPoetry/ht
E-mail: jlantonio@uol.com.br
[.2] Email da artista ao autor em 09.09.2001.
[3] Email de Fatima Lasay ao Autor em 24.08.2001. Ela é designer industrial, faz mestrado na Universidade das Filipinas, e é pioneira na arte internética em seu país. O email foi traduzido do original inglês pelo autor.



Comprar o CD pela Internet:

reginapinto@arteonline.arq.br



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