Que mulher é essa?

Novas vozes femininas do conto

sulista norte-americano contemporâneo

 

 

Tereza Marques de Oliveira Lima
UFF - Universidade Federal Fluminense



Resumo:

O presente trabalho faz parte da minha atual pesquisa que objetiva analisar a representação do sujeito feminino sulista no conto feminino sulista produzido nas décadas de 70, 80 e 90. Apresentarei o mito do Velho Sul e sua relação com o sistema patriarcal sulista, mostrando como as escritoras sulistas mostram sua permanência no presente e nas imagens da mulher geradas por ele, numa trajetória de cem anos nos contos "Dare´s Gift", de Ellen Glasgow, "First Dark", de Elizabeth Spencer e "Shiloh", de Bobbie Ann Mason.

Abstract:

This article is part of my actual research which aims at the analysis of the representation of the Southern feminine subject in the short stories produced by Southern women writers in the 70s, 80s, and the 90s. I will present the myth of the Old South and its relation to the Southern patriarchal system, showing how Southern women writers portray its permanence in the present and in the images of women generated by it, in a trajectory of one hundred years in the short-stories "Dare´s Gift", by Ellen Glasgow, "First Dark", by Elizabeth Spencer, and "Shiloh", by Bobbie Ann Mason.




No panorama da literatura sulista produzida por mulheres, nomes como Katherine Anne Porter, Eudora Welty, Flannery O'Connor e Carson McCullers romperam a barreira da invisibilidade. Partindo da cosmovisão pastoral e agrária do chamado Southern romance e de um legado eminentemente masculino, apontaram as falhas do sistema patriarcal sulista e se insurgiram contra ele. Corajosas e empreendedoras, redesenharam a paisagem literária sulista. Enveredando por várias vertentes, rescreveram o gótico, usaram a mitologia greco-romana e céltica, o maravilhoso e o humor para entenderem suas personagens, apresentando, enfim, a crônica da sua região, procurando sempre entender esse espaço tão marcado por paradoxos e exclusões. As obras dessas escritoras mencionadas acima foram, e continuam sendo, objeto de muitos estudos, dissertações de mestrado, teses de doutorado e seminários. Como sua produção vai até 1970, com exceção de Welty que ainda está viva mas que não tinha publicado até este ano, há uma lacuna no que diz respeito à literatura sulista produzida por mulheres nas décadas de 70, 80 e 90. É essa lacuna que a pesquisa que estou desenvolvendo atualmente objetiva ajudar a preencher. Há nomes como Alice Walker e Anne Tyler que já alcançaram uma reputação e um lugar visível, mas a grande maioria continua relegada a um espaço marginal, ou a uma visibilidade restritiva ao Sul.

Tendo em mente que o que eu objetivava na nova pesquisa era mapear contos em que pudesse investigar como as escritoras sulistas contemporâneas rescrevem o seu lugar na tradição literária sulista ao rescreverem as próprias identidades culturais femininas sulistas, a minha proposta era analisar os contos de antologias que mostrassem esse Sul contemporâneo. Escolhi cinco que foram publicadas recentemente [ quatro delas entre 1995 e 1997 ], que têm por finalidade apresentar o que foi produzido nos últimos anos. Em todas, o elemento estruturador é a noção de pertencimento ao Sul enquanto espaço geográfico, histórico e mítico, carregado de significação. Duas delas apresentam organizadoras que somente selecionaram contos de escritoras sulistas sem preocupação do recorte pela etnia ou raça, tentando capturar as múltiplas vozes dessa região que já começa a mudar. O Sul que aparece nas antologias é não somente o Deep South, isto é, Georgia, Alabama, Mississipi e Louisiania, mas há escritoras da Virginia, Carolina do Norte, Carolina do Sul, Flórida, Texas, Tennessee e Kentucky. Com isso, a imagem apresentada durante anos pelos críticos literários de que havia um único Sul, concebido como um bloco monolítico, vai se desfazendo, e vemos que há, na verdade, várias regiões distintas, que o Sul não é um, mas vários.
Os três contos em que analisarei a representação do sujeito feminino sulista são da seção "The Weight of the Past" [O Peso do Passado] da antologia Downhome: an anthology of southern women writers.[1] São eles: "Dares´s Gift" de Ellen Glasgow, "First Dark" de Elizabeth Spencer e "Shiloh" de Bobbie Ann Mason. Organizada por Susie Mee, escritora sulista nascida na Geórgia e que, como muitos sulistas, deixou o Sul para ir em busca de novos espaços geográficos, é a saudade desse lugar de origem, desse downhome que lhe impulsiona a reviver, a recordar e a viver as pulsões do presente numa antologia de contos, gênero muito produtivo nessa região que apresenta uma forte característica de oralidade, onde os habitantes sentem prazer em contar histórias. A antologia é dividida em sete seções temáticas: "Growing Up", "Kinfolk and Courtship", "The Pleasures and Miseries of Marriage", "The Weight of the Past", "Settings, Customs and Artifacts", "Washed in Blood" e "Passing on". Cada seção apresenta três contos de escritoras diversas e de diferentes décadas, mostrando como cada uma em lugares e tempos diferentes representou o sujeito feminino sulista, exemplificando o que a crítica literária Judith Butler em seu Gender Trouble: feminism and the subversion of identity[2] mostra: não há uma mulher, mas várias mulheres, dependendo das interseções do espaço geográfico e histórico, classe social, sexualidade, etnia e raça.

Para melhor compreender a construção da identidade feminina sulista há, portanto, de conhecer a história do Sul com seu sistema patriarcal particular e suas imagens de mulher - e aqui eu reitero a noção da necessidade de se refletir sobre a questão da crença num sistema patriarcal universal de que fala Judith Butler. É importante assinalar que a literatura sulista produzida até 1970 está profundamente marcada pela sua intrínseca relação com a História, como já foi apontado por muitos críticos. Está, por isso, também marcada pela idéia de lugar, que não se confunde com a idéia de lugar enquanto cena. O lugar é visceral, oferecendo memórias, lembranças, histórias, origens, a História do Sul e sua mitologia. Para melhor expressar a importância do lugar na literatura sulista, recorro a Eudora Welty, uma das mais importantes escritoras sulistas contemporâneas em seu artigo "Place in Fiction":


O lugar na ficção é o ponto de encontro, nomeado, identificado, concreto, exato e preciso, e portanto digno de crédito, de tudo que foi sentido e está para ser conhecido no progresso do romance. A locação pertence ao sentimento; o sentimento pertence profundamente ao lugar; o lugar na História participa do sentimento, como o sentimento sobre a História participa do lugar. Toda história seria uma outra história, e não reconhecida como arte, se apanhasse seus personagens e enredo e acontecesse em algum outro lugar.[3]


Em seu William Faulkner, Frederic J. Hoffman, ao analisar a obra desse importante escritor sulista, apontou a existência de quatro passados que se interpenetram na consciência de suas personagens: o passado edênico (em que o Sul ainda não tinha sido colonizado), o passado histórico (o da História oficial), o passado mítico (decorrente da visão do homem sulista em relação à História) e o passado individual (que tenta uma reconciliação entre os três anteriores).[4] Essa realidade ficcional detectada por Hoffman em Faulkner é também encontrada em muitas obras da literatura sulista.
Quero enfatizar que, quando os sulistas se referem ao passado, estão se referindo, quase sempre, à imagem que construíram do Old South, o Sul do período que antecede a Guerra de Secessão norte-americana. A construção e a perpetuação desse mito político foram necessárias para que os sulistas pudessem enfrentar a realidade de um mundo tensionante e inóspito que definiam como ameaçador. Raoul Girardet em seu livro Mitos e Mitologias Políticas analisa a construção desses mitos, concluindo que:


Oposto à imagem de um presente sentido e descrito como um momento de tristeza e de decadência, ergue-se o absoluto de um passado de plenitude e de luz. Resultado quase inevitável: cristalizando ao seu redor todos os impulsos, todos os poderes do sonho, a representação do "tempo de antes" tornou-se mito. E mito no sentido mais completo do termo: ao mesmo tempo ficção, sistema de explicação e mensagem mobilizadora.[5]


O impacto da expressão Old South no imaginário norte-americano sulista tem o poder de conduzir a uma viagem que, normalmente, é permeada por um sentimento nostálgico, ao apontar uma época galante e aristocrática, que se mostra sem pudor através de sua arquitetura e padrões culturais, sociais e éticos, em que honra e bravura sobressaem no foreground. O mito romântico do Velho Sul muito deve aos romances de Walter Scott, escritor que tinha uma enorme popularidade nos Estados Unidos, cuja obra enfatizava os conceitos de audácia e bravura, apresentados numa atmosfera de romantismo em que a luta se dava por uma boa causa. A ligação com a imagem do Sul escravocrata se processa mais tarde e, dependendo de quem está fazendo esse passeio, pode ser minimizada ou totalmente apagada.

O cenário do mito do Velho Sul apresenta imagens que privilegiam grandes extensões de terra onde trabalham negros felizes e alegres, supervisionados por capatazes amigos e bondosos. O mal só existe no Norte e no coração do ianque. As casas são mansões brancas, ornadas por belas colunas imponentes que levam a um recinto sagrado: o lar do dono de plantação de algodão. Na casa grande convivem, em harmonia, brancos e negros, que já tendo perdido a sua identidade, apoiam os senhores, e se consideram mais próximos aos brancos ricos e, consequentemente, superiores aos brancos pobres - os white-trash - e aos próprios irmãos negros. O romance de Margaret Mitchell Gone with the Wind, ganhador do prêmio Pulitzer de 1936, adaptado para o cinema mais tarde, muito ajudou na construção da imagem do Sul de antes, durante e após a Guerra de Secessão.

No recinto sagrado da casa principal, que pela sua arquitetura muito lembra a imponência e beleza dos antigos templos gregos - de cuja cultura os sulistas quiseram importar o sentimento de aristocracia e o uso do braço escravo para desfrutar do lazer e ter tempo para a política - repousam o senhor, a senhora e seus filhos e filhas. Os jovens cavalheiros vestem-se bem, conversam bem, divertem-se bastante, cavalgam belos animais, duelam, se preciso for, e cortejam as jovens beldades sulistas. De preferência, em noites de luar, com uma agradável temperatura amena, à sombra dos imensos carvalhos, sentindo o perfume das magnólias, flores imensas e brancas, que são, juntamente com a barca do Mississipi e as bandas de jazz, símbolos do Sul. Essas Southern belles além de bonitas e jovens, devem ser recatadas e angelicais e, é claro, devem saber conversar, dirigir uma casa, e proporcionar ao seu marido e senhor - ela, a fair lady e ele, o master - uma vida tranqüila e agradável (apoiada é claro pelas mammies negras que ajudam - e muito - a criar seus filhos).

As senhoras são quase que adoradas pelo seu senhor, exceto quando eles estão se divertindo e aumentando a população de mulatos, emblema de sua hipocrisia e geradora de um dos maiores pavores sulistas: a miscigenação, tema que tão bem foi abordado na obra de William Faulkner, especialmente no romance Absalom, Absalom! Mas isto o mito não mostra, como também não mostra as barbaridades cometidas pelos brancos aos negros. O que se vê é um Senhor elegante, calmo, impecável (ele, quase ou nunca, transpira sob o tórrido verão sulista), que está sempre disposto ao lazer e a uma boa conversa. É interessante observar que ainda hoje, quando se visita as casas principais das plantations - termo que não eqüivale à fazenda, e perde muito ao ser traduzido como plantações, pois designava um conjunto de características relacionadas ao modo de produção agrícola, estando ligado à escravidão e à formação da sociedade sulista - vê-se, em sua arquitetura, a existência de duas salas: uma para o Senhor e seus pares e outra para a Senhora e as esposas dos convidados, nitidamente constituindo dois espaços distintos e auto-excludentes. Cabe ressaltar que o estereótipo da senhora branca sulista, pertencente à elite dominante, e os altos padrões de pureza, bondade, sociabilidade, doçura, dependência, capacidade de gerir a casa, os filhos e os criados, criavam expectativas que eram paradoxais e difíceis de serem realizadas. Anne Firor Scott em The Southern Lady: from pedestal to politics, 1830-1930, analisando os diários das mulheres da época, mostra como esse modelo era visto como gerador de muita inadaptação e sofrimento por parte delas, que tentavam corresponder ao que a sociedade patriarcal exigia.[6] É importante lembrar, também, como afirma Louise Westling em Sacred Groves and Ravaged Gardens: the fiction of Eudora Welty, Carson McCullers, and Flannery O´Connor que a grande maioria das mulheres não pertencia à elite, estando, por essa razão, excluídas e invisíveis.[7]

Não é o Sul da História oficial que vamos recordar ao pensarmos no Velho Sul. É o Sul mítico que vai se sobrepor ao histórico. Segundo os historiadores, sua criação deu-se por volta de 1830, sendo fortalecida ao longo dos anos até a culminância do seu poder em 1861, quando começa a Guerra de Secessão que só terminará em 1865, com a derrota dos sulistas.

Por que o Sul apagou quase que totalmente a verdade histórica, escolhendo lembrar só o que lhe convinha e fabricar dados novos onde achava necessário? A resposta a essa questão nos é dada por Edward Ranson e Andrew Hook que escreveram um elucidativo ensaio sobre "O Velho Sul". Segundo eles,

A verdade da questão, talvez, é de que a mitologia do Sul é tão poderosa e firme porque, privado dela, o Sul pareceria como o imperador sem sua roupa - isto é, não mais nitidamente identificável. Em algum momento de sua trajetória, o Velho Sul criou e difundiu determinada auto-imagem a fim de se persuadir, e persuadir o mundo exterior, de sua identidade distinta. A necessidade histórica exigia que o Velho Sul fosse visto como diferente. Daí resultou que: Paradoxalmente, então, através da criação de imagens e de mitos, o Velho Sul tornou-se uma realidade histórica.[8]


Como bem mostra Carol S. Manning em The Female Tradition in Southern Literature muito ainda tem que ser feito para que possamos entender a verdadeira e profunda contribuição das escritoras sulistas desde a metade do século XIX, época em que muito publicaram, tendo sido apagadas do cenário literário para dar espaço ao cânone que foi entronizado na segunda década do século XX. Para Manning, ainda há que se fazer um estudo de um tema muito importante e que foi negligenciado: (...) As escritoras sulistas, ou suas personagens, são motivadas pela tensão entre o desejo pessoal e as exigências do ideal sulista de mulher.[9] É a lembrança e a presença do passado, com seu sistema patriarcal próprio, sua estrutura social rígida, seus padrões de comportamento cerceadores da mulher, nessa contínua e tensa interpenetração, que tão bem foi observada por Hoffman, que vai ser o principal elemento constitutivo da estrutura dos contos que serão objeto da minha análise. Em cada conto, veremos como é representado o sujeito feminino sulista, descrito por três escritoras diferentes, em diferentes momentos históricos.

Nascida na Virginia, Ellen Glasgow, foi uma das primeiras escritoras de seu estado a escrever um romance feminista, Virginia, em 1913. Em sua obra, ela apresenta, com compaixão e ironia, uma crítica à sociedade de Richmond, e, por extensão, ao Sul, mostrando como o sistema patriarcal sulista sufocou e destruiu muitas mulheres incapazes de se rebelarem contra ele. Ganhadora do Pulitzer em 1942, escreveu o conto "Dare´s Gift" antes da data de sua publicação em 1923.[10] Seguindo a tradição gótica sulista, principalmente Edgar Allan Poe, a quem admira, a escritora nos fala de passado e presente, amor e morte, amor e traição. O foco narrativo apresenta um narrador inserido na diegese: um advogado abastado que mora em Washington, sendo, portanto, um nortista, um ianque. Ele nos relata o que lhe sucedeu há um ano atrás, quando levou sua frágil e nervosa esposa, Mildred, para se recuperar de um colapso nervoso na Virgínia. Essa distância temporal, que separa o narrador do objeto da sua narração, também era muito usada por Poe, e confere uma carga de ausência de emoção face ao evento narrado. O título do conto se refere ao nome da bela propriedade rural que o narrador, Sr. Beckwith, comprara por intermédio de um amigo. Uma atmosfera de mistério, da existência de uma realidade que não se deixa vislumbrar, permeia a narrativa, e vez por outra, à maneira de Poe, e exemplificando a contínua tensão característica do fantástico, segundo Todorov, há a tentativa de se reiterar a existência de fenômenos naturais, de eventos que podem ser explicados, afastando-se, com essa estratégia, o sobrenatural, que, no entanto, vai se infiltrando no texto.

A bela casa no campo construída num lugar quase inacessível, distante do tumulto da cidade, quase nos lembra o Sul edênico, não fosse ela mesma o emblema da civilização. Contudo, parece anacrônica, à medida em que construíram uma estrutura adicional que lhe confere uma conotação grotesca na deformidade de sua arquitetura. Vista como possuidora de uma força sobrenatural, seus efeitos começam a se fazer sentir na esposa do advogado. Mildred é descrita como meiga, submissa, amiga, enfim, tudo que já está anunciado, de certa forma, na parte de seu nome mild, que, em inglês, quer dizer dócil. Pouco a pouco, ela dá sinais de mudança e de rebeldia e isso preocupa o marido acostumado com a esposa se enquadrando dentro do modelo convencional da mulher norte-americana do começo do século XX. Embora preocupado com sua saúde física e mental, só se encontra com ela nos finais de semana, pois está tratando de um caso em que há suspeitas de fraude. Como acha que suas idéias ficam mais claras quando as exprime em voz alta, no que ele define como conversa sobre o seu trabalho com a esposa - e não porque queira com ela compartilhar suas preocupações- apresenta-lhe toda a extensão dos seus temores e a realidade da situação do seu cliente. Qual não é sua surpresa quando, ao voltar para Dare´s Gift, ele lê, no jornal, uma manchete sobre a guerra, pensando ser mais uma matéria sobre a Primeira Guerra Mundial, e depara com o escândalo sobre o seu cliente, com dados e palavras que pareciam seus. É nesse momento que entende que foi a esposa quem lhe traiu.

Quando chega à propriedade, encontra o médico da região cuidando de Mildred, que se encontra numa conturbada condição emocional. Antigo soldado confederado que perdeu a perna na guerra, ele assegura que é urgente que o advogado leve a esposa para longe dessa casa que exerce uma poderosa influência nas pessoas. O médico assume agora a função de segundo narrador, conferindo ao conto uma estrutura de mise-en-abîme, que traz para o presente o peso do passado, numa história que mostra os horrores da Guerra de Secessão, a arrogância e a ilusão dos sulistas. A protagonista é uma jovem branca sulista, de família abastada: Lucy Dare. Criada junto a um pai ditatorial e obcecado pelo ódio aos ianques, apaixonara-se por um outro jovem antes da guerra. Separados por esse cataclismo, ela, fiel ao que chama de seu país, o denuncia aos confederados quando ele escapa da prisão para lhe ver pela última vez. Ao ser morto, revela no seu rosto e no seu olhar todo o sofrimento, toda a perplexidade face ao ato da mulher amada. O final da história mostra um corte temporal e a jovem é já uma velha, num lar de idosos, meio abobalhada, que não se lembra de nada e passa o dia tricotando para os soldados aliados.

No conto "Dare´s Gift", o tema da traição está ligado à imagem da casa, desde a sua origem, quando um dos ancestrais de Lucy cometeu um ato de traição ao governo. Através dos anos, a casa torna-se cenário de várias outras traições: Lucy, compartilhando os mesmos ideais de seu pai autoritário, trai o homem amado, e acaba a vida como uma figura patética, sem memória; a empregada da casa conta ao Sr. Beckwith que seu marido a traíra com a própria irmã e fugira, razão pela qual ela agora está se divorciando; o antigo proprietário não guarda boas recordações da casa, pois fora traído por seu secretário que lhe roubara; a esposa do Sr. Beckwith o traíra ao revelar fatos confidenciais. Seguindo a linha do gênero gótico, a casa surge como um lugar de danação, fazendo com que seus habitantes se deixem contaminar pelo mal.

Nas personagens femininas do conto de Ellen Glasgow podemos destacar alguns pontos: Lucy, apesar do seu ato, mostra como as mulheres foram os grandes sustentáculos do Sul da Guerra de Secessão, ficando na terra devastada, trabalhando na retaguarda, nos bastidores e, depois, como o médico declara, sendo esquecida e apagada pela História oficial, que só valorizou o trabalho dos homens. A empregada pobre, traída pelo marido, mostra a sua força ao lutar por seu divórcio, ocasião em que terá a sua liberdade reconhecida pela sociedade e terá o controle de sua própria vida. Mildred, submissa, oprimida, quase que silenciada, expressa a sua revolta de uma forma psicossomática, com freqüentes colapsos nervosos até o seu ato de rebeldia expressa, quando as palavras parecem ter saído com uma força incontrolável, soberana. De ouvinte passiva assume o papel de falante ativa, gerando uma total perplexidade no marido, incapaz de qualquer vislumbre da real causa do que sucedeu, certo de que nunca cometera nenhum erro com a esposa.

É importante observar que Ellen Glasgow conferiu o foco narrativo a uma personagem masculina, usando o que Henry James considerava ser a melhor técnica para a narrativa, a consciência central. No entanto, o Sr. Beckwith parece não conseguir alcançar o verdadeiro significado do que aconteceu nessa casa impregnada de histórias e da História, cedendo essa função ao médico rural, o aleijado, vítima da guerra e testemunha ocular do assassinato do rapaz nortista, que já via a verdade sobre a Guerra de Secessão, o que os outros, enfeitiçados pelo mito do Velho Sul, não conseguiam perceber.
No conto "First Dark", publicado em 1959, Elizabeth Spencer, escritora nascida no Mississipi e que atualmente mora no Canadá, também problematiza a questão do peso do passado numa história sobre fantasmas, culpa social, mudanças e amor. Para Elsa Nettels, o tema central da ficção de Spencer é a passagem das personagens para a liberdade, libertando-se de obsessões auto-destruidoras e relações que aprisionam. Algumas considerações que tece sobre as personagens do romance Fire in the Morning podem também ser relacionadas ao conto "First Dark":(...) são moldadas pelo passado e se moldam a si mesmas segundo o que fazem desse passado. Acrescenta que suas ações não são eventos isolados mas, como correntes, fluem para trás e para frente, alterando percepções do passado, motivando atos no tempo presente.[11]

Spencer escolheu para o lugar onde a ação do seu conto se desenrola uma pequena cidade do interior do Mississipi chamada Richton, apresentada quase como uma personagem, agrupando ao redor de si, as opiniões da sociedade local e suas cobranças. O título é sugestivo ao apontar para o crepúsculo, essa zona meio ponte entre a luz do dia e as trevas da noite, esse momento em que o diurno cede espaço ao noturno, com suas sombras e escuridão.

Richton [corruptela de Rich town, cidade rica?] é uma típica cidadezinha sulista, com seu passado histórico, famílias aristocráticas decadentes, os negros que ficaram no Sul ocupando posições subalternas, os brancos pobres - chamados de lixo branco -, mulheres solteiras, viúvas, mulheres fofoqueiras e fantasmas. É importante lembrar que Eudora Welty escreveu no artigo "Some Notes on River Country"[12] que não há nada mais mundano do que fantasmas no Mississipi, aludindo, entre outras coisas, ao passado histórico e ao fato da maioria das cidadezinhas sulistas não alcançarem cinqüenta e seis anos de existência, como declara Howard G. Adkins em "The Historical Geography of Extinct Towns in Mississippi".[13] Ou o próprio rio Mississipi as destrói nas suas inundações, ou seus habitantes partem em busca de lugares com melhores possibilidades de futuro.

As personagens principais do conto "First Dark" são Thomas Beavers e Frances Harvey. Elizabeth Spencer mostra, em seu conto, o que sobrou das pequenas cidades sulistas que viram seu tamanho e importância serem reduzidos com o avançar do progresso. Beavers trabalha em Jackson, capital do Mississipi, mas, após anos, premido pela necessidade de manter uma conexão com o passado, volta a sua cidade natal. A primeira cena que vemos é sua conversa com o empregado da farmácia sobre a história de um homem que aparecia, na hora do crepúsculo, às pessoas que entravam na cidade. Totsie lembra que já ouvira essa história antes e narra uma outra história que era contada pelos presos que trabalharam na construção da estrada que conduzia à auto-estrada: um homem de cor indefinível surgia, dizendo que precisava que eles tirassem a escavadora para terraplanagem do caminho, para que ele pudesse levar uma jovem negra ao médico. Spencer apresenta, nesta cena, uma das características do Sul: histórias contadas por pessoas que, por sua vez, ouviram outras histórias contadas por outras, numa sucessão de narradores que distanciam o objeto narrado do presente, criando a impossibilidade de uma realidade única e orgânica, mostrando a construção dos folk tales.

Criado por uma tia pobre, Beavers sempre se manteve e fora mantido à distância, consciente do lugar que ocupava naquela sociedade. Agora, no entanto, o momento histórico é outro e ele pode se aproximar de Frances Harvey, integrante de uma importante família local. O que os une é a vontade de descobrir a verdade sobre o fantasma que dizem aparecer na antiga estrada que leva a Jackson. A busca do fantasma é o elo que une os dois, e dessa recente amizade surge um sentimento maior, aprovado pela mãe de Frances antes de morrer. Com sua morte, que parece ter sido acelerada para liberar a filha de obrigações para com ela, a moça solteira enfrenta a irmã distante e a sociedade local na maneira como trata o namorado.

Em um de seus passeios, Frances encontra um homem negro de pele clara, velho e magro, que lhe pede para tirar o carro do caminho para ele poder levar, na sua carroça, uma moça negra ao médico. Nessa noite, ela não consegue dormir, pois é possuída pela culpa de não ter se oferecido para levar a moça no seu próprio carro. Assim, na manhã seguinte, retorna ao lugar, encontra o homem, pergunta sobre a moça, fala da sua preocupação e como pensou em oferecer ajuda. Sem saber, ela se torna a única pessoa que falou com ele. O ato de Frances parece romper com uma espécie de maldição que paira sobre as cidades e pessoas assombradas. É importante assinalar que a história desse fantasma aponta para as relações raciais no Sul: ele pede ajuda a um habitante da cidadezinha, que normalmente é branco, para ajudá-lo a socorrer uma jovem negra. Quando se propõe a socorrer um ser humano que sofre, sem se importar com a cor de sua pele, Frances instaura uma nova possibilidade de ação, resgatando a culpa da sociedade sulista. A resolução do conto não mostra se essa ação fez com que as aparições do fantasma cessassem, à medida em que o ato de Frances possa ter trazido paz à sua alma. O final só mostra que Beavers a convence a deixar a casa e o passado para trás, e começar uma nova vida com ele, numa outra cidade.

O conto exemplifica o que Elsa Nettels vê como um motif na maioria dos contos de Spencer: a protagonista é uma mulher que vive numa pequena cidade sulista, oprimida pela família, cujo poder de dominação aumenta à medida em que os pais vão envelhecendo e exigindo cuidados cada vez maiores. É a morte dos pais que desobriga a mulher e permite que ela deixe a cidade natal. Segundo Nettels, há dois tipos de personagens principais em Spencer: a passiva e a ativa. No conto "First Dark", Frances representa a passiva, já que, na realidade, é Tom Beavers que a impulsiona a deixar a cidade e tudo o que ela representa.[14]
O conto "Shiloh" de Bobbie Ann Mason foi publicado em 1982, sendo bastante representativo da sua obra, que apresenta um universo ficcional em que aborda as profundas mudanças que estão ocorrendo no Sul, mais precisamente no Kentucky, estado fronteiriço onde se vê a invasão do mundo moderno e padronizado do resto dos Estados Unidos. Considerada como uma escritora cuja obra é minimalista, sua ficção, como bem aponta Linda Tate em A Southern Weave of Women: fiction of the contemporary south, apresenta questões como os laços com o passado, a região, o lar e a família.[15] Dotada de uma prosa cortante e direta em que focaliza a vida cotidiana norte-americana com suas personagens da classe trabalhadora, seus símbolos da sociedade de consumo, Mason é uma escritora preocupada com as mudanças do tempo presente e o seu impacto sobre o Sul, e sua identidade cultural. No conto "Shiloh", a personagem de Bobbie Ann Mason não pertence à aristocracia sulista, estando longe do estereótipo da Southern belle: é pobre, trabalha numa drugstore e é casada com um homem comum, um caminhoneiro que após sofrer um desastre e uma operação, passou os últimos três meses em casa. Leroy [le roi, em francês, ou seja, o rei] enfrenta um momento de crise: após quinze anos de casamento, está, pela primeira vez, numa relação mais próxima com a mulher, Norma Jean, que era o verdadeiro nome de Marilyn Monroe. Ambos tentam se adaptar à nova vida juntos. Seu único filho morreu ainda bebê, e eles sentem-se culpados. No órgão elétrico, presente do marido, Norma Jean relembra o passado, tocando os sucessos dos anos sessenta: "Can´t Take My Eyes Off You" e "I´ll Be Back", que o marido escuta, fumando um baseado. Nas inúmeras horas vagas, Leroy desenvolveu o gosto de montar coisas, de estruturar partes desconexas: adepto do "Faça você sozinho", sonha, agora, realizar o que prometera à mulher: construir uma casa e fugir do transitório, da casa alugada, e, finalmente, criar raízes. Para isso quer encomendar uma casa de madeira que vem num kit, idéia que sua mulher rejeita.

O conto focaliza o problema das identidades: não só a de Norma Jean e Leroy, que começa a bordar, deixando a sogra perplexa ao descontruir o mito masculino que não admite tal comportamento, mas a da própria cidadezinha do Kentucky onde moram, com a população de onze mil e quinhentos habitantes, somente mais setecentos do que há vinte anos. Ao longo desse tempo, os fazendeiros desapareceram e novas áreas foram sendo criadas. A visão da cidade e suas novas casas grandes e complicadas deprime Leroy, que não se vê parte dela. Aos poucos, ele percebe que vai perder a mulher, que está, cada vez mais, diferente. Seus hábitos mudaram: para acompanhar a fisioterapia do marido começou a fazer musculação, acorda cedo, está estudando à noite, faz comidas diferentes e já não toca o órgão. A mãe de Norma Jean, Mabel, que culpa Leroy por ter engravidado a filha aos dezoito anos, acha que eles tem que ir a Shiloh, cidade histórica no Tennessee, palco de umas das batalhas sulistas. A lua-de-mel de Mabel e o marido fora ali e ela acredita firmemente que, se Leroy levar Norma Jean para lá, a situação entre o casal irá melhorar. A ida a Shiloh se apresenta como um desastre total: Leroy fica um pouco desapontado, pois achava que ia encontrar algo parecido com um grande campo de golfe, e Norma Jean, ao final do piquenique, diz que quer se separar.

Os três contos analisados apresentam personagens femininas numa trajetória de mais de cem anos. Ellen Glasgow, em seu "Dare´s Gift" focaliza a mulher americana - ainda silenciada - do começo do século, na história dos Beckwiths e a mulher americana sulista na história que se passa na guerra civil. Lucy Dare [e dare significa ousar] é uma jovem e brava representante da elite sulista que luta por seu ideal e pelo sonho da criação de um novo país. Cansada, com uma fome crônica que vai minando sua resistência física e mental, comanda os trabalhos da casa, que abriga doentes e feridos.

Em "First Dark" de Elizabeth Spencer, Frances Harvey é a já não tão jovem moça sulista, vivendo o presente após a Segunda Guerra Mundial. Em seu passado vêem-se elementos que apresentam uma nova configuração do sujeito feminino sulista: saiu da pequena cidade sulista, foi para a Europa onde se enamorou de um homem que mais tarde soube ser casado. Retornou ao lar quando seu pai ficou doente, e, após sua morte, ficou cuidando da mãe inválida. Quando esta morre, não se rende à pressão da irmã e da cidade e reitera seu comportamento ousado: recebe em casa seu recente namorado. Ao final do conto, ajudada por Tom, liberta-se do peso do passado ao abandonar a casa onde nascera para começar uma vida nova em outro lugar, não com um cavalheiro sulista, mas com o antigo sulista pobre.

Em "Shiloh" todos os personagens são sulistas pobres, com a exceção do jovem que vende maconha a Leroy e é filho de um médico rico, mostrando a corrupção na sociedade branca dominante. Todos parecem não se adaptar às novas fases da sua vida. É o Sul mudando de configuração e deixando para trás o passado. A ida ao campo de batalha de Shiloh foi, talvez, a última etapa da vida em comum de Leroy e Norma Jean. Ao explicar a sua mudança para o marido ela lembra o que sentiu quando a mãe recentemente a surpreendera fumando: estava ameaçada e com medo, como quando tinha dezoito anos. Ela não quer mais isso, quer ser ela mesma, quer começar de novo, ter novas oportunidades, fazer novas escolhas. Não quer seguir modelos, corresponder às expectativas do outro. Ao invés de lembrar o passado glorioso sulista do mito vai deixá-lo para trás, não como Lucy Dare em "Dare´s Gift", que se refugiou no total esquecimento do passado, mas como Frances Harvey em "First Dark".
Glasgow, Spencer e Mason mostram em suas estratégias narrativas como a mulher foi pouco a pouco ganhando voz, criando alternativas ao modelo paradoxal e sufocante de mulher estabelecido pelo sistema patriarcal sulista. Vendo o discurso ficcional como legitimador e formador de novas subjetividades de gênero, essas escritoras forneceram novos scripts em seu universo ficcional, oferecendo uma nova maneira de ser mulher.

A trajetória percorrida pelos três contos mostra como, gradativamente, o sujeito feminino sulista passou por várias fases, à procura de uma identidade em que a liberdade de construir o seu próprio caminho e de nortear a sua vida fosse respeitada. A mulher sulista criada pelo mito ficou para trás, no passado romântico do Velho Sul, que, a cada dia, fica mais distante e que já suscita dúvidas.


NOTAS

[1] MEE, Susie, ed. Downhome: an anthology of southern women writers. San Diego, Harcourt Brace & Company, 1995.
[2] BUTLER, Judith. Gender Trouble: feminism and the subversion of identity. New York, Routledge, 1990.
[3] WELTY, Eudora. "Place in Fiction". In: The Eye of the Story: selected essays & reviews. New York, Vintage International, 1990, p. 122. Esta e as demais citações traduzidas são de minha autoria.
[4] HOFFMAN, Frederic J. William Faulkner. New York, Twayne Publishers, 1961.
[5] GIRARDET, Raoul. Mitos e Mitologias Políticas. Trad. de Maria Lucia Machado. São Paulo, Companhia das Letras, 1987, p. 98.
[6] Apud WESTLING, Louise. Sacred Groves and Ravaged Gardens: the fiction of Eudora Welty, Carson McCullers, and Flannery O´Connor. Athens, University of Georgia Press, 1985, p. 15.
[7] Ibid., p. 15.
[8] RANSON, Edward & HOOK, Andrew. "O Velho Sul". In: BRADBURY, Malcolm & TEMPERLEY, Howard, eds. Introdução aos Estudos Americanos. Trad. de Elcio Cerqueira. Rio de Janeiro, Editora Forense Universitária [s.d.] p. 117.
[9] MANNING, Carol S. , ed. The Female Tradition in Southern Literature. Urbana and Chicago, University of Illinois Press, 1993, p. 48.
[10] MACDONALD, Edgar E. "The Ambivalent Heart; Literary Revival in Richmond." In: RUBIN, Louis D. Jr. et alii., eds. The History of Southern Literature. Baton Rouge and London, Louisiana State University Press, 1985. É importante assinalar que são poucas as escritoras focalizadas nesta obra que foi fundamental para os Estudos Sulistas.
[11] NETTELS, Elsa. "Elizabeth Spencer". In: INGE, Tonette Bond, ed. Southern Women Writers: the new generation. Tuscaloosa, The University of Alabama Press, 1990, p. 72.
[12] Op. Cit., p. 286.
[13]ADKINS, Howard G. "The Historical Geography of Extinct Towns in Mississippi". In: PRENSHAW, Peggy W. & MCKEE, Jesse O., eds. Sense of Place: Mississippi. Jackson, University Press of Mississippi, 1979.
[14] Op. cit., p. 82.
[15] TATE, Linda. A Southern Weave of Women: fiction of the contemporary south. Athens and London, The University of Georgia Press, 1994.


Tereza Marques de Oliveira Lima é professora adjunta de Literatura Norte-Americana da Universidade Federal Fluminense. É Coordenadora de Literatura Norte-Americana e da Pós-Graduação lato sensu em Literaturas de Língua Inglesa. É doutora em Literatura Norte-Americana pela Universidade de São Paulo (USP). Sua área de pesquisa é a literatura sulista norte-americana. Tem publicado artigos em revistas especializadas e em jornais culturais.
E-mail: tmolima@ibm.net


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