OS MORTOS DE JOYCE EM TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA

 

Magda Velloso Fernandes de Tolentino

FUNREI -Fundação de Ensino Superior de São João del Rei


Resumo:

Baseado em algumas leituras sobre teorias de cinema , este artigo pretende perceber como John Huston, em 1987, explorou alguns dos aspectos temáticos do conto "Os Mortos" , o último da coletânea Os Dublinenses de James Joyce, publicado em 1914.

Abstract:

Based on some readings of the theory of film, this paper aims at choosing some thematic aspects of James Joyce's short story "The Dead", the last story of the collection Dubliners, published in 1914, and detect the cinematic techniques used in the film made by director John Huston in 1987, dealing on the approaches the director made use of to convey the aspects of the story chosen as our subject of study.


 

Este trabalho pretende pincelar alguns aspectos temáticos do conto "Os mortos", a última história da coletânea Dubliners, de James Joyce, publicado em 1914, e detectar as técnicas usadas no filme, feito pelo diretor John Huston em 1987, observando como certos aspectos da história foram abordados.

O objetivo primeiro do trabalho é perceber como o texto literário foi transformado no filme, não só no seu aspecto temático mas principalmente na questão do tom que o autor dá no desenvolvimento da trama.

De acordo com Assis Brasil (1967: 11), o cinema é a arte que mais próxima está - ou mais se aproxima - da literatura. Mas para que possamos comparar as duas manifestações de um mesmo texto - estamos considerando aqui que teremos duas obras de arte: o conto de Joyce e o filme de John Huston - teremos que estabelecer desde o princípio do nosso trabalho que estamos lidando com duas linguagens distintas: a linguagem literária e a linguagem cinematográfica.

Os estudiosos de cinema em sua maioria discutem a questão da linguagem cinematográfica e concluem que existe uma linguagem própria do cinema, que não pode ser equiparada aos estudos lingüísticos, mas que mesmo assim pode ser chamada de linguagem, e possui sua própria sintaxe. Essa linguagem ordena elementos significativos no seio de combinações reguladas, diferentes das praticadas pelos idiomas (Metz, 1972: 127). Não é portanto nosso desejo fazer uma comparação dos dois textos levando em consideração a fidelidade que o diretor do filme possa ter demonstrado em relação ao texto que lhe serviu de inspiração, mas sim observar que tipo de linguagem própria do cinema foi usada para trazer ao espectador uma sensação semelhante à sensação que lhe foi ou seria causada pelo texto. Afinal,


Se toda adaptação de um gênero artístico para outro deve conservar, pelo menos, o espírito da obra, ou as intenções de seu autor, é verdade também que o suposto adaptador tem que se identificar - use a técnica que usar - numa mesma linguagem com o criador. (Assis Brasil, 1967: 31-2)

Uma preocupação que se faz presente neste trabalho é detectar como o filme traduz o cuidado que o texto tem com as palavras; como foi possível carregar de um meio (texto escrito) para outro (imagem), numa tradução intersemiótica, a mensagem, a história, os diálogos, as sensações. O diretor é aqui um tradutor, o criador de um novo texto a partir do texto primeiro.

Julio Plaza (1987) remete a tradução intersemiótica a Roman Jakobson, que a teria definido como o tipo de tradução que consiste na interpretação dos signos verbais por meio de sistemas de signos não verbais, ou de um sistema de signos para outro, o que implica em dizer por um meio o que inicialmente foi dito por outro, implicando aí uma série de modificações. Clive Hart (1988) diz, a respeito deste texto que a transformação em outro meio é impossível sem uma criação artística nova e substancial. E aqui, para entendermos o alcance que este estudo possa ter, lembramos Marcel Martin (1963) quando diz na sua introdução ao livro Linguagem cinematográfica:

É impossível realmente estudar a linguagem fílmica a partir de categorias da linguagem verbal e qualquer assimilação, por exemplo, do plano à palavra ou à frase seria perfeitamente absurda - como a análise dos caracteres gerais da imagem nos provaria imediatamente. Creio ser preciso estabelecer por princípio a originalidade absoluta da linguagem fílmica e abrir ante a tela um olho crítico mas tão entusiasta quanto o da câmara sobre o mundo.


E citamos novamente Metz, quando diz que


Uma determinada narração sofre no cinema um tratamento semiológico muito diverso do que receberia num romance, num bailado de enredo, numa história em quadrinhos, etc. (Metz, 1972: 167),


E é com base nas premissas desses estudiosos da linguagem cinematográfica que este trabalho pretende lançar seu olhar sobre os dois textos em questão.

Algumas considerações iniciais podem ser feitas a respeito da produção desses textos. Com respeito ao conto, por exemplo, sabemos que Joyce o escreveu , em 1907, em circunstâncias especiais, em que tudo corria mal na sua vida: desde 1906 tentava em vão a publicação dos contos da coletânea, que a essa altura limitavam-se a doze contos (quando foi finalmente publicado, Dubliners tinha quinze contos, incluído aí o conto "Os mortos", nosso objeto de estudo); saíra recentemente do hospital em Trieste onde havia ficado internado por um mês, com problemas sérios de febre reumática, que o debilitou durante meses; na mesma ocasião e no mesmo hospital nascera sua filha Lucia Anna numa enfermaria de indigentes; estava sem dinheiro e constantemente brigava com a mulher, Nora. Nessas circunstâncias, o auto-exílio a que se impusera, longe da Irlanda, da família e dos amigos, pesava-lhe nos ombros. A amargura contra sua terra natal, que ele havia distilado em todos os outros contos da coletânea, contos duros, sobre as desilusões e frustrações dos dublinenses de classe média, parecia se dissolver com as amarguras de sua própria vida longe de casa. Todas essas dificuldades por que passava na época levam a crer que esses sentimentos tiveram alguma influência no produção desta história, que seria a última da coletânea. O conto é um hino de reverência à sua terra natal, a Irlanda, e aos mortos, com um destaque ao que estes representam na vida das pessoas, sendo muitas vezes até mais importantes do que os vivos. Toda a rejeição que os outros contos da coletânea fazem à vida em Dublin é redimida neste texto, onde a vida é amena, as pessoas são bonitas e amáveis, a classe média recepciona amigos com alegria e fartura, e a personagem principal, Gabriel, levanta um brinde à hospitalidade irlandesa. Não estamos, no entanto, apesar de destacar todas as amenidades abordadas no conto, negando que esta personagem seja cheia de incertezas e dúvidas.

Faço aqui um parênteses para comentar como foi feliz a tradução do título do filme em português, que levou o nome de "Os vivos e os mortos", fazendo a união que, acredito, o autor pretendeu no texto.
Por sua vez, o diretor do filme, John Huston, fez o filme também num momento muito especial de sua vida: seria seu último filme - estava velho e doente - e para tal escolheu os temas que lhe falavam ao coração: a Irlanda de seus antepassados, onde já havia morado durante alguns anos com sua própria família; e seu povo, suas características, sua hospitalidade; James Joyce, de quem havia sido ardente admirador; e os mortos, que estavam muito próximos dele, como pôde ser constatado pela sua própria morte logo após o término do filme. Ficou claro no filme que para ele era importante demonstrar a importância dos mortos para os que ficam, e o culto da memória dos que se vão.

A câmara é o narrador em um filme. Como nos textos literários, este narrador pode ser de diversos tipos, mostrando a imagem do ponto de vista de um ou de diversos protagonistas. Um tipo de narrador esta câmara NÃO é: não é um narrador onisciente neutro. A imagem mostrada ao espectador já é uma imagem escolhida, destacada; afinal, a linguagem cinematográfica "é um sistema de signos naturais mas escolhidos e ordenados intencionalmente (Assis Brasil, 1967). E a intenção por trás das imagens á a do diretor, este novo produtor do texto.

Vejamos como essa câmera alguns dos temas que o texto literário nos apresenta: quatro forças presentes em toda a coletânea Dublinenses (família, arte, religião e política) estão plenamente representadas no conto "Os mortos". O conto é, em si, um apanhado e um fechamento dos outros contos que o precedem. O filme mostra essas quatro forças em diversos momentos, dos quais vamos destacar alguns, sejam eles criados pelo próprio Joyce no seu texto e aproveitados pelo diretor, sejam acréscimo deste último.

A política está representada na figura da republicana Miss Ivors, que desafia Gabriel num diálogo durante uma dança, e sai da festa mais cedo para uma reunião de Sindicato, à qual não era comum a presença feminina. Voltaremos mais tarde a este diálogo, ao levantar a questão do eixo leste-oeste. Em um outro momento, à mesa do jantar, um dos convidados, Mr. Browne, faz um comentário acalorado a respeito da traição a Parnell, a figura máxima da política irlandesa da época, e é imediatamente repudiado por Tia Kate, uma das anfitriãs da festa, com as palavras: Ah, não vamos discutir política à mesa; vamos deixar o assunto para um outro momento.

A religião perpassa as conversas antes e durante o jantar, seja no inconformismo de Tia Kate pela substituição de Julia no coro da igreja, ou nas conversas sobre os monges de Monte Melleray; no momento em que a tia começa a ficar acalorada em sua revolta contra a saída de Julia do coro, a sobrinha Mary Jane gentilmente a corrige: Ora, ora, Tia Kate, o que Mr. Browne vai pensar, ele que J de outra religião? Ao que Kate replica, embaraçada, com palavras que demonstram sua submissão à crença católica e ao Papa.

A arte está presente todo o tempo: nos recitais e na dança; nas discussões das peças teatrais, óperas e cantores; nas lembrançasÁ melancólicas que Tia Kate guarda de Parkinson, um tenor sem igual; na referência a Georgina Burns, que havia morrido de um resfriado por falta de cuidados com o frio; na canção que Tia Julia interpreta; na balada final, cantada por Bartell D'Arcy, no momento em que Gretta desce as escadas para ir embora. Isso sem nos referirmos ao fundo musical que o filme mantém, com canções tradicionais irlandesas como "Eileen" (tema da primeira dança e fundo musical mais constante), "They call it Ireland" e outras.

Quanto à família, merece um acompanhamento mais cuidadoso a transposição dos temas pertinentes a ela de um meio (literário) para o outro (cinematográfico).

Cabe aqui uma retomada da teoria do filme, de acordo com o que temos visto até agora: a imagem é para o cinema como a palavra escrita é para o texto literário. E essa imagem é construída a partir da câmara, que se constitui o narrador, como já vimos. Através da câmara, dominada pela vontade do diretor, nasce, uma vez cortados e unidos os diferentes fragmentos filmados, um tempo novo: o tempo cinematográfico (Pudovkin, apud Assis Brasil, 1967: 13). O que temos, nas cenas em que a câmara narra os signos familiares da família dublinense, é um tempo cinematográfico diferente do tempo do texto literário. Quando exploramos o texto, podemos ir e voltar na nossa leitura à cata de indícios que nos permitam enxergar personagens e circunstâncias da história. A narrativa do filme, por ser ininterrupta, tem que ser precisa e enxuta, e mesmo assim deverá dar ao espectador os indícios necessários à sua completa compreensão da história. No conto, o leitor busca entender as reações familiares das personagens envolvidas através das descrições e alusões mostradas pelas palavras: percebemos, por exemplo, no conto em questão, a dedicação das tias ao sobrinho Gabriel em diversas instâncias do texto, como por exemplo á pagina 176, na voz do narrador:

Na verdade elas tinham boas razões para se preocuparem numa noite como aquela. E já passava muito das dez horas e ainda nem sinal de Gabriel e sua esposa. [...] ...mas elas se perguntavam o que poderia estar atrasando Gabriel, e essa aflição as levava a cada dois minutos até a balaustrada para perguntar a Lily se Gabriel ou Freddy haviam chegado.

Ou, na mesma página, na fala da criada Lily: Oh, Senhor Conroy, [...] Miss Kate e Miss Julia já estavam pensando que o senhor nem viria.

Há uma cena belíssima em que a câmera narra as relações familiares dos Morkan, demonstrando as diversas referências verbais feitas no conto a respeito dessas mesmas relações. O texto escrito fala diversas vezes, por exemplo, da mãe de Gabriel: à pagina 186, Gabriel se lembra de um colete que sua mãe havia tricotado para ele, e em suas reflexões estranha o fato dela não ter possuído talentos musicais, e mesmo assim ter sido considerada o cérebro da família. Ele descreve uma fotografia dela que sempre estivera exposta na frente de um espelho, e se lembra de como as irmãs Kate e Julia sempre a tinham contemplado com orgulho, e como ela fora sempre tão consciente da dignidade da família. Fora graças a ela, lembra Gabriel, que seu irmão Constantine havia conseguido o posto de principal clérigo de Balbriggan e que ele próprio, Gabriel, havia se diplomado na Royal University. Ela havia se oposto ao seu casamento com Gretta, a princípio, por ser esta de origem humilde, o que também demonstra o orgulho de que era possuída.

O avô Patrick Morkan, pai das três irmãs Julia, Kate e Ellen, é citado diversas vezes durante a narrativa, mesmo quando não se contam histórias sobre ele. Ora, nós nos perguntamos: como é que essas descrições vão ser traduzidas na linguagem cinematográfica, sem que se utilize uma narrativa com voz em off, o que no caso deste filme ficaria extremamente monótono? A escolha da matéria filmada é o estado elementar do trabalho criador do cinema", com diz Martin (1963: 47). O diretor do filme encontrou uma solução altamente satisfatória na cena a que me referi: no momento em que Tia Julia canta a canção "Vestida para as bodas", a pedido de Mary Jane, enquanto nós, espectadores, escutamos a sua voz ao mesmo tempo trêmula e límpida, mostrando tanto a qualidade da voz quanto o envelhecimento da mesma, a câmara cinematográfica faz um poema de referências: ela faz um travelling (deslocamento da câmera durante o qual permanece constante o ângulo entre o eixo \tico e a trajetória do deslocamento [Martin, 1963,: 35]) lento pela casa em takes que mostram a escadaria levando aos quartos, e vai focalizando os anjos pregados na parede, os bibelôs em cima das mesas, os retratos de família, a Bíblia aberta com um rosário em cima (numa mistura das duas forças - família e religião) - os casacos em cima da cama, um quadro bordado artesanalmente em ponto de cruz com dizeres que bem mostram os valores familiares e religiosos da classe média irlandesa da época:

Ensina-me a sentir o sofrimento de outros,
A esconder os defeitos que eu perceber;
Que eu possa ter piedade por todos
Que por mim também demonstrem piedade.[1]

Estes dizeres não fazem parte do texto escrito por Joyce, mas são uma boa estratégia para que a imagem nos dê a dimensão das forças familiares e tradicionais da Irlanda.

Um outro aspecto que a tradução em filme mostra muito bem é o da construção da aura de intimismo que cerca Gretta e que a leva às suas recordações dolorosas do rapaz com quem andara na juventude; as cenas vão aumentando as tensões nos dois personagens principais até deixá-los a sós para o seu encontro final. Gretta chega na festa e no filme como uma mulher alegre, descontraída, que brinca com o marido a respeito de coisas sérias e circula com familiaridade entre os convidados, ajudando a promover a comunicação entre eles. No momento em que Mr. Grace recita a poesia "Votos partidos", que conta a pungente história de promessas não cumpridas e de um amor não sucedido, percebemos Gretta distraída, concentrada em seus próprios pensamentos. Ao som das palmas que irrompem tímidas após alguns segundos do término da recitação, a câmara a focaliza dando um pequeno estremecimento, como se a despertar de suas recordações. Num outro momento, quando Gabriel lhe conta que havia recusado uma viagem ao oeste da Irlanda com Miss Ivors e sua turma, seu rosto mostra desapontamento, indicando mais um movimento no seu caminho de desdobramento de emoções mais fortes. Quando Lily, a criada, se dirige a ela para lhe dizer que o pudim estava pronto, a câmara detecta mais um momento de introspeção de Gretta, com a voz de Lily trazendo-a de volta para o momento. Mais pungente e mais distante é sua atitude ao parar no patamar da escada, no final da festa, a escutar uma voz que canta uma balada tradicional irlandesa que conta a história de uma jovem que havia sido abandonada pelo seu amado e que agora implora, com o filho nos braços, à porta da casa dele, por piedade e abrigo. Deste momento em diante percebemos Gretta melancólica e distante, sem enxergar as coisas ao seu redor, respondendo ao marido com palavras vazias, até o momento em que, provocada finalmente pelas indagações deste, explode em pranto e conta a triste história de seu amor antigo.

Há um aspecto muito importante abordado no conto de Joyce: o eixo leste/oeste, onde a princípio o leste representa tudo que é polido, civilizado, erudito e o oeste representa o selvagem, o primitivo, o não educado. O filme explora neste aspecto todo o discurso que o conto já tinha pronto: na troca de palavras que Gabriel mantém com Miss Ivors, nos dois textos, percebe-se a negação do protagonista de suas origens no oeste: ele NÃO deseja ir de férias para o oeste da Irlanda, mas prefere ir para o Continente (no leste); ao ser perguntado se sua esposa vem de Galway (no oeste), ele responde que apenas a família dela era de lá; ao ser chamado de "Bretão Ocidental" ele se ofende; ao ser provocado a estudar a língua irlandesa (celta, mantida viva no oeste da Irlanda) ele nega que o irlandês seja sua língua. e termina dizendo que está cansado da Irlanda (que fica a oeste do Continente Europeu). Gabriel está inexoravelmente ligado ao leste, enquanto o oeste está ligado à figura de Gretta. No filme, a câmara encontra estratégias próprias para mostrar essa ligação. Por exemplo, no momento em que Gabriel conta à esposa do convite de Miss Ivors para que passassem as férias no oeste, a câmara destaca em close o rosto de Gretta em agradável expectativa quando ela diz Podemos ir, Gabriel? e o rosto de Gabriel, sério e contrariado ao responder Você pode ir se quiser, voltando então ao rosto decepcionado de Gretta. A mulher demonstra identificação com o oeste, enquanto o marido demonstra desejar o maior afastamento possível de local tão rude. A fim de reforçar essa impressão, o filme acrescenta uma cena em que Mr. Grace recita uma balada, já citada acima, que havia sido traduzida do irlandês para o inglês por Lady Gregory, conhecida poetisa irlandesa da época, que preenche diversos objetivos: intensifica o ambiente irlandês do filme, cria uma atmosfera de melancolia dentro da festa, inicia o processo de introspeção de Gretta, realça o contraste e ao mesmo tempo aproxima o leste e o oeste, e identifica o casal com estes pontos cardeais contrastantes. Quase chegando ao final da recitação há duas linhas da balada que falam do leste e do oeste. Quando escutamos a voz de Mr. Grace dizer Você me roubou o leste, a câmera focaliza o rosto de Gabriel. Quando ele diz Você me roubou o oeste, a câmera focaliza o rosto de Gretta.

E um outro acréscimo do filme, que tem relação com este aspecto, é a cena externa com o cocheiro do taxi, ao final da festa. Este demonstra claramente ser uma pessoa simples, interiorana, e que confessa não conhecer nada em Dublin, mas estar apenas dando uma mão ao cunhado naquela noite. Gabriel logo lhe pergunta: Você não é um dublinense, é? Você é do oeste da Irlanda? Ao que o cocheiro admite: Das Ilhas Aran.

Ao final da história, há uma convergência dos dois pontos, leste e oeste, quando Gabriel reconhece que o oeste, com seu primitivismo, está ligado às paixões que ele pode perceber ao seu redor: ligado à Gretta, que foi capaz de extravasar todo um sentimento forte que a noite lhe provocara; à Michael Furey, que havia morrido de paixão pela mulher amada. E esta convergência é feita pela neve, que no filme demonstra a unificação final tanto geográfica, de toda a Irlanda, quanto humana: de Gabriel consigo mesmo e com o universo lá fora; e a unificação dos vivos e mortos. As imagens da neve (externas) contrastam com as imagens das pessoas e dos ambientes internos: a neve é sempre vista de longe, ou de cima, em imagens mais abertas. As imagens de dentro de casa são sempre de grupos pequenos, ou de rostos, em close.

Se o espectador prestar atenção, verá que a neve é a personagem principal do filme: o primeiro take é externo, da neve caindo nas ruas de Dublin; quando Gabriel chega, sacode a neve de suas galochas; de tempos em tempos ele olha pela janela e vê a neve caindo lá fora; Gretta caminharia até em casa descalça na neve, se deixassem (p. 180); o take final é da neve, caindo grossa, sobre tudo e todos, um take de cena externa vista primeiramente através da vidraça da janela de hotel.

Muitos outros exemplos poderiam ser citados. Muitos outros temas poderiam ser explorados. Este trabalho tentou destacar alguns temas e perceber como cada linguagem - a literária e a cinematográfica - os aborda. A ficção imita a vida; o cinema é impressão de realidade, nas palavras de Metz. Aqui foi feito um corte em cada um dos textos - o literário e o fílmico. Assim como tematicamente foi feito um corte na obra de Joyce: o conto "Os mortos" foi dissecado isoladamente, quando podemos trabalhá-lo em relação aos outros contos da coletânea. Como a linguagem cinematográfica é composta de cortes e montagens, do corte feito tentamos também fazer uma montagem comparativa. De acordo com Martin (1963: 27), a imagem fílmica, apesar de sua exatidão, é um dado extremamente maleável e susceptível a toda espécie de interpretações. O estudo aqui apresentado é apenas uma entre muitas interpretações. E parece-nos, pelo que foi aqui levantado, que o filme Os vivos e os mortos conseguiu reproduzir o tom e as idéias com que o texto "Os mortos" nos brindou.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS:


BRASIL, Assis. Cinema e Literatura. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1967.
HART, Clive. Joyce, Huston, and the Making of "The Dead". Gerrards Cross, Buckinghamshire: Colin Smythe, 1988.
HATIM, Basil e MASON, Ian. Discourse and the Translator. Language in social life series. New York, Longman, 1990.
JOYCE, James. Dubliners. Text, Criticism and Notes. Ed. Robert Scholes and A. Walton Litz. England, Penguin Books, 1986.
MARTIN, Marcel. A Linguagem cinematogr<fica. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia, 1963.
METZ, Christian. A significação no cinema. São Paulo, Perspectiva, 1972.
PLAZA, Julio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1987.



APENDIX 1

Texto da balada lida por Mr. Grace durante a festa na casa das Senhoritas Morkan, citada no corpo do trabalho, cujo título em português seria: "Votos partidos" ou "Juras quebradas". Este texto foi retirado do filme, onde é adaptado de um texto original um pouco mais extenso.

 

BROKEN VOWS

It is late last night;
The dog was speaking of you
The snipe was speaking of you in her deep marsh.
It is you are that lonely bird throughout the woods
And that you may be without a mate until you find me.
You promised, me and you said a lie to me,
That you would be before me
Where the sheep are flocked;
I gave a whistle and three hundred cries to you
And I found nothing there but a bleating lamb.
You promised me a thing that is hard for you,
A ship of gold under a silver mast,
Twelve towns and a market in all of them,
And a fine white court by the side of the sea.
You promised me a thing that is not possible,
That you would give me gloves of the skin of a fish;
That you would give me shoes of the skin of a bird,
And the suit of the dearest silk in Ireland.
My mother told me, not to be talking with you,
Today or tomorrow, or on the Sunday.
It was a bad time she took for telling me that,
It was shutting the door after the house was robbed.
You have taken the east from me,
You have taken the west from me,
You have taken what is before me and what is behind me;
You have taken the moon,
You have taken the sun from me,
And, my fear is great,
You have taken God from me.

 


[1]

Teach me to feel another's woe
To hide the fault I see
That mercy I to others show
That mercy show to me

(no texto, m/tradução)

 

 

 

 


Magda Velloso Fernandes de Tolentino é aposentada pela UFMG, é professora de Literaturas de Língua Inglesa na Fundação de Ensino Superior de São João del Rei (FUNREI) desde 1993. Tese de doutorado: James Joyce e a formação da nacionalidade irlandesa. Suas publicações incluem: artigos em periódicos especializados e jornais de circulação diária, traduções, capítulos em livros, resenhas, prefácios, contos.
e-mail: megvel@net.em.com.br

 


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