Um crime delicado
 
 

Sérgio Sant'Anna

 

Raquel Illescas Bueno

Universidade Federal do Paraná (UFPR)


RESUMO
Um crime delicado (1997) é o mais recente romance de Sérgio Sant'Anna. Procurando defender-se da acusação de estupro, o narrador-protagonista emprega um discurso bastante racional. O texto sugere perversões sexuais, mas contém delicadeza e racionalismo suficientes para ser considerado uma eficiente peça de defesa.

ABSTRACT
Um crime delicado (1997) is the most recently novel by Sérgio Sant'Anna. Being accused of rape, the main character, who is also the narrator, defends himself using a very rational discourse. The text suggests sexual perversions, but it contains delicacy and racionalism enough to be considered an efficient defense.


A perversão medida

Qual escala poderia ser usada para dimensionar um comportamento tido como perverso? Que diferença faz que, julgando-se inocente, quem escolhe essa escala seja o próprio sujeito acusado? Em Um crime delicado, novo romance de Sérgio Sant'Anna, questões dessa natureza surgem em meio à tematização das relações da vida com o teatro, as artes plásticas, a literatura e a crítica de arte. A resposta possível, no contexto do romance, é que a própria linguagem, considerada muito além de sua função instrumental, é capaz de instaurar e dimensionar, não a perversão, em si, mas o espaço em que ela opera.
Um sujeito "normal", que se destaca pelo perfil intelectual, narra fatos recentes que transformaram sua vida, motivado pela perspectiva de compreender melhor suas atitudes. Não é a primeira vez que Sérgio Sant'Anna constrói seu enredo a partir desse mote. No conto "O monstro", de 1994, um professor de filosofia concede entrevista na condição de estuprador e co-autor de um assassinato. Preso e condenado a trinta anos de reclusão por ter ajudado a namorada a drogar e a matar uma jovem quase cega, ele admite que havia se deixado guiar pela "lógica da insensatez". Em nenhum momento ele nega as acusações. Sabe que é culpado, sente-se culpado e comenta friamente os detalhes do crime. Em Um crime delicado, trata-se de um crítico que se envolve com uma moça manca. Mas há diferenças de tom e conteúdo. Como o título sugere, temos um prolongamento mais delicado da investigação sobre aquilo que pode levar ao banco dos réus alguém com perfil semelhante ao do professor/monstro.
O protagonista de Um crime delicado é o crítico teatral Antônio Martins, que se julga inocente e escreve para se defender. De quê? Tendendo mais para o romance psicológico do que para o "thriller", o novo romance reafirma a tendência de Sérgio Sant'Anna a investigar as razões do inconsciente. Atinge-o por meio de um discurso racional, ordenado, escorreito. Trata-se de uma verdadeira peça de defesa em que o maior ponto de contato com o romance policial é o adiamento da nomeação do crime.
Conforme escreveu Aristóteles em sua Arte Retórica, o primeiro meio para refutar uma acusação consiste em dissipar a má impressão que poderiam ter de nós.(...) Antes de identificar a ação que o levou a ser acusado, o protagonista procura tornar-se simpático aos olhos do leitor. Para isso contribui o perfil ambíguo de quem contracena com ele. Inês é uma bela jovem, manca, fragilizada física e emocionalmente. O protagonista destaca-a entre as diversas mulheres com quem costumava manter encontros esporádicos. Além de apaixonado por Inês, Antônio Martins é totalmente humano ao confessar suas fraquezas e os eventuais disfarces que emprega para encobri-las. O amor à primeira vista é uma sensação perturbadora para ele, ainda mais quando ele considera a circunstância insólita em que conversou com a moça manca pela primeira vez: ela se apoiou nele para não rolar escada (rolante) abaixo, numa estação de metrô carioca. A atitude patética de Inês, pedindo socorro em público a um desconhecido, suscita o instinto de proteção, mas também estimula as fantasias eróticas daquele que narra. A caracterização de Inês mescla o patético à ambigüidade das atitudes, a fragilidade ao mistério, a sensualidade à dissimulação.
Está desenhada parte do cenário propício para as perversões. Seguem-se especulações sobre quem formaria com Antônio Martins e Inês um suposto triângulo: o artista plástico italiano Vitório Brancatti, para quem Inês posou, Lenita, ou Nílton? Ou seria outra a figura geométrica em questão, possibilitando o envolvimento simultâneo de todos eles?
O leitor não se vê às voltas com a decifração da autoria do crime. Sua tarefa é coordenar as informações truncadas sobre a motivação das atitudes do narrador em episódios que não se sabe qual relação mantêm com o tal crime de que é acusado. Prossegue Aristóteles: Outro meio consiste, para ir ao encontro de fatos contestados, em dizer que tal fato não existe, ou não é nocivo, ou não o é, para o nosso adversário, ou carece da importância que este lhe atribui... Se os advogados conhecem bem os meandros da retórica, são os críticos que convivem diariamente com o ditado popular que afirma que "a melhor defesa é o ataque". Falácia ou verdade, Antônio Martins saberá explorar os dois lados dessa moeda.
Entretecendo as análises sobre suas atitudes e reações, o narrador lança mão do discurso crítico com o qual ganha a vida, escrevendo para jornais. O enredo dá margem a dois textos de crítica teatral: o primeiro trata de uma montagem de Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues, o outro debruça-se sobre uma peça imaginada pelo próprio Sérgio Sant'Anna, inspirada na ficção de Proust. Mais importante é a análise de um quadro de Vitório Brancatti, intitulado "A modelo", o qual passa a ocupar o centro da metáfora narrada. Na tela, como no quarto da modelo, visitado pelo narrador, aparecem Inês, um biombo, um cavalete e uma muleta, além de peças de lingerie. O fascínio que Inês exerce sobre Antônio estende-se logo para o quadro do rival, transformando o texto crítico em espaço para o exercício da subjetividade medida.
Com fama de exigente, e sem desgostar dessa fama, Antônio Martins não está nada à vontade quando declina a razão pela qual redigiu um texto favorável a uma determinada peça: tratava-se de uma espécie de chantagem refinada, para que a atriz com quem ele passara uma noite não revelasse um segredo de alcova. Nesse e em diversos outros trechos do romance, o narrador faz observações que antecipam as deduções do leitor. Seu objetivo, desde a abertura do romance ("É preciso esclarecer que") é sempre o mesmo: ser o mais claro possível em sua defesa. Antônio sabe que não domina totalmente os fatos, seja porque bebeu demais numa certa noite, porque conhece pouco aqueles com quem convive ou porque desconfia que a "verdade verdadeira" não costuma aparecer em lugar algum. Mas a linguagem é sempre um ponto de apoio eficiente: é preciso organizar esse fluxo, como o tenho feito, para que eu próprio possa segui-lo, dominá-lo ao menos nestas páginas, estas frases que se encadeiam, como se elas, sim, criassem a verdadeira realidade, afirma ele a certa altura.
A percepção não é tão "de dentro", nem chega perto da fragmentação alcançada pelos protagonistas dos romances de João Gilberto Noll ou de Chico Buarque, por exemplo. Não há dissolução da consciência, apesar dos pontos cegos apontados. Mas é justamente entre as frestas da razão que passam as informações mais interessantes para que se possa concordar com a delicadeza da ação considerada perversa, que resultou na acusação por estupro. Sintomaticamente, mesmo no desfecho, frente a um tribunal, quando a fala de Antônio Martins costura as informações anteriores e ele libera algumas emoções, a ordenação discursiva não é abandonada, muito pelo contrário.
Em dia com as teorias que tratam da crise da representação na arte moderna e pós-moderna, o narrador pincela seu texto com observações metalingüísticas. Logo no início, o jogo de espelhos do café onde o narrador viu Inês pela primeira vez merece comentário: ele havia suscitado uma visão oblíqua do objeto do desejo.
Alguma coisa igualmente oblíqua caracteriza o confronto entre o crítico Antônio Martins e o pintor Vitorio Brancatti, sugerindo que a culpa do narrador não está, por assim dizer, apoiada em local apropriado. O mesmo acontece em relação àquela muleta incômoda, vista por ele no quadro e no quarto de Inês, apoiada em um cavalete. A muleta é hiper-realista. Estava ali apenas para criar um efeito estético, já que Inês, apesar das dificuldades de locomoção, dispensava o seu uso. Essa é uma das dimensões da metalinguagem no romance: "A modelo" é um "meta-quadro" que possibilita falar da vida em confronto com a arte, assim como as opiniões do crítico de arte funcionam como discurso metalingüístico em relação ao teatro, mas também em relação à vida das atrizes e dos críticos de teatro.
São discursos dentro de discursos, mas não há excessos que pervertam o texto de Sant'Anna. A linguagem é medida, e dimensiona a perversão. A temática dos comportamentos sexuais desviantes - ou supostamente desviantes - é abordada de um ponto de vista muito mais analítico e psicológico do que ocorre nas histórias de Dalton Trevisan ou Rubem Fonseca. Em matéria de crueldade na tematização dos defeitos físicos, porém, ninguém superará Machado de Assis em ironia. Brás Cubas não tem qualquer comportamento sexual desviante, mas abandona prontamente a idéia de namorar a doce Eugênia (a "flor da moita") após questionar-se, inconformado com a ordem natural das coisas: por que coxa, se bonita? por que bonita, se coxa? Se a perversão pode assumir diversos matizes, a de Sérgio Sant'Anna, neste romance, é de natureza delicada e, além disso, mediada pela paixão amorosa.
Ainda assim, vale perguntar: existe ironia em Um crime delicado? O tom da narrativa é sempre sério, mas o leitor não se deve deixar enganar. Atrás da seriedade das afirmações, dimensionando o circuito da racionalidade encontramos o mesmo Sérgio Sant'Anna de A senhorita Simpson e de Breve história do espírito: um autor essencialmente irônico. Fora do texto, incitado a comentá-lo, ele é capaz de retirar por instantes sua máscara, e afirmar, como o fez em entrevista a José Castello: O tom sério que Antônio Martins adota para escrever seu relato já é, em si, uma grande gozação. É uma piada com a linguagem pomposa da crítica. (O Estado de S. Paulo, 2/08/97)
O resultado é instigante, não tanto pelo fato de ser um crítico teatral quem ironiza a crítica, mas principalmente pela construção bem dosada, em que não há excesso de teorização. Um crime delicado reafirma a capacidade já demonstrada por Sérgio Sant'Anna - e o volume recentemente publicado de seus Contos reunidos está aí para prová-lo - de narrar uma boa história, com inteligência e elegância.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. São Paulo: Ediouro, s.d.
ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Ática, 1982.
SANT' ANNA, Sérgio. Um crime delicado. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.


Raquel Illescas Bueno é professora de Literatura Brasileira e Teoria da Literatura na Universidade Federal do Paraná.
e-mail: raquel@coruja.humanas.ufpr.br


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