UMA CENTRÍFUGA URBANA
Imagens e representações da cidade

 

Renato Cordeiro Gomes
PUC-Rio


RESUMO
Esta reflexão em mosaico toma como ponto de partida a instalação Cidade de São Sebastião, do videomaker Marcello Dantas, para questionar o papel do cânone, enquanto instituição, na escritura e na leitura da cidade, particularmente o Rio de Janeiro, representada em discursos culturais, entre eles a literatura.

RESUMÉ
Cette réflexion en forme de mosaïque prend comme point de départ l'instalation Cidade de São Sebastião, du videomaker Marcello Dantas, pour mettre en question le rôle du canon, en tant que institution, dans l'écriture et la lecture de la ville, en paticulier Rio de Janeiro, representée dans des discours culturels, parmi eux la littérature.

 


1. À maneira de epígrafe, e servindo de mote, uma instalação: Cidade de São Sebastião: uma viagem através dos tempos e espaços do Rio de Janeiro, do videomaker Marcello Dantas, montada em março-abril de 1996, na Galeria do Século XXI do Museu Nacional de Belas Artes, que ocupa o prédio da antiga Escola de Belas Artes. Este belo edifício art nouveau foi construído durante as reformas modernizantes do Rio de Janeiro, no início do século XX, e situado na Av. Central (atual Rio Branco), o boulevard à parisiense, o eixo monumental que emblematizou essas reformas e em torno do qual se criou toda uma mitologia urbana. Esta mitologia da Avenida ocupou o imaginário carioca durante décadas, até ser corroída pelas sucessivas reformas, à medida que a vida mundana e boêmia se foi deslocando para a Zona Sul e também se ia desgastando o mito da Cidade Maravilhosa motivado pela própria crise da megalópole e pelo agravamento das questões sociais e da violência, reforçando a imagem do Rio de Janeiro como "cidade partida"... O prédio do Museu, ao lado da Biblioteca Nacional e do Teatro Municipal são os três que ainda restam da original Av. Central. Foi justamente nesse Museu, que até pouco tempo era o guardião da arte acadêmica da tradição, da arte canonizada, agora um verdadeiro centro cultural em que convivem essa arte e as experiências contemporâneas, que foi montada a instalação que nos serve de epígrafe.

Esta epígrafe já indica uma impossibilidade: converter a instalação em imagem (tipo)gráfica.

A obra de Marcello Dantas é uma construção de uma espécie de cidade virtual. Um avesso do Rio onde um pouco de sua história é vista sob uma ótica mais mundana, afirma o videomaker. Em 855 metros quadrados da Galeria, em forma de túnel, foi montado um percurso de 250 metros, pelos quais se espalharam 28 aparelhos de videolaser, que projetavam imagens e depoimentos sobre a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. "Organizei toda a instalação pensando na estrutura viva e mutante da cidade " -- frisa o autor, que trabalha o espaço mixado ao tempo enquanto fator interativo por excelência. Deste modo, imagens do passado acoplam-se às do presente, num jogo que as fragmenta e as superpõe. Abdicando da noção de totalidade, a instalação explora o túnel como motivo articulador que também dá forma ao percurso do espectador, que deambula por um túnel escuro, de tecido e paredes brancas, onde é bombardeado por imagens e sons. São treze cenários diferentes (7 são narrativos), acomodados em ângulos e curvas de um trajeto que acaba formando um labirinto (que, por analogia, é associado à imagem mítica arcaica com a qual é metaforizada a cidade moderna), remetendo a diversos níveis geográficos ou históricos da cidade. A interferência dos sons de um vídeo no outro criava , por outro lado, uma possível Babel, a confusão de imagens e ruídos urbanos.
A conjugação de Babel e do labirinto enquanto um modo de representar a cidade indica o desorientação do sentido e leva o espectador a aguçar a percepção. Saber orientar-se numa cidade não significa muito. No entanto, perder-se numa cidade, como alguém se perde numa floresta, requer instrução, já dissera Walter Benjamin [
1]. Na instalação, que arquiteta uma cidade virtual e elimina a totalidade, a orientação é dada, em termos, pelo túnel, que liga duas realidades e permite a expansão de horizontes. O emblema remete à própria realidade do Rio de Janeiro: "os túneis delimitaram a ocupação espacial da cidade; a cada túnel construído uma nova face era dada ao Rio; nossos elementos de ligação entre diferentes tempos e regiões da cidade - considera o videomaker. Assim, a forma de dispor fisicamente a instalação concretizou-se num grande túnel infinito. Aí nenhum espectador poderá ver a obra inteira porque em cada visita ela é outra. As projeções somam 90 minutos, mas ninguém consegue ver a totalidade disso, porque a estrutura de exibição muda conforme a velocidade de leitura de cada um (palavras do autor), mesmo que houvesse, como de fato houve, um mapa para orientar o visitante que, ao atravessar a cidade-túnel-labirinto, constrói a sua leitura, operando conexões e estabelecendo redes através do percurso.
A instalação Cidade de São Sebastião alterna depoimentos históricos com experiências que mexem com os sentidos. Há os segmentos narrativos em que personagens como o pintor modernista Portinari, o famoso compositor de música popular dos anos 30, Noel Rosa, o poeta Vinicius de Moraes, Dona Ceci, a mulher de Noel contam casos; ou Isaías Ambrósio, guia oficial do Maracanã, que relata, em portunhol, a um grupo de turistas a derrota do Brasil para o Uruguai, na Copa de 50. No mirante, tem-se uma visão panorâmica da Lapa, da Praça Quinze e de Copacabana através dos tempos. Mulheres do Rio: Leila Diniz, Valéria Valenssa, a mulata globeleza, e uma menina patinadora de rua. Homens do Rio: Vinicius, o Beijoqueiro e o ex-sambista Pedralvo da Lacraia já convertido à Igreja Evangélica. Adiante, um raio e um trovão anunciam um segmento vertiginoso numa tempestade de imagens que mostram as tragédias da cidade. Segue-se a passagem por um túnel, onde se tem a sensação de andar em velocidade, porque no teto e nas paredes são projetadas imagens em movimento. No fim um sensor infravermelho aciona uma lâmpada de 300 watts; meio cego, o visitante cai na "centrífuga urbana", um semicírculo de 270 graus onde são projetadas dez imagens que giram em grande velocidade, ao som alucinante de uma bateria de escola de samba (Imagine uma porta-bandeira louca girando por vários pontos da cidade e a imagem diluída como se fosse um líquido -- sugere Marcello). O trajeto termina com cenas de manifestações religiosas que levam à última imagem, a de São Sebastião, homenagem ao santo padroeiro do Rio e ícone da instalação.
Essa descrição -- redutora e linear -- apenas dá uma pálida idéia da obra, mas nos serve de emblema para mostrar que não há uma maneira única de "escrever/ler" a cidade na sua multiplicidade e mutabilidade. Revela que o processo de modernização tornou a cidade uma imensa arena de discursos gastos e dispersos, lugar de inscrição e rasura de signos que desafia o olhar do habitante, que busca lê-la. Assim, o olhar que desaprendeu a ver porque a distância foi eliminada e com ela a paisagem, sob a ditadura da visão imediata [
2], está num processo de fusão visual, compactando uma multiplicidade de gestos, movimentos e imagens. A instalação demonstra que não se trata de encontrar um caminho no mapa que ordenava o espaço e dava um sentido global aos comportamentos, às travessias; demonstra que, ao focalizar de dentro a cidade, se vêem apenas fragmentos, imediações, lugares fixados por uma percepção míope do todo, e de longe ela parece uma massa confusa, em que é difícil aplicar os modelos fabricados pelas teorias da ordem urbana, como revelou García Canclini[3]. Continua este crítico:

Narrar [a cidade] é saber que já não é possível a experiência da ordem que o flâneur esperava estabelecer ao passear pela metrópole do início do século. Agora a cidade é como um videoclipe: montagem efervescente de imagens descontínuas. (...) Tudo é denso e fragmentário. Como nos vídeos, a cidade se fez de imagens saqueadas de todas as partes, em qualquer ordem. Para ser um bom leitor da vida urbana, há que se dobrar ao ritmo e gozar as visões efêmeras [4] .

Escrever/ler a cidade é, portanto, engendrar um discurso que procura estabelecer conexões precárias e provisórias entre os fios secretos e descontínuos da linguagem urbana. Esse discurso é, então, o relato sensível dos modos de ver a cidade, produzindo uma cartografia simbólica, a partir de percursos numa rede. Quem escreve/lê a cidade procede a uma leitura-navegação por essas redes, engendrando cidades outras. Em cada imagem e cada ponto do itinerário, pode-se estabelecer, através de deslocamentos, uma relação de afinidades ou de contrastes que leve a estabelecer sentidos sempre móveis. O leitor reativa o estoque de imagens urbanas, à maneira de zapping, acessando cenas, imagens, informações pelas redes, mas também das cidades reais.
Dessa cidade digital, ou cidade virtual, ou mesmo das cidades reais, está eliminado o flâneur, esse personagem urbano, que tinha a rua como espaço de deambulação, e, com o olhar inteligente, mas desenraizado, contemplava, em seu ócio, através da multidão, o espetáculo cambiante do efêmero e do contingente da cidade transformada pela Revolução Industrial. Se a celebração da vitalidade urbana, de sua diversidade e plenitude, é um dos temas mais antigos da cultura moderna, cuja fantasia se cristalizou em torno da rua, que emergiu como símbolo fundamental da vida moderna, a cidade deste fim de século vê praticamente esgarçada tal simbologia. O antigo flâneur absorvido pela multidão e pela massa não tem mais lugar na cidade da via expressa, na sociedade dominada pelas tecnologias comunicacionais contemporâneas. Talvez tenha cedido o lugar para o zappeur [
5], que, escolhendo pontos e fragmentos urbanos (reais ou virtuais), pode montar sua imagem da cidade, longe da rua.
Aceitando o fragmentário, o descontínuo, e contemplando as diferenças, os discursos contemporâneos cenarizam a cidade patchwork, com sua polifonia [
6], sua mistura de estilos, sua multiplicidade de signos, na busca de decifrar o urbano que se situa no limite extremo e poroso entre realidade e ficção, a indicar um reino chapado da superfície, em exposição plena, que cega, ao invés de seduzir; obliteram-se as fronteiras entre exterior e interior, próximo e distante.

2. Estas observações derivadas da instalação de Marcello Dantas servem de mote para pôr em causa a constituição de um cânone literário para a cidade, aqui considerado como ocidental, eurocêntrico e moderno. Sabe-se que a concepção de cidade moderna se liga às noções de utopia e de progresso, tendo por base o método projetual regido pelos preceitos de objetividade, racionalidade, funcionalidade e internacionalidade, para resolver os antagonismos da metrópole através da ordenação do espaço habitado [7].
A literatura que representa esse processo trabalha o binômio de dupla implicação "modernidade e experiência urbana" e gera o cânone que se institucionalizou enquanto tradição seletiva, com a autoridade que excluía outros modos históricos de representar a realidade citadina. Se a cidade dos centros hegemônicos era o modelo, aquelas situadas fora desse eixo deveriam copiá-las, como símbolo da civilização e da modernidade, na tentativa de apagar as diferenças. Falando do Rio de Janeiro do início do século XX, diz João do Rio (pseudônimo de Paulo Barreto, o cronista e primeiro repórter moderno no Brasil que acoplou no seu nome o nome da cidade), quando lamenta a demolição do velho mercado: "De súbito, da noite para o dia, compreendeu-se que era preciso ser tal qual Buenos Aires, que é esforço despedaçante de ser Paris. (...) Uma cidade moderna é como todas as cidades modernas"[
8]. O modelo identificava-se com o cosmopolitismo e permitia a oposição civilização/barbárie, progresso/atraso, novo/velho.

3. Dessas questões, deriva-se uma outra, que no fundo é a mesma, e diz respeito ao nacionalismo. É por aí que gostaria de aludir a um ensaio de 1942, do crítico Álvaro Lins, publicado quando da edição do livro de contos Stela me abriu a porta, de Marques Rebelo. O ensaio intitulado "E uma saga do Rio de Janeiro em termos de província-nação" [9] faz um balanço da obra de Rebelo, mas antes põe sob suspeita a existência de uma literatura urbana no Brasil, pautando a discussão em torno do binômio província-nação. O solo para o desenvolvimento dos argumentos é o nacionalismo. A abordagem coloca-se na deriva do programa de nosso modernismo de 22, mas sobretudo de 30 [que não cabe aqui esmiuçar], no sentido de busca de uma identidade nacional, para localizar a literatura que dramatiza o Rio de Janeiro, onde se insere a obra de Rebelo.
A parte inicial, "Mundo carioca: a Província-Maior", sob a ótica do nacionalismo, mostra, em síntese, que a capital se forma feito soma de todas as províncias nacionais. Para o crítico a única forma possível de criação literária seria esta: o eu, a província, a cidade, a nação, a humanidade. Só preso a essas instâncias seria o escritor mais universal: quanto mais próximo à origem, mais universal. A linha de raciocínio pretende, assim, valorizar a província em detrimento do cosmopolitismo. Afirma Álvaro Lins: Do contrário, iremos cair no deraciné, no postiço, no artificial, no cosmopolita. E o deraciné vem a ser o desnutrido, o anêmico, o desprovido da seiva e do sangue da sua terra... O enraizamento na província e na nação -- na origem, no centro, portanto, seria necessário ao universal. Caso contrário, seria uma literatura desfibrada, doente (notem-se as metáforas patológicas). A literatura verdadeira viria da autenticidade, da pureza, do apego ao natural, ao nacional.
Por tal viés, vê o crítico a literatura do Brasil, feita de diversidades provincianas submetidas a uma unidade; vê o espírito nacional como um conjunto dos espíritos provincianos: qualidades intrínsecas, a-históricas, fronteiras culturais reforçadas pela literatura enquanto instituição. Nesta clave, afirma ser provinciana toda nossa literatura e ser o Rio de Janeiro a soma de todas as províncias, portanto, o nacional. O Rio seria uma espécie de arquiprovíncia, o centro convergente do país e, ao mesmo tempo, o centro irradiador. Esta seria a noção de cidade aí implícita, de que se exclui o cosmopolitismo.
Sustenta afinal que não temos realmente o que se possa chamar uma literatura urbana, uma literatura que reflita a febre e o crescimento de uma grande metrópole... Nossos escritores, mesmo quando tematizam a grande cidade, voltam-se de preferência para aqueles aspectos mais antigos, mais característicos, mais provincianos. Por provinciano entende o local que precisa sempre de uma expressão universal para revelar-se, através de um humanismo generalizante.

O pensamento de Álvaro Lins atrelado ao seu tempo e ao contexto brasileiro dos anos 30/40, tem por base a territorialização, dentro da tradição nacionalista. A identidade surge como essência intemporal. Ao contrário disto, como se depreende da instalação de Marcello Dantas, a identidade surge como uma construção imaginária que se narra. A globalização mostra que os referentes da identidade se formam em relação com os repertórios textuais e iconográficos gerados pelos meios eletrônicos de comunicação e com a globalização da vida urbana.

4. Outro tópico neste levantamento de questões retoma uma formulação de Alejo Carpentier no ensaio "Problemática de la novela latinoamericana" [10]. Partindo da observação sobre a dificuldade de utilizar nossas cidades como cenários de romances, pelo fato de elas não terem estilo, o escritor cubano constata as características híbridas das cidades latino-americanas, em oposição às cidades européias que têm um estilo fixado para sempre, o que facilitaria cenarizá-las na ficção. As nossas [cidades], ao contrário, estão há muito tempo em processo de simbiose, de amálgama, de transmutações -- tanto no aspecto arquitetônico como no humano. Estabelecem-se novas escalas de valores. Nossas cidades não têm estilo. E, entretanto, começamos a descobrir agora que têm o que poderíamos chamar de terceiro estilo: o estilo das coisas que não têm estilo. Este terceiro estilo, híbrido, desafia o que se considerou até então, como bom ou mau estilo, como bom ou mau gosto, e só se mostra pela revelação da cidade, para além desses valores canônicos e centrados pelo estilo "puro", europeu, dado como universal.

Estaria desta maneira a literatura urbana latino-americana rompendo com o cânone, como estratégia de afirmação de sua identidade cultural construída discursivamente frente ao princípio de exclusão? A representação de cidades periféricas é excluída do cânone? Elas só se legitimam enquanto cópia? (Observe-se que a noção de cidade periférica atrela o espaço à categoria de tempo; e por aí nossas cidades são vistas como atraso, defasagem, anacronismo, para aquém da globalização que projeta a desterritorialização).

Por outro lado, poderíamos perguntar se o terceiro estilo, estilo mixado de referências e citações de diversas épocas e espaços culturais, não se aproximaria do que Jonathan Raban, no ensaio Soft city [11] (1974), denomina "enciclopédia" ou "empório de estilos", que dissolve os sentidos de hierarquia e homogeneidade? Elegendo Le Corbusier como bête noire, Raban afirma que a ficção urbana de hoje apresenta cidades largamente deslocalizadas, onde tudo é implicitamente urbano, onde não é mais possível uma geografia à Balzac, ou à Zola, ou mesmo como nas narrativas do alto modernismo. Rejeitando a concepção de cidade rigidamente estratificada por ocupação ou classe, de cidade planejada racionalmente, propõe, a partir dos movimentos dos anos 60, a cidade como labirinto formado como uma colméia por redes bastante diversas de interação social com metas plurais, de tal maneira que a enciclopédia se torna um livro de rabiscos de um maníaco, cheio de itens coloridos sem nenhum esquema determinante, racional ou econômico. A cidade seria o lugar em que o fato e a imaginação simplesmente teriam de se fundir. Já não haveria, portanto, um canône hegemônico para a escrita/leitura da cidade.

5. Se comecei com uma instalação à maneira de epígrafe, termino com uma "quase-novela" à maneira de epitáfio: refiro-me ao texto de Antônio Fraga intitulado Desabrigo [12] (escrito em 1942 e publicado em 1945), que não foi incorporado ao cânone modernista brasileiro. Nem tampouco seu autor, que sempre se pôs à margem das instituições literárias (Fraga viveu sempre à margem da vida literária; apesar de só ter estudado até o segundo ano primário, falava, escrevia e traduzia várias línguas, e de ser um estudioso de filosofia e de matemática, muito pouca coisa de sua original e transgressora produção constituída de narrativas, peças de teatro e de poesia, foi publicada. O escritor que se considerava maldito e rebelde, por mais de 20 anos viveu em Queimados na Baixada Fluminense, zona da periferia do Rio de Janeiro; morreu pobre e esquecido no início dos anos 90).
Desabrigo é um romance escrito em gíria, sem qualquer pontuação, e dramatiza a vida do Mangue, o mundo marginal dos malandros (os personagens Cobrinha, Desabrigo e Miquimba), do não-trabalho, das estatégias de sobrevivência (como o golpe, o jogo, a caftinagem, a esperteza). Evêmero é o escritor-narrador, que, embora não seja do meio, compartilha com os malandros e prostitutas o mundo marginal, para escrever como poeta e vagabundo ("vagabundo é sempre um idealista e é portanto individualista enquanto que o malandro é pragmatista e é povo", diz ele). Evêmero procura Desabrigo, pois através dele deseja conhecer o espaço e os habitantes do Mangue e adjacências, para escrever um livro sobre "todo malandro e mulher da vida ". No final, constata o desaparecimento desse mundo: "Evêmero andando pelas ruas do mangue (agora o mangue acabou) andando pelos escuros da lapa (a lapa acabou)", como acabaram os "irmãos" dele -- as prostitutas e os malandros. Cito: Evêmero então foi indo pra casa e foi pensando "É preciso fazer mesmo alguma coisa Isso não pode ficar assim!" Metralhadoras pipocavam na imaginação dele (...) É preciso fazer alguma coisa -- agir agir agir ... Esse agir é a escrita do livro, indicada neste final da narrativa, quando entrou em casa, despiu o paletó (metralhadoras metralhadoras metralhadoras) arregaçou as mangas da camisa (metralhadoras metralhadoras metralhadoras) e metralhou na reminton. Então escreve a primeira frase que retoma e remete ao início do livro, indicando em sua circularidade o eterno retorno (justamente o título da última parte).
A destacar, o surgimento na narrativa do personagem Anatole (alusão a Anatole France, cuja influência foi significativa na literatura brasileira canônica das primeiras décadas deste século e, na quase-novela de Fraga, emblematiza o acadêmico beletrista) que acompanha Evêmero, interessado no Mangue. Evêmero: Vocês beletristas são gozadíssimos! Olham tudo na vida como motivo pra um conto Não suportam o ambiente -- como é mesmo o palavrão? -- anti-natural em que vivem essas criaturas e querem encarcerá-las num mundo de papel. Neste episódio, o narrador, dizendo evitar truques literários, cria um bonde, bota Anatole nele e o retira, em definitivo, da narrativa.
Expulsando o beletrismo de seu texto e escrevendo a linguagem da metralha contra as instituições literárias, Evêmero, alter-ego de Antônio Fraga, metralha o cânone, escrevendo um livro anticanônico, como explica, numa conversa com um poste da Light: "Sabe seu poste? Vou escrever um livro bom à bessa ...(...) vou escrever ele todo em gíria pra arreliar um porrilhão de gente Os anatoles vão me esculhambar Mas se me der na telha usar a ausência de pontuação ou fazer as preposições ir parar na quirica das donzelinhas cheias de nove horas ou gastar a sintaxe avacalhada que dá gosto do nosso povo não tenho de modo nem um que dar satisfações a qualquer sacanocrata não acha?. O poste, em seu tamanho e superioridade, bancou que não tinha ouvido (...) não deu nem confiança pra evêmero e atravessou a rua todo circuncisfláutico feito um gentelmen. O poste fala em inglês! Poste e Anatole emblematizam o cânone: um é mandado literalmente à merda; o outro é expulso do livro! Com isto, Antônio Fraga, que disse não ter ido ao Mangue como intelectual, elimina a voz do dono para dar voz ao outro! Processo semelhante ao adotado por Marcello Dantas, que, em sua instalação, recupera vozes que misturadas às imagens e submetidas, ambas, à centrífuga urbana, transfiguram o labirinto da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1- BENJAMIN, Walter. "A infância em Berlim por volta de 1900". In: Obras escolhidas, vol. II. São Paulo: Brasiliense, 1987. p.12.
2- BRISSAC, Nelson. "Ver o invisível: a ética das imagens". In NOVAES, Adauto (coord.). Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p.311.
3- CANCLINI, Néstor García. "Narrar o multiculturalismo". In: Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1996. p.113.
4- Idem, ibidem, p. 131 e 135.
5- Ver "Visual urbano e cidade digital", workshop do Grupo "Nova Teoria da Comunicação", de que participaram Otilia Arantes, Mayra Rodrigues Gomes, Rosamaria Luiza de Melo Rocha entre outros, cujjos resultados foram publicados na revista Atrator Estranho, ano II, nº 7, São Paulo: dez. 1994.
6- CANEVACCI, Massimo. A cidade polifônica: ensaio sobre antropologia da comunicação urbana. São Paulo: Studio Nobel, 1993.
7- ARANTES, Otilia. O lugar da arquitetura depois dos modernos. São Paulo: EDUSP: Studio Nobel, 1993.
8- RIO, João do. "Velho mercado". In: Cinematographo. Porto: Lello & Irmãos, 1909. p.214.
9- LINS, Álvaro. "E uma saga do Rio de Janeiro em termos de província-nação". In: Os mortos de sobrecasaca: ensaios e estudos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963. p. 269-278.
10- CARPENTIER, Alejo. "Problemática de la novela latinoamericana". In: Ensaios. Habana: Letras Cubanas, 1984. Ver especialmente p.12-14.
11- RABAN, Jonathan. Soft city. London: Harvill, 1988.
12- FRAGA, Antônio. Desabrigo. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura: Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, 1990.


RENATO CORDEIRO GOMES é doutor em letras pela PUC-Rio, professor associado de Literatura Brasileira do Departamento de Comunicação Social e do Programa de Pós-graduação do Departamento de Letras da PUC-Rio, onde desenvolve a linha de pesquisa "Literatura e Experiência Urbana". Entre suas publicações destacam-se Todas as cidades, a cidade (Rio de Janeiro: Rocco, 1994) e João do Rio: vielas do vício, ruas da graça (Rio de Janeiro: Relume-Dumará: RioArte, 1996).
E-mail: rcgomes@domain.com.br


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