Literatura, Discurso, Sociedade*

 

Luis Filipe Ribeiro

Universidade Federal Fluminense


Resumo

Este artigo, inicialmente texto de uma conferência, tenta redesenhar o campo das análises do discurso, de forma a resgatar sua irredutível vocação para expressar a malha de relações socias dentro de que cada sociedade se expressa e se identifica, bem como discutir as diferentes teorias do texto, de forma a situar o discurso como negação de qualquer tentação positivista e atribuir à literatura uma posição de discurso de conhecimento, distante do beletrismo e dos esteticismos castradores, muito em voga entre nós.

Abstract

This article ,which was first presented at a Conference, tries to redesign the field of discourse analysis so as to recover its irreducible vocation to express the totality of social relations within which each society expresses and identifies itself, as well as to discuss the different theories of the "text" in order to situate the discourse as negation of any positivist attempt and to attribute to literature a discourse position of knowledge, away from castrating formalism and aestheticism, much in fashion among us.


Poderá parecer, à primeira vista, que a escolha do tema a que me proponho é excessivamente ambiciosa. Não posso dizer o contrário. Entretanto, para discutir o estado atual das questões que ocupam aqueles que têm como preocupação teórica central a análise dos discursos, não parece haver outro caminho senão o de tentar fazer uma espécie de reconhecimento de terreno, estabelecendo as fronteiras capazes de desenhar áreas conceituais minimamente definidas, sem o que há o risco de se falar no vazio e a vender alhos por bugalhos.

O campo da linguagem, já o reconhecia Saussure, é

"multiforme e heteróclito; cavalgando múltiplos domínios, a um só tempo físico, fisiológico e psíquico, ele pertence ainda ao domínio individual e ao domínio social; ele não se deixa classificar em nenhuma categoria dos fatos humanos, porque não sabemos como determinar a sua unidade."[1]

O que o genial mestre genebrino faz aqui, se a ele pertence realmente tal pensamento -- já que a redação do Cours de Linguistique Générale foi tarefa de discípulos, aplicados, mas sempre discípulos -- é desferir um golpe de estilo. Pois, ao reconhecer a heterogeneidade do terreno e as conseqüentes dificuldades daí advindas, o que ele faz é, autoritariamente, determinar que a linguagem não pode classificar-se entre os fatos humanos. Assim, a linguagem, enquanto totalidade, enquanto fenômeno humano e, em conseqüência social e histórico, estaria fora do alcance de nosso conhecimento sistemático, fora do campo do conhecimento científico, enfim. Pesa a seu favor, entretanto, o admitir, com louvável humildade científica, que faz isto "porque não sabemos como determinar a sua unidade ".

Com esse simples passe de mágica, descarta um problema que, por ser de difícil solução, nem por isso deixa de ser importantíssimo para o entendimento do próprio fenômeno humano. Que Saussure quisesse estabelecer o seu objeto -- e o fez com insuperável talento! -- tudo bem. Era o passo necessário para fundar a ciência que o tem como patrono. Fundou-a e bem fundada. Não é aí que reside o perigo!

O problema é outro. Ao fundar a Lingüística nas bases em que ele a fundou, com esse mesmo gesto, descartou a possibilidade de um estudo sistemático e metodologicamente orientado do fenômeno mais amplo da linguagem, relegando-a para o limbo das coisas incognoscíveis, criando um paradoxo de impossível solução. A linguagem, meio essencial de humanização do homem, não poderia ser objeto de uma ciência que dela desse conta em toda a sua extensão e amplitude. No horizonte filosófico em que Saussure se situava, talvez não houvesse, na época, outra alternativa, mas isso não impediu que, anos mais tarde, o excluído retornasse ao palco das indagações.

E foi exatamente na Rússia, em meio à grande convulsão social decorrente da Revolução Bolchevique, que uma outra corrente de pensamento sobre os fenômenos da linguagem começou a desenhar-se. Navegando contra o oficialismo filosófico reinante em seu contexto, sempre empobrecedor e reducionista, mas sem afastar-se, entretanto, do campo das indagações marxistas, Mikhaïl Mikhaïlovitch Bakhtin começa um longo processo de repensar as grandes questões com que o campo da linguagem continuava a desafiar todos aqueles que se defrontavam com suas manifestações. Desafio ainda maior para os que se debruçavam sobre as questões da produção literária, mormente dentro da tradição russa, sempre muito voltada para o social.

A partir de uma produção irregular, apesar de fecunda, atravessada pelos óbices de não ser um intelectual bem-visto pelo sistema, Bakhtin vai lançando suas idéias inovadoras, seja através de livros assinados por amigos e colaboradores como Medvedev e Voloshinov, seja por obras publicadas em seu próprio nome. Vai tentando organizar, num cipoal de concepções inovadoras, as linhas de sua pesquisa e de suas propostas. Extremamente preocupado com as questões da cultura popular, sua mirada estará sempre assentada sobre as questões da oralidade, por onde circula e onde se perpetua a produção dos segmentos menos privilegiados da sociedade. E este dado, muitas vezes omitido, é definitivo para a compreensão de suas concepções teóricas.

A fixação na oralidade afasta-o das tentações sempre presentes do fetichismo do texto, tão comum entre aqueles que, afeitos à página impressa como suporte da literatura, não conseguem dele escapar.

A invenção da escrita, já condenada por Sócrates no Crátilo , por motivos diferentes daqueles que terminarei por expor, tem como uma das suas conseqüências, ao lado dos benefícios indiscutíveis, o ocultamento do autor e do leitor, figuras que passam a substituir o falante e o ouvinte. Nas sociedades ágrafas ou com predominância da oralidade em suas manifestações culturais, a prática discursiva pressupõe a presença física do enunciador e do ouvinte, impedindo a sua abstração e ocultamento. Mais que isso, a manifestação, por assim dizer, literária tinha como condição não só a presença física do narrador, mas a evidência de suas determinações sociais. O respeito que merecia da comunidade, o reconhecimento de seu saber, a legitimidade de sua fala, a perícia no manejo de todas as formas de expressão não-verbais, a sua posição hierárquica no circuito discursivo e mesmo social, tudo constituía uma situação histórico-discursiva perceptível a olho nu, para quaisquer não-especialistas. De outra parte, o narrador tinha presentes, com seus corpos, mentes e corações, os seus ouvintes, grávidos de um sem número de determinações sociais e históricas, tudo marcado por uma irrecusável materialidade, onde a expressão lingüística talvez fosse a materialidade menos palpável. Em síntese, a sua voz estava enraizada, firme e claramente, em uma situação única e irrepetível, ainda quando costumeiramente ritual e, portanto, necessariamente codificada.

Em tais condições a existência de um texto , tal e como hoje o concebemos, seria algo de impensável. Mesmo que os semioticistas contemporâneos possam insistir em que a expressão da memória do narrador constitua um texto, deixemos a crédito de um rigor mais formal do que essencial a insistência ficta desse neo-platonismo contemporâneo.

O que importa é que o texto, enquanto fetiche, enquanto mônada auto-suficiente e auto-significante, enquanto materialidade positiva e positivista, esse texto não existia e não poderia existir, como de fato, até hoje, no seio mesmo das culturas livrescas, segue inexistindo.

Tal inexistência, claro está, diz respeito ao caráter positivo e burdamente material do que se entende como texto . Não se poderia pensar em literatura e em cultura, sem admitir que a única forma de expressão material que encontram é o suporte simbólico de que se servem em sua produção, circulação e consumo. Não é disso que se trata. O que ocorre, desde a invenção da escrita e especialmente depois do advento da imprensa, é que os discursos perderam, na aparência, a sua unidade social, constituída por uma instância produtora -- o enunciador --, uma instância produzida -- o enunciado -- e uma instância de consumo produtivo -- o enunciatário. A materialidade do texto escrito ou impresso, capaz de circular independentemente da presença física de seu enunciador e capaz, igualmente, de persistir fisicamente íntegro sem a ajuda de um leitor-enunciatário, é a base desse processo de fetichização, que tantos prejuízos vem causando aos estudos da literatura e da cultura.

Amparados na sólida bibliografia lingüística que se desenvolveu depois de Saussure, os estudiosos transferiram, do domínio da lingüística para o da literatura e para o dos discursos, conceitos e ferramentas metodológicas que, competentes na descrição do funcionamento da instância material-significante da linguagem, absolutamente não eram capazes de dar conta dos seus fenômenos mais gerais, como aliás já o previra o próprio Saussure.

O de que trata a lingüística, com competência e seriedade, é do suporte físico de toda a expressão verbal. É mesmo extremamente sintomático que o campo da semântica sempre tivesse encontrado, senão dificuldades, pelo menos um menor interesse por parte da lingüística. Prova disso é a imensa desproporção quantitativa da bibliografia lingüística em todas as suas outras especialidades e a que diz respeito ao campo das significações. Talvez Edward Sapir tenha sido um dos poucos lingüistas ocidentais a perceber onde residia o problema, quando afirmava que a semântica não pertencia ao campo da lingüística.

Não é ocasional que o limite maior da análise lingüística seja a frase. Do seu ponto de observação, a partir daí é o reino da repetição, nenhum fenômeno novo se produz. E é verdade. No plano da pura expressão, a redundância das frases repete modelos dentro delas já contidos. Entretanto, do ponto de vista da significação, as coisas não se dão da mesma maneira.

Esta não se deixa conter nos limites da formalização. Uma mesma unidade de significação, se elas são delimitáveis, tanto pode usar como meio de expressão uma palavra, uma frase, um parágrafo, um capítulo, um livro, dependendo de como se articula o discurso em que é produzida. Porque ela é a razão de ser e a própria essência do discurso. Um discurso se produz para construir uma significação ou um conjunto delas. Donde a situação histórica em que se produz ser parte inalienável de sua própria maneira de existir. Não há, e não pode haver, discurso onde não haja um enunciador e um enunciatário historicamente identificáveis. As condições específicas em que um discurso é produzido são, por assim dizer, irrepetíveis. E nisto a análise do discurso afasta-se de modo radical das metodologias da lingüística. Não há aqui unidades identificáveis e reiteráveis. Assim um mesmo texto repetido em situações discursivas diferentes constitui novo discurso com significações também diferentes. É o caso típico das citações, tão comuns nos trabalhos acadêmicos. É o caso da paródia e da paráfrase, mantidas as devidas proporções. Nesse sentido ninguém pode ler o mesmo livro mais de uma vez, pois, parafraseando, os pré-socráticos, nem o leitor, nem o livro serão os mesmos.

Isto só vem a reiterar a afirmação de que cada discurso é um acontecimento histórico novo e irrepetível. Ele é a expressão da própria história no seu incontido processo de fazer-se a cada momento. Mas tal situação não levaria, no limite, à própria impossibilidade do conhecimento, postulada por Ferdinand de Saussure?

Se as coisas se dessem de modo linear, seguramente sim. Mas ocorre que, até como condição para que a comunicação possa se processar, as significações produzidas a cada discurso, em cada situação histórica e social específica, passam a fazer parte de um processo de acumulação e constituem-se em um tesouro socialmente compartido. De forma que, a cada discurso produzido, enunciador e enunciatário vão se enriquecendo de novas significações que se agregam àquelas anteriormente produzidas em seu meio cultural. Uma tramada dialética entre o novo e o velho, entre a renovação e a tradição, tem lugar a cada ato comunicativo. Cada discurso agrega-se aos demais, antes dele produzidos, e a cultura como um todo apresenta-se como um complicadíssimo processo de luta entre significações cristalizadas e novas significações, que expressa o próprio processo histórico da sociedade.

Dessa forma a nossa conhecida teoria do signo fica radicalmente ultrapassada. Não é possível admitir-se que um signo é a relação de um significante e um significado, desde sempre existentes e à disposição dos falantes, súditos obedientes, para poderem entre si trocar quantidades previamente estabelecidas e produzidas sabe-se lá por quem. Na verdade, em cada palavra -- mas, também, em cada frase, em cada parágrafo -- o que se observa, no momento mesmo em que o discurso se dá, é um movimento em que a base constituída pela ou pelas significações previamente produzidas naquele contexto histórico se vê acrescentada e modificada pelas novas significações que esta situação inédita lhe acrescenta. É então, no seio do próprio signo, que a dialética entre o velho e o novo, entre a tradição e a renovação, acontece a cada momento. As contradições sociais não poderiam existir apenas na realidade fenomênica e estarem ausentes das articulações do discurso. Seria uma contradição em termos.

Assim, se o signo, ao invés de ser um depósito morto, apresenta-se como o lugar em que a dinâmica histórica se processa, há que perguntar-se o como de tal movimento.

A cada momento, os sujeitos, ao agirem sobre o real e sobre si mesmos, produzem novas avaliações desse real frente a outros atores da cena social. A cada nova experiência, novas avaliações do real se acrescentam às anteriores, modificando-as. E tais avaliações passam a ter existência e a circular, desde o momento de sua produção, em um tipo qualquer de discurso. E o discurso é a forma de estabelecer relações entre os distintos agentes históricos. Só há discurso com a presença de sujeitos históricos.

Assim a abordagem do universo dos discursos não pode ser encarada como uma aproximação formal a uma coleção de textos ou a uma biblioteca. É evidente que sem os livros e sem os textos, em uma sociedade letrada, não se pode pensar numa análise de discursos. Eles são parte importantíssima e insubstituível do universo discursivo, ainda quando não o esgotem. Os discursos estão em toda parte, inclusive em estado de livro, nas bibliotecas. Mas sem a presença humana que lhes traga um sopro de vida, eles não são e não poderão ser discursos.

O texto, o livro congelam e conservam, por assim dizer, um momento fundamental de qualquer discurso, que só retoma a sua existência social, quando a presença humana e histórica os traz de volta às contradições da vida real. Nesse sentido a magnífica metáfora de Melquíades, criada por Gabriel García Marquez em Cien años de soledad, é mais do que expressiva. No romance, a figura mágica e misteriosa, apesar de humana e afetiva, de Melquíades surge, desaparece e ressurge em diferentes momentos da narrativa. O curioso disto tudo é que o seu surgimento e ressurgimento se dá sempre e quando algum dos inúmeros Buendía abre o velho manuscrito e inicia ou reinicia a sua leitura. Só com o sopro vital da leitura adquire Melquíades energia suficiente para retornar à cena da narrativa. Quando ninguém lê o manuscrito, o seu desaparecimento é necessário. Não há quem lhe dê razão para existir...

Claro está que esta leitura, esta significação, esta interpretação não está e não poderia estar no texto de García Marquez. Ela nasce de um discurso novo que se instaura entre eu e García Marquez através de Cien años de soledad , no momento mesmo em que a minha leitura se produz. Cada vez que volto, a partir de minha pessoal e insubstituível experiência, a visitar esse livro, como todos inesgotável, um novo diálogo se estabelece e o confronto entre as significações mais antigas, minhas ou alheias, e as novas que estão a se ensaiar, criam a única realidade de que me aposso: a significação presente que construo para a obra. Reverberam nela antigas leituras, ligadas seguramente a outras recordações que as acompanharam, conscientemente ou não. É um reviver de experiências, que sendo radicalmente minhas, se agregam ao livro, tornando-o uma espécie de objetivação de minhas vivências íntimas, como antes o foi daquelas de García Marquez.

Assim, num simples gesto de leitura, entrecruzam-se histórias e sociedades diferentes, em distintos momentos de sua evolução. O diálogo que se estabeleceu colocou em contacto distintas experiências sociais e individuais, antigas e contemporâneas, tudo através do suporte material em que se constitui o texto do livro.

Isto nos encaminha, naturalmente, para a teoria do diálogo, conceito central no pensamento de Mikhaïl Bakhtin. Para ele todo discurso, toda palavra é sempre e necessariamente dialógica . Um discurso se articula em resposta a um outro; numa fala sempre está inscrita outra que a provoca e à qual ela responde. Não existe comunicação no vazio. O discurso inscreve-se na dinâmica social e implica a presença real ou virtual dos seus interlocutores. Como a dialética discursiva não respeita as fronteiras temporais nem espaciais, ela se serve das imagens dos interlocutores inscritas nos enunciados em que, provisoriamente, se cristaliza.

Aos que me ouvem ou me lêem, neste exato momento, dirige-se não o enunciador presente que lê estas notas, mas um outro que as produziu, em outra relação histórica e em outra dinâmica. Lá, na origem, estava um enunciador, alocado em seu escritório e diante da tela de um computador, dialogando com um público virtual e futuro, ainda que perfeitamente previsível. Caso contrário, a comunicação tornar-se-ia inviável. Tinha que imaginar um público falante do Português, interessado nos temas a que se dedica, atento e especialista a julgar as suas posições. O diálogo nasceu, lá, respondendo ao convite dos coordenadores deste evento que lhe haviam pedido respostas relativas aos temas que são neste discurso expostas. O enunciador presente aqui, nesta mesa, diante de um público não mais virtual e agora historicamente concretizado, lê um enunciado de outro. Quem escreveu é um autor de quem, hoje, só resta uma imagem cristalizada naquilo que criou. Do público a que ele se dirigia, igualmente, fica a imagem idealizada que dele tinha, antes que se concretizasse dias mais tarde, hoje e aqui, num agora irrepetível. A dialogia que se realiza neste momento histórico, igualmente único, faz cruzarem-se muitas vozes diversas.

Eu poderia, hoje, discordar de algumas das coisas que leio e se manifestasse, de alguma forma, tal discordância, seria apenas uma voz a mais no diálogo, incapaz e incompetente para renunciar ao que a outra que a antecedeu deixou gravado, seja no disco rígido do computador, seja nas folhas de papel que se deixam integrar nesse diálogo múltiplo. Não a minha voz narcísica e absoluta, mas muitas vozes, entre elas as minhas, mas muitas outras alheias, pertencentes a tempos e a espaços diversos, se fazem presentes para que alguma significação se realize neste momento, a sua vez único e irrepetível.

Se, num gesto de economia intelectual -- justificável, em parte --, decidir-me a ler este mesmíssimo texto em outro congresso, seguramente não poderá ser o mesmo discurso. Outra será a voz leitora, inclusive já acrescentada e enriquecida pelos múltiplos diálogos que esta leitura atual há de, necessariamente, provocar. Ainda quando as divergências não venham a público, as vozes discordantes não deixarão de existir e de manifestar-se, de alguma forma, em algum momento. Tudo isto é parte do discurso de hoje e a ele se acrescenta, cristalizando-se numa espécie de metatexto virtual. Assim, numa próxima leitura entre a voz que lerá -- imaginando que seja a minha própria -- já será outra; maior será, igualmente, a distância entre o autor que escreveu, existente na forma de imagem de autor, e aquele que lê a sua produção. Maiores, talvez, as suas diferenças; outras as experiências vividas no intervalo. Outro será o público, outra a circunstância da leitura. Em suma, será outro ato histórico e em outro espaço social. Em conseqüência, outras as significações que se agregarão às primitivas, já acrescentadas daquelas hoje e aqui produzidas, outro discurso e outra relação com o real. É a história em sua marcha inevitável, por rumos muitas vezes insuspeitados.

Dessa forma, o diálogo é a forma social de existir dos discursos. Nunca a voz isolada, autônoma, de uma entidade geradora, mas sempre a polifonia social em que reverberam, quando muito, os acordes pessoais nela inscritos. Toda a cultura, então, pode resumir-se num interminável concerto de vozes, numa imensa polifonia discursiva.

Entretanto, o que deve ser fixado, para o entendimento é que todo discurso é sempre orientado para o outro. Não há concebê-lo como expressão unilateral de vontade. Só há discurso com a presença do eu e do tu . Todo discurso compreende uma tríade de que o enunciado é apenas um vértice, ainda que sua evidência por vezes ofusque a presença dos demais.

Sem os três elementos o discurso tende a virar texto , ou seja, uma materialidade vazia que, pelo efeito de fetichização, assume a aparência de uma coisa fisicamente metafísica, como queria Marx. Um texto, do ponto de vista da análise de discursos, não tem um significado. Ele pode, ao contrário, constituir-se no lugar em que significações divergentes e convergentes encontram seu ponto de estacionamento provisório. A prova mais evidente disto é que, se me defronto com um texto escrito em uma língua que desconheço, nenhum significado poderá ser encontrado ali, até porque ali não está. Só a presença humana do sujeito leitor, agregando aos sinais gráficos aí depositados os valores de significação por ele acumulados, no seio de uma determinada cultura, dará a essa folha de papel pintado a dimensão da linguagem, fenômeno humano por excelência. Mas a presença desse outro que é o leitor não atribuirá ao texto os mesmos valores de significação imaginados e construídos pelo autor. Cada um é membro de uma comunidade de significação, de uma determinada cultura, de um determinado segmento social e contribuirá, a seu modo, para as significações possíveis naquela circunstância de leitura.

E ao atribuir aos sinais gráficos a marca de sua presença, o leitor estará assumindo a posição para ele determinada por um outro que a ele dirige as suas versões do mundo. Não importa quem assuma o lugar destinado ao leitor, assumirá sempre a dimensão da imagem de leitor para ele construída pelo autor original.

Assim, ao abrir as páginas de São Bernardo , onde mestre Graça depositou todo o seu talento de escritor, estarei obrigado a assumir um ponto de observação no tempo que será necessariamente posterior ao do suicídio de Madalena, e de onde ouvirei, queira-o ou não, a voz de Paulo Honório, no seu presente de narrador, tecendo a sua litania saudosa em torno da imagem, agora construída, da mulher que se foi...

O eu e o tu estarão, assim, indissoluvelmente ligados num mesmo movimento dialético que põe em contacto os atores do discurso. Não há pensar em dialogismo apenas na forma evidente do diálogo, seja nas obras de ficção, seja no cotidiano da vida. O dialogismo está presente onde houver discurso. E, por isso mesmo, o enunciado será sempre entendido como a expressão material de uma passagem, por ele trafegarão as versões de mundo, as indagações, as perplexidades dos atores desse drama curioso. Em uma palavra, os valores. O enunciado é um campo onde os valores se organizam para dar inteligibilidade ao mundo. Assim, a cada momento estaremos confrontando as diferentes formas de considerar cada um dos atos da vida cotidiana, tal e como os outros que a compartilham conosco a avaliam. Compartilham o mesmo tempo e espaço, ainda e quando estejam muito distantes na geografia e na história. Na medida em que estabeleçamos com eles relações discursivas os estaremos integrando em nossa própria historicidade e atribuindo-lhes a tarefa de nos ajudarem a entender o mundo e seus arredores.

Dessa forma, não estarei apenas observando, em Crime e Castigo, de Dostoiévski, as complicadas maquinações mentais de um Raskólhnikov, antes e depois de assassinar Alíona Ivânovna, a usurária, como um leitor distante e isento. Ao contrário, estarei encarnado nos dilemas da personagem, como se fosse ela, vivenciando o horror do crime, ao mesmo tempo em que, trazendo-a para o meu presente de leitor, faço-a viver os meus próprios e outros dilemas, mas sempre e humanamente dilemas...

O discurso faz assim o papel de agregar visões de mundo, avaliações de vida, interpretações da morte. Sempre na dimensão do diálogo com o outro, sem o qual só poderíamos permanecer mudos. E mudos, renunciar ao pensamento.

Mas tal diálogo não se dá apenas entre os dois contendores do discurso. Talvez uma das mais geniais criações de Bakhtin tenha sido a do terceiro do diálogo . Diz ele que um diálogo pressupõe sempre um terceiro diante de quem e em relação a quem o diálogo se trava. É ele a referência axiológica em relação à qual os valores, as concordâncias e as divergências se produzem. Chame-se de Deus, de História, de Humanidade, de Revolução, de Classe Social ou mesmo de leitor, este terceiro é o parâmetro organizador da polifonia, é a referência necessária à inteligibilidade.

Aqui mesmo, ao falar para vocês, falo diante de alguma outra coisa que não sei bem o que seja: se a tradição desta casa onde me formei em Letras, há muitos anos; se a responsabilidade de ter sido escolhido para responder a questões tão candentes; se o meu próprio narcisismo em busca da aceitação. Pouco importa, o terceiro me vigia e me estimula, ao mesmo tempo em que observa a vocês e os fustiga para a divergência criativa ou para a negação pura e simples, em nome de outros pensamentos e outras teorias. Mas é sempre um terceiro que baliza o meu e o alheio discurso. Lamentavelmente este foi um ponto filosófico fundamental que a brevidade da existência não permitiu que Bakhtin, mesmo octogenário, pudesse desenvolver plenamente. Cabe a nós seus pósteros a tarefa de fazê-lo, sem deslustrar excessivamente o terceiro em que ele se constituirá, vigiando o nosso pensamento.

Observando a literatura de modo mais próximo, dois problemas, na verdade interlaçados, ocuparão hoje as minhas preocupações, como forma de deter este discurso que já vai longo.

O primeiro deles está na impossibilidade de aceitar um comparativismo que imagina que os textos possam ser cotejados entre si, como se textos fossem. Ou seja, imaginar que a aproximação formal de enunciados, desconsiderados quem os lê e quem os escreveu, em suas específicas circunstâncias históricas, pudesse trazer resultados outros que as meras coincidências formais, em si muito pouco esclarecedoras. Felizmente boa parte de nossos estudiosos de literatura comparada, ainda quando não professem trabalhar com a análise de discursos, sentem a premente necessidade, imposta pela própria especificidade do material com que se defrontam, de romper com os limites estreitos do texto , para aventurar-se um pouco mais além e colocar as perguntas que a superfície fria da página impressa não pode responder.

Esse mesmo sintoma pode ser apreendido em muitos dos trabalhos que se filiam espontaneamente às correntes formalistas. Nos seus procedimentos, muito comumente podemos rastrear pecadilhos metodológicos que introduzem contrabandos extra-textuais, sem os quais não conseguiriam atribuir às estruturas formais, às vezes tão elegantes, que desenham, qualquer voz capaz de dar uma humana dimensão aos livros de que falam.

Em outro plano, herdando uma leitura, no mínimo infeliz, que Julia Kristeva fez de Bakhtin em sua "Introdução" à edição francesa de Problemas da Poética de Dostoiévski [2], teve grande sucesso entre nós a teoria da intertextualidade, atribuída pela estudiosa búlgara ao próprio Bakhtin. Nada mais distante das suas posições que uma tal concepção. Não que estejamos brigando por palavras. Nada de mal haveria em usar-se o conceito de intertextualidade para traduzir o dialogismo, como aliás o faz Tzvetan Todorov em seu excelente livro sobre Bakhtin.[3]

O problema reside no específico conceito que se faz da intertextualidade , a partir de Kristeva. Tudo se passa como se os textos dialogassem entre si, independentemente de quem os lê e de quem os haja escrito. Entende-se que o livro de Bakhtin, traduzido e publicado no auge da onda estruturalista francesa, tenha sofrido em sua leitura os influxos formalistas de tal contexto. Era a leitura esperável, talvez.

Entretanto o que Kristeva consegue, com sua leitura, é aumentar o fetiche do texto, tornando-o agora, de alguma forma e ironicamente, polifônico. Sua noção de intertextualidade elide sujeito e objeto, com a licença de Drummond. Estamos diante de um grande mercado a que comparecem essas folhas de papel a dançar umas com as outras e a estabelecer relações nem sempre recomendáveis... E o curioso, mas não surpreendente, é que tal fenômeno tenha ganhado foros de teoria e tenha influenciado não poucos estudos de literatura.

Claro está que a senhora Kristeva tem o direito de pensar como pensa e não nos cabe aqui a censura a nenhum pensamento. Apenas é necessário ressaltar que esse nunca foi o pensamento de Bakhtin, naquilo que escreveu e publicou. Em primeiro lugar, ele jamais usou a palavra intertextualidade, ao longo de sua obra. Sua noção de dialogia implica sempre as relações entre enunciadores e enunciatários. Quando, algumas vezes, usa a expressão relações intertextuais, emprega-a para distingui-las das relações interpessoais, mas sempre entendendo por texto um equivalente de enunciado, uma expressão dialógica em que os sujeitos do drama da linguagem são os atores necessariamente centrais.

O que a mim me preocupa é que o exercício da chamada intertextualidade reforça a crença de que, na verdade, a imensa biblioteca que constituiria a literatura poderia operar sem a nossa presença já tão escassa em outros cenários da vida brasileira. Se os textos relacionam-se entre si, antes mesmo de serem escritos, sem a intervenção de ninguém, à literatura não caberia mais a função de colocar os homens em situação de diálogo, em busca de sua perene humanização.

Não é de estranhar-se que, na própria academia, subsistam imagens como essas, vestidas por fora do linguajar das tecnologias que exibem suas musculaturas neo-modernas, mas por dentro corroídas por quanto há de desumanizador nesta nossa sociedade desigual, não é de estranhar-se que por nossas próprias veias possa estar circulando o sangue que nos há de transformar em meros robôs, numa clara renúncia à vocação da liberdade que a literatura nos impõe?


* - Este artigo foi, originalmente, uma conferência pronunciada na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), no I Encontro de Ciência da Literatura, na Faculdade de Letras, em 20.05.98.

Referências bibliográficas

[1] Saussure, Ferdinand de. Cours de Linguistique Générale. Publié par Charles Bally, Albert Sechehaye et Albert Riedlinger. Paris: Payot, 1966.
[2] Bakhtine, Mikhail. La poétique de Dostoievski. Traduit du Russe par Isabelle Kolitcheff, présentation de Julia Kristeva. Paris: Éditions du Seuil, 1970.
[3] Todorov, Tzvetan. Mikhaïl Bakhtine: le principe dialogique suivi de Écrits du Cercle de Bakhtine. Paris: Éditions du Seuil, 1981.


Luis Filipe Ribeiro é mestre em Letras pela PUC/RJ (1981), doutor em História pela UFF (1994), autor de Mulheres de Papel: um estudo do imaginário em José de Alencar e Machado de Assis. Niterói: Eduff, 1996. É ensaísta, tradutor e dirige a Revista Brasil de Literatura, primeira revista literária da Internet no Brasil. E-mail: lfilipe@usa.net


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