O TEMA DO ÍNDIO E A CONSCIÊNCIA DE NOSSA DIFERENÇA

 

MARIA LUIZA SCHER PEREIRA

UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora)


 Resumo

Nesse trabalho observou-se como o tema do índio foi funcional para a persistente busca de uma imagem do país em formação, levada a efeito pela literatura produzida no Brasil,desde o início da colonização até oséculo XX. Essa imagem, em vários momentos, da Carta de Caminha ao Modernismo, tomou a figura do índio como representação, sempre de forma simbólica e mítica, paralemente ao processo de seu progressivo silenciamento historico.

 Abstract

 This study indicates how the Indian issue has been functional in the persistent search of the image of a country in the making, made in the Brazilian literature, since the colonial times up to the XXth century. In various moments from Caminha's Letter, up to the Modernist movement, the indian was portrayed in a mythical and symbolic way, at the same time the indian groups were being increasingly silenced.

 

 A literatura tem registrado no Brasil, já desde o período colonial, a persistente busca de uma imagem do país em formação. É certo que a sistematização deste esforço de se delinear um perfil autônomo, próprio, só vem a se realizar, de forma programática, no século XIX com o direcionamento da literatura romântica para o nacionalismo e para o indianismo. No entanto, obras anteriores ao Romantismo apresentam aspectos que já permitem observar o delineamento de um perfil diferenciado de nossa realidade em relação à realidade européia colonizadora.
Os elementos que mais acentuavam a diferença entre a Europa e o Novo Mundo eram, sem dúvida, a natureza e o índio, e eles estimularam o imaginário dos primeiros escritores, seja em tratados e documentos, seja na ficção.
Na Carta de Caminha, como se sabe, já se registra a perplexidade e o espanto do europeu ao se deparar com o outro. São inúmeras as passagens que enfatizam a nudez e o comportamento próprio do índio e a exuberância da paisagem. A tentativa de se reduzir o impacto provocado pelo conhecimento do diferente fez com que os primeiros textos escritos sobre a terra recém-descoberta resultassem numa espécie de discurso montado para justificar o processo violento de redução do Outro ao Mesmo, próprio de todo empreendimento civilizatório.
Desta forma, enquanto se fazia o elogia da terra, fértil e disponível, o índio foi referido, na Carta, como um ser dócil e inocente, como a tábua rasa em que se podia imprimir a marca do colonizador:

Parece-me gente de tal inocência que, se homem os entendessem e eles a nós, seriam logo cristãos porque eles não têm nem entendem nenhuma crença, segundo parece. (...)
Esta gente é de boa simplicidade. E imprimir-se-á ligeiramente neles qualquer cunho que se lhes quiserem dar, logo que Nosso Senhor lhes deu bons corpos e bons rostos como a bons homens.
(CAMINHA, s/d : 117/8)

O procedimento discursivo que termina por neutralizar a diferença entre o colonizador e o colonizado ("gente de boa simplicidade") se dá, então, pela eliminação neste plano, o do discurso, da diferença do outro a tal ponto que o transforma em semelhante. É o que se vê em "não têm nem entendem nenhuma crença " e "como a bons homens ".
A inocência do índio e a disponibilidade da terra refletem a proximidade destas concepções com o mito europeu do paraíso terrestre, que é mesmo anterior às viagens de navegação e que funcionava na Europa como uma contrapartida imaginária para a realidade marcada pelas crises inerentes ao processo civilizatório. Sérgio Buarque de Holanda afirma a respeito da "visão de paraíso" e de sua fácil associação à descoberta do novo mundo:

A fantasia poética não deixa de exprimir, neste caso, o confuso sentimento (...) de que fora do Velho Continente e de seus vícios, ainda se poderia encontrar ou edificar uma nova sociedade e sem mácula. (...) É que, talvez, em algum lugar remoto, resguardado do resto do mundo pela imensidão dos mares, e entre gentes tão nuas de roupas quanto de vícios, se acharia alguma imagem, atenuada embora, daquilo que foi o Paraíso. (grifos nossos) (HOLANDA, 1977 : 190)

Interessa-nos o tópico da "visão do paraíso" pelos seus desdobramentos quando se trata de definir a imagem do Brasil na literatura brasileira. A intenção colonizadora foi, desde o início, a de atualizar a colônia à metrópole, seja através da imposição religiosa, que a catequese inicialmente procurou efetivar, seja através da proposta de imposição cultural que, bem ou mal, perseguiu a redução do primitivismo visto como atraso. A esta última tarefa se dedicaram, mais do que os colonos iniciais, os posteriores representantes da inteligência local. No entanto, o que há de comum em todos os que, no período da descoberta e no período colonial, falaram do novo mundo é a tensão entre o que se queria implantar e a percepção do que há havia anteriormente aqui, tensão que, para ser suportável, o colonizador se dispõe a administrar a seu favor, mitificando a diferença do Outro a ponto mesmo de silenciá-la.

A substituição da realidade crítica e difícil da colonização pela visão edênica da terra, apaziguadora do choque entre o índio e o branco, resistiu por longo tempo, não só entre escritores estrangeiros em contato com a terra, mas se tornou uma espécie de lugar comum na nossa literatura, como se pode ver, por exemplo, no poema de Manuel Botelho de Oliveira, "À Ilha de Maré", publicado cerca de dois séculos depois da Carta do Descobrimento. Este poema, alegorizando a conquista através da comparação da Ilha com a figura feminina a se conquistar, apresenta a terra, sensualizada pelas delícias visuais, olfativas e gustativas de seus produtos, como um paraíso justificadamente desfrutável.

Assim, no lastro desta "visão do paraíso", o índio foi sendo progressivamente silenciado enquanto realidade histórica, na literatura, ao passo que se completava o processo de dizimação e de aculturação que termina por afastá-lo quase que definitivamente do convívio social com o colonizador.
Isto se dá, de modo geral na América Latina, e de modo particular no Brasil, e pode ser explicado pelo fato de que a literatura produzida nesses países foi também um reflexo da adaptação da cultura européia ao continente americano por um processo de colonização de que ela é um episódio, como explica Antônio Cândido no estudo "Literatura de dois gumes". O crítico nega a idéia de que a literatura foi produto do encontro cultural dos portugueses, índios e negros, por via do silenciamento inevitável imposto aos dois últimos grupos; exceto no plano folclórico, eles não puderam influir na literatura escrita, apesar de terem influído na "sensibilidade portuguesa, favorecendo um modo de ser que, por sua vez, foi influir na criação literária". (CÂNDIDO, 1987 : 165).
E acrescenta, de forma a definir a questão:

(...) no Brasil, a literatura foi de tal modo expressão da cultura do colonizador, e depois do colono europeizado, herdeiro dos seus valores e candidato à sua posição de domínio, que serviu às vezes violentamente para impor tais valores, contra as solicitações a princípio poderosas das culturas primitivas que os cercavam de todos os lados. Uma literatura, pois, que do ângulo político pode ser encarada como peça eficiente do processo colonizador. (id.,ibidem : 165)

Contudo, paralelamente ao processo de aculturação do índio e posteriormente do africano, o europeu também se acultura até que, com a solidificação da colonização, forma-se uma sociedade nova que, progressivamente, se diferencia da matriz européia, embora ainda mantenha, com ela, vínculos de dependência ideológica fortes e permanentes, mantidos pela dominação política e cultura.

Esta sociedade, depois de estabilizada, configura-se como uma "sociedade pioneira, sincrética, sob o aspecto cultural, mestiça sob o aspecto racial" mas que procura compatibilizar sua realidade aos padrões europeus. (CÂNDIDO, 1987 : 173).
A cultura de modo geral, e a literatura, em particular, passam, então, a refletir essa nova realidade. Trata-se ainda do choque, permanente, de culturas diferentes, sendo que a colônia será sempre o espaço da tensão entre o desejo de se afirmar sua especificidade e o de se igualar à metrópole.
O resultado desta tensão, às vezes, se traduz em um produto cultural ambíguo - situado entre o lá e o cá - que expressa bem a questão das "idéias fora do lugar", na definição já clássica de Roberto Schwarz.
Assim, ao mesmo tempo em que a literatura foi, como disse Antônio Cândido, "peça eficiente do processo colonizador", é na própria literatura que se podem encontrar espelhadas as profundas contradições e ambigüidades que, no curso do processo, começam a se fazer sentir na configuração de aspectos diferenciadores da cultura da colônia, em relação à matriz metropolitana.
Isto se torna progressivamente mais expressivo a partir do século XVIII, no Brasil, quando são lançadas as bases para o que seria, no século seguinte, um dos grandes temas da literatura romântica que, então, já se pretendia nacional: o indianismo.
A essa altura, quando o índio passa a ter um lugar privilegiado no discurso literário, já a realidade brasileira se apresenta madura, no que diz respeito ao processo de colonização, como afirma Sérgio Buarque de Holanda em Tentativas de Mitologia:

No Brasil da época, o favorecimento do índio, acompanhado ou não do desapreço ao negro, além de afinar com todo o horizonte mental da Era das Luzes, já podia encontrar terreno de eleição.
Por isto, sobretudo, que largamente dizimado, ou mesclado, ou afugentado para longínquas brenhas, tendo deixado assim de significar uma presença incômoda nos centros mais policiados, muitos dos vícios que antes lhes eram assacados, convertem-se agora em honras insignes.
(HOLANDA, 1979 : 257)

Começa, então, a se delinear já com alguma nitidez, a figura do índio heroicizado, portador de qualidades morais que muito se aproximam dos ideais brancos de valor, honra e coragem, como se vê nos poemas épicos do arcadismo brasileiro O Uruguai de Basílio da Gama e Caramuru de Santa Rita Durão.
Ambas as obras foram escritas no período sócio-cultural marcado pelo que Antônio Cândido chamou de "tendência genealógica". A "tendência genealógica" procura justificativa para a situação privilegiada de uma classe dominante que é "sincrética" e "mestiça", mas que ideologicamente é européia ou se aproxima ao menos intencionalmente, dos padrões sociais europeus. Assim, busca no passado local elementos que possam, através de um processo idealizante, servir para a valorização dos traços específicos e disfarçar o complexo de inferioridade provocado pela inegável diferença.
O elemento local apropriado ao mecanismo de idealização foi o índio.
Antônio Cândido explica assim:

Àquela altura, nas zonas colonizadas este já estava neutralizado, repelido, destruído ou dissolvido em parte pela mestiçagem. Para formar uma imagem positiva a seu respeito contribuíram diversos fatores, entre os quais a condição de homem que os jesuítas lhe reconheceram; a abolição de sua escravização em meados do século XVIII; o costume dos reis portugueses de conferir categoria de nobreza a alguns chefes que, nos séculos XVI e XVII, ajudaram a conquista e a defesa do País; e finalmente a moda do "homem natural". Tudo isto ajudou a elaborar um conceito favorável, não sobre o índio de todo o dia, com o qual ainda se tivesse contato, mas sobre o índio das regiões pouco conhecidas e, principalmente, o do passado, que se pôde plasmar com a imaginação até transformá-lo em modelo ideal. (...) O resultado positivo foi erigir-se o índio em símbolo nacional e, assim, encontrar um recurso para afirmar as nossas particularidades. (CÂNDIDO, 1987 : 173/4)

Em O Uruguai, sobretudo, mas também em Caramuru temos, portanto, a representação pré-romântica do índio idealizado, embora não se possa falar ainda de nacionalismo, mas tão somente de nativismo e cor local; podemos observar, contudo, nos textos citados aquela tensão entre a representação do localismo e a aproximação do modelo europeu.
Em O Uruguai, apesar da intenção de louvar o modelo empreendedor que foi o Marquês de Pombal, o autor termina por enfatizar a resistência indígena. Com isto, Basílio da Gama faz o primeiro retrato positivo da nossa diferença em relação ao modelo europeu. Cacambo, Sapé, Lindóia são os primeiros heróis-índios da literatura brasileira e a alteridade assumida por eles é marco na questão da nossa identidade. Também é um marco a expressão do choque entre duas culturas, embora a prática violenta da colonização apareça suavizada no discurso racional e iluminista de seu herói explícito, o português Gomes Freire. Mas não apenas no tema o choque e a diferença se mostram: o rompimento com a forma clássica da epopéia e a aproximação do poema à estrutura da tragédia, como quer Wilson Martins (1977), também esclarece a questão da alteridade.
Também Caramuru revela-se um texto fundamental para a questão. Embora represente, num retrocesso em termos ideológicos, o lado não progressista de nossa formação cultural, traz um herói -- Diogo-Caramuru -- que pode ser considerado "paradigma do encontro das culturas", sendo sua ambigüidade reveladora de nossa própria configuração cultural (CÂNDIDO, 1976 : 183).
Além disso, há a passagem muito significativa em que o índio Jararaca, ainda que configurado como uma espécie de vilão, analisa com realismo as conseqüências da invasão dos brancos e da catequese. Jararaca é o índio agressivo, um contraponto ao índio idealizado, e desmente o mito da cordialidade nas relações branco/índio que praticamente marca a visão dos outros personagens.
Embora neste momento o índio ainda não seja o símbolo nacional, nem menos seja a sua causa que as obras procuram defender, apesar de os títulos apontarem para a matéria indígena, podemos dizer que as duas obras indianistas do século XVIII, no conjunto que formam, dão conta da realidade ambígua que somos. Antônio Cândido refere-se assim, a elas:

 

O Uruguai, que de um lado se preocupava em elogiar a ação do Estado na guerra contra as missões jesuísticas do Sul, de outro lado interessou-se tanto pela ordem natural da vida indígena, pela beleza plástica do mundo americano, que lançou os fundamentos do que seria o Indianismo e se tornou um dos modelos do nacionalismo estético do século XIX. Coisa parecida aconteceu com o Caramuru, onde a ordem natural do índio se opõe à ordem político-religiosa do branco. Devido à grande acuidade do autor o poema apresenta expressiva ambigüidade (pois ambígua era a sociedade local), valendo ao mesmo tempo como glorificação do português e como glorificação do País, onde o brasileiro já começava a sentir-se coagido pelo sistema colonial. (CÂNDIDO, 1987 : 168)

Desta forma, vemos que o índio entra então na literatura brasileira, no século XVIII, como um personagem privilegiado muito embora seja necessário lembrar que esta literatura ainda está presa ao modelo estético e cultural da Europa. A heroicização do índio, nestes poemas, atesta que a atitude mental dos autores conforma-se ao padrão da metrópole e que a intenção explícita é fazer com que as obras correspondam aos ideais arcádicos vigentes lá, que terminam por encontrar na figura do índio uma ressonância dos princípios racionalistas de valorização da vida e do homem natural que tem no "bom selvagem" de Rousseau seu paradigma.
Quando, de algum modo, os dois poemas terminam por, involuntariamente, apresentar o lado trágico da colonização e, implicitamente, a violência decorrente deste tipo de contato entre culturas diferentes, é que se pode perceber que a literatura inevitavelmente, registrará a diferença que a cultura européia transplantada nos trópicos vai estabelecer em relação à matriz:

 

(...) O século XVIII representa uma fase de amadurecimento no processo de adaptação da cultura e da literatura. Observam-se nele a ocorrência de temas novos e novas maneiras de tratar velhos temas (...) que permitem exprimir de maneira mais adequada uma realidade física e social diferente, esta, nascida da dinâmica interna da colonização. (CÂNDIDO, 1987 : 168)

Se a atitude mental do escritor do século XVIII é de identificação com a metrópole, no século seguinte, com a Independência, dá-se o contrário. No romantismo, a literatura apresenta um deliberado desejo de superação e até de ruptura em relação à Europa. A sorte do índio, no entanto, é a mesma: agora, na trilha perseguida da afirmação da diferença entre colônia e metrópole, a idealização do índio chega ao auge como o símbolo da nacionalidade. O imaginário brasileiro, neste momento específico, necessita de um símbolo que possa representar uma imagem positiva do povo brasileiro: portador de apreço à liberdade e à terra e, ainda, portador de valores pessoais.
Este símbolo pôde ser buscado no índio devido à especificidade do processo histórico que marcava o Brasil; como esclarece Dante Moreira Leite:

 

(...) também em outro sentido o indianismo tinha conteúdo ideológico: o índio foi, no romantismo, uma imagem do passado e, portanto, não apresentava qualquer ameaça à ordem vigente, sobretudo à escravatura. Os escritores, políticos e leitores identificavam-se com este índio do passado, ao qual atribuem virtudes e grandezas; o índio contemporâneo que, no século XIX, como agora, se arrastava na miséria e na semi-escravidão, não constituía um tema literário. Finalmente, a idéia de que o índio não se adaptara à escravidão servia também para justificar a escravidão do negro, como se este vivesse feliz como escravo. (LEITE, 1984 : 171,2)

 

Desta forma, a retórica romântica terminou por afastar o negro de seu centro de preocupações (só tardiamente este viria a ser tema do romantismo, mas igualmente idealizado) e estabelecer a imposição de valores brancos no índio como obter, ao cabo deste procedimento conciliatório, o símbolo possível do herói nacional que fisicamente era americano, vermelho, primitivo, mas espiritualmente era europeu, branco, civilizado.

A conciliação entre índio e branco, necessária à formação do símbolo na figura do índio, está registrada principalmente na obra de José de Alencar, especificamente nos romances O Guarani e Iracema e na poesia de Gonçalves Dias.
É preciso, no entanto, acrescentar que ambos os autores permitem perceber determinadas fraturas no discurso da conciliação. Em Alencar, embora haja a diluição da violência do branco sobre o índio num discurso apologético da cordialidade e da conciliação nesses romance sobejamente conhecidos, não se pode deixar de observar que a intenção era marcar a especificidade da realidade brasileira e esta intenção pode, muitas vezes, permitir uma visão crítica do contato entre a cultura externa e a local, ainda que isto seja involuntário.
A fratura da ideologia conciliatória do Romantismo, contudo, é bastante explícita em poemas como "O canto do piaga" e "Deprecação" do Gonçalves Dias que mostram, sem disfarce, a violência do branco. As caravelas que parecem brancas garças, são, na verdade, monstros marinhos destruidores da paz, da liberdade, do bem-estar, enfim, dos povos indígenas, como anuncia a voz profética de Anhagá, ao Piaga.
Apesar dessas brechas, a visão idealizada do índio vai permanecer no imaginário brasileiro graças à ideologia romântica cujo desejo explícito de ruptura com a identidade portuguesa é atraiçoado pelo desempenho que não nega a dependência ideológica e cultura e ainda afirma a assimilação inconsciente de valores da cultura dominante.
A partir do primeiro momento do Romantismo, marcado, como se viu, pelo esforço de construir uma simbologia nacional, o índio deixa de ser figura central na literatura brasileira, até ser retomado, com propósitos diversos pelo modernismo. Mais uma vez recorremos a Antônio Cândido:

 

Em nossos dias, o neo-indianismo dos modernos de 1922 (precedido por meio século de etnografia sistemática) iria acentuar aspectos autênticos da vida do índio, encarando-o não como gentil - homem embrionário, mas como primitivo, cujo interesse residia precisamente no que trouxesse de diferente, contraditório à nossa cultura européia.
(CÂNDIDO, s/d : 20)


A proposta geral do Modernismo brasileiro, no que tange à retomada do homem primitivo, respondeu a um duplo propósito. Em primeiro lugar, ao de acompanhar a vanguarda européia na sua intenção de resgatar o imaginário primitivo, perdido ou recalcado pela prevalência do pensamento excessivamente racionalista e positivista da sociedade burguesa e do capitalismo super-desenvolvidos. Alfredo Bosi explica este aspecto da arte modernista:

O que se chama "primitivismo estético" do período (...) vem a significar uma reviravolta nos processos da mímesis literária. A busca intensa do sentido interno e das motivações selvagens e recalcadas (...) é comum à psicanálise (...), ao surrealismo e ao Expressionismo. Um fastio das estilizações brilhantes e afetadas que povoavam a cena da belle époque tem como correlato a sondagem do mundo onírico individual e, em mais ampla esfera, o encontro maravilhado com imagens e ritmos das culturas não-européias. É o momento da África, da art négre, e, logo depois, do jazz afro-americano. Na América Latina, a hora é de redescobrir as fonte pré-colombianas.
(BOSI, 1988 : 130)

Assim, paralelamente ao fascínio pela civilização industrial que atinge seu apogeu, o artista aspira também, a "uma forma selvagem de contracultura", ainda nas palavras de Bosi, e a retomada do índio, como representante desta contramão da cultura branca, européia e civilizada, se explica.

No entanto, em segundo lugar, há também uma proposta no Modernismo brasileiro, de se pensar, diante da Europa civilizada, a nossa identidade de país híbrido, resultado da nossa formação colonial.
A Antropofagia, ao mesmo tempo que propõe uma devoração dos bens culturais europeus, recusa a supremacia da Europa e afirma a superioridade do elemento autóctone, mais livre da idealização a que o submeteram os indianismos anteriores:

Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de D. Antônio de Mariz. (ANDRADE, 1978 : 18)

Houve assim, a liberação daquilo que A. Cândido chamou de "constrangimento" por sermos um povo mestiço, tropical, influenciado por culturas primitivas, mas latino e portador de herança européia e, conseqüentemente, uma festiva afirmação do nosso primitivismo até então recalcado na idealização do índio (CÂNDIDO, 1976 : 119/20)
Essa afirmatividade se pronuncia, principalmente em Macunaíma, de Mário de Andrade, que é a obra central e mais característica desse processo de "retorno do recalcado" como valor estético novo, frente ao academicismo até então reinante.
Nesta obra sistematiza-se, finalmente, a concepção do caráter brasileiro como uma multiplicidade de traços étnicos e culturais que compõem uma reunião tão diversificada que nos diferencia de todos eles e nos dá a nossa própria marca. Segundo Alfredo Bosi, o que fundamenta esta rapsódia é a "fonte inexaurível do seu populário luso-afro-índio-caboclo":

A origem étnica de cada fio cultural de base importa menos do que o tecido resultante; este, sim, assume com o passar do tempo um matiz próprio que se reconhece, afinal, como brasileiro. (...) No entanto, não há em Macunaíma a contemplação serena de uma síntese. Ao contrário, o autor insiste no modo de ser incoerente e desencontrado desse "caráter" que, de tão plural, resulta em ser "nenhum". (BOSI, 1988 : 136/7)


Macunaíma supera, no entanto, a preocupação com o caráter apenas brasileiro. Mário de Andrade possibilita ampliar, com a sua visão do homem brasileiro, os limites da questão até a problemática da identidade do homem sul-americano.
A intenção de deslimitar já foi notada pelos críticos. Walnice Nogueira Galvão, por exemplo, afirma:

 

A personagem central (de Macunaíma) é um índio - e seu nome indígena dá título ao romance, como de hábito na tradição indianista - que nasce preto para depois se tornar branco; como acentua o subtítulo, "o herói em nenhum caráter", traduz a concepção de que, através de incessantes cruzamentos raciais e culturais, os brasileiros, e quem sabe os nascidos em todo o continente americano, não são mais nem índios, nem negros, nem brancos. Eles são alguma coisa e ninguém sabe ainda o quê. (GALVÃO, 1979 : 41)

Na verdade, Macunaíma, inspirado na lenda indígena recolhida por Theodor Kock-Grünberg, é um deus esperto que transita entre o Brasil, a Guiana e a Venezuela, portanto, a integração de traços é requerida não apenas quanto aos diferentes brasis, mas também em relação às diferentes culturas que perfazem os países identificados pela mesma história da colonização moderna no continente.
Macunaíma é o símbolo do homem americano, não pela pureza de suas origens, mas justamente pela mistura de traços. Também o personagem Venceslau Pietro Pietra, que tem nome italiano e origem peruana, identifica-se com o mundo do indígena, como mais um exemplo de que Mário quis ampliar a discussão do problema de nossa identidade, projetando-a para o espaço da América do Sul.
Finalmente, a forma rapsódia também consegue recuperar com sucesso a amálgama que nos faz ser, através de tão profusa disparidade.
Podemos concluir então que, a partir do século XX, com o movimento modernista, o que sempre foi motivo de crise se transforma em solução para a literatura: a nossa especificidade em relação ao colonizador é tratada de maneira crítica e literariamente produtiva. Não há porque se envergonhar de nosso lado mestiço e muito menos não há porque recusar técnica externa.
Apesar do esforço modernista ter resultado em obras que realmente discutiram a questão do nacional ao lado da conquista de uma linguagem literária mais definida, a proposta de emancipação crítica da literatura brasileira só foi concluída posteriormente. Alfredo Bosi esclarece com precisão:

O modernismo foi a metáfora brilhante de um certo ângulo de consciência, que escolheu formas e mitos adequados a uma zona determinada da vida e da cultura brasileiras (...)
Mas estendendo os olhos para a nação, não poderia apanhá-la na sua riqueza e pobreza concretas: viu a floresta, a tribo e o rito, o selvagem sempre bom mesmo quando mau, e, na verdade, aquém do Bem e do Mal. E diante da alternativa sofrida por todos os povos coloniais - ou o futuro tecnológico ou o passado aborígene - preferiu resolver o impasse fugindo à escolha. Pela fusão mítica: "O instinto caraíba/ Só a maquinaria".
E o resto? E o presente brasileiro, tudo aquilo que não era nem a São Paulo da indústria nem a tribo remota dos tapanhumas? (...)
Só em torno de 30, e depois, o Brasil histórico e concreto, isto é, contraditório e não mais mítico, seria o objeto preferencial de um romance neo-realista e de uma literatura abertamente política.

(BOSI, 1988 : 125/122/119)

 

De fato, no romance de 30 -- que, sem dúvida é devedor de Os Sertões de Euclides da Cunha -- das poéticas iniciais de Drummond, Murilo Mendes e João Cabral, em Guimarães Rosa -- são encontradas ressonâncias conclusivas e superadoras do projeto do modernismo.

Contudo, é do modernismo e, principalmente, de Mário de Andrade que resultou a grande herança que permitirá uma nova posição da literatura frente ao Brasil e esta herança decorre sobretudo do que atrás chamamos de "retorno do recalcado". O efeito do desrecalque aponta para a consciência de nossa mesclagem étnica e cultura, que bem pode ser sintetizada no verso famoso de Mário, no fecho do poema "O trovador" de Paulicéia Desvairada: Sou um tupi tangendo um alaúde!
Esta bela definição afirma nosso traço cultural amalgamado e sua emancipação é possível devido à crescente consciência de nossa realidade, que se clarifica no século XX. Com efeito, o processo de autoformação dessa consciência foi lentamente urdido nestes quase cinco séculos de história. E a literatura brasileira, nas sinuosidades que ela própria apresenta, permite ler este esforço de definição do caráter problemático do Brasil, como bem notou o antropólogo Darcy Ribeiro:

Sob circunstâncias adversas, só pouco a pouco se vão iluminando na criação literária e artística expressões de uma consciência autêntica passo a passo com a ascensão do arcadismo ao romantismo e deste ao modernismo. (RIBEIRO, 1979 : 159)


A assunção desta consciência autêntica corresponde à emergência de uma literatura nova, herdeira, mas superadora do modernismo, que exigirá, também, da crítica uma atitude consciente, como ensina Alfredo Bosi:

(...) uma literatura penetrada de pensamento, uma literatura que faz da auto-análise, da pesquisa do cotidiano (rústico, urbano, suburbano, marginal), do sarcasmo e da paródia o seu apoio para contrastar o sentido das ideologias dominantes; uma literatura que vive em tensão com os discursos da rotina e do poder, e que se faz e refaz no nível da representação arduamente trabalhada pela linguagem. (...) São modos de escrever atentos à perplexidade e à opressão que a todos envolve. Saber descobrir o sentido ora especular ora resistente dessa literatura moderna sem modernismo é uma das tarefas prioritárias da crítica brasileira. (BOSI, 1988 : 126)

Como se procurou mostrar, a literatura brasileira, na busca da IMAGEM do país, em vários momentos tomou a figura do índio para representá-la, seja de forma simbólica ou mítica.
O índio foi sempre, então, um tema funcional na ordem literária de um país, e de um continente, que, na ordem histórica o foi progressivamente silenciando, não apenas através da dizimação física, da imposição da língua do europeu, ou da ausência de registro de usa fala na história oficial. O silenciamento se dá, também, a cada vez que o índio foi retomado como símbolo ou como mito.
Devido ao processo histórico, esta fala silenciada só poderá, contudo, ser resgatada se ele, o índio, for considerado na sua realidade atual: uma minoria cultura e étnica, inscrita, como outras minorias, em todo um processo global de colonização que, no seu desenvolvimento por todos esses séculos, terminou por transformar em "índios" todos os povos latino-americanos a ele submetidos


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Maria Luiza Scher Pereira é Professora de Literatura Portuguesa e Comparada no Curso de Letras e no Programa de Pós-graduação em Teoria da Literatura da Universidade Federal de Juiz de Fora, MG. Doutora pela Universidade de Sâo Paulo. Publicações recentes: "Ficção e identidade em Carlos Fuentes". Conference on Hispanic Languages (Selected Proceedings), LSU, USA, 1996. "Ficção e identidade em Carlos Fuentes: La frontera de cristal". Ipotesi - Revista de Estudos Literários, v. 1, UFJF, MG, 1997.


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