O indianismo épico em Ubirajara, romance de José de Alencar


Mirhiane Mendes de Abreu
Universidade Estadual de Londrina


Resumo

Este artigo observa a composição do herói do romance Ubirajara, que retrata o índio e o ambiente americano antes da chegada do colonizador. Observei que, nessa obra, o autor sugere uma narrativa mítica através de uma ação dinâmica, apropriada para uma epopéia. Paralelamente à narrativa, o autor recorre às notas para reforçar as características, os costumes e as tradições indígenas narrados. Com isso, percebe-se haver dois narradores: o primeiro, a que chamei de "narrador contemplativo", apresenta os episódios do enredo; e o segundo, o "narrador histórico", presente nas notas-de-rodapé, que procura garantir veracidade aos acontecimentos descritos pelo primeiro.

Abstract

This text examines the hero composition from the novel Ubirajara, which has the earliest setting, before the colonizers arrrived on American soil. I had observed that the author suggests a mithy narrative, convenient to a epic narrative. To reforce the Indian caracter, the author recurs to footnots, where he directs the reading of the story. Then, there are two voices in the novel: the first belongs to "contemplative narrator", which conducts the action; and the second, the "historic narrator", presents in the footnotes and conducts a runing arguments with earlier historians and chronicles of Indians customs.



Tentando captar os valores estéticos do seu tempo, Alencar se depara com um problema complexo: todo o povo tem suas façanhas históricas e legendárias desenhadas em termos de uma aventura coletiva, muito propícia para ser explorada por meio da epopéia. Entretanto, por ser este um gênero clássico, não se enquadrava mais ao gosto da sua época, uma vez que o romance anunciava seu apogeu ao refletir a vida moderna, seus valores e costumes. Recorrer ao épico, desse modo, significou reduzir-se ao espírito, ao sopro de uma inspiração e não à sua estrutura, pois seu prestígio, como gênero literário, associaria e filiaria o romance ao contexto narrativo mais elevado possível[1].

Como os demais escritores do seu tempo, Alencar procurou abranger em sua obra a elaboração do herói nacional, que traduzisse a aspiração dos valores da identidade incipiente. Como os europeus voltaram-se para a Idade Média, os brasileiros recorreram aos índios, descritos da perspectiva medievalizante e elevados à posição de objeto estético, que permitisse ao brasileiro a possibilidade de construir um passado condizente com o ideal de liberdade. Objetivando exprimir o caráter da literatura nacional, o escritor cearense compôs o romance Ubirajara [2], centralizado no mito da origem, a partir do código heróico que a epopéia lhe forneceu, atingindo o programa de trabalho esboçado no decorrer das análises das obras de seu tempo.

Observando a obra em detalhe, percebe-se que a tessitura da narrativa não é tão simples como possa parecer à primeira vista. Paralelamente ao enredo, correm as notas, uma espécie de texto didático, em que o narrador, por um lado, documenta os episódios da trama e, por outro, procura separar os "fatos" apresentados pelos cronistas dos seus "comentos" (como está afirmado na "Advertência" da obra em questão), beneficiando a visão a que ele chamou de "autêntica" da índole dos selvagens. Há, então, duas vozes que se complementam: a primeira é a do "narrador contemplativo", que apresenta os episódios do enredo; a segunda, do "narrador histórico", presente nas muito constantes notas de rodapé, e cuja finalidade é, através dos comentários dos textos dos cronistas, missionários e viajantes, garantir a veracidade dos acontecimentos descritos pelo primeiro.

Classifica-se o primeiro narrador de "contemplativo" pela particularidade épica da obra, ou seja, ele narra os acontecimentos de um passado remoto (onde tudo é essencialmente bom), com grande reverência e contemplação por se tratar de seu predecessor. O outro, o "histórico", é assim denominado por analisar os documentos escolhidos para subsidiar os valores morais levantados pelo anterior. Um e outro se complementam. Para Alencar, portanto, não bastava o caráter épico de sua narrativa, que por si só já seria suficiente para assegurar a elevação do objeto narrado. Era preciso buscar o aval da cultura européia, a qual exerce, por intermédio das notas, plena influência no texto, por ser o espelho no qual se reflete o romance. Trocando em miúdos, é a antiga civilização, através do seu discurso, quem ampara e justifica a energia e a fortaleza dos gestos e das ações do herói do romance, organizado como símbolo nacional. O "narrador contemplativo" posiciona-se a fim de construir a face mais dinâmica da obra. É ele quem dá vida à personagem e às suas ações. O "narrador histórico", por sua vez, enfeixa os elementos levantados pelo anterior, organiza-os a fim de que se compreendam a gênese da narrativa. Com seu olhar poderoso, funciona no texto como censura severa, que concede a interpretação "exata", uma tentativa de guiar o leitor para encontrar os caminhos por ele previamente programados. Nesse caso, as notas exercem o papel de uma cerca, delimitam o espaço e apontam o percurso para o qual a leitura deve ser dirigida, a fim de se concluir que o romance representa a nossa fundação mítica.

Seguindo os caminhos do primeiro narrador, o "contemplativo", vemos que Ubirajara, no subtítulo, é classificado de "lenda tupi", da qual devem sair os exemplos para a posteridade. Num país cuja elite desejava esboçar seu caráter, forjar tradições no âmbito do sagrado realçaria os valores que se pretendia atribuir à nação. Para isso, era preciso idealizar um passado e recuperá-lo literariamente como uma busca da origem, que funcionasse como um elemento na construção da identidade nacional e traçasse o processo histórico das raízes do povo. Nesse passado, há um paradigma de caráter, de moral e de valores: o herói, personificação dos valores coletivos, aqui arquitetado sob a forma de mito, cujo papel, decisivo na epopéia, é a realidade viva nas sociedades primitivas, determinando o mundo e o destino dos homens. Com essa perspectiva, o texto é envolvido num ambiente sagrado e peremptório; logo, é o espaço do inquestionável, que enreda o conteúdo numa perspectiva de verdade. Ao descrever o problema do mito, Ernesto Grassi coloca:


Afirmo que há uma certa espécie de narrativas, consideradas sagradas, que estão incorporadas na ética e na organização social e constituem a parte essencial das culturas primitivas. Essas narrativas não se impõem por intermédio de um interesse superficial ou exterior ou na qualidade de descrições fictícias ou por pretenderem representar a verdade, mas sim porque representam a afirmação de uma realidade original, mais importante e elevada, que determina a vida, o destino e a atividade da raça humana e porque o seu conhecimento, constitui o fundamento da ética e dos ritos.[3]

Representar a "realidade original", ou seja, do início, da origem. O mito penetra na narrativa com o valor funcional de produzir o sentido do texto, uma vez que explicita o quadro da nacionalidade, relacionado com a realidade historicamente comprovável. Para isso, são instauradas as duas narrativas a fim de sustentar o entendimento dos discursos, os quais se constituem em um universo fechado, limitado, preso a um solo lingüístico, social e cultural, a fim de a obra adquirir exatamente o caráter fundador de uma nação. Conectar a história à literatura formaria o conhecimento exemplar, a possibilidade de se decifrar a origem para o entendimento da realidade, pois ambas são fundamentais para se forjar o passado e traçar a identidade e o destino dos povos e das nações[4].

Assumindo a postura onisciente do "narrador contemplativo", acompanhamos a demarcação da estatura do herói, senhor do ambiente vasto, instaurando, assim, a ordem hierárquica natural do texto. É a partir dessa imagem que se concretiza a soberania do herói, acentuando sua condição guerreira de chefe de nação.
Desde a abertura, Ubirajara combina os traços dos dois narradores presentes. O leitor descortina a narrativa pela grandeza do cenário, a natureza selvagem e grandiosa, reveladora da feição da personagem e dos conflitos narrativos:

Pela margem do grande rio caminha Jaguarê, o jovem caçador. (p. 1140)

Em "grande rio", a nota: "Os tupis chamavam assim ao maior rio que existia na região por eles habitada". E em Jaguarê, acrescenta outra: "[...] significa pois onça, verdadeiramente onça, digna do nome por sua força, coragem e ferocidade". (p. 1190)

A imagem de vasta região sugere a grandeza dos elementos que serão criados pela natureza. Unindo os dois narradores, apresenta-se o herói em plena força. Nesse momento em que a narrativa se volta para Jaguarê, destacam-se algumas cenas do fastio do caçador, cansado de a todos vencer. Integrado harmoniosamente à paisagem, insinua-se um perfil de plena intimidade com o espaço, inclusive tendo em resposta a seu rugido o urro do tigre e o ronco da sucuri. Desse modo, a natureza subordina-se à autoridade do caçador; logo, é significativo que a abertura do cenário seja eminente, pois é sobre essa eminência que reina o herói. A fisionomia exuberante do rio gera no leitor o modo de o homem primitivo apossar-se do espaço paradisíaco e imprime nessa primeira cena o palco onde se travarão os conflitos da narrativa.

Demarcado o local da ação dramática, restringe-se o campo da visão para enfatizar a impaciência do caçador em busca da vitória e o leitor passa a acompanhar a configuração do caráter ágil e guerreiro do herói. O movimento da sintaxe, repleto de oração coordenada, descreve o percurso que leva Jaguarê (o caçador) a Ubirajara (o guerreiro chefe), tudo numa ordem de naturalidade, reiterada pelo ritmo pausado e sóbrio da linguagem:

Jaguarê chegou à idade em que o mancebo troca a fama do caçador pela glória do guerreiro.
Para ser aclamado guerreiro por sua nação é preciso que o jovem caçador conquiste este título por uma grande façanha.
Por isso deixou a taba dos seus e a presença de Jandira, a virgem formosa que lhe guarda o seio de esposa. (p. 1140)

O narrador, então, inicia a composição do romance pela construção da personagem, caracterizada a partir dos elementos da natureza. O cenário, seguindo aos padrões românticos da narrativa romanesca, é utilizado para descrever o herói, cuja imagem de elevação, ansiosa por poder e luta, por brandir sua arma terrível (p. 1140), é revelada ao leitor através do menosprezo aos animais ferozes que o cercam. Dessa forma, o plano geral da obra se compõe pela hierarquia de dominador e dominado (no caso, o índio e a natureza), no tempo de pureza, quando, de acordo com o ideário romântico, prevaleceriam conceitos de cavalheirismo, honra e cortesia.
A característica do espaço está diretamente relacionada ao projeto alencariano de resgatar as origens do povo para exaltar seus brios, fazendo circular valores identificados com a narrativa para a simulação da idéia de nacionalidade. O nome de guerra conquistado através do combate de morte concede ao herói uma caracterização épica, já que esta é a história da luta pela afirmação de um povo. O mundo de Ubirajara, seus hábitos, seus símbolos, suas vestimentas, tudo assevera as marcas da sua comunidade, representando os valores assentados na sociedade brasileira de então. Quando caçador, o herói se sobrepõe aos mais ferozes animais da floresta e, de antemão, fabrica a lança, marca do seu futuro nome guerreiro. A imagem do objeto como idéia de grandeza e vigor enfatiza e complementa a característica possante do protagonista:

Jaguarê arremessou a lança, que vibrou nos ares e foi cravar-se além no grosso tronco da emburana.
A copa frondosa ramalhou, como as palmas do coqueiro ao sopro do vento, e o tronco gemeu até a raiz.
O caçador repousa à sombra de sua lança. (p. 1141)

Ao designar o nome de Ubirajara ("senhor da lança"), cria-se para o índio o distintivo de coragem, força e determinação, mesmo tratando-se ainda do jovem Jaguarê, o mais feroz jaguar da floresta (p. 1140), características imprescindíveis ao símbolo nacional. No percurso da narrativa, vemos a sua vida como um ato de afirmação dos ideais cavalheirescos, os quais se impõem como a soma de qualidades e destinos de sua raça. Tudo nele é a confirmação de uma comunidade, por isso, possui um instinto vital e se transforma no dominador dos conflitos e acontecimentos que ele mesmo põe a descoberto. Ainda caçador, Jaguarê tem o poder sobre tudo o que há na floresta: os outros fogem espavoridos quando de longe o pressentem. (p. 1140)

Todos os acontecimentos do romance visam a reforçar essa caraterística magnânime do herói, o que nos permite considerar a obra como uma singela interpretação do período possante do país, fruto da necessidade de definir nossa imagem ideal. Essa imagem ideal envolveu o herói em fundamentos bíblicos, retomando o ambiente edênico que abarcou desde os primórdios do descobrimento do Brasil. Alicerçado na atmosfera nacionalista, oriunda do processo de emancipação política, o romântico brasileiro elege o índio e a natureza como seus símbolos máximos e principais disseminadores da almejada imagem de autonomia nacional, em decorrência dos seus sentimentos puros, isentos da presença pecaminosa da civilização.

Desse modo, já no primeiro capítulo, instaura-se no texto uma situação intimamente relacionada à imagem do paraíso, correspondente também às descrições que os viajantes fizeram do Novo Mundo. Com os traços de um Adão, Jaguarê possui todo o domínio sobre a terra e o mar que o próprio Criador a ele conferiu. Assim, Alencar revela o ancestral não apenas grandioso, mas sacralizado e ambientalizado sob a forma de mito.
Elemento essencial para a aparição da epopéia, o mito foi absolutamente necessário para se encarar o mundo e conceituar padrões de bem e de mal, de certo e de errado, aquilo em que o homem deveria acreditar e, até mesmo, se espelhar. O herói, aquele homem excepcional que possuía o segredo da força e da sabedoria, deveria ser, então, adorado e seguido. De modo respeitoso, o narrador contempla o herói Ubirajara e o desenha como o homem primordial saído materialmente das mãos divinas, plasmado por uma divindade máxima, onisciente e onipotente. Somando-se a isso, tem-se o fato de o mito, uma vez aflorado, não permanecer em sua forma primitiva, ao contrário, propaga-se e adapta-se ao meio para onde é transplantado, adquire feições locais por ser profundamente popular e nacional, encontrando nas representações figuradas matéria para a sua transformação. Ao construir um romance de fundação, Alencar busca a origem da sociedade brasileira, engendra o Adão vermelho, gerador da nação, e oferece a ela o relato de sua gênese, cuja magnitude é demonstrada através dos feitos de uma personagem grandiosa desenhada pelo "narrador contemplativo", que, em sua condição de descendente, coloca-se disposto a contar os fatos "exatamente como se deram".

Demarcado o ponto inicial da nacionalidade, torna-se possível unir o passado e o presente de um povo e sua tradição alcança um ritual de repetição, de celebração a partir do momento em que os feitos heróicos são glorificados e reverenciados pela memória nacional, tornando-os essenciais aos valores cívicos. Desse procedimento origina-se a criação literária de Alencar, cuja finalidade não é apenas ser a revelação da interioridade do poeta, mas é também ser o testemunho da "idade de ouro" da civilização. Com isso, o escritor cearense exemplifica em Ubirajara a vertente do romantismo que procura harmonizar as potencialidades do sujeito criador com uma temática que transcende a esfera da individualidade: o nacionalismo. E, como todo nacionalismo precisa de um passado, o autor foi buscá-lo no índio, que, idealizado, deu forte impulso à literatura brasileira, popularizando-a conforme as afinidades estabelecidas com o público.

Por esse viés, o indianismo alcança em Ubirajara a personificação da imagem do sentimento nacional. E mais: ele capta a necessidade brasileira de se afirmar como um espírito superior ao da metrópole. Fonte verdadeira da poesia brasileira, o índio, ao lado da natureza, possibilitaria a liberdade da poesia local em relação aos cânones europeus, a exemplo da emancipação política, como afirmara Ferdinand Denis:

[...] o Brasil experimenta já a necessidade de ir beber inspirações poéticas a uma fonte que verdadeiramente lhe pertença; e, na sua glória nascente, cedo nos dará as obras-primas desse primeiro entusiasmo que atesta a juventude de um povo.
[...]
O Novo Mundo não poderá passar sem tradições respeitáveis; dentro de alguns séculos, a época presente, na qual se fundou a sua independência, nele despertará nobres e comovedoras evocações. A sua idade de fábulas misteriosas e poéticas serão os séculos em que viveram os povos que exterminamos e que nos surpreendem por sua coragem, e que retemperam talvez as nações saídas do Velho Mundo: a recordação de sua grandeza selvagem cumulará a alma de orgulho, suas crenças religiosas animarão os desertos; os cantos poéticos, conservados por algumas nações [aborígenes], embelezarão as florestas. O maravilhoso, tão necessário à poesia, encontrar-se-á nos antigos costumes desses povos, como na força incompreensível de uma natureza constantemente mutável em seus fenômenos [...][5]

O escritor francês indicava as potencialidades várias dos poetas nativos, caso eles se ocupassem do aspecto encantador e fascinante da terra local. Essas fontes, para Denis, não apenas conviriam à imaginação criadora dos poetas daqui, mas também aos escritores franceses que poderiam se servir das vantagens desses cenários exóticos do Novo Mundo. Seguindo os preceitos do viajante, Alencar busca estabelecer uma literatura própria, que traduzisse um passado independente de Portugal, realçando o exotismo local. Os primeiros românticos abraçaram com fervor essa temática, caminho seguido posteriormente por Alencar, que procurou, em todas as suas atividades, conceder vida própria à alma nacional.

Contestando Gonçalves de Magalhães, encarregou-se da missão de definir uma imagem convincente dos novos tempos e apoiou-se nas diversas descrições da natureza tropical realizadas pelos viajantes e estudiosos europeus, justificando, assim, a imagem edênica do país que ele procurou transportar para sua obra. Para que o leitor se rendesse a contemplar no índio um caráter integralmente leal e disseminador da índole da nacionalidade, o narrador o arquiteta a partir de caracteres bíblicos e ancora sua estatura por intermédio de elementos épicos. Tudo revestido da expressão literária moderna: o romance. Em síntese, pode-se dizer que, na tentativa de estabelecer a imagem edênica, o escritor recorre ao primeiro gênero, a epopéia, não na forma, mas a partir do seu código belicoso, expresso em moldes narrativos, de maior difusão na época.

Para a íntegra composição moral e psicológica de Ubirajara, o surgimento da mulher no romance é de suma importância: realça a postura sensível, afetuosa e, ao mesmo tempo, firme do herói, além de surpreender o clima guerreiro em que se encontrava a narrativa:

Salta uma corça da mata e veloz atravessa a campina.
Mais veloz a persegue gentil caçadora com a seta embebida no arco flexível.
Ergue-se Jaguarê. (p. 1141)

A descrição feminina é exemplar: a cor de ouro da faixa a caracteriza como filha da valente nação dos tocantins, a liga vermelha dizia que nenhum guerreiro jamais possuíra a virgem formosa (p. 1141). Beleza e virgindade: a atmosfera de pureza paradisíaca definida com precisão. E serão essas as características que acompanharão Araci por toda a obra, a partir de figuras esboçadas com frases mimosas e delicadas, num modelo de feminilidade cuja honra é guardar-se para o único que a conquistará entre os demais. Esse episódio constitui um momento exemplar de evocação do mundo medieval: o cavaleiro e a dama. E, na justa medida da narrativa romanesca, o par amoroso penetra no romance para estabelecer um estado de equilíbrio harmônico dentro do texto e exprimir o caráter moral e psicológico do protagonista da obra.

Atraído pela jovem caçadora, Jaguarê não cede aos seus encantos, apesar do mútuo envolvimento. Não obstante a necessidade do amor na vida do homem, o narrador, por intermédio do herói, deixa bem claro que nada excede aos interesses nacionais:

- Não, filha do sol; Jaguarê não deixou a taba de seus pais onde Jandira lhe guarda o seio de esposa, para ser escravo da virgem. Ele vem combater e ganhar um nome de guerra que encha de orgulho a sua nação. (p. 1142)

Essa fala, subseqüente ao pedido de Araci para lutar por ela contra os índios de sua tribo, revela que o objetivo do jovem caçador era transformar-se num guerreiro. Nada poderia se interpor no seu caminho. Encher sua nação de orgulho é o dever do herói nacional, determinado a cumprir seu destino, que não tarda a acontecer. Por isso, o narrador interrompe o entretenimento amoroso que se inicia para retornar ao ambiente bélico, fundamental para Jaguarê ser aclamado guerreiro:

Do outro lado da campina assoma um guerreiro.
Tem na cabeça o canitar das plumas de tucano e no punho do tacape uma franja das mesmas penas.
É um guerreiro tocantim. De longe avistou Jaguarê e reconheceu o penacho vermelho dos araguaias.
As duas nações não estavam em guerra, mas sem quebra da fé pode um guerreiro, cansado do longo repouso, oferecer a outro guerreiro combate leal. (p. 1142)

Pojucã, contra quem combate Jaguarê, é o grande lutador de sua nação que o aclamou como forte entre os fortes , que enche de terror as outras nações. É a este guerreiro que Jaguarê vence após longo e árduo combate. O herói épico não teme a morte, se esta for gloriosa, se dela depender o orgulho e o destino da nação: Terás a glória de ser morto pelo mais valente guerreiro tocantim. Os cantores de meus feitos lembrarão teu nome; e todos os mancebos de tua nação invejarão tua sorte. (p. 1142), diz Pojucã. Mas Jaguarê replica: A tua morte será a primeira façanha do caçador araguaia e lhe dará um nome de guerra que se torne o espanto dos teus e o terror das outras nações. (p. 1143)
Vence Jaguarê: é a sua primeira façanha. A importância em ser sempre o primeiro é abordada diversas vezes e sob diferentes formas ao longo do romance. A lança de Ubirajara, da qual se extrai o seu nome, por si só daria o caráter do herói imaculado e puro. Nenhum guerreiro brandiu jamais essa arma terrível, que sua mão primeiro fabricou. (p. 1140) O seu tacape virgem não poderia ser manchado pela luta com um guerreiro que não fosse digno de conceder a Ubirajara sua respeitosa maranduba de guerra:

Pojucã alçou a mão em sinal de que desejava falar; todos escutaram com respeito o herói, ainda maior na desgraça.
- Guerreiros araguaias, ouvi a voz de Pojucã, vosso inimigo, que afronta as iras dos fortes e despreza a vingança os fracos.
"Pojucã, guerreiro chefe da grande nação tocantim, jamais encontrou guerreiro que resistisse à força de seu braço invencível.
"Mas Tupã, cansado de ouvir celebrar em todas as festas o nome de Pojucã, como vencedor, emprestou sua força a Jaguarê, o maior guerreiro que já pisou a terra.
"Eu que senti o ímpeto de sua coragem posso dizer-vos que só o sangue tocantim é capaz de gerar um guerreiro tão poderoso.
[...]
Calou-se Pojucã; e Jaguarê continuou o seu canto de guerra:
- Quando a sombra começava a descer da crista da montanha, Pojucã e Jaguarê caminharam um contra o outro.
"Toda a noite combateram. O sol nascendo veio achá-los ainda na peleja, como os deixara; nem vencidos, nem vencedores.
"Conheceram que eram os dois maiores guerreiros, na fortaleza do corpo, e na destreza das armas.
"Mas nenhum consentia que houvesse na terra outro guerreiro igual, pois ambos queriam ser o primeiro.
"Foi então que o chefe tocantim ganhou na corrida a lança de duas pontas, que Jaguarê havia fabricado.
"Três vezes seu punho robusto a brandiu e três vezes ela escapou-lhe da mão, como a serpente das garras do gavião.
"Mais uma vez o grande guerreiro investiu com o bote armado; e a lança, escrava de Jaguarê, cravou o peito do inimigo.
"Ele caiu, o guerreiro chefe, o grande varão dos tocantins, o valente dos valentes, Pojucã, o feroz matador de gente."
E Jaguarê, brandindo a arma da vitória, bradou:
- Eu sou Ubirajara, o senhor da lança, que venceu o primeiro guerreiro dos guerreiros de Tupã. [...] (p. 1147-8/ grifos meus)

É possível tatear os caminhos escolhidos pelo autor na criação de uma imagem edênica do passado quando observamos os muitos episódios em que o primeiro é aferido como essencial na narrativa alencariana. Iracema, por exemplo, é a virgem dos lábios de mel; Jandira e Araci, mulheres que disputam o coração do maior guerreiro araguaia, são as virgens que guardam o seu seio para o esposo. Aspecto constante nas obras indígenas de Alencar, o caráter virginal está para a mulher assim como a primogenitura está para o homem. Ao falar da liga vermelha, que dizia que nenhum guerreiro jamais possuíra a virgem formosa, o narrador dos textos históricos entra em cena dizendo ser este um dos mais curiosos e interessantes ritos dos tupis (p. 1191). Qualidade daquilo que é virgem, imaculado, nunca antes tocado, o mundo casto revela o lugar onde tudo era melhor e mais puro. Essa pureza representa o paraíso, configurando a valorização mais perfeita das origens nacionais. No mundo de inocência, sem o olhar pecaminoso impingido pela civilização, o herói do romance é elaborado no âmbito do mito primordial. E todos que o cercam estão ungidos pela marca da primogenitude, quer sejam homens, quer mulheres, uma decorrência do zelo à virgindade, representando o brio, a dignidade somente encontrada no ambiente onde a pureza reina soberana e absoluta.
Para Timothy Brennan[6], a localização das tradições nacionais num passado imemorial é uma maneira de situá-las no âmbito do inquestionável. Com isso, cria-se para a pátria incipiente uma idéia de harmonia, de unidade e de consenso, destacando-a do mundo civilizado. E o mito, acrescenta ele, fornece um modelo retrospectivo de valores morais, pois sua função é fortalecer a tradição e dotá-la do prestígio de traçar um passado ainda maior e melhor do que foi a realidade. Além disso, essa característica revela a função primordial da literatura romântica, afinada com o processo de fabulação do país: a de promover, sobretudo, a metáfora edênica como elemento unificador da brasilidade. E mais: acaba se transformando numa esperança, ainda que retroativa, dos nossos infortúnios, pois apresenta a progenitura brasileira em circunstância de grandes feitos. Afinal, como Carlyle definiu herói:

A história universal, a história daquilo que o homem tem feito neste mundo, substancialmente não é outra coisa senão a história dos grandes homens que trabalharam nesta terra. Foram estes grandes os líderes da humanidade, os inspiradores, os campeões, e, latu sensu, os artífices de tudo aquilo que a multidão coletiva dos homens cumpriu e conseguiu.[7]

Nesse sentido, o herói é o instrumento das mais altas representações. A concepção romântica da história e da função do herói, pelo que explica Elias Tomé Saliba[8], pressupõe aquela com um caráter providencial, que se julga dirigida para realizar um plano perfeito e infalível; e esta com o privilégio concedido a alguns homens de serem os instrumentos principais da sua realização. Deste modo, Ubirajara encarna-se no arquétipo do herói nacional, como foi definido por Carlyle.

Os movimentos do romance oferecem ao olhar do leitor o mito do ancestral, do original, fornecendo à nação de história curta, a profundidade do tempo lendário, como observou Antonio Candido[9]. Alencar adotou o romance como gênero, recorreu às imagens edênicas com traços medievais e filtrou os livros dos cronistas, missionários e viajantes para explicar o começo da História do país, da origem nacional. Mas, ao comparar os atributos do combate às cenas de cavalaria, visando a dar maior dimensão ao acontecimento, o narrador constrói sua narrativa com valores do mundo civilizado, confirmando que também neste romance, embora ambientado no período pré-cabralino, há a presença colonizadora cujos valores são configurados nas notas. O episódio, repleto de coloridos medievais, desenha a trajetória de ascensão do selvagem, tão heróico quanto são as personagens européias.

As qualidades de chefe atribuídas a Ubirajara concretizam-se através dos momentos decisivos do enredo, nos quais a atuação dele é fundamental para o desenrolar dos fatos. A enumeração de seus feitos contribuem não apenas para consagrá-lo como guerreiro corajoso, mas também para indicar que suas ações visam apenas à consecução dos objetivos da nação e que, por isso, não têm motivação na esfera individual de conquista de poder pessoal, mas, sim, na coletiva.

O herói foi modelado segundo a imagem que se desejava para os homens que formavam a nação, pois ele não é senão o amálgama magistral dos caracteres de um povo, que o elaborou na sua inexaurível força criadora. É bastante significativa, para essa caracterização, a passagem em que Ubirajara é aclamado o guerreiro, momento em que a idealização da personagem é feita pelo narrador de maneira decisiva para solidificar essa imagem:

Retumba a festa na taba dos araguaias.
As fogueiras circulam a vasta ocara e derramam no seio da noite escura as chamas da alegria.
[...]
Era a festa guerreira de Jaguarê, filho de Camacã, o maior chefe dos araguaias.
[...]
Suspenso em frente deles está o grande arco da nação araguaia, ornado nas pontas das penas vermelhas da arara.
É a insígnia do chefe dos guerreiros, a qual Camacã, pai de Jaguarê, conquistou na mocidade e ainda a conserva, pois ninguém ousa disputá-la.
[...]
De um e outro lado da vasta ocara, está a multidão dos guerreiros, colocados por sua ordem: primeiro os chefes das tabas; depois os varões; por último os moços guerreiros.
[...]
Todos invejam a glória de Jaguarê, que ontem era o primeiro entre eles, e hoje ali está disputando a fama aos mais valentes guerreiros." (p. 1145)

Com isso, ilustra-se a importância do mito da origem na formação da identidade nacional. Jaguarê, o caçador e futuro guerreiro, herói do romance, é filho primogênito de Camacã, ilustre chefe dos araguaias, e de Jaçanã, mulher de sangue valioso. O registro da paternidade da personagem principal do romance denota o elevado prestígio do herói, já no ventre engrandecido: desde seus antepassados, passando pela vida de caçador, ele sempre foi o melhor, sempre antecedeu os outros quanto ao tempo (é o primeiro filho), ao lugar (encontra-se no mundo primordial) e em todas as suas atividades, colocando-se adiante de todos em qualidade, posição e importância na prática de qualquer das suas ocupações. Inclusive no momento em que conquista o arco chefe, vencendo Pojucã, o primeiro guerreiro dos guerreiros tocantins, ele supera seu pai e converte-se em Ubirajara, o senhor da lança:

-- Ubirajara, senhor da lança, é tempo de empunhares o grande arco da nação araguaia, que deve estar na mão do mais possante. Camacã o conquistou no dia em que escolheu por esposa Jaçanã, a virgem dos olhos de fogo, em cujo seio te gerou seu primeiro sangue. Ainda hoje, apesar da velhice que lhe mirrou o corpo, nenhum guerreiro ousaria disputar o grande arco ao velho chefe, que não sofresse logo o castigo de sua audácia. Mas Tupã ordena que o ancião se curve para a terra até desabar como o tronco carcomido; e que o mancebo se eleve para o céu como a árvore altaneira. Camacã revive em ti; a glória de ser o maior guerreiro cresce com a glória de ter gerado um guerreiro ainda maior do que ele. (p. 1148)

As palavras de Camacã, pai de Ubirajara, simbolizam o tom de uma história sagrada e cria o mito da origem, do homem primordial. O que conta nesse episódio é a rememoração do acontecimento mítico, conservando a história da condição sagrada brasileira: é nesse mito que se reencontram os paradigmas e os princípios da conduta do indivíduo. Reatualizá-lo implicava em participar da grandiosidade narrada e se constituía na possibilidade de restituição desse modelo. Afinal, sendo Ubirajara descendente de tão nobres e valiosas personagens, a nacionalidade brasileira manifesta-se em grande estilo, elevada por sua condição de descendente. A criação de um passado anterior à História Colonial, formava tanto o conteúdo histórico do nacionalismo, quanto a imagem positiva do Brasil, reforçando, com isso, a honra do povo brasileiro.

Ubirajara tomou o arco que lhe apresentava o pai e disse:
- Camacã, tu és o primeiro guerreiro e o maior chefe da nação araguaia. Para a glória de Jaguarê bastava que ele se mostrasse seu filho no valor, como é teu filho no sangue. Mas o grande arco da nação araguaia, Ubirajara não o recebe de ti e de nenhum outro guerreiro, pois o há de conquistar pela sua pujança.
Disse, e arremessando no meio da ocara o grande arco, bradou:
- O guerreiro que ouse empunhar o grande arco da nação araguaia, venha disputá-lo a Ubirajara.
Nenhuma voz se ergueu; nenhum campeão avançou o passo.
O trocano reboou de novo, e no meio da pocema do triunfo, a multidão dos guerreiros proclamou:
- Ubirajara, senhor da lança, tu és o mais forte dos guerreiros araguaias; empunha arco chefe.
Então Ubirajara levantou o grande arco, e a corda zuniu com o vento na floresta.
Era a primeira seta, mensageira do chefe, que levava às nuvens a fama de Ubirajara. (p. 1148-9)

Muito embora seu valor já fosse confirmado e endossado pelos seus antepassados, Ubirajara rejeita receber de seu pai o título de chefe, desafia a todos e conquista-o por méritos próprios. Ora, se o herói personifica a alma do povo segundo o ideal da época, conforma-se, assim, uma quimera de imagem extraordinariamente gloriosa para a nação que surgia. Naquele mundo totalmente selvagem, vê-se o índio inexcedível em suas qualidades e, com isso, o ficcionista envolve o romance num discurso utópico de plena felicidade, robustez e justiça. Ao ler essa passagem, o leitor pode até se render à contemplação de um herói de ânimo belicoso, o que permite ao escritor gravar na mente da nova geração, já civilizada, esse tipo de máximo vigor físico e de suprema energia moral, sensível também no extremo do amor.

No entanto, o sentimento de horror e o espírito civilizado, assumidos pelo narrador na nota de número 37, impedem que esse o ritual antropofágico se manifeste, e a narrativa é conduzida para outra direção. A fim de desvendar esse episódio, o narrador traz para o texto um ingrediente imprescindível à narrativa: o amor. Desde o início do romance, o leitor sabe que Jandira era a virgem que ficara na tribo aguardando o herói. Mas, no capítulo III, intitulado "A Noiva", o drama amoroso inicia quando ela fica ciente de que o herói se encantara por outra virgem e decide sair em busca do seu suposto "noivo", que lhe diz não haver chegado o momento de escolher uma companheira e a designa como "esposa do túmulo" de Pojucã:

-- Os araguaias receberam de seus avós o costume das nações que Tupã criou. Eles destinam ao prisioneiro a mais bela e a mais ilustre de todas as virgens da taba, para que ela conserve o sangue generoso do herói inimigo e aumente a nobreza e o valor de sua nação.
"É esta também a lei que os guerreiros tocantins observam em suas tabas.
"A mais bela e a mais nobre de todas as virgens araguaias, aquela que se ergue como a palmeira no meio da campina coberta de flores, é Jandira, a filha de Majé, que tem no seio os doces favos da abelha.
Travando então do pulso de Jandira, que ali ficara presa de sua vista, levou-a ao prisioneiro.
-- Recebe-a como esposa do túmulo.
Jandira, que ouviu espavorida aquelas palavras, quis fugir; porém a mão do chefe araguaia a reteve:
-- Ubirajara parte, mas ele voltará para assistir a teu suplício e vibrar-te o último golpe. Pojucã terá a glória de morrer pela mão do mais valente guerreiro. (p. 1154/ grifos meus)

O diálogo entre os dois guerreiros enfatiza a generosidade do selvagem por reservar a mais formosa das virgens da sua tribo para "servir" o prisioneiro. A imaginação caprichosa do autor traçou a idealização do nativo (visto como originariamente puro e valoroso), inspirado no caráter civilizado o qual, à primeira vista, ausente no romance, escapa da esfera das notas e surge como marca ideológica no corpo do texto, confirmando, ainda que de forma sub-reptícia, que o índio retratado no livro não está isento do olhar colonizador. Com isso, a benevolência do herói vai além do "honrado" ritual canibalístico e reserva para aquela que o amava a possibilidade de também honrar a sua nação. Apesar disso, este é mais um dos rituais apenas mencionados no texto, sem obter um desfecho, por ser a castidade uma das grandes pérolas do ideário romântico e também cristão, reforçando, assim, a atmosfera de pureza que envolvia o mundo retratado na obra.

Como se sabe, a figura feminina tem nesse período literário um marcante papel. A mulher passa a ser idealizada a partir de duas tendências: a do anjo e a do demônio. A primeira, como anjo, é a purificadora, capaz de enobrecer a alma do homem e fortificá-lo, aproximando-o de Deus: desperta nele a sensibilidade para o belo, encoraja-o na sua missão política ou patriótica, revigora-o moralmente. É a mulher benfeitora, a conselheira, a inspiradora, que reflete a luz divina. Desenvolve-se, pois, a mística do primeiro amor que, por ser puro, é verdadeiro, devoto e alicerçado num ponto fixo: o lar. E em sua sinceridade e nobreza, torna-se uma virtude. No segundo caso, o da mulher como demônio, o amor é febre que consome, é perdição, loucura e, muitas vezes, tem o sabor de profanação, de vício e destruição[10].

Em Ubirajara, o amor é enquadrado no primeiro tipo, o angelical, purificado. Jandira não se entrega a Pojucã, nem tampouco esse é submetido ao sacrifício. Ela se guarda para o seu primeiro e único amor, o protagonista dessa obra:

Teu amor, Ubirajara, ficará em meu seio como a flor no vale. Jandira te dará muitos filhos e todos dignos de teu valor. Nestes peitos que te pertencem, ela nutrirá com seu sangue, não menos guerreiro do que o teu; porque é o sangue de Majé, o maior dos anciões, depois de Camacã. (p. 1151)

E depois, ao resistir a Pojucã:

Jandira seria a primeira, se não conhecesse Jaguarê, o mais belo dos jovens caçadores, que é hoje Ubirajara, o senhor da lança e chefe dos chefes. Pojucã merece uma esposa que nunca tenha ouvido o canto de outro guerreiro, para dar-lhe um filho digno dele. (p. 1154)

As duas falas de Jandira articulam-se no universo da dignidade, do respeito à honra e à tradição, são esses os elementos que introduzem o fio da intriga amorosa. Diferentemente do dois primeiros capítulos que descrevem os sucessos de Ubirajara como caçador até alcançar o patamar de guerreiro-chefe, nesse, há dois momentos: o primeiro, quando Jandira aguarda seu pretenso noivo; o segundo, quando da espera de Pojucã da cena do canibalismo. Em resumo: estamos, agora, em pleno drama amoroso, tecido pelas emoções pueris que prendem o leitor a essa narrativa
.
Esses elementos contribuem para compreender as funções da castidade no texto. É ela quem assegura a pureza da raça brasileira, descendente do nobre guerreiro e da ideologia do narrador. Assim como o herói do romance era o original, o primeiro, também aquela que o receberia deveria ser. Desse modo, a virgem desempenha o papel de garantir o caráter de uma raça cândida, genuína, sem mistura, nem alteração. É importante lembrar, ainda, que essa perspectiva virginal também é uma característica dos valores europeus, cristãos. O mundo retratado no romance é totalmente selvagem, mas o comportamento das personagens e o desfecho da narrativa extravasam demonstrações das virtudes bíblicas e senhoriais. O grau de submissão à ordem civilizada se evidencia pela fidelidade a seus princípios. O ato de rejeição a Pojucã por Jandira adquire dimensão maior quando se percebe que, além da conservação de sua virgindade, mantém o prisioneiro intacto de qualquer ritual em nome do canibalismo a que ele, "heroicamente", seria submetido.

Romance de temática épica, Ubirajara obedece a uma das fórmulas mais típicas da estrutura da narrativa: o relato de uma ação central de natureza heróica, enriquecida por episódios ligados à trama nuclear, sendo pelo menos um de essência lírico-amorosa. O romance põe em primeiro plano o desenvolvimento do perfil do herói, provendo-lhe sucessivas provas de demonstração de sua integridade moral. O triângulo amoroso, velho expediente da história romanesca para ganhar o interesse do leitor, é elemento complicador, como de praxe, e o responsável para conduzir a obra até o fim sem, contudo, permitir que tradicionais costumes indígenas, elucidados na trama e confirmados nas notas, possam ocorrer. No fundo, o resgate da auto-estima do povo se dá a partir dos valores com o qual pudesse se identificar, jamais, portanto, através de ações não consideradas virtuosas pelo olhar civilizado do narrador.

Nos capítulos IV e V, a fidelidade dos índios à honra e à tradição progride de forma ascendente na narrativa. Na arquitetura do romance, a hospitalidade e o combate nupcial cumprem a função de apresentar as personagens ocupadas com tarefas rotineiras, com sentimentos e sonhos de dimensões individuais:

Itaquê passava as horas da ardente calma à sombra da frondosa gameleira, que podia abrigar cem guerreiros embaixo da sua rama.
Repousando dos combates, o formidável guerreiro não desdenhava as artes da paz em que era tão consumado como nas batalhas." (p. 1157)

Como mais tarde Ubirajara se unirá a essa tribo, o narrador não poupa adjetivos e imagens para descrever os tocantins, a tribo de Araci, por quem se encantou. A recepção encontrada por Ubirajara edifica as virtudes essencialmente nativas, pois o episódio traz à tona uma situação de iminente sensualidade, explicitada como essência hospitaleira. Como homem virtuoso que habita no reino da inocência, o herói rejeita as mulheres livres a ele oferecidas e se dirige a elas de maneira respeitosa:

- As moças tocantins são formosas; qualquer delas alegraria o sono do estrangeiro. Mas Jurandir não veio à cabana de Itaquê para gozar do amor de uma noite; ele veio buscar a esposa que há de acompanhá-lo até a morte, e a virgem que escolheu para mãe dos seus filhos." (p. 1163)

Diferentemente do momento em que o herói resiste a Araci, dando prioridade ao título de guerra, agora ele vai buscá-la para constituir uma família, instituição fortemente valorizada com o objetivo de se constituir uma linhagem. Desse modo, ao ocupar o papel de fiel cavalheiro, homem honrado que respeita a mulher amada, Ubirajara simboliza o modelo de homem romântico. Nesse sentido, o mais poderoso dos discursos, o da religião cristã, estampa as cenas aparentemente acidentais e não deixa dúvida quanto à sua inserção como diretriz do romance, trazendo à tona as marcas da civilização que se impunha de forma definitiva. A identidade brasileira é definida, desse modo, a partir da perspectiva alheia, mais propriamente a européia. É importante destacar que a vigência da honra, desde o início da narrativa, representa a manutenção dessa sociedade, pois se realiza sob os princípios da civilização e não do mundo selvagem, como deveria ser o mundo pré-cabralino. Assim, o romance nos leva a testemunhar o processo e formação da nação cujas virtudes de lealdade e fidelidade são honradas desde o mais longínquo momento, o que se percebe pela conduta de lealdade e humildade do herói ao assumir um novo nome, insígnia de hospitalidade, e renunciar momentaneamente da sua condição de guerreiro para lutar pela mulher amada:

- Grande chefe dos tocantins, Jurandir não veio à tua cabana para receber a hospitalidade; veio para servir ao pai de Araci, formosa virgem a quem escolheu para esposa. Permite que ele a mereça por sua constância no trabalho, e que a dispute aos outros guerreiros pela força de seu braço. (p. 1164)

Ubirajara é inteiramente brilhante como "servo". Essa passagem concede ao leitor uma visão total da figura do herói, ressaltando a integração absoluta entre o selvagem e a natureza, estabelecendo os atributos da força e da coragem, virtudes edificadas pela narrativa como valores maiores do mundo civilizado. Aplica-se à situação seu conhecimento da floresta, dos rios e dos animais e, por isso, nunca a abundância reinara na cabana sempre farta do chefe dos tocantins, como depois que a ela chegara o estrangeiro (p. 1165). Ancorando a ação no âmbito da verdade, por intermédio das narrador histórico, legitimam-se as qualidades do selvagem como graça, força e inteligência, sempre superior a quem o cerca.
O clima de tranqüilidade é novamente suspenso por Jandira, que, magoada, ameaça a vida de Araci:

-A virgem araguaia ameaçou a vida de Araci; ela lhe pertence; disse à filha de Itaquê.
Jurandir cortou na floresta uma comprida rama de imbê e atou as mãos de Jandira.
-Jandira é tua escrava. Não lhe dês a liberdade. Ela tem a astúcia da serpente e seu veneno.
-Eu era a cobra-d'água, amiga do guerreiro, que habita sua cabana e a guarda contra o inimigo. Quem foi que me fez a cascavel venenosa, que traz nos lábios o sorriso da morte?
Jurandir não respondeu. Nesse momento ele teve saudade da sua cabana e lembrou-se do tempo em que, jovem caçador, seguia na floresta a formosa virgem araguaia. (p. 1167)

Com esse diálogo pode-se perceber as circunstâncias de finalização da trama em função do sentimento saudoso do guerreiro. Além da saudade, Araci perdoa Jandira e a considera sua irmã, que dará a Ubirajara filhos tão valentes quanto os dela. Esse diálogo reforça a idéia de harmonia daquele mundo, embora, em princípio, a virgem araguaia diga que nunca ofereceria sua rede de esposa a outra mulher (p. 1168). Entretanto, pode-se facilmente perceber que o narrador deixa em segundo plano os sentimentos de Jandira e, a despeito da saudade do herói, fica o dito pelo não dito e ele vai mesmo é lutar por Araci.
Para a descrição do combate nupcial (p. 1169), o narrador coloca-se à distância e cria um vasto campo visual para enunciar e definir o episódio:

A grande nação tocantim cerca a vasta campina. No centro estão os anciões, que formam o grande carbeto.
Em frente aparece Araci, a estrela do dia, que há de ser o prêmio da constância e fortaleza do mais destro guerreiro." (p. 1169)

Iniciado o combate, o narrador é econômico e preciso ao tratar da postura dos adversários, não se furtando, porém, de provê-los de caracteres portentosos que pudessem fazer frente aos atributos heróicos de Ubirajara, naquele momento, Jurandir (seu nome hospitaleiro), cuja aparição é detalhadamente narrada até o momento da vitória. Os episódios que caminham para o fim do romance, direcionados pela conquista de Araci, elucidam a posição do romancista, ao engrandecer o aborígene narrando tanto a sua capacidade bélica, quanto amorosa, culminando com o momento da entrega da virgem como esposa, numa narrativa emoldurada em imagens delicadas e meigas, enfatizando os valores do amor puro e leal:

- Araci pertence ao grande chefe da nação araguaia. Ela teve a glória de vencer ao maior guerreiro das florestas. Ela será mãe dos filhos do chefe poderoso.
A palmeira é formosa quando se cobre de flores e o vento agita as suas folhas verdes que murmuram; mais formosa, porém, é quando as flores se mudam em frutos e ela se enfeita com seus cachos vermelhos.
Araci também ficará mais formosa quando de seu sorriso saírem os frutos do amor: e quando o leite encher seus peitos mimosos, para que ela suspenda ao colo os filhos de Ubirajara." (p. 1175)

Esse é o último momento de harmonia até o herói narrar sua maranduba de guerra. As virtudes de lealdade e inteligência surgem como traços distintivos de ambas as tribos. Honrando as leis da hospitalidade, Itaquê não poderia lutar contra Ubirajara, o futuro algoz do seu filho; reconhecendo ser a vingança a alma do guerreiro, o herói parte da cabana hospedeira para retornar como inimigo. Somente agora surgem os primeiros vilões da obra: os tapuias, que, na verdade, apenas respondem ao desafio lançado por Pojucã. O caráter bélico da trama, interrompido pela circunstância amorosa, retorna com plena força, corroborando a face épica do texto. Com isso, a ação se dinamiza e ganha maior dramaticidade por se desenvolver em meio à batalha das tribos e arma-se mais uma prova a ser executada pelo herói: derrubar os tocantins, quando esses triunfarem sobre os tapuias. Porém, ele teve mesmo de lamentar que dos dois grandes guerreiros não restasse nenhum, para que ele o vencesse (p. 1183) porque os olhos de Itaquê foram vazados pela flecha do filho do chefe tapuia, Canicrã, morto pelas mãos do chefe tocantim. Desse modo, as imagens finais vão sendo elaboradas de modo a edificar uma convivência harmônica entre as tribos, demonstrando como tudo era bom no mundo da origem e que, mesmo na época de combate, preservava-se a honra, essa, sim, invencível naquele tempo.

Os guerreiros tapuias, na tentativa de vingar seu chefe, proclamam guerra aos tocantins. No entanto, esses não podem lutar por dois motivos: pela incapacidade de Pojucã de manejar o arco de seu pai; e porque esse estava cego. A solução encontrada foi a de se unir aos araguaias para que eles fossem conduzidos ao caminho da vitória:

O braço de Itaquê defendeu sempre a nação tocantim; quer ela ser defendida agora pela palavra daquele que não tem mais para dar-lhe senão a experiência de sua velhice?
[...]
-- A voz do coração diz ao neto de Tocantim que a glória da nação que ele gerou não se pode extinguir. O sangue de Itaquê, passando pelo seio de Araci, se unirá a outro sangue generoso para brotar maior e mais ilustre." (p. 1186-7)

A ênfase dada à sabedoria de Itaquê é também reproduzida em Araci, a filha da velhice, cuja sensatez é percebida depois que ela se torna esposa do herói do romance, quando rompe a liga vermelha, insígnia da virgindade. No momento em que todos preparavam a festa do triunfo, ela conduz Jandira à presença de Ubirajara e a apresenta como sua irmã e esposa do guerreiro.

-- Jandira é serva de tua esposa; seu amor a obrigou a querer o que tu queres. Ela ficará em tua cabana para ensinar a tuas filhas como uma virgem araguaia ama seu guerreiro. (p. 1191/.grifos meus)

A generosidade de Ubirajara é mais uma vez reconhecida quando ele proclama ambas como esposas (possibilidade anteriormente indicada pela saudade sentida pelo herói), formando, assim, a grande nação dos Ubirajaras, o chefe dos chefes e senhor das florestas. Com a união das tribos, ocorre o equilíbrio de virtudes que deveriam ser firmadas no novo homem. A robustez com que o herói une os arcos potentes, formando o emblema da união das tribos, garante que, através do herói, seja desenhada uma trajetória magnânima para o povo brasileiro. Assim, o romance contribui para apontar os traços que deveriam perfilar o país, indo até o desenho de sua origem, criando uma Idade Média brasileira, sob o signo da prudência e da coragem. Com a fusão das duas tribos, surgirão guerreiros e donzelas nobres como eram as nações tocantim e araguaia. Consubstancia-se, através disso, a imagem célebre da ancestralidade brasileira. Afinal, se no tempo dos primeiros tudo é primoroso e encantador, assim também serão seus descendentes.

As duas nações, dos araguaias e dos tocantins, formaram a grande nação dos Ubirajaras, que tomou o nome do herói.
Foi esta a poderosa nação que dominou o deserto.
Mais tarde, quando vieram os caramurus, guerreiros do mar, ela campeava ainda nas margens do grande rio." (p. 1190)

Nessa cena final, funda-se uma imagem paradisíaca, que permite Alencar criar para o país um passado lendário, transformando a história brasileira num mito edênico. A distância que separa a esfera mítica da histórica pode levar a um choque entre ambas. É o que se pode perceber em As Minas de Prata, romance em que se desenvolvem as sementes colhidas nas obras indígenas, mais claramente de O Guarani e também de Ubirajara, não obstante a diferença cronológica das obras.

O que, na verdade, se observa é que o caráter brasileiro que Alencar procurou impor à sua ficção continua em elaboração. O "poema nacional", exigido em seus próprios textos críticos, ainda é um projeto a ser alcançado porque os valores estrangeiros são dominantes em suas narrativas. Os princípios de coragem, lealdade e honra, presentes em Ubirajara como qualidades puras do selvagem que ele intenta retratar são, no fundo, retirados do contexto. A pureza, então, só poderia mesmo ser alcançada numa esfera lendária, distante, num passado absoluto, isolado da contemporaneidade, do infinitamente longe. Lá no mundo dos primeiros, que seria o dos melhores, onde se encontram os fastígios da história nacional, os quais devem ser guardados na memória, não apenas como uma tradição, mas como um acontecimento sagrado, impenetrável, exemplo do que de mais sublime poderia existir para a formação da identidade nacional brasileira.

Apesar disso, ao trabalhar a matéria histórica, Alencar não segue a trilha mais usada pelos produtores da epopéia, embora não se desvie de todo das práticas da criação épica. Os documentos autênticos de que o autor se valeu fornecem elementos para a construção de um romance histórico de índole indianista e as fontes passam a ser escolhidas em consonância com as injunções estruturais da criação épica, as quais valem como referência à veracidade do texto.

Como muitos textos de matéria guerreira, este não é restrito à narração de acontecimentos de combate, com seus antecedentes e suas conseqüências. As proezas bélicas assumem aqui o realce da exaltação do heroísmo do indígena, em contraste com o mundo civilizado; contraste esse solidificado nas notas de rodapé. Desse modo, Alencar estabelece e une duas narrativas e dois narradores para inserir os valores de fidelidade, magnanimidade e honra fundamentais para construção da idéia de nacionalidade brasileira, que tem como um dos seus elementos o índio, o qual, guarnecido por caracteres heróicos, reúne, em termos idealizantes, a fisionomia e a força psíquica almejada para a incipiente nação.

A simplicidade da intriga principal de Ubirajara contribui para consubstanciar esses valores, determinados por intermédio do diálogo entre os dois narradores e permite ao escritor, em conformidade com o ideário romântico, apresentar a compreensão que tinha do país: reservar o heróico às pretéritas épocas da nossa história.


[1] A esse respeito, vale observar a análise desenvolvida por Ian Watt acerca da epopéia cômica em prosa no romance de Fielding. WATT, Ian. "Fielding e a teoria épica do romance", In: _____. A ascensão do romance. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 225
[2] ALENCAR, Josˇ. Ubirajara. In: Idem. Obras Completas. Rio de Janeiro: Aguilar, 1960. vol 4 .
[3]GRASSI, Ernesto. "O mito e a arte". In: Arte e mito. Lisboa: Edição Livros do Brasil. p. 73
[4]SALIBA, Elias Thomé. As utopias românticas. São Paulo: Brasiliense, 1981
[5]Ferdinand Denis, "Resumo da História Literária no Brasil" In: CÉSAR, Guilhermino. Historiadores e Críticos do Romantismo. A Contribuição Européia: crítica e história literária. São Paulo: EDUSP, 1978
[6]BRENNAN, Timothy. "The national longing for form". In: BHABHA, Homi (org.) Nation and Narration. London: Routledge. 1990.
[7]CARLYLE, Thomas. Os heróis e o culto dos heróis. São Paulo: Cultura Moderna, 1980
[8]SALIBA, Elias Tomé. Op. Cit.
[9]CÂNDIDO, Antônio. "Os três alencares". In: Formação da Literatura Brasileira (momentos decisivos) Belo Horizonte: Itatiaia, 1993. p. 225
[10]COSTA, Emília Viotti da. "Concepção do amor e idealização da mulher no Romantismo. - Considerações a propósito de uma obra de Michelet", In: Revista Alfa. n° 4, set. 1963. p. 38

Mirhiane Mendes de Abreu é professora de Teoria da Literatura na Universidade Estadual de Londrina. Mestre em Letras pela UNICAMP, onde defendeu a dissertação entitulada Ubirajara, herói épico, está cursando o doutorado nessa mesma universidade, dando continuidade ao estudo dos romances indianistas de José de Alencar.
e-mail: mirhiane@uel.br


Abertura |Recepção | Folha de rosto | Indice | Colaborações| Pesquisadores Brasileiros | Bancos de Teses | E-mails | Instruções | Arquivos |Endereços na Internet | Serviços | Lançamentos | Conselho