O país que perdeu a alma

 

Rubem Mauro Machado

 

No parque Lisinski, em Varsóvia, existe um monumento (reconstruído) a Chopin, ao pé do qual, no verão, se realizam concertos. Quando as hordas hitleristas ocuparam a capital polonesa, uma de suas primeiras providências foi dinamitar o belo monumento. Mais do que uma crueldade gratuita (das muitas cometidas), a agressão tinha um objetivo claro: os alemães sabiam que, para dominar um povo, é preciso antes quebrar seu orgulho, destruir seus símbolos e sua identidade nacional. Uma variação amena desse princípio seria a fórmula americana "conquistar corações e mentes", que, aplicada no Vietnã, como se sabe, não funcionou.
Pois bem, talvez estejamos testemunhando no Brasil um caso inédito de gratuito suicídio cultural de uma nação. É duro dizer, mas é importante que se diga: os brasileiros, pelo menos aparentemente, decidiram que são, ou querem ser, não eles próprios mas americanos do norte - ainda que de segunda classe.
Claro, o fenômeno da globalização, comandado pela superpotência que restou, é uma realidade inegável. Mas pelo menos o que se vê em outros países é uma reação em defesa de seus valores culturais: a França, por exemplo, luta por seu idioma com uma disposição de Mike Tyson e a Disneylândia erguida perto de Paris dá, felizmente, prejuízo. Em Roma, há alguns anos, a inauguração do primeiro McDonald' s provocou passeatas de protesto que contaram até com Federico Fellini.
Aqui? Bem, nossa aspiração máxima parece ser a de nos convertermos num país papel-carbono. E o espelho em que nos refletimos é o cinema de Hollywood. Ele nos ensina tudo: como devemos vestir, comer, beber, pensar, nos divertir.
O sintoma mais imediato de perda da identidade é a linguagem. Tentamos nos convencer ( e ao mundo?) de que falamos inglês. A sigla da síndrome da imunodeficiência adquirida é, em toda a América Latina, Sida; no Brasil, claro, é Aids. Nossas empresas não têm mais orçamento, têm budget (fica mais fino). E não mais demitem pessoal, fazem downsizing. As pessoas não lutam contra prazos mas contra deadlines (que chique).
Não tem importância que seja muitas vezes um inglês estropiado, resultante de erros de tradução de falsos cognatos; basta que soe como inglês. De modo que as pessoas continuarão a se vestir de maneira casual (informal); os engenheiros não vão parar de construir plantas (fábricas); os novos-ricos da Barra vão formar por muito tempo uma sociedade afluente ( próspera); e o ex-presidente Reagan, segundo os jornais, continuará a passar os fins de semana em seu rancho (fazenda). O comércio, para maior sofisticação, continuará a ser reconhecido por nomes cheios de consoantes, não importa o sentido. Um amigo americano começou a rir ao ver o letreiro de uma loja da Zona Sul: Clappy em inglês quer dizer, literalmente, gonorrento.
Não vai aqui um preconceito contra o uso de palavras estrangeiras. Alguns termos técnicos, por exemplo marketing, de fato não têm um correspondente preciso em português. Mas por que um publicitário simplesmente não congela a imagem de seu filme e sim, argh, essa é de doer, a friza (do inglês to freeze)? Não disputamos torneios de futebol de praia mas de beach-soccer .. Um programa esportivo de televisão apresenta, no intervalo, não o momento do teste ou da pergunta mas um quiz-test. E a seção de notas de uma excelente coleção de literatura brasileira vendida em bancas foi intitulada, pasmem, help. Acho que refletir sobre tudo isso exige no mínimo um brain-storming? Mas que fica difícil deletar, digo apagar, a má impressão, ah isso fica.
Mas a linguagem é apenas o sintoma mais evidente de nossa desnacionalização; o pior é a abjuração de nossos costumes. Tudo bem que alguém aprecie mascar chicletes e engolir hamburguers, gosto é gosto. Mas vem cá, se fantasiar de bruxo para festejar halloween é um pouco demais, não é não? Em breve estaremos comendo perus no Dia de Ação de Graças. Aposto que essas mesmas pessoas devem achar festinha de São João o cúmulo do provincianismo. Enquanto isso, os peões de rodeio de Barretos nos aparecem vestidos como texanos. Os pobres porteiros dos hotéis de Copacabana envergam fardas cinzentas abotoadas até o queixo, como se estivessem na Suíça, a um calor de 40 graus. E nos nossos jogos de futebol temos agora para animar a torcida cheer-leaders, inclusive com os trajes e a coreografia que nos acostumamos a ver naqueles filminhos vagabundos que passam na sessão da tarde. Wow!
Mas em nenhum outro lugar a vontade de ser americano transparece com mais gana do que na publicidade. Por ela, chegamos à conclusão de que o país foi colonizado por ingleses, para não dizer suecos. O filmete de propaganda do tênis Manoel Tobias, com o astro de futebol-de-salão (esporte aliás inventado no Brasil), apresenta uma ambientação tal que até os muros sujos que vemos lembram os muros de Nova York. E os crioulos que aparecem! Lembram antes moradores do Harlem do que da Rocinha: até a miséria alheia nos é apresentada como mais atraente. Bom, é só um exemplo: se fosse ficar falando da macaqueação desses modelos, precisaria escrever uma enciclopédia; é só ligar a TV e constatar por si mesmo.
Nada há de mais tacanho e burro do que o nacionalismo e o bairrismo. Mas querer negar a si mesmo para ser o outro nada tem a ver com isso, é sintoma que exige a urgente intervenção de um novo profissional, o psicanalista-social, capaz de curar complexos de inferioridade não de indivíduos mas de povos inteiros. Penso que cada vez mais damos razão a nossos irmãos portenhos, quando eles nos chamam daquela palavrinha ofensiva, de cunho racista, é bom que se diga, com que costumam nos mimosear quando nós lhes aplicamos uma surra no futebol.
De minha parte, já estou providenciando um letreiro para ilustrar o peito de minha T-shirt, perdão, camiseta: "Minha camiseta é toda escrita em português." E, acreditem ou não, essa frase será, não em inglês, no nosso idioma pátrio.


Rubem Mauro Machado, jornalista e escritor, é autor do romance Lobos, uma denúncia do militarismo, lançado ano passado pela editora Record.


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