© Luis Filipe Ribeiro - Geometrias do Imaginário. Santiago de Compostela: Edicións Laiovento, 2000


 

APRESENTAÇÃO


Todo livro tem sua história. Este não pretende ser diferente. E isto tem lá suas vantagens
.
A primeira delas é que, se faltar alguma legitimidade aos capítulos que o compõem, a Apresentação, na sua costumeira gravidade, haverá de suprir, com conversa, o que faltar em aceitação. Espero que este não seja o caso deste aventureiro que se lança ao mundo, sonhador, à cata de leitores.

Outra vantagem, não menos importante é que, antes de que o leitor se ponha a buscar os defeitos mais graves que o livro evidentemente contém, aponto alguns, de menor peso, com que o distraia das coisas verdadeiramente sérias que poderia eventualmente encontrar.

A terceira é que, parafraseando Vinícius de Morais, um livro sem Apresentação é como um rio sem pontes. Não se sabe bem porque, mas é costume consagrado. Nada há que uma apresentação possa fazer pelo livro, se ele mesmo não caminhar por suas próprias pernas. Mas já que deve ter uma, que lhe seja útil.

E a última das vantagens, nem por última desimportante, é que, sem aviso prévio, já me coloco em intimidade com o leitor e ganho, por antecipação, sua simpatia senão teórica, pelo menos afetiva. Se o escritor, afinal de contas, se mostra receptivo, por que não lhe dar um crédito por antecipação?

Dito isto, explico o porquê de estar aqui, incomodando os leitores desprevenidos. É que tenho mania de escrever. São essas coisas que se pegam na infância e não largam mais da gente ao longo da vida ... Mas, enfim, ninguém tem culpa disso.
Venho escrevendo, mais irregular que regularmente, ao longo de uma carreira dedicada a tentar ensinar aos outros o prazer da leitura. Ainda que prazer não se ensine, mostrar caminhos nunca é excessivo. Fruto dessas experiências, nascidas de uma curiosidade insaciável, que me faz fuçar os livros alheios, de forma pouco educada e, mesmo, irreverente, são os ensaios que aqui se reúnem.

A maioria já esfregou seus olhinhos à luz de alguma página de imprensa. Mas, num país como o nosso -- e nos outros também! --, as revistas acadêmicas têm uma vocação fatal para a clandestinidade, de forma que se poderia dizer que são todos, a rigor, inéditos. E sua publicação agora, em forma de livro, não garante que deixem de sê-lo -- livros de ensaio não costumam ser sucessos de público. Prova evidente da teimosia do autor. Mais uma razão para ser perdoado da toleima de incomodar os leitores com suas indagações que, talvez, só sirvam para irritar os autores estudados. Como a maioria já nos deixou faz muito tempo, os meus riscos são significativamente minimizados...

Os ensaios estão divididos em grupos de forma a dar alguma organização ao livro. Mas isto não impede, evidentemente, que sejam lidos na ordem que cada um escolher, o que, no fim das contas, acontece com todo livro de ensaios. De forma que esta observação poderia ser dispensada, mas já que aqui está, agora é bom que fique.

No primeiro grupo, Três miradas européias, reuni os trabalhos que se dedicam à análise de temas europeus ou de livros escritos por lá. Aparecem na ordem cronológica de sua temática. Desde o tema do Fausto que começa sua migração, registrada, pelo Século XVI até o último livro de Júlio Verne, Paris no Século XX, que ficou inédito até a nossa década.

O segundo, Nosso pedaço..., abriga os estudos dedicados aos autores brasileiros e às suas obras. Aparecem, aqui, em ordem inversa à da cronologia. Não há nenhuma razão para isto que não seja a minha preferência. Se há várias ordens possíveis, a melhor é aquela que agrada mais a quem escreve. A caminhada, aí, se faz da frente para trás.

Começa com um estudo sobre essa obra-prima que é o Memorial de Maria Moura, de Rachel de Queiroz, e termina com uma abordagem do ultra-estudado Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida.

Entre os dois, busco trabalhar sempre com autores ou obras sobre os quais impera o silêncio da crítica. A principal razão de tal escolha reside no fato elementar de que a crítica é um dos instrumentos fundamentais para a cristalização do cânone, ou seja, do conjunto de obras representativas que merecem a consagração pública. Como acredito que os critérios de tal consagração são, além de subjetivos, extremamente discutíveis, procuro mostrar que há, além de tal jardim, autores e obras que continuam merecendo leitura e avaliação.

Basta manusear as diferentes histórias da literatura brasileira que por aí andam, para constatar que tratam sempre dos mesmos autores e das mesmas obras desses mesmos autores. Isto, por certo, não as desqualifica, mas aponta para um problema: todas enfocam, com maior ou menor competência, um mesmo conjunto de livros já consagrados. São assim histórias de uma das literaturas brasileiras possíveis, mas não seguramente da única. O conjunto de livros relegados ao esquecimento -- nem sempre, por razões minimamente justas ou sequer explicitadas -- é tão grande que seriam suficientes para se tentar construir uma outra história da literatura do nosso país.

Há que pensar que os critérios de avaliação, em cada momento histórico, expressam valores sociais e, portanto, ideológicos. Nada de mal nisso, até porque é uma contingência das obras humanas. Mas fica claro que tais critérios estabelecem leis de inclusão e de exclusão que, na maioria dos casos, passam por interesses sociais que não têm muito a ver com a qualidade das obras. E mesmo essa qualidade, quando se consegue identificá-la e respeitá-la, é historicamente variável. O ponto de vista de quem a observa estará sempre sujeito a múltiplos filtros que se relacionam com a inserção social, com as opções éticas, as alocações etárias e outros tantos fatores, que fica muito difícil afirmar que existam, nessa área, critérios minimamente universais.
No caso de Manuel Antônio de Almeida, tal afirmação não seria justa, já que tem sido premiado com uma boa e vasta bibliografia. Mas o que pretendo apontar, no ensaio que lhe dedico, é para o tipo de fonte de que se serviu o autor, para a construção de nosso primeiro romance de qualidade indiscutível. Penso que haja aí alguma novidade credora de atenção. Emília Freitas permanece, com visível injustiça, uma desconhecida. O Philomena Borges, de Aluisio Azevedo, nunca mereceu o mesmo tratamento que a crítica dispensou aos justamente famosos O Mulato, O Cortiço e Casa de Pensão, ainda quando seja, na minha avaliação, uma de suas melhores produções, até porque liberta das limitações de um Naturalismo de importação que nunca se aclimatou muito bem por aqui...

No caso de Machado não se está a reparar silêncios injustos -- que não os há --, mas tentando desenhar o processo com que ele constrói as suas imagens de mulher, desmontando o bem construído imaginário romântico vigente até então. O texto foi escrito para ser lido num congresso de Sociologia e tem as marcas de sua pseudo-oralidade. Não entendi correto ocultá-las, seria deturpar o discurso tal e como se apresentou. Se algum sabor possa ter, talvez seja por ter sido escrito com tal finalidade. Assim vai como é, sem máscaras nem ornamentos, e isso não lhe tirará o que não tem: a pretensão da formalidade.
O Novelário de Donga Novais é, sem sombra de dúvida, dos livros de Autran Dourado o menos conhecido e aquele cuja construção e escrita se destaca sobre os demais, apesar de excelentes. O silêncio lhe pesa até hoje...

E o que não dizer do Memorial de Maria Moura ? Rachel de Queiroz chega, com ele, ao ponto mais alto de sua carreira de romancista. Aos 83 anos dá uma lição de literatura a muito escritor deste país e, igualmente, pesa sobre ele um véu de silêncio, no mínimo constrangedor. Não para ela, seguramente. Mas para a própria crítica.

A última parte estampa três estudos de corte mais teórico -- Literatura e História: uma relação muito suspeita, Literatura, Discurso, Sociedade e Globalização e Literatura-- e que aí foram parar , por não encontrarem um espaço confortável nas outras duas divisões.

No primeiro se discute, com base em modernas correntes da historiografia, os tipos de relação que se podem estabelecer entre estas duas instituições sociais que são a literatura e a história. Um tema que incomoda a quem quer que se dedique a estudar uma ou outra dessas construções da cultura humana.

Literatura, Discurso, Sociedade , escrito para ser lido em um congresso, além de manter a já referida pseudo-oralidade, envereda pelos caminhos da própria oralidade, ao discutir as relações -- difíceis, sem dúvida -- entre discurso e literatura. Analisa o estado da questão entre nós no Brasil e tenta colocar alguns problemas e apontar possíveis soluções para a barafunda terminológica que mais emperra que faz avançar o seu equacionamento. É o seu tanto polêmico. E talvez seja esta a sua maior sedução.

Globalização e Literatura nasceu de um convite que os alunos de Letras da Universidade Federal Fluminense me fizeram para abordar o tema em um congresso por eles patrocinado. O tema já me preocupava, mas parece que mais ainda a eles, vítimas antecipadas do processo. Não tenho aí a pretensão de apresentar uma visão ampla do problema,, inclusive pelas limitações de tempo que uma palestra deste tipo obriga. É uma primeira abordagem, desenho de um campo de problemas, uma provocação ao debate. Acreditei interessante incluí-lo, --com a mesma pseudo-oralidade com que os canso -- mais pela atualidade do problema, do que pela completude inexistente no trabalho. Mais uma razão para incomodar o leitor...
Esta última parte não pretende ser uma conclusão para o livro, no sentido de construir-lhe uma síntese. Mas, por serem os últimos estudos, talvez adquiram, sem que eu o tivesse planejado, essa conotação. Como não estou aqui para censurar as alheias leituras, significará o que decidam os pacientes leitores.

Resta dizer que são ensaios escritos em épocas diferentes e, por essa mesma razão, gozam de autonomia de vôo uns em relação aos outros. Mas, relidos e reescritos, revelaram ao próprio autor uma unidade de que não suspeitava muito fortemente. Na verdade, expressam a trajetória de um pensamento que, se se esforça permanentemente pela sua própria superação, mantém uma coerência de objetivos que vem de longe.

E, entre eles, destaca-se, o de trazer os estudos sobre a literatura para perto do mal-chamado leitor comum. Pois é ele o único que conta para a vida social das obras literárias. Dele é, em última instância, a decisão de consagrar ou não autores e livros. Sucessos de livraria nossos contemporâneos, odiados pela chamada crítica acadêmica, são a prova mais evidente da impotência social desta última. Creio que, em parte, tal impotência nasce do isolamento da academia junto às pessoas que lêem a literatura como forma de prazer cotidiano e não vigiado. A busca da qualidade e da seriedade, aliás indispensáveis, não é razão para tratar-se de livros de forma hermética e inacessível ao comum dos mortais.

Esse é o principal objetivo que me move a publicar estes ensaios, na forma de livro. Talvez seja a pretensão ou ilusão -- vários nomes tem nossas fantasias! -- de poder atingir os poucos que lêem entre nós e propor-lhes uma conversa amiga e amena, a respeito de temas que nos são comuns. Se aceitarem, muito bem; caso contrário, decido que são tolos e, portanto, continuo impávido no meu Olimpo de papel e cartolina, buscando clientes para o espetáculo poder começar.

Toda essa conversa pretende apenas explicar que os ensaios que aqui, impudicamente, se exibem não passam de tentativas, às vezes exasperadas, de convidar ao diálogo, sem o qual a literatura não tem razão para existir. E se ele não acontece, boa parte da culpa cabe aos próprios ensaístas que, muitas vezes, desaprenderam a língua materna. Assim, ficam avisados, que aqueles que aqui estão, foram escritos em língua de gente e falam Português, ainda que algum sotaque regional possa ser lobrigado, aqui e ali, em algumas expressões. Desculpem, mas não sei escrever difícil. Literatura é coisa de quem gosta de ler, e não é, nem pode ser, privilégio de iniciados. Já tenho idade suficiente para não me iludir com as falácias das línguas criptografadas. Lendo os grandes escritores, entendi, desde sempre, que falar claro é gentileza mínima. E, como sou educado, me esforcei ao máximo para obter tal resultado. Se meu texto não der certo, seu olhar é que entortou...

Se, após as leituras, sobrarem algumas indagações ao leitor, permitindo-lhe enriquecer sua visão das obras estudadas, dou-me por pago. Até porque não havendo outro pagamento possível, este deve bastar às despesas de minha vaidade. No caso negativo, leitor amigo, Machado de Assis ensinou-me a dar-te um piparote e dizer-te adeus.

Assim, arrisco-me às reprimendas públicas, pela ousadia de incomodar a tranqüilidade alheia, com indagações fora de hora. Mas elas me darão a certeza de que atingi, pelo menos, um objetivo: trazer as obras literárias ao centro da praça e fazê-las objeto de discussões e divergências.

Que outra paga maior pode esperar quem escreve?


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