© Luis Filipe Ribeiro - Geometrias do Imaginário. Santiago de Compostela: Edicións Laiovento, 2000


LITERATURA E HISTÓRIA:
UMA RELAÇÃO MUITO SUSPEITA.




O problema não está em estabelecer relações entre a Literatura e a História. O problema reside em saber de que Literatura e de que História se fala.

Conceituar uma ciência e delimitar a extensão de seu objeto é tarefa fundadora e exige, como petição de princípio, teorias consolidadas. Não é o caso, e seria descabida pretensão tentar fazê-lo.

Minha tarefa, sendo bem mais modesta, nem por isso deixa de ser espinhosa. Pois não é fácil esboçar em tal relação o que cada um de seus termos quer dizer. Enfim, aventuremos...

A Literatura, de longa data - ainda que não se possa incluir aí o pensamento da Grécia Clássica -, tem sido concebida essencialmente como texto . Uma enorme coleção de textos, uma monumental biblioteca universal. E, aparentemente, não há nisso equívoco de marca. Mas só aparentemente...

O texto , antes de mais nada, é um produto. Nasce do trabalho humano e é dele testemunho material eloqüente. É testemunho do esforço de criação individual, dos condicionamentos sociais, das dimensões culturais, das condições econômicas, dos conflitos éticos e das contradições políticas, que configuram o espaço em que foi gerado e publicado. Assim, sua leitura e compreensão demanda que se desentranhe, de sua teia de signos, indícios dessa totalidade, sem o que ficará limitado a um jogo de armar destituído das significações que o tornam parte do legado cultural de que somos herdeiros.

Tal tarefa, em si mesma, indicia que antes do texto e depois dele existem dimensões que não podem, de forma alguma, passar despercebidas. Sem o autor, que lhe dá o sopro gerador, e sem o leitor, que o arranca da insignificância geral, ressuscitando-o, o texto não passa - como queria Sartre - de um monte de papel cheio de borrões de tinta.

Assim a Literatura, enquanto instituição social viva, tem que ser entendida como um processo. Processo histórico, político e filosófico; semiótico e lingüístico; individual e social, a um só tempo. Sua realidade transcende o texto para assumir o discurso , que conta, minimamente, com as dimensões do enunciador , do enunciado e do enunciatário .

A Literatura, desse modo, não pode estar apenas no texto , como não está no autor, nem no leitor. Ela constitui-se numa dinâmica que a todos envolve e compromete, numa unidade de movimento intensamente dialética.

O real da Literatura é, então, um processo que envolve atores historicamente situados em contextos sociais claramente definidos. O real Dom Quixote é aquele que se instaura a cada ato de leitura. Para cada leitura haverá um Dom Quixote que é diferente, sem deixar de ser essencialmente o mesmo. A cada leitura, na tramada dialética que se estabelece entre leitor / texto / autor, constitui-se uma realidade histórica e social inédita.

O leitor constitui-se, a cada leitura, numa realidade histórica distinta, sofrendo condicionamentos variados, originários de sua inserção social e cultural. Uma mesma pessoa física, ao reler um livro, ainda que imediatamente à primeira leitura, já não é o mesmo leitor. É um novo leitor, cujo cabedal de leituras inclui essa primeira, que se transformará em elemento de produção de sentido da releitura iniciada. Cada um lê com os instrumentos de sua época e de sua cultura, que conseguiu amealhar. A um capital maior, um maior dividendo de significações. O leitor, sem deixar de ser pessoa individual, é necessariamente uma realidade social e histórica. Na sua leitura, inscrevem-se as marcas de seu tempo, de sua cultura, de suas preferências, de seu desejo e de sua loucura...

O texto, enquanto estrutura significante, aparentemente não muda; sua superfície gráfica apresentará as mesmas manchas e os mesmos caracteres. Mas, na medida que se defronta com um leitor constantemente renovado, capaz de gerar significações distintas, será ainda o mesmo texto ? E que garantia podemos ter de que um romance, digitado num computador, que se oferece à leitura num monitor de vídeo, não é o mesmo texto que o impresso em livro? Que diferença há entre os originais datilografados e rabiscados e as páginas finais imaculadas, recém-saídas da tipografia ? Um romance editado em Braile ou gravado em fita magnética de áudio, não é, ainda e sempre, o mesmo texto ?

Se o entendermos numa dimensão meramente positivista e burda, a resposta terá de ser positiva. Entretanto, a cada leitor e a cada leitura, ele se oferecerá como o mesmo e como um outro. Mais do que estrutura significante, o texto coloca-se como um desafio, como uma riquíssima rede de possibilidades. Que tipos de significações, leitores diversos, inseridos em meios e em tempos distintos, dotados de sonhos e projetos diferenciados, que tipos de significações poderão eles produzir, alicerçados na mesma teia gráfica ? Que sentidos divergentes poderão ler nas mesmas páginas, ainda e quando procurem desenvolver uma leitura fiel ?
Em verdade, um texto é, ele também, uma dinâmica viva, mesmo que aparentemente congelada numa forma gráfica. Não nos deixa mentir o poeta:


Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave? [1]


Há no texto , qual um palimpsesto, uma superposição de camadas que demandam o trabalho de leitura para oferecerem-se plenas. É, ele também, um processo histórico. A cada leitura, socialmente dada, deposita-se, sobre as já existentes, uma nova camada de significações, que a ele se agrega como um elemento a mais de sua história. Cada uma dessas camadas constitui, a sua vez, um outro texto, que adotará ou não a forma escrita. Mas, de qualquer forma, adquirirá existência social e especificidade histórica. Assumindo a forma material de texto escrito, candidatar-se-á à perenidade e a constituir-se como elemento pertencente a uma determinada cultura.

Ninguém, hoje, entre nós, pode ler Machado de Assis inocentemente, como se não houvesse uma ampla e boa bibliografia que, sobre sua escrita original, depositou novas dimensões e significações, a que não podemos fugir, ainda que delas eventualmente discordemos. O texto de Dom Casmurro já não se limita mais às palavras escritas pelo Bruxo do Cosme Velho. Muitos co autores agora habitam aquelas páginas e nos importunam, ora com as infindáveis quinquilharias críticas a respeito da culpa ou inocência de Capitu no capítulo do adultério, ora com as interpretações brilhantes de um Raimundo Faoro ou de um Roberto Schwarz. Quando lemos Machado, todos eles se interpõem entre nós e o irônico narrador. O texto se espessa e se complexifica; em outros termos, se historiciza. Nesse sentido, a realidade do texto confunde-se com a história de sua circulação.

Um livro não é um monumento; é uma dinâmica. É o processo de sua circulação que lhe dá existência social. A circulação não só fá-lo existir, como garante sua sobrevivência através dos tempos. A Poética de Aristóteles dormitou durante séculos, antes que o Ocidente fosse redescobri-la nas bibliotecas árabes e a recolocasse em circulação. Durante esse lapso de tempo foi como se ele não existisse, para nós ocidentais. O mesmo se deu com o poeta Souzândrade. Ainda que seu Ghesa estivesse hibernando em algumas bibliotecas deste país, foi o trabalho crítico dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos que o recolocou em circulação, fazendo-o ter existência concreta para nós . Quantos autores não haverá, que dormitam de um sono que pode ser eterno, nas prateleiras da Biblioteca Nacional? Uma vez que deixaram de circular e de serem lidos, na prática, deixaram de existir. Já não existem para nós.

Um livro do qual não se fala, que não se lê, não existe enquanto Literatura. Ninguém lhe há de negar existência enquanto objeto material palpável, mas será inevitável negar-lhe, no contexto contemporâneo, existência histórica e social . Uma Literatura não é uma biblioteca; é um processo vivo de produção, circulação e consumo de discursos.

E o autor ? Que é dele, nessa problemática ?

O autor, tanto quanto o leitor, mesmo sendo único e irrepetível, pessoa física identificável, é, ele também, uma figura histórica. Shakespeare, para nós leitores do século XX, é o perfil de um enunciador construído por mais de quatro séculos de contínuas leituras. Mal sabemos quem foi, enquanto ser humano individual; poucas informações confiáveis chegaram até nós. Entretanto, seu perfil cresce e se acrescenta à medida que as leituras se multiplicam, se aprofundam e se complexificam. É ele um cidadão do final do século XVI e princípios do XVII, da Inglaterra elizabetana. E isto é claríssimo em tudo o que escreveu. Sua imagem é a resultante de uma já muito longa construção discursiva. Shakespeare é um discurso a respeito de um autor. Aliás, ele mesmo não sabia que era um autor do período elizabetano, nem poderia sabê-lo. Tal classificação lhe é muito posterior.

A dialética indivíduo/sociedade mais uma vez se expressa em toda sua clareza. Autor e leitor são, na verdade, processos sociais e, por isso mesmo, históricos, ainda que tenham como significantes indivíduos reais, únicos e irrepetíveis. E isto em nada atenta contra a teoria do sujeito individual. Ao contrário, reforça-a. Pois o indivíduo só é único se se diferencia do todo e, para isso, deve a ele pertencer. Ele é o um e é o outro, a um só tempo. Nele, sociedade e individualidade se contrapõem numa alucinante dialética, em que se baseia toda a construção do psiquismo.

Como separar, em cada um de nós, o que é exclusivamente nosso e o que é social ? A língua que falo é uma instituição social e, entretanto, expresso-me de maneira inconfundivelmente única. As coisas que penso são minhas, mas as idéias são, essencialmente, históricas e, portanto, coletivas.

O autor consubstancia em si idéias, valores, opções, crenças, linguagens, visões de mundo que pertencem à sua sociedade e ao seu tempo. E é com elas que irá trabalhar a construção de seus textos. É com elas que emprestará significações para suas obras. É com elas que se orientará e desorientará em sua, como todas, dramática trajetória pela vida. De muitas terá consciência, de outras nem tanto e de algumas jamais suspeitará, como nós todos...

O leitor tem dimensão equivalente, nesta perspectiva. Ele também produzirá um texto, lendo um livro. Construirá significações para a teia de significantes do outro e, assim, de alguma forma, haverá de apropriar-se da obra alheia. E é exatamente isto que nos dá a desagradável sensação de que os grandes clássicos nos plagiaram por antecipação...

E este leitor lê através de uma língua que não lhe pertence; entende-a, partindo de uma escala de valores que é social; articula suas significações segundo uma malha ideológica que é obra histórica; sente, condicionado por parâmetros adquiridos na aprendizagem em sociedade; sofre, garroteado por neuroses que lhe foram introjetadas nos embates pela vida. É ele, outra vez, expressão da dialética sociedade/indivíduo, organizada nele de forma especialíssima e irredutível a qualquer outro seu semelhante. É profundamente ele mesmo e os outros, numa unidade dinâmica irrecorrível.

Assim os três momentos do discurso-- enunciador/ enunciado / enunciatário -- são etapas de um processo único e indivisível, em que cada uma só existe em função das outras. Segmentá-lo significa destruí-lo, ou o que dá no mesmo, não conseguir apreendê-lo enquanto fenômeno histórico. Só na interação de suas partes tal processo terá inteligibilidade e poderá ser apreendido enquanto fenômeno dotado de interesse humano.

Se assim é, podemos agora esboçar algumas hipóteses de trabalho, capazes de nos fornecerem um instrumental mais agudo e mais fecundo para o estudo e o ensino da Literatura.

Se a Literatura se constitui como uma dinâmica social, como uma espécie de energia histórica que trafega pelo circuito do discurso, envolvendo igualmente e com a mesma intensidade autor / texto / leitor, provocando mesmo uma identificação/desidentificação entre os três momentos, não nos é mais possível estudá-la, privilegiando algum dos pólos do processo. É o próprio processo que deve ser o objeto de estudo e de ensino, mesmo quando se possam vislumbrar dimensões diferentes de historicidade em cada um dos momentos de tal dinâmica.

A historicidade do autor e a do leitor, tomadas separadamente, tendem a ser bastante diferenciadas. O costume de privilegiar, nos estudos literários, os textos já consolidados pela tradição é disso quase uma garantia. Os exemplos acima foram ilustrativos. A leitura de Shakespeare, hoje, confronta um saber do século XX à criação artística dos séculos XVI e XVII. É um diálogo de duas épocas totalmente diferentes e, todavia, muito semelhantes em suas problemáticas básicas. E é justamente por isso que Shakespeare, ainda hoje, nos interessa tanto!

É pela leitura que posso romper as grades de meu tempo histórico e dialogar com homens de séculos distantes. Reside aí uma das maiores fontes de liberdade do ser humano: a possibilidade de viajar no tempo e no espaço, na cultura e na ciência, nas fantasias e nos medos de homens e mulheres que me precederam nessa longa cadeia de discursos que constitui a cultura histórica. E é isto que possibilita meu alistamento como cidadão da História; homem de todos os tempos e de todas as culturas.

Já o texto tem uma dimensão de historicidade bastante distinta. Uma vez publicado, colocado em circulação, ele passa a desfrutar de uma autonomia histórica bastante considerável. Sua trajetória dentro de uma cultura, ou mesmo fora dela, o fará sofrer acrescentadas leituras que, sobre ele, depositarão camadas e mais camadas de significações historicamente produzidas, num permanente confronto com os demais textos da cultura por onde trafega, conduzido por uma dinâmica que independe do autor ou de outras vontades individuais.

Ele é, ao mesmo tempo, contemporâneo do autor e de seus mais variados leitores. A cada leitura, ele estará dotado de uma dimensão específica de historicidade: aquela que lhe determina uma produção de significações, historica e socialmente delimitada. Sua história é, em síntese, a história de suas leituras: leque aberto e inesgotável, que deixa entender a amplitude e a complexidade desse processo que, no limite, confunde-se com a dinâmica da própria cultura.

Tudo isto, no entanto, não deve impedir a percepção de que, ainda quando as historicidades do autor, do texto e do leitor sejam sempre diferenciadas individualmente, a relação que se estabelece entre estes três atores é radicalmente marcada pela contemporaneidade da leitura. E o tempo da leitura é sempre o presente!

A relação que travo com Shakespeare é a relação que pode estabelecer um leitor brasileiro do final do século XX, através de um texto, com o dramaturgo inglês dos séculos XVI e XVII. Esta relação é uma relação histórica que traduz articulações culturais que são as nossas, em nosso tempo irredutível. Se as historicidades divergem, o vínculo construído pela leitura é contemporâneo e falará sempre de minha história, enquanto leitor. O confronto com as dimensões históricas de outras sociedades e de outros tempos servirá para esclarecer e definir, ainda mais, a minha inserção na trajetória de minha sociedade, em primeiro lugar, e da humanidade como um todo, em última instância.

Se isto é mesmo assim, estudar literatura e ensiná-la -- se é que isto é possível e, mesmo, desejável -- significa mergulhar decididamente em minha história, em minha sociedade, em minha cultura e em minha própria identidade, como pessoa e como cidadão. É uma busca alucinada do sentido da vida e da sociedade, num diálogo apaixonado com os que ousaram, antes de mim, a difícil travessia. É a irreverência de desfazer as trilhas já trilhadas, de duvidar do induvidável, de teimar no impossível, de queimar as asas no sonho inalienável da liberdade.

Não bastaria isso para justificar a importância, cada dia maior, de sugerir aos nossos alunos este Caminho de Santiago, pedregoso e traiçoeiro, e que pode levá-los, por isso mesmo, à dimensão maior da História que é a conquista da liberdade ?


[1] Drummond de Andrade, Carlos - "Procura da Poesia" in Poesia Completa & Prosa, 4ª ed. Rio de Janeiro, Nova Aguillar, 1977


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