© Luis Filipe Ribeiro - Geometrias do Imaginário. Santiago de Compostela: Edicións Laiovento, 2000


TRÊS TEMPOS DE UMA CIDADE IMAGINÁRIA:

PARIS NO SÉCULO XX




Quando, em 1863, Júlio Verne, aos 35 anos, provavelmente antes de escrever o seu primeiro livro de nomeada -- Cinco Semanas em um Balão --, rascunhava o texto de Paris no Século XX não poderia imaginar, por certo, que hoje, não na Cidade Luz, mas em alguma outra cidade menos cativante, estaria alguém a analisar-lhe as entranhas de seu discurso. Por mais longe que alcançasse sua visão de antecipador, escapar-lhe-ia, por impossível, desenhar o cenário em que me encontro para proceder a dissecação de sua obra.

Acreditei que a oportunidade recente da tardia publicação deste, agora, seu último livro, poderia oferecer-me terreno fértil para a indagação filosófica a respeito da História, que outra coisa não é que a arte do tempo. Do tempo e dos tempos.

Este livro, que foi recusado por seu editor Hetzel, entre outros motivos, por ser "só ramerrame, e sobre um assunto pouco feliz", segundo uma carta de 1864, abre-se diante de mim como uma promessa fecunda de articulado tecido de tempos diversos. Explico.

O livro foi escrito no ano de 1863 e a narrativa tem como cenário a cidade de Paris, no intervalo que vai de 1960 a 1962. É, então, um escritor do Século XIX que se dispõe a escrever uma estória que se passa no Século XX. Como estamos todos cansados de saber, por fatos como este, Júlio Verne é considerado como um dos criadores da chamada ficção-científica, gênero tão badalado quanto pouco conhecido. Abrange hoje uma gama de variações tão ampla que seria difícil limitá-la à força de conceituações. Entretanto, para o objetivo que me move, o de discutir a questão do tempo e, em conseqüência, a da história, posso arriscar-lhe um desenho provisório. A ficção-científica, enquanto tipo de discurso, constitui-se a partir de um fato aparentemente simples: o autor localiza o seu narrador em um presente diferente do seu e, quase sempre, posterior a ele.

Nos limites da lógica e da verossimilhança, um narrador só pode contar fatos, reais ou imaginários, ocorridos antes do seu ato de narrar. Ninguém pode falar de algo que ainda não aconteceu. Neste caso, Júlio Verne, que escreve em 1863, coloca o seu narrador em algum lugar do tempo que se situa depois de 1962, já que as ações se encerram no inverno desse ano. Para este último, tudo isto lhe é anterior. Não assim para o escritor e para os seus leitores.

Para estes, o comum é que, ao iniciarem a leitura de uma obra literária, estabeleçam um pacto ficcional que determina que o tempo a partir de que observam os fatos narrados seja o mesmo adotado pelo narrador. Com ele começam a travessia e com ele, e através dele, chegam ao seu final. Nós compartilhamos com Bentinho o momento em que, chegado ao final da narrativa de seu drama conjugal, deseja a Capitu e a Escobar, ambos mortos, que "a terra lhes seja leve". Estamos ali e naquele momento, acompanhando-o e vivenciando o mesmo sofrimento. Como sabemos, por outro lado, que a obra de Machado de Assis abrange um segmento temporal que vai de 1857 a 1899, temos também a consciência de que estamos em 1995 vivenciando o sofrimento de Bentinho em 1899.

Existe aí uma clara vivência vicária do tempo alheio. E é assim que se constrói a ficção. Sem este pacto, a máquina imaginária não se põe a andar e seus mecanismos, mal lubrificados, desandam ao primeiro movimento. A mesma experiência repete-se no teatro e no cinema. Temos clara consciência do nosso tempo de espectadores, mas isso não impede -- ao contrário, possibilita! -- que vivenciemos a temporalidade ficcional do espetáculo. Os graus de tal experiência podem e devem variar caso a caso. Vai da total identificação com o tempo alheio, com um apagamento provisório do nosso tempo real, a uma permanente valorização do tempo do espectador e um distanciamento total relativamente à temporalidade do ficcional. Muitas vezes, ao acenderem-se as luzes, ao final do espetáculo, é que retomamos consciência de nossa corporeidade e, em conseqüência, de nossa própria temporalidade. Muitas das obras-primas encontram aí uma de suas articulações mais profundas...

No livro que escolhi analisar, e na ficção-científica de um modo geral, o problema desse cruzamento de tempos coloca-se de uma forma um pouco mais complexa. Se, no caso comum, ao adotarmos, como nosso, o ponto de vista temporal do narrador, todos os fatos narrados passam a ser, ipso facto, anteriores ao momento da leitura, como o haviam sido ao momento da redação, aqui as coisas mudam de figura. Quando lemos Paris no Século XX, ao mesmo tempo que adotamos necessariamente o ponto de vista temporal de seu narrador, situado em 1962, temos consciência -- e de forma permanente -- de que seu autor continua lá no século passado construindo um futuro possível. Nós, hoje. Mas, também, os contemporâneos de Júlio Verne, se tivessem tido a oportunidade de ler este livro recusado.

Para eles, situados no XIX, as ações narradas seriam necessariamente futuras, ainda quando se colassem à temporalidade futura do narrador como única via de colocarem em movimento a máquina do imaginário. Para nós, as ações se dão num tempo passado que sabemos, entretanto, futuro para o autor que as cria. E sem tal tipo de consciência, tampouco, para nós, a máquina ficcional poderá deslanchar seu movimento e aventura.

Nos casos da ficção-científica nossa contemporânea, estaremos na mesma situação dos leitores contemporâneos de Júlio Verne. Lemos fabulosas aventuras que se passam em um tempo futuro, colando-nos à temporalidade do narrador, que está mais adiante ainda, depois desse futuro, de forma a poder olhá-lo como parte do passado que lhe cabe narrar.

Este livro se torna ainda mais enigmático, na exata medida em que o cruzamento de temporalidades se complexifica ainda mais pelo fato de o futuro ali narrado ser, para nós, parte do passado. A Paris de 1960 é, para o autor, o futuro colocado um século à sua frente; para o narrador que ele cria, um passado imaginário de que ele fala. E, para nós? Como fica?

Para nós essa Paris de 1960 é, a um só tempo, um passado real que conhecemos, um futuro previsto pela pena de um autor que lemos e um passado imaginário de que tomamos conhecimento no ato de leitura. As três cidades, que assim se superpõem, não coincidem e não poderiam coincidir nunca. Constituem realidades distintas e independentes, ainda que interligadas por um mesmo gesto discursivo. E como estou entre os que acreditam que nosso conhecimento do real só se processa através dos discursos a que chamamos de realidades, estamos claramente diante de três construções do discurso que desafiam nossa capacidade de produção de significações. Cada uma delas resulta de um processo de produção de sentido que tem a sua própria e incontornável temporalidade. Vejamos.

A Paris de 1960, que conhecemos como nosso passado, está construída a partir de um cruzamento de discursos extremamente complexo. Ela é resultado de todas as experiências sociais que trouxeram até nós uma imagem qualquer da cidade. Desde a experiência pessoal de lá haver estado, até as menores informações pessoais, passando inevitavelmente pelo cinema e pela televisão. Essa Paris é, na verdade, a cristalização, sempre provisória, de um tal cruzamento de discursos. Ela se constrói e reconstrói a cada momento, em nosso imaginário pessoal, a partir de cada reminiscência, informação, leitura ou viagem, real ou imaginária, que se inscrevam no nosso campo de experiências. A própria leitura deste livro de Júlio Verne, ainda que fale de uma outra Paris, agrega-se ao conjunto de experiências que constroem a nossa imagem da Cidade-Luz. Em resumo, a nossa Paris de 1960 é o resultado de uma produção de sentido de um enunciador alocado no final do Século XX, no terceiro mundo, em língua portuguesa.

Já a Paris de 1960 que constitui a razão de ser do livro Paris no Século XX, resulta de um processo de produção bastante diferente. Ela nasce das experiências possíveis a um escritor francês que viveu entre 1828 e 1905, na própria cidade que constitui como tema de seu romance, que é, repitamos, de 1863. Aos 35 anos, idade em que irá publicar o primeiro de seus livros que alcançaria fama -- Cinco Semanas em um Balão --, iniciando nos caminhos de uma ficção futurística que terminará por conceder-lhe um lugar entre os maiores nomes da literatura do XIX, ele se lança à tarefa de escrever este romance.

Vive-se, nesse então, o auge do Segundo Império, sob o comando de Napoleão III. Por delegação do Imperador, o Barão Georges Eugene Hausmann, na qualidade de prefeito da cidade, submete Paris a uma profunda cirurgia urbanística, que termina por lhe atribuir o desenho que ainda hoje a caracteriza. São de sua lavra os grandes bulevares e a criação de parques, com a destruição de uma quantidade enorme de velhos quarteirões. Ele é o encarregado de modernizar a cidade, a par das reformas financeiras e industriais que marcarão o governo de Napoleão III. É nessa época que se criam as grandes instituições de crédito, estimula-se a formação de sociedades anônimas e se implanta uma rede nacional de ferrovias. É o ingresso no capitalismo em sua fase já avançada e que foi objeto de análises até hoje insuperáveis, obra de Karl Marx. É esse o cenário onde se instala Júlio Verne para escrever seu livro.

Nada a estranhar que a sua Paris do Século XX seja dominada de cabo a rabo pelas grandes corporações financeiras e governada pelos grandes monopólios; que se constitua num exemplo de urbanização funcional e apresente um sistema de transportes perfeito; que esteja dotada de um porto marítimo, resultado de um complexo sistema de canais e eclusas que trazem pelo Sena adentro as águas do mar e permitem a navegação de grande porte.

Entretanto, o governo de Napoleão III não transcorre sem grandes conflitos sociais e ocorre, um ano após o seu final, em 1870, o conhecido episódio da Comuna de Paris, quando os trabalhadores assumem o comando da cidade, para serem, em seguida massacrados pelas tropas do governo. Ou seja, a crítica, e não apenas teórica, ao regime capitalista pleno e concentrador que o Segundo Império ajuda a instalar, é um dado sempre presente no horizonte de expectativas de nosso escritor.

De forma que, também, não nos deve parecer estranha a construção de uma Paris em que o conflito de classes esteja, ainda que rigidamente controlado, latente e feroz. A cidade que Júlio Verne constrói, no seu imaginário futurista, nada tem das visões otimistas dos grandes utópicos. É uma cidade funcional, limpa e progressista, mas onde as artes, as preocupações humanistas e a vida humana não têm qualquer valor nem poder diante das grandes corporações que tudo dominam e tudo controlam. Sua construção tanto pode ser aproximada do Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, quanto do "cult movie" Blade Runner, o caçador de andróides, de Ridley Scott. Se não tem o tom sombrio destas duas obras-primas -- ao contrário, seu mundo é luminoso! -- a situação humana aí está marcada pelo mesmo pessimismo. Claro está que a violência que ele projeta para o futuro civilizado é uma violência econômica e social, liofilizada e anti-séptica, oculta pelas dobras da eficiência e do pragmatismo. Paris é uma cidade iluminada e funcional. A razão -- econômica, é claro! -- é o parâmetro básico de todas as ações sociais.

Assim, por exemplo, todo o processo educacional do país está concentrado no gigantesco monopólio da Sociedade Geral de Crédito instrucional que

em 1960 ...... contava nada mais nada menos que 157.342 alunos, nos quais a ciência era incutida por meios mecânicos.
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A Sociedade de Crédito instrucional possuía prédios imensos, elevados no antigo Campo de Marte, inútil desde que Marte deixara de fazer parte do orçamento. Era uma cidade completa, uma verdadeira urbe, com seus quarteirões, praças, ruas, palácios, igrejas, casernas, algo como Nantes ou Bordeaux, podendo conter cento e oitenta mil almas, inclusive as dos mestres de estudo.[1]


Em nome dessa mesma razão

É preciso admitir que o estudo das belas letras, das línguas antigas (francês inclusive), via-se praticamente sacrificado; o latim e o grego eram línguas não apenas mortas, mas enterradas; apenas pro forma ofereciam-se alguns cursos de letras, mal acompanhados, de pouco peso e importância menor ainda.
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As línguas modernas, com exceção do francês, estavam muito favorecidas; elas recebiam uma consideração especial; no Crédito instrucional, um filólogo apaixonado teria podido aprender as duas mil línguas e os quatro mil idiomas falados no mundo inteiro. Depois da colonização da Cochinchina, o subchefe de chinês passara a reunir um grande número de alunos.[2]

O pragmatismo comanda, em nome da razão econômica que, na época, tinha o nome de progresso. Nesse quadro, a asfixia de tudo aquilo que não fosse fonte de lucro era recebido como alguma coisa de natural.

O herói do livro, Michel Jerôme Dufrénoy, não só é poeta, mas escreve versos em Latim. Lê Ovídio e ama o romance do Século XIX. Não há para ele, evidentemente, espaço de sobrevivência na nova ordem econômica e social. Sua trajetória é uma estória de fracassos existenciais e derrotas sociais, diante da onipresente razão monopolista. Curiosamente, o narrador constrói tal história num cenário que, sob todos os outros aspectos, é marcado positivamente. O próprio herói é capaz de reconhecer os enormes progressos científicos e maravilhar-se com eles. O narrador ocupa boa parte de seu tempo em descrever os mecanismos através dos quais se movimenta a gigantesca máquina em que se transformou Paris. Desenha, com a minúcia de um apaixonado, cada um dos processos mecânicos que acionam sejam os trens urbanos, que deslizam silenciosamente por plataformas suspensas, sejam os carros movidos a gás, sejam os elevadores que fazem o espanto dos leitores -- já que são para as personagens do Século XX parte de seu cotidiano incorporado com naturalidade.

O livro, de um lado, canta os progressos da ciência e, de outro, lamenta e denuncia a necessária destruição das artes -- aí marcadamente representadas pela literatura -- para a ascensão indiscutida das ciências. Seu tom pessimista, que desenha um final trágico e imensamente triste e solitário para o seu herói, não consegue desfazer a admiração embasbacada do narrador pelo desfile de conquistas da racionalidade científica. É o preço que o autor deve pagar pela sua inserção em tal horizonte de conhecimentos e em tal conjuntura política. Nem ele adere a uma das muitas utopias de esquerda do seu século, nem aceita o capitalismo com todas as suas mazelas. Ao não embarcar de frente no otimismo racionalista dominante, entra em choque com as ideologias oficialistas e este sim pode ser um dos motivos da recusa da obra por parte do editor.

Curioso, mas igualmente explicável, é que nas outras obras do autor, observa-se uma adesão mais explícita à ideologia da crença no poder ilimitado da ciência como instrumento de reforma social. Seria um amadurecimento filosófico ou uma dura e sofrida aprendizagem de convivência com o sistema? Só uma detida e aprofundada abordagem de toda a sua vastíssima produção poderia arriscar uma resposta menos reticente e mais fundamentada...

De toda forma, pode-se perceber que a Paris de 1960 criada por Júlio Verne resulta, muito mais, da projeção potencializada das realidades em que lhe toca viver do que de uma imaginação desbordante, ainda quando esta última não possa, em caso algum, ser pura e simplesmente descartada. O que desejo afirmar é que, na ficção-científica, pelo menos em uma de suas vertentes mais conhecidas, desempenha um papel importantíssimo o grau de instrução científica do autor e o seu talento para vislumbrar a potencialidade das descobertas tecnológicas num futuro imediato ou mesmo distante. E isso, seguramente, não faltava a Júlio Verne. Abundam, na bibliografia a respeito de sua obra, estudos que comprovam a sólida fundamentação de que ele dispunha relativamente ao estado da ciência em sua época. Seus livros aplicam os teoremas científicos dominantes na linha diacrônica, fazendo deles uma espécie de laboratório imaginário em que se testava a fecundidade das hipóteses teóricas disponíveis.

Assim, a sua cidade construída para o ano de 1960 constitui-se numa projeção, um século depois, dos conhecimentos e descobrimentos disponíveis no momento em que escrevia o livro. Assim, por mais futurística que seja a cidade, em matéria de informação, por exemplo, o máximo que ele consegue postular é a existência de um grande livro:


Michel chegou a uma sala imensa encimada por uma cúpula de vidro fosco; no centro, e num pé só, obra-prima da mecânica, erguia-se o Grande Livro do estabelecimento bancário. Ele merecia o título de Grande com mais justiça que Luiz XIV; tinha seis metros de altura; um mecanismo inteligente permitia direcioná-lo como um telescópio, para todos os pontos do horizonte; um sistema de delicadas passarelas, engenhosamente combinado, descia ou subia conforme as necessidades do escrivão.
Nas folhas brancas, de três metros, em letras de três polegadas, sucediam-se as operações cotidianas do estabelecimento. As pessoas que gostam dessas coisas deleitavam-se vendo as Caixas de Diversos, os Diversos em Caixa, as Caixas em Negociações, destacadas em tinta de ouro. Outras tintas multicolores realçavam vivamente os transportes de soma e a paginação; quanto aos números, magnificamente superpostos nas colunas de adição, os francos se destacavam em vermelho vivo e os centavos, registrados até a terceira decimal, sobressaíam em verde escuro.[3]


Isto nos encaminha ao cerne de nossas preocupações: o que se pode ler no livro é a visão que um autor do Século XIX constrói a respeito de um Século XX ainda por chegar. Não é o Século XX que aí está, mas apenas uma versão dele, limitada pelo horizonte de possibilidades de um autor que vive no XIX. É uma visão, nesse sentido radicalmente histórica. Não vai nos informar nada a respeito da Paris do Século XX, nada mesmo; mas vai nos dizer muito, muitíssimo, a respeito de como a década de 1960 poderia ser vista por quem a esperava, cem anos antes do seu advento...

Da mesma forma que Ubirajara, de José de Alencar, nada nos informa, do ponto de vista etnológico, sobre os índios brasileiros da era pré-cabralina. Mas nos diz muito sobre como os homens do nosso Século XIX imaginavam que eles seriam. O que se tem no romance é a construção de um imaginário que expressa as angústias e as perplexidades dos nossos românticos, diante da questão de nossa identidade nacional. O índio aí não passa, na verdade, de um excelente pretexto.

Em Júlio Verne, as questões não são muito diferentes. Nada pode ele dizer sobre o século XX, antes de seu advenimento. O que ele nos transmite é um imaginário, produzido em meados do Século XIX francês, que diz muito das preocupações filosóficas com o futuro imediato daquela sociedade e de seus desdobramentos a mais longo prazo. É uma Paris do Século XX que se situa em pleno Século XIX, se me é permitido o paradoxo.

Já a terceira cidade que postulo, aquela que resulta da leitura do livro, é uma construção, além de complexa, surpreendente. Pois vai nascer do cruzamento daquela criada no e pelo romance, com aquela ou aquelas resultantes de nossa própria e pessoal acumulação de informações e impressões. Uma, a do autor, é datada do Século XIX, como acabamos de ver; outra tem suas raízes profundamente arraigadas no solo do nosso Século XX. Uma diz respeito à historicidade em que se situa o autor; outra revela a nossa intransferível historicidade pessoal. A terceira, síntese dialética de temporalidades tão diversas quanto colindantes, inaugura uma nova dimensão da historicidade: o diálogo de nossa experiência com uma outra nascida em outro tempo e, portanto, em outra história.

O que é histórico não é apenas o tempo do enunciado, o tempo narrado. Que ele o é, não resta dúvida, desde que acatadas as considerações precedentes sobre as distintas Paris com que nos defrontamos no ato de leitura. Mas, muito mais histórico ainda, é o encontro de culturas e experiências que cada ato de leitura inaugura e reafirma.

A história não só se inscreve na narrativa, mas, essencialmente, a escreve. Desde que saibamos pensar a literatura não apenas e pobremente como texto, mas, essencialmente, como um complexo processo social de produção, circulação e consumo, que abarca em seu amplo espectro não só a humanidade de um autor, mas as pobres e importantíssimas humanidades de cada um de seus leitores. Um e outros, autor e leitores, estão, ao participar do processo da literatura, fazendo, eles também, a história. E não apenas a história na literatura -- o que já é muitíssimo! --, mas a própria história total que, como qualquer atividade humana, antes de se exercer na prática percorre necessariamente os caminhos do imaginário.

Não fosse assim, valeriam a pena tanto esforço, tanta leitura e tanta alegria conjugados?


[1] Verne, Júlio. Paris no Século XX. Trad. Heloisa Jahn. São Paulo, Ática, 1995, p. 34-36.
[2] op. cit., p.36.
[3] op. cit., p. .79-80


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