Renato
Cordeiro Gomes
PUC-Rio
RESUMO
Esta reflexão em mosaico toma como ponto de partida a instalação Cidade de São Sebastião, do videomaker Marcello Dantas, para questionar o papel do cânone, enquanto instituição, na escritura e na leitura da cidade, particularmente o Rio de Janeiro, representada em discursos culturais, entre eles a literatura.
RESUMÉ
Cette réflexion en forme de mosaïque prend comme point de départ l'instalation Cidade de São Sebastião, du videomaker Marcello Dantas, pour mettre en question le rôle du canon, en tant que institution, dans l'écriture et la lecture de la ville, en paticulier Rio de Janeiro, representée dans des discours culturels, parmi eux la littérature.
1. À maneira de epígrafe, e servindo de mote, uma instalação: Cidade de São Sebastião: uma viagem através dos tempos e espaços do Rio de Janeiro, do videomaker Marcello Dantas, montada em março-abril de 1996, na Galeria do Século XXI do Museu Nacional de Belas Artes, que ocupa o prédio da antiga Escola de Belas Artes. Este belo edifício art nouveau foi construído durante as reformas modernizantes do Rio de Janeiro, no início do século XX, e situado na Av. Central (atual Rio Branco), o boulevard à parisiense, o eixo monumental que emblematizou essas reformas e em torno do qual se criou toda uma mitologia urbana. Esta mitologia da Avenida ocupou o imaginário carioca durante décadas, até ser corroída pelas sucessivas reformas, à medida que a vida mundana e boêmia se foi deslocando para a Zona Sul e também se ia desgastando o mito da Cidade Maravilhosa motivado pela própria crise da megalópole e pelo agravamento das questões sociais e da violência, reforçando a imagem do Rio de Janeiro como "cidade partida"... O prédio do Museu, ao lado da Biblioteca Nacional e do Teatro Municipal são os três que ainda restam da original Av. Central. Foi justamente nesse Museu, que até pouco tempo era o guardião da arte acadêmica da tradição, da arte canonizada, agora um verdadeiro centro cultural em que convivem essa arte e as experiências contemporâneas, que foi montada a instalação que nos serve de epígrafe.
Esta epígrafe já indica uma impossibilidade: converter a instalação em imagem (tipo)gráfica.
A obra de Marcello Dantas é uma
construção de uma espécie de cidade virtual. Um
avesso do Rio onde um pouco de sua história é vista sob
uma ótica mais mundana, afirma o videomaker. Em 855
metros quadrados da Galeria, em forma de túnel, foi montado um
percurso de 250 metros, pelos quais se espalharam 28 aparelhos de
videolaser, que projetavam imagens e depoimentos sobre a cidade de
São Sebastião do Rio de Janeiro. "Organizei toda a
instalação pensando na estrutura viva e mutante da
cidade " -- frisa o autor, que trabalha o espaço
mixado ao tempo enquanto fator interativo por
excelência. Deste modo, imagens do passado acoplam-se às
do presente, num jogo que as fragmenta e as superpõe.
Abdicando da noção de totalidade, a
instalação explora o túnel como motivo
articulador que também dá forma ao percurso do
espectador, que deambula por um túnel escuro, de tecido e
paredes brancas, onde é bombardeado por imagens e sons.
São treze cenários diferentes (7 são
narrativos), acomodados em ângulos e curvas de um trajeto que
acaba formando um labirinto (que, por analogia, é associado
à imagem mítica arcaica com a qual é
metaforizada a cidade moderna), remetendo a diversos níveis
geográficos ou históricos da cidade. A
interferência dos sons de um vídeo no outro criava , por
outro lado, uma possível Babel, a confusão de imagens e
ruídos urbanos.
A conjugação de Babel e do labirinto enquanto um modo
de representar a cidade indica o desorientação do
sentido e leva o espectador a aguçar a
percepção. Saber orientar-se numa cidade não
significa muito. No entanto, perder-se numa cidade, como
alguém se perde numa floresta, requer
instrução, já dissera Walter Benjamin
[1].
Na instalação, que arquiteta uma cidade virtual e
elimina a totalidade, a orientação é dada, em
termos, pelo túnel, que liga duas realidades e permite a
expansão de horizontes. O emblema remete à
própria realidade do Rio de Janeiro: "os túneis
delimitaram a ocupação espacial da cidade; a
cada túnel construído uma nova face era dada ao
Rio; nossos elementos de ligação entre
diferentes tempos e regiões da cidade - considera o
videomaker. Assim, a forma de dispor fisicamente a
instalação concretizou-se num grande túnel
infinito. Aí nenhum espectador poderá ver a obra
inteira porque em cada visita ela é outra. As
projeções somam 90 minutos, mas ninguém consegue
ver a totalidade disso, porque a estrutura de exibição
muda conforme a velocidade de leitura de cada um (palavras
do autor), mesmo que houvesse, como de fato houve, um mapa para
orientar o visitante que, ao atravessar a
cidade-túnel-labirinto, constrói a sua leitura,
operando conexões e estabelecendo redes através do
percurso.
A instalação Cidade de São
Sebastião alterna depoimentos históricos com
experiências que mexem com os sentidos. Há os segmentos
narrativos em que personagens como o pintor modernista Portinari, o
famoso compositor de música popular dos anos 30, Noel Rosa, o
poeta Vinicius de Moraes, Dona Ceci, a mulher de Noel contam casos;
ou Isaías Ambrósio, guia oficial do Maracanã,
que relata, em portunhol, a um grupo de turistas a derrota do Brasil
para o Uruguai, na Copa de 50. No mirante, tem-se uma visão
panorâmica da Lapa, da Praça Quinze e de Copacabana
através dos tempos. Mulheres do Rio: Leila Diniz,
Valéria Valenssa, a mulata globeleza, e uma menina patinadora
de rua. Homens do Rio: Vinicius, o Beijoqueiro e o ex-sambista
Pedralvo da Lacraia já convertido à Igreja
Evangélica. Adiante, um raio e um trovão anunciam um
segmento vertiginoso numa tempestade de imagens que mostram as
tragédias da cidade. Segue-se a passagem por um túnel,
onde se tem a sensação de andar em velocidade, porque
no teto e nas paredes são projetadas imagens em movimento. No
fim um sensor infravermelho aciona uma lâmpada de 300 watts;
meio cego, o visitante cai na "centrífuga urbana", um
semicírculo de 270 graus onde são projetadas dez
imagens que giram em grande velocidade, ao som alucinante de uma
bateria de escola de samba (Imagine uma porta-bandeira louca
girando por vários pontos da cidade e a imagem
diluída como se fosse um líquido -- sugere
Marcello). O trajeto termina com cenas de manifestações
religiosas que levam à última imagem, a de São
Sebastião, homenagem ao santo padroeiro do Rio e ícone
da instalação.
Essa descrição -- redutora e linear -- apenas dá
uma pálida idéia da obra, mas nos serve de emblema para
mostrar que não há uma maneira única de
"escrever/ler" a cidade na sua multiplicidade e mutabilidade. Revela
que o processo de modernização tornou a cidade uma
imensa arena de discursos gastos e dispersos, lugar de
inscrição e rasura de signos que desafia o olhar do
habitante, que busca lê-la. Assim, o olhar que desaprendeu a
ver porque a distância foi eliminada e com ela a paisagem, sob
a ditadura da visão imediata [2],
está num processo de fusão visual, compactando uma
multiplicidade de gestos, movimentos e imagens. A
instalação demonstra que não se trata de
encontrar um caminho no mapa que ordenava o espaço e dava um
sentido global aos comportamentos, às travessias; demonstra
que, ao focalizar de dentro a cidade, se vêem apenas
fragmentos, imediações, lugares fixados por uma
percepção míope do todo, e de longe ela parece
uma massa confusa, em que é difícil aplicar os modelos
fabricados pelas teorias da ordem urbana, como revelou García
Canclini[3].
Continua este crítico:
Narrar [a cidade] é saber que já não é possível a experiência da ordem que o flâneur esperava estabelecer ao passear pela metrópole do início do século. Agora a cidade é como um videoclipe: montagem efervescente de imagens descontínuas. (...) Tudo é denso e fragmentário. Como nos vídeos, a cidade se fez de imagens saqueadas de todas as partes, em qualquer ordem. Para ser um bom leitor da vida urbana, há que se dobrar ao ritmo e gozar as visões efêmeras [4] .
Escrever/ler a cidade é, portanto,
engendrar um discurso que procura estabelecer conexões
precárias e provisórias entre os fios secretos e
descontínuos da linguagem urbana. Esse discurso é,
então, o relato sensível dos modos de ver a cidade,
produzindo uma cartografia simbólica, a partir de percursos
numa rede. Quem escreve/lê a cidade procede a uma
leitura-navegação por essas redes, engendrando cidades
outras. Em cada imagem e cada ponto do itinerário, pode-se
estabelecer, através de deslocamentos, uma
relação de afinidades ou de contrastes que leve a
estabelecer sentidos sempre móveis. O leitor reativa o estoque
de imagens urbanas, à maneira de zapping, acessando
cenas, imagens, informações pelas redes, mas
também das cidades reais.
Dessa cidade digital, ou cidade virtual, ou mesmo das cidades reais,
está eliminado o flâneur, esse personagem urbano,
que tinha a rua como espaço de deambulação, e,
com o olhar inteligente, mas desenraizado, contemplava, em seu
ócio, através da multidão, o espetáculo
cambiante do efêmero e do contingente da cidade transformada
pela Revolução Industrial. Se a
celebração da vitalidade urbana, de sua diversidade e
plenitude, é um dos temas mais antigos da cultura moderna,
cuja fantasia se cristalizou em torno da rua, que emergiu como
símbolo fundamental da vida moderna, a cidade deste fim de
século vê praticamente esgarçada tal simbologia.
O antigo flâneur absorvido pela multidão e
pela massa não tem mais lugar na cidade da via expressa, na
sociedade dominada pelas tecnologias comunicacionais
contemporâneas. Talvez tenha cedido o lugar para o zappeur
[5],
que, escolhendo pontos e fragmentos urbanos (reais ou virtuais), pode
montar sua imagem da cidade, longe da rua.
Aceitando o fragmentário, o descontínuo, e contemplando
as diferenças, os discursos contemporâneos cenarizam a
cidade patchwork, com sua polifonia [6],
sua mistura de estilos, sua multiplicidade de signos, na busca de
decifrar o urbano que se situa no limite extremo e poroso entre
realidade e ficção, a indicar um reino chapado da
superfície, em exposição plena, que cega, ao
invés de seduzir; obliteram-se as fronteiras entre exterior e
interior, próximo e distante.
2. Estas observações
derivadas da instalação de Marcello Dantas servem de
mote para pôr em causa a constituição de um
cânone literário para a cidade, aqui considerado como
ocidental, eurocêntrico e moderno. Sabe-se que a
concepção de cidade moderna se liga às
noções de utopia e de progresso, tendo por base o
método projetual regido pelos preceitos de objetividade,
racionalidade, funcionalidade e internacionalidade, para resolver os
antagonismos da metrópole através da
ordenação do espaço habitado
[7].
A literatura que representa esse processo trabalha o binômio de
dupla implicação "modernidade e experiência
urbana" e gera o cânone que se institucionalizou enquanto
tradição seletiva, com a autoridade que excluía
outros modos históricos de representar a realidade citadina.
Se a cidade dos centros hegemônicos era o modelo, aquelas
situadas fora desse eixo deveriam copiá-las, como
símbolo da civilização e da modernidade, na
tentativa de apagar as diferenças. Falando do Rio de Janeiro
do início do século XX, diz João do Rio
(pseudônimo de Paulo Barreto, o cronista e primeiro
repórter moderno no Brasil que acoplou no seu nome o nome da
cidade), quando lamenta a demolição do velho mercado:
"De súbito, da noite para o dia, compreendeu-se que era
preciso ser tal qual Buenos Aires, que é esforço
despedaçante de ser Paris. (...) Uma cidade moderna é
como todas as cidades modernas"[8].
O modelo identificava-se com o cosmopolitismo e permitia a
oposição civilização/barbárie,
progresso/atraso, novo/velho.
3. Dessas questões, deriva-se uma
outra, que no fundo é a mesma, e diz respeito ao nacionalismo.
É por aí que gostaria de aludir a um ensaio de 1942, do
crítico Álvaro Lins, publicado quando da
edição do livro de contos Stela me abriu a
porta, de Marques Rebelo. O ensaio intitulado "E uma saga do Rio
de Janeiro em termos de província-nação"
[9]
faz um balanço da obra de Rebelo, mas antes põe sob
suspeita a existência de uma literatura urbana no Brasil,
pautando a discussão em torno do binômio
província-nação. O solo para o desenvolvimento
dos argumentos é o nacionalismo. A abordagem coloca-se na
deriva do programa de nosso modernismo de 22, mas sobretudo de 30
[que não cabe aqui esmiuçar], no sentido de
busca de uma identidade nacional, para localizar a literatura que
dramatiza o Rio de Janeiro, onde se insere a obra de Rebelo.
A parte inicial, "Mundo carioca: a Província-Maior", sob a
ótica do nacionalismo, mostra, em síntese, que a
capital se forma feito soma de todas as províncias
nacionais. Para o crítico a única forma
possível de criação literária seria esta:
o eu, a província, a cidade, a nação, a
humanidade. Só preso a essas instâncias seria o
escritor mais universal: quanto mais próximo à origem,
mais universal. A linha de raciocínio pretende, assim,
valorizar a província em detrimento do cosmopolitismo. Afirma
Álvaro Lins: Do contrário, iremos cair no
deraciné, no postiço, no artificial,
no cosmopolita. E o deraciné vem a ser o
desnutrido, o anêmico, o desprovido da seiva e do sangue da
sua terra... O enraizamento na província e na
nação -- na origem, no centro, portanto, seria
necessário ao universal. Caso contrário, seria uma
literatura desfibrada, doente (notem-se as metáforas
patológicas). A literatura verdadeira viria da
autenticidade, da pureza, do apego ao natural, ao nacional.
Por tal viés, vê o crítico a literatura do
Brasil, feita de diversidades provincianas submetidas a uma unidade;
vê o espírito nacional como um conjunto dos
espíritos provincianos: qualidades
intrínsecas, a-históricas, fronteiras culturais
reforçadas pela literatura enquanto instituição.
Nesta clave, afirma ser provinciana toda nossa literatura e ser o Rio
de Janeiro a soma de todas as províncias, portanto, o
nacional. O Rio seria uma espécie de arquiprovíncia, o
centro convergente do país e, ao mesmo tempo, o centro
irradiador. Esta seria a noção de cidade aí
implícita, de que se exclui o cosmopolitismo.
Sustenta afinal que não temos realmente o que se possa
chamar uma literatura urbana, uma literatura que reflita a febre e o
crescimento de uma grande metrópole... Nossos escritores,
mesmo quando tematizam a grande cidade, voltam-se de
preferência para aqueles aspectos mais antigos, mais
característicos, mais provincianos. Por provinciano entende o
local que precisa sempre de uma expressão universal para
revelar-se, através de um humanismo generalizante.
O pensamento de Álvaro Lins atrelado ao seu tempo e ao contexto brasileiro dos anos 30/40, tem por base a territorialização, dentro da tradição nacionalista. A identidade surge como essência intemporal. Ao contrário disto, como se depreende da instalação de Marcello Dantas, a identidade surge como uma construção imaginária que se narra. A globalização mostra que os referentes da identidade se formam em relação com os repertórios textuais e iconográficos gerados pelos meios eletrônicos de comunicação e com a globalização da vida urbana.
4. Outro tópico neste levantamento de questões retoma uma formulação de Alejo Carpentier no ensaio "Problemática de la novela latinoamericana" [10]. Partindo da observação sobre a dificuldade de utilizar nossas cidades como cenários de romances, pelo fato de elas não terem estilo, o escritor cubano constata as características híbridas das cidades latino-americanas, em oposição às cidades européias que têm um estilo fixado para sempre, o que facilitaria cenarizá-las na ficção. As nossas [cidades], ao contrário, estão há muito tempo em processo de simbiose, de amálgama, de transmutações -- tanto no aspecto arquitetônico como no humano. Estabelecem-se novas escalas de valores. Nossas cidades não têm estilo. E, entretanto, começamos a descobrir agora que têm o que poderíamos chamar de terceiro estilo: o estilo das coisas que não têm estilo. Este terceiro estilo, híbrido, desafia o que se considerou até então, como bom ou mau estilo, como bom ou mau gosto, e só se mostra pela revelação da cidade, para além desses valores canônicos e centrados pelo estilo "puro", europeu, dado como universal.
Estaria desta maneira a literatura urbana latino-americana rompendo com o cânone, como estratégia de afirmação de sua identidade cultural construída discursivamente frente ao princípio de exclusão? A representação de cidades periféricas é excluída do cânone? Elas só se legitimam enquanto cópia? (Observe-se que a noção de cidade periférica atrela o espaço à categoria de tempo; e por aí nossas cidades são vistas como atraso, defasagem, anacronismo, para aquém da globalização que projeta a desterritorialização).
Por outro lado, poderíamos perguntar se o
terceiro estilo, estilo mixado de referências e
citações de diversas épocas e espaços
culturais, não se aproximaria do que Jonathan Raban, no ensaio
Soft city [11]
(1974), denomina "enciclopédia" ou "empório de
estilos", que dissolve os sentidos de hierarquia e homogeneidade?
Elegendo Le Corbusier como bête noire, Raban afirma que
a ficção urbana de hoje apresenta cidades largamente
deslocalizadas, onde tudo é implicitamente urbano, onde
não é mais possível uma geografia à
Balzac, ou à Zola, ou mesmo como nas narrativas do alto
modernismo. Rejeitando a concepção de cidade
rigidamente estratificada por ocupação ou classe, de
cidade planejada racionalmente, propõe, a partir dos
movimentos dos anos 60, a cidade como labirinto formado como uma
colméia por redes bastante diversas de interação
social com metas plurais, de tal maneira que a enciclopédia se
torna um livro de rabiscos de um maníaco, cheio de itens
coloridos sem nenhum esquema determinante, racional ou
econômico. A cidade seria o lugar em que o fato e a
imaginação simplesmente teriam de se fundir. Já
não haveria, portanto, um canône hegemônico para a
escrita/leitura da cidade.
5. Se comecei com uma
instalação à maneira de epígrafe, termino
com uma "quase-novela" à maneira de epitáfio: refiro-me
ao texto de Antônio Fraga intitulado Desabrigo
[12]
(escrito em 1942 e publicado em 1945), que não foi incorporado
ao cânone modernista brasileiro. Nem tampouco seu autor, que
sempre se pôs à margem das instituições
literárias (Fraga viveu sempre à margem da vida
literária; apesar de só ter estudado até o
segundo ano primário, falava, escrevia e traduzia
várias línguas, e de ser um estudioso de filosofia e de
matemática, muito pouca coisa de sua original e transgressora
produção constituída de narrativas, peças
de teatro e de poesia, foi publicada. O escritor que se considerava
maldito e rebelde, por mais de 20 anos viveu em Queimados na Baixada
Fluminense, zona da periferia do Rio de Janeiro; morreu pobre e
esquecido no início dos anos 90).
Desabrigo é um romance escrito em gíria, sem
qualquer pontuação, e dramatiza a vida do Mangue, o
mundo marginal dos malandros (os personagens Cobrinha, Desabrigo e
Miquimba), do não-trabalho, das estatégias de
sobrevivência (como o golpe, o jogo, a caftinagem, a
esperteza). Evêmero é o escritor-narrador, que, embora
não seja do meio, compartilha com os malandros e prostitutas o
mundo marginal, para escrever como poeta e vagabundo ("vagabundo
é sempre um idealista e é portanto individualista
enquanto que o malandro é pragmatista e é povo", diz
ele). Evêmero procura Desabrigo, pois através dele
deseja conhecer o espaço e os habitantes do Mangue e
adjacências, para escrever um livro sobre "todo malandro e
mulher da vida ". No final, constata o desaparecimento desse
mundo: "Evêmero andando pelas ruas do mangue (agora o mangue
acabou) andando pelos escuros da lapa (a lapa acabou)", como acabaram
os "irmãos" dele -- as prostitutas e os malandros. Cito:
Evêmero então foi indo pra casa e foi pensando
"É preciso fazer mesmo alguma coisa Isso não pode
ficar assim!" Metralhadoras pipocavam na imaginação
dele (...) É preciso fazer alguma coisa -- agir agir
agir ... Esse agir é a escrita do livro, indicada neste
final da narrativa, quando entrou em casa, despiu o paletó
(metralhadoras metralhadoras metralhadoras)
arregaçou as mangas da camisa (metralhadoras metralhadoras
metralhadoras) e metralhou na reminton. Então escreve a
primeira frase que retoma e remete ao início do livro,
indicando em sua circularidade o eterno retorno (justamente o
título da última parte).
A destacar, o surgimento na narrativa do personagem Anatole
(alusão a Anatole France, cuja influência foi
significativa na literatura brasileira canônica das primeiras
décadas deste século e, na quase-novela de Fraga,
emblematiza o acadêmico beletrista) que acompanha
Evêmero, interessado no Mangue. Evêmero: Vocês
beletristas são gozadíssimos! Olham tudo na vida
como motivo pra um conto Não suportam o ambiente --
como é mesmo o palavrão? -- anti-natural em que vivem
essas criaturas e querem encarcerá-las num mundo de
papel. Neste episódio, o narrador, dizendo evitar truques
literários, cria um bonde, bota Anatole nele e o retira, em
definitivo, da narrativa.
Expulsando o beletrismo de seu texto e escrevendo a linguagem da
metralha contra as instituições literárias,
Evêmero, alter-ego de Antônio Fraga, metralha o
cânone, escrevendo um livro anticanônico, como explica,
numa conversa com um poste da Light: "Sabe seu poste? Vou escrever
um livro bom à bessa ...(...) vou escrever ele todo em
gíria pra arreliar um porrilhão de gente Os anatoles
vão me esculhambar Mas se me der na telha usar a
ausência de pontuação ou fazer as
preposições ir parar na quirica das donzelinhas
cheias de nove horas ou gastar a sintaxe avacalhada que dá
gosto do nosso povo não tenho de modo nem um que dar
satisfações a qualquer sacanocrata não
acha?. O poste, em seu tamanho e superioridade, bancou que
não tinha ouvido (...) não deu nem
confiança pra evêmero e atravessou a rua todo
circuncisfláutico feito um gentelmen. O poste fala em
inglês! Poste e Anatole emblematizam o cânone: um
é mandado literalmente à merda; o outro é
expulso do livro! Com isto, Antônio Fraga, que disse não
ter ido ao Mangue como intelectual, elimina a voz do dono para dar
voz ao outro! Processo semelhante ao adotado por Marcello Dantas,
que, em sua instalação, recupera vozes que misturadas
às imagens e submetidas, ambas, à centrífuga
urbana, transfiguram o labirinto da cidade de São
Sebastião do Rio de Janeiro.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1-
BENJAMIN, Walter. "A infância em Berlim por volta de 1900". In:
Obras escolhidas, vol. II. São Paulo: Brasiliense,
1987. p.12.
2- BRISSAC, Nelson. "Ver o
invisível: a ética das imagens". In NOVAES, Adauto
(coord.). Ética. São Paulo: Companhia das
Letras, 1992. p.311.
3- CANCLINI, Néstor
García. "Narrar o multiculturalismo". In: Consumidores e
cidadãos: conflitos multiculturais da
globalização. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1996.
p.113.
4- Idem, ibidem, p. 131 e 135.
5- Ver "Visual urbano e cidade
digital", workshop do Grupo "Nova Teoria da
Comunicação", de que participaram Otilia Arantes, Mayra
Rodrigues Gomes, Rosamaria Luiza de Melo Rocha entre outros, cujjos
resultados foram publicados na revista Atrator Estranho, ano
II, nº 7, São Paulo: dez. 1994.
6- CANEVACCI, Massimo. A cidade
polifônica: ensaio sobre antropologia da
comunicação urbana. São Paulo: Studio Nobel,
1993.
7- ARANTES, Otilia. O lugar da
arquitetura depois dos modernos. São Paulo: EDUSP: Studio
Nobel, 1993.
8- RIO, João do. "Velho
mercado". In: Cinematographo. Porto: Lello &
Irmãos, 1909. p.214.
9- LINS, Álvaro. "E uma saga
do Rio de Janeiro em termos de província-nação".
In: Os mortos de sobrecasaca: ensaios e estudos. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1963. p. 269-278.
10- CARPENTIER, Alejo.
"Problemática de la novela latinoamericana". In: Ensaios.
Habana: Letras Cubanas, 1984. Ver especialmente p.12-14.
11- RABAN, Jonathan. Soft city.
London: Harvill, 1988.
12- FRAGA, Antônio.
Desabrigo. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura:
Departamento Geral de Documentação e
Informação Cultural, 1990.
RENATO CORDEIRO
GOMES é doutor em letras pela PUC-Rio, professor associado
de Literatura Brasileira do Departamento de Comunicação
Social e do Programa de Pós-graduação do
Departamento de Letras da PUC-Rio, onde desenvolve a linha de
pesquisa "Literatura e Experiência Urbana". Entre suas
publicações destacam-se Todas as cidades, a cidade
(Rio de Janeiro: Rocco, 1994) e João do Rio:
vielas do vício, ruas da graça (Rio de Janeiro:
Relume-Dumará: RioArte, 1996).
E-mail: rcgomes@domain.com.br