A LITERATURA AFRO-AMERICANA: SEUS DILEMAS, SUAS REALIZAÇÕES

Heloisa Toller Gomes
UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)


 

Resumo

Este trabalho enfoca a inserção da literatura afrodescendente no quadro cultural norte-americano, em sua tensionada relação com os cânones anglo-saxões dominantes - estes próprios em crise, desde o colapso do imperialismo europeu. A partir da noção de "marginalidade literária", crucial para o entendimento da cultura afro-americana, examina-se aqui a trajetória desta rica formação literária, distinguindo-se, nela, cinco etapas diferenciadas.

Abstract

This paper discusses the insertion of African American literature in the cultural scene of the United States, in its complex relationship with the dominant Anglo-Saxon canons - which have been undergoing a crisis since the collapse of European imperialism. With the help of the category of "literary marginality", crucial for the understanding of its rich trajectory, the African American literature is here briefly looked into, in five specific moments.


 

1 - INTRODUÇÃO

Nas três últimas décadas do século XIX, o imperialismo, triunfante na cena mundial a partir da África dilacerada, estimulava a expansão européia como objetivo político supremo e impunha a noção da superioridade da raça branca, atrelada a uma sofisticada burocracia, exportada da Europa para os quatro cantos do globo, como princípio de dominação. Considerações e teorizações raciais tinham então uma função central no tabuleiro de xadrez político a partir do qual a Europa reorganizava o mundo, e tornavam-se fundamento do poder instituído. Dali emanava a lógica racional das relações entre dominadores e dominados, entre a Civilização e a Barbárie. Alguns dos mentores e executores do domínio imperial sentiam-se na verdade as God - nothing less - segundo a lúcida autocrítica de Lord Cromer, referindo-se, naquele momento, a Cecil Rhodes. O mesmo Rhodes, por sua vez, declarava impavidamente, imbuído de patriotismo britânico e de fervor expansionista: I would annex the planets if I could. [1]

Mas as duas grandes guerras que esfacelaram a Europa, afetando no seu curso o mundo inteiro, contribuíram para o despertar das minorias e para dramáticos movimentos internacionais de refugiados. Enfraquecia-se o Estado-Nação, juntamente com a fé vitoriana na estabilidade e no bom-senso das instituições políticas ocidentais enquanto salvaguarda dos povos. Desde a década de 30, ruía afinal a grande construção imperialista que teve o seu golpe de morte, conforme lembra Hannah Arendt, em 1947, com a independência da Índia do jugo britânico: dali em diante, o mundo contemplou os estertores da agonia daquele mundo colonial anteriormente tão vasto que, em suas somadas vastidões, o sol jamais poderia se pôr - conforme haviam se vangloriado os ingleses. Na Europa, a própria ideologia de superioridade européia voltara afinal seus ferrões contra si própria, enlouquecidamente exacerbada nos descalabros e desastres do nazismo e de outros totalitarismos.

Do ponto de vista cultural, o aparentemente sólido edifício que enquadrava os setores do conhecimento e norteava o saber abalara-se a partir da contribuição de pensadores nascidos ainda no oitocentismo - para Michel Foucault, basicamente Marx, Nietzsche e Freud. As forças econômicas subjacentes ao tecido social, apontadas por Marx; a demolição da metafísica ocidental, empreendida por Nietzsche e a descoberta do inconsciente, por Freud, geraram os estudos interpretativos modernos, reclamando novos raciocínios e configurações. Alteravam-se, em sua base, os parâmetros interpretativos do Ocidente. [2]

A complexidade do quadro histórico, político e cultural foi responsável pela crescente inquietação, vivenciada em nosso século, frente ao saber instituído; e pelo conseqüente descrédito, no seio dos estudos sociais, por delineações rígidas e pelas fronteiras isolando os diversos campos do saber as quais, até meados deste século, ainda persistiam, apesar de tudo, entre as ciências do homem. O mesmo se pode dizer no âmbito dos estudos literários: com o estímulo de pensamentos renovadores (notadamente no campo da linguagem humana, como a lingüística de Saussure e a filosofia de Wittgenstein), complicava-se, necessariamente, a forma de abordagem da literatura - e das chamadas literaturas nacionais -, questionando-se os seus antigos parâmetros norteadores.

Nos Estados Unidos, onde a elite intelectual debatia os destinos da cultura e do saber, outros grupos étnicos, além dos anglo-saxões, produziam cultura e preocupavam-se com os rumos do conhecimento. Firmavam-se diferentes recortes e tendências culturais na literatura norte-americana, sempre em relação tensionada com os cânones dominantes. Apesar da candente problemática racial no país, característica da primeira metade do século XX, novas vozes beneficiavam-se das brechas no tecido cultural, antes praticamente inexpugnável, fazendo-se finalmente ouvir. Seus autores utilizavam-se dos pontos de fragilidade do requintado sistema cultural em vigor, para ali estabelecerem aquilo que Homi Bhabha chamou de contra-narrativas da nação. Na elaboração de novos cânones, criavam-se formas inéditas de expressão. E nesse processo criativo embutiam-se provocadoramente, a fecundar as produções intelectuais e a contaminar a própria tradição oficial, elementos meio esquecidos, evocados pela memória, sugerindo leituras renovadas e inusitadas articulações. Observe-se que esse complexo caldeirão de idéias, que envolvia a produção cultural em seu todo, fermentava à margem dos centros de saber e fora, quando não à revelia, das instituições acadêmicas.

Uma das mais ricas dessas diferentes formas culturais marginais nos Estados Unidos foi e tem sido a literatura afro-americana, parte do rico legado cultural da população negra e de seus descendentes. A fim de melhor entendermos o seu percurso e construção, cumpre percorrer, em retrospecto, uma longa trajetória para encontrar, em seus primórdios, as suas primeiras manifestações. Nesse sentido, aqui cabem, de início, algumas considerações a respeito do caráter de marginalidade que tradicionalmente moldou a produção cultural dos negros nas Américas, em sua pluralidade de feições.

2 - A MARGINALIDADE DA LITERATURA AFRO-AMERICANA

A literatura afro-americana configurou-se, inicialmente, como o ponto de convergência de duas tradições culturais - a africana, eminentemente oral e popular, e a européia, escrita e de cunho erudito. Ao considerarmos que a literatura oferece representações de experiência, chegamos ao terceiro apoio desse tripé cultural, base daquilo que chamamos, provisória e estrategicamente, de "literatura afro-americana"; e que diz respeito à transmutação da tradição africana, esfacelada por sucessivas diásporas, e do legado europeu multifacetado, eminentemente judaico-cristão, em manifestações específicas geradas no solo do Novo Mundo, no dinamismo do dia a dia, a partir de vivências próprias e insubstituíveis. Assim se teceu, nutrindo-se do híbrido e do fragmentado, aquele produto cultural assumidamente bastardo, a literatura afro-americana - encruzilhada de heranças.

Em tal concerto de tantas vozes, o talento poético de Langston Hughes fez, emblematicamente, a síntese das sínteses, ao criar um Cristo - não de bronze, como o de Cruz e Sousa, mas de fogo e carvão: o Cristo/negro linchado do Alabama:

Christ is a nigger,
Beaten and black:
Oh, bare your back!
Mary is His mother:
Mammy of the South,
Silence your mouth.

Hughes mescla o sagrado e o profano, o mítico e o histórico, o glorioso e o doloroso, o erudito e o coloquial, numa poesia cáustica porém sempre dotada de grande ternura, que trafega em pouco transitados pontos de confluência:


Most holy bastard
Of the bleeding mouth,
Nigger Christ
On the cross
Of the South.
[3]

Se procurarmos alguma característica permanente na trajetória cultural afro-americana, se buscarmos um fio condutor nesse trajeto cultural por vezes discreto, por vezes explodindo em borbotões de talento e versatilidade, chegamos necessariamente à noção de discurso marginal, que borda e percorre de ponta a ponta a produção cultural afro-americana. Mas o que se entende aqui por discurso marginal? Tentemos defini-lo, tendo em mente o citado poema de Hughes, que nos serve de guia.

O discurso marginal é aquela produção discursiva que se exerce nas franjas, ou nos limites, do discurso cultural dominante e que dele se serve, apropriando-se de seus recursos lingüísticos com todo o aparato simbólico e imagístico de que esse discurso dispõe enquanto produtor de significados. Simultaneamente, porém, o discurso marginal estabelece uma positividade antagônica ou refratária em relação ao discurso dominante de origem. Não é necessário que o "marginal" se oponha frontalmente ao "dominante", podendo inclusive estar ambos a serviço das mesmas causas. Como exemplo, o discurso abolicionista nas Américas, em suas diversas modalidades de funcionamento. O discurso abolicionista tanto foi parte do discurso dominante, uma vez que produzido por representantes das mais altas esferas do poder político (como Abraham Lincoln), quanto marginal, veiculado por indivíduos apartados dos centros decisórios diante do poder constituído (como Frederick Douglass ou John Brown). Os dois últimos nomes citados evidenciam que o discurso marginal não se define necessariamente por linhas raciais ou étnicas, muito embora a inserção de seus autores neste ou naquele grupo possa contribuir decisivamente para sua locação e direcionamento.

O discurso marginal de que tratamos, na verdade, apropria-se do discurso dominante não para desenvolvê-lo ou emulá-lo mas para questioná-lo e corrompê-lo, desvirtuando os seus recursos retóricos e a sua capacidade reguladora de conhecimento e mantenedora (ou corretora) da ordem. Inserindo-se em meio a falhas do tecido cultural, o discurso marginal ocupa suas lacunas para, a partir delas, construir novas positividades que desestabilizarão os sentidos consagrados, efetuando novas configurações e alterando, assim, a constelação discursiva em que se insere. O discurso marginal, insistimos, nunca parte do interior dos centros de poder e de saber que o excluem, nem tampouco de fora dessa cultura que, afinal e legitimamente, também reivindica como sua. É a partir das bordas culturais que ele se articula, e sua posição estratégica lhe permite o olhar de dentro e de fora, a apropriação dos estilos e dos sentidos canônicos e a incorporação de elementos culturais que daqueles sentidos subtraem a univocidade, na medida em que a sua escrita rasura e subverte a construção das narrativas da história oficial.

A ambigüidade caminha pari passu com o discurso marginal, cuja índole simultaneamente amalgadora e contundente é parte de sua estratégia de afirmação. Embora seus autores partam necessariamente dos paradigmas culturais contemporâneos, eles avançam uma reflexão desestabilizadora, que aponta para um cruzamento de fronteiras e para o questionamento das verdades consagradas:

...Nigger Christ
On the cross
Of the South.

Como tem se comportado especificamente tal discurso na trajetória cultural afro-americana, é o que discutiremos a seguir.

 

3 - DILEMAS, REALIZAÇÕES: CINCO FASES DIFERENCIADAS NA LITERATURA AFRO-AMERICANA

Em suas transformações através dos tempos, destacamos na literatura afro-americana cinco momentos, em modos sucessivos de funcionamento. São estes: reivindicação da própria humanidade, anseio de integração, afirmação de identidade, orgulho racial, autonomia intelectual. Ao tentar caracterizá-los, duas observações preliminares fazem-se necessárias.

Em primeiro lugar, ao termo "literatura" é aqui dado um sentido muito amplo, e que inclui o conjunto das manifestações afrodescendentes em poesia ou em prosa ficcional ou ensaística, assim como as numerosas e diversificadas imbricações entre formas escritas, mais ou menos eruditas, e o legado africano da oralidade. Em suma, todo o repertório cultural afro-americano tornado letra e voz. São também parte do panteão literário afro-americano as mesclas e conjugações entre a literatura e as outras artes (predominantemente a música, das slave songs e sorrow songs ao jazz moderno e ao moderníssimo reggae). Justamente o cruzar dessas fronteiras é que singulariza a literatura afro-americana, enquanto produção e prática cultural. [4]

Em segundo lugar, ao esboçarmos a caracterização de cada uma dessas etapas em suas feições dominantes, lembramos que, embora cronologicamente inseridas em contextos que as marcam ou definem, tais fases não se isolam ou destacam como departamentos estanques. Elementos de cada uma freqüentemente coexistem no interior de outras fases, em perene e dinâmica interação. Trata-se de um jogo que aponta predominâncias, não necessariamente exclusões. Passemos agora à sua explicitação, a partir de epígrafes que as iluminem desde o seu interior.

I - Reivindicação da própria humanidade

Remember, Christians, Negroes, black as Cain,
May be refined, and join th'angelic train
.
(Phillis Wheatley, On being brought from Africa to America, 1773.)

Naquele primeiro momento, quando a sua própria humanidade era ainda posta em questão, o negro, escravizado ou já liberto, buscava atestar a sua condição racional e capacidade intelectual através do domínio da leitura e da escrita. A palavra escrita, em todo o mundo ocidental, tornara-se símbolo de poder, além de instrumento de informação. Sua maestria, para o escravo, significava a possibilidade do acesso às informações, destas à liberdade, da liberdade à almejada cidadania - daí o papel eminentemente político e estratégico das primeiras manifestações literárias afro-americanas.

Já a partir do século XVIII despontara, vindo daquele Sul imerso na escravidão, a prosa memorialista de escravos fugidos. Crescentemente famosas durante o oitocentismo, as slave narratives foram de fundamental importância no decorrer da campanha abolicionista. De início transmitidas oralmente, essas narrativas gradualmente assumiram a forma escrita e atingiram o estatuto de grande literatura, por exemplo, em Narrative of the Life of Frederick Douglass, an American Slave, Written by Himself, em suas três versões sucessivas (1845, 1881 e 1892). Combinavam-se harmoniosamente, no livro de Douglass, o legado africano da oralidade e o domínio seguro da escrita em língua inglesa, configurando-se ali e em seus congêneres um veio cultural que se firmou e ainda hoje permanece, forte, no seio da literatura afro-americana: a autobiografia.

Também na poesia, a literatura afro-americana firmava-se enquanto documento escrito. Mais tímida (por necessidade) do que as slave narratives quanto a reivindicações sociais e políticas, a poesia mostrava-se, por outro lado, mais ambiciosa do ponto de vista estético. [5] No famoso exemplo de Phillis Wheatley, a requintada elaboração estética do verso reduplicava ainda os modelos europeus dominantes, como Pope e Dryden. Hoje, porém, questiona-se o papel basicamente imitativo da poesia de Wheatley: estudos críticos recentes têm considerado a sua produção poética sob outra luz, encontrando novas e inesperadas camadas de significação em que, obliquamente, despontam acerbos questionamentos das relações inter-raciais e da ordem social vigente.[6]

II - Anseio de integração

"You know, children, I don't read such small stuff as letters, I read men and nations."
Sojourner Truth, 1867.

A produção literária desse segundo momento, essencialmente combativa, veio à tona primordialmente no oitocentismo literário, associada ao apogeu do movimento abolicionista. Após a Guerra Civil, tal produção discursiva, ativa até as primeiras décadas de nosso século, buscou viabilizar e fortalecer a participação do negro na precária, fragílima cidadania adquirida com a abolição. A citação em epígrafe, de autoria da famosa abolicionista negra Sojourner Truth, foi extraída de um pronunciamento seu na campanha da American Equal Rights Association, visando a eliminação das categorias "white" e "male" nos regulamentos eleitorais do estado de Nova York. Observe-se a sutileza do discurso de Sojourner Truth, ao desmistificar a falsa erudição e o elevado conceito vigente das letras (.....such small stuff as letters), tão freqüentemente armas em prol de causas perversas, pondo em foco aquilo que necessitava verdadeiramente ser "lido" - "men and nations"... Mais ainda: mulher e negra, seu discurso afirma a sua plena condição de sujeito, capaz de discernir entre a "verdadeira" e a "falsa" leituras e de efetuar aquela que deveras importa. [7]

Não se abandonava, nesse momento, a perspectiva memorialista, mas esta mostrava-se mais fatual e menos fantasiosa, mais sóbria e menos disposta a alçar vôos de imaginação, calcada no cotidiano do ex-escravo e em reivindicações políticas mais diretas. É aqui imperativo fazer nova menção à carreira de homem público e aos escritos de Frederick Douglass, cuja longa vida (1817? - 1895), sempre engajada em fecundo ativismo, abarcou os dois momentos iniciais de que tratamos.

III - Afirmação de identidade

So I lie, whose fount of pride,
Dear distress, and joy allied,
Is my somber flesh and skin,
With the dark blood dammed within
(Countee Cullen, Heritage.)

Foi este o primeiro movimento cultural amplo no seio da comunidade afro-americana e correspondeu aos anos da Harlem Renaissance da década de 1920, em Nova York. Incorporando a seus anseios culturais as reivindicações dos dois momentos anteriores (direito à voz e anseio de integração), o grupo do Harlem - constituído por poetas, romancistas, ensaístas, teatrólogos, cientistas sociais, artistas, expoentes do jazz - inovou, ao recuperar em fecunda utilização estética o passado africano, até então visto como culturalmente desprezível. Observe-se nesse sentido que, até inícios do século XX, inexistia em geral no Ocidente qualquer concepção de uma estética africana - o que surgiria de início nas artes plásticas, a partir dos movimentos modernistas europeus e da "descoberta" européia da arte africana, como a escultura e as máscaras de Benin (lembremos a fase africana, na pintura de Picasso). Com a Harlem Renaissance no ambiente urbano novaiorquino, e logo depois a Négritude franco-caribenho-africana da década de 1930, estimulou-se crescentemente, também no âmbito da literatura, a valorização do legado cultural africano.

Nos Estados Unidos, a década de 20 foi um momento de afirmação otimista para alguns porta-vozes da população afro-descendente: The Negro is ready, assegurava enfaticamente Alain Locke em ensaio na famosa antologia por ele editada, The New Negro (1925), uma das obras nucleares da Harlem Renaissance... Ou seja, segundo tal perspectiva - imbuída, sem dúvida, de um certo wishful thinking - , o negro esperava sua oportunidade de participar, lado a lado e entre iguais, na sociedade de seus contemporâneos e compatriotas. A hora é esta, era a mensagem que sublinhava o apelo de Locke.

Questiona-se hoje o real alcance da Harlem Renaissance em relação à comunidade afro-americana do país, uma vez que o movimento circunscreveu-se ao ambiente boêmio, intelectualizado e cosmopolita da "Black Manhattan" - naqueles breves anos when Harlem was in vogue. [8] Na verdade, os negros norte-americanos, dentro e fora de Nova York, viviam então um dos períodos mais virulentos de segregação racial e discriminação de sua história - principalmente no Sul, onde ainda vigoravam, intactos, os códigos de leis racistas popularmente conhecidos como "Jim Crow".

 

IV - Orgulho racial

Few white people realize that many black people today dislike and avoid spending any more time than they must around white people. This "integration" image, as it is popularly interpreted, has millions of vain, self-exalted white people convinced that black people want to sleep in bed with them - and that's a lie!
The Autobiography of Malcom X, 1965.

A década de 60 presenciou o segundo grande movimento cultural entre os negros norte-americanos, conhecido como Black Power. Com suas palavras de ordem - Black is beautiful -, o Black Power foi um movimento radicalmente contestatório, priorizando em seu enfoque as questões político-sociais. Diferiu, assim, da Harlem Renaissance, que ainda se mostrara um tanto tímida e apologética, se não em seu vigor identitário, certamente em suas reivindicações de cidadania - força das circunstâncias extremamente repressivas, do ponto de vista racial, daquela primeira metade do século XX. Também em discordância com os seus predecessores, os ativistas do Black Power desdenhavam o antigo ideal de integração na sociedade abrangente, sintonizando-se agora com os movimentos em prol dos direitos civis em suas diversas modalidades (mulheres, homossexuais, minorias étnicas) e com as manifestações de protesto diante da política exterior norte-americana na Guerra do Vietnam, a qual se arrastaria até 1975.

O mundo wasp dominante, com seus valores judaico-cristãos mais invocados do que praticados, deixava de ser visto como ideal, nostalgicamente apreciado a uma ressentida distância, sendo encarado em avaliações críticas mais atiladas. Ademais, o negro agora voltava-se para si mesmo, via-se belo e partia para a afirmação orgulhosa de seus próprios parâmetros estéticos, culturais e existenciais, consciente de que apenas através do auto-conhecimento e da valorização de si próprio concretizaria as metas de realização pessoal e ascensão comunitária. Nota-se, durante este período, uma atitude ainda marcantemente separatista e essencialista em relação a definições e a delineações raciais.

V - Autonomia de expressão.

I am soft woman
I who open
As the dark wine grape
I who close, curl
As the shell of pearl
Into the tender shape.
Julia Fields, I, Woman (poema transcrito na íntegra).

Apesar da fragmentação dos movimentos sociais contemporâneos e da perpetuação da antiga sujeição escravista em uma cidadania de segunda classe, a segunda metade do século XX trouxe inegáveis avanços para a comunidade afro-descendente nos campos jurídico, social, econômico e intelectual. Assim, a literatura afro-americana neste final do século XX tem mostrado uma rica diversidade de manifestações. Tanto do ponto de vista da criação literária quanto em relação aos estudos teóricos (notadamente no campo da teoria literária), avulta entre os afro-descendentes a crescente consciência de um cânone próprio, a requisitar também modelos próprios de abordagem, desdobrando-se do passado longínquo e abrindo-se para o futuro. Especialmente a partir dos pioneiros da Harlem Renaissance, vem surgindo assim uma instigante produção literária que aborda muitas das questões expostas, com igual ansiedade, na produção literária dos cânones dominantes; e, como naqueles outros domínios, aqui também as divergências ideológicas, estéticas, existenciais e programáticas com freqüência superam as concordâncias.

A mencionada "autonomia de expressão" não significa um encerrar-se em si, muito pelo contrário. Nesta era de globalização, em que os meios de comunicação e os avanços tecnológicos alteram dramaticamente a cada dia os processos de transmissão do conhecimento e as próprias formas culturais, a literatura afro-americana passou forçosamente a trilhar novos caminhos e a buscar novas articulações. Desde as grandes realizações já no início de nosso século - o brilhante ensaísmo de W.E.B. Du Bois, em The Souls of Black Folk, data de 1903; a poesia e a ficção de Paul Laurence Dunbar foram produzidas até 1906, ano de sua morte prematura - os afro-americanos têm explorado todo o amplo espectro de seu legado cultural, notadamente a força da oralidade transmitida desde a África ancestral e a expressividade das camadas populares. Anteriormente confinadas no estreito domínio do folclórico e simplificadas sob a cobertura paternalista do exótico, as manifestações afro-descendentes (dentre as quais destaca-se a musical, em sua eletrizante pluralidade de tendências) têm sido um influxo poderoso a vitalizar a produção cultural afro-americana em sua conjugação com o veio anglo-saxão - justamente aquilo que lhe fornece singularidade e originalidade.

Atualmente, e em oposição às etapas anteriores, verifica-se a desconfiança diante de separatismos redutores e abordagens essencialistas de gênero, raça e nacionalidade em favor de perspectivas que enfatizam um legado cultural híbrido e compartilhado, a partir do cruzamento histórico de heranças étnicas. Em alguns dos momentos que rastreamos, a necessidade da afirmação essencialista de raça e de cor apresentou-se como necessidade de afirmação e estratégia de sobrevivência. Mas, mesmo então, a consciência das complexas imbricações históricas nos processos sociais, perpetuadas em resíduos e marcas indeléveis em todos os neles envolvidos, funcionou como um freio diante de reducionismos radicais e ativou concepções mais dinâmicas das forças sociais e culturais em pauta, presentes nas formações identitárias e nas práticas culturais.

A oscilação entre o ser e o não ser (vistos como co-cidadãos, aceitos como iguais, respeitados em seus direitos) é contingente à problemática específica dos afro-americanos, na sociedade abrangente do nosso século XX. A súmula de todos os momentos que rastreamos afirma-se nas realizações de uma literatura em que as questões da cidadania precária e da ambigüidade nas relações sociais destacam-se como material de reflexão e de elaboração estética. Assim, na pena dos autores afrodescendentes, a máscara é tanto estratégia de sobrevivência quanto símbolo privilegiado ("I wear the mask"); a noção da própria invisibilidade aos olhos dos outros torna-se emblemática do dilema racial (Nobody Knows My Name, Invisible Man); o paternalismo romântico é transmutado em arguta compreensão da cena racial e social (Uncle Tom's Children). Títulos ilusoriamente simples - Cane, Black Boy, Beloved - alternam-se a outros títulos que se derramam em puro lirismo - I Know Why the Caged Bird Sings, Their Eyes Were Watching God.[9]

Trabalhar entre a presença e a ausência, entre a voz e o silêncio; tatear ao longo de caminhos bordejados por fendas e lacunas - são experiências que se tecem e entrelaçam nos fios de histórias velhas e novas, de heranças sempre em mutação, de destinos em cruzamento e legados invadidos, acrescidos, transformados. Isto tudo, o discurso marginal da literatura afro-americana utiliza como matéria prima. Tal tem sido o seu território - inevitavelmente, e de eleição.

NOTAS

[1] - Ver, a respeito, The Origins of Totalitarism de Hannah Arendt - especialmente a segunda parte, Imperialism (New York, Harcourt, Brace and World, 1951). Sobre Cecil Rhodes, p.215.
[2] - Diz Foucault: Interrogo-me se não se poderia afirmar que Freud, Nietzsche e Marx, ao envolverem-nos numa interpretação que se vira sempre para si própria, não tenham constituído para nós e para os que nos rodeiam, espelhos que nos reflitam imagens cujas feridas inextinguíveis formam o nosso narcisismo de hoje. Nietzsche, Freud & Marx. S.P., Editora Princípio, 1987. p.17.
[3] - Langston Hughes, "Christ in Alabama" In: The Panther and the Lash: Poems of Our Times. Vintage Classics Edition, 1992. p.37.
[4] - É esclarecedor e sintomático que Du Bois tenha guarnecido com epígrafes duplas cada um dos 14 capítulos de sua obra prima, The Souls of Black Folk, harmonizando a cultura ocidental (fragmentos de poemas europeus ou norte-americanos) e a cultura afro-americana (trechos de sorrow songs), valorizando tanto a criação literária quanto a linguagem musical. Ele dessa forma sublinhou, e pôs em prática, a sua concepção de um saber cooperativo, plural em seu caráter multirracial e despido de hierarquizações.
[5] - O movimento abolicionista logo percebeu a função crucial que poderiam ter as slave narratives, e em muitos casos patrocinou e estimulou a sua escrita. Já a produção poética de escravos e libertos necessitava ser politicamente mais cautelosa, dadas as suas precárias condições de existência, o controle ideológico fora da proteção abolicionista e as dificuldades que cercavam a sua eventual publicação.
[6] - Ver "Philllis Wheatley and the Nature of the Negro", de Henry Louis Gates, Jr. In: Figures in Black: Words, Signs, And the `Racial' Self. Oxford University Press, 1987.
[7] - A citação de Sojourner Truth foi extraída de Black Women in Nineteenth-Century American Life. Loewenberg, Bert James & Bogin, Ruth. (eds). The Pennsylvania State University Press, 1985. p.239.
[8] - Black Manhattan é título do famoso livro de James Weldon Johnson, de 1930 - segundo Henry Louis Gates, the most sophisticated account of the history and development of Harlem both as a community and a complex American cultural sign. (N.Y., Da Capo Press, 1991).
When Harlem was in Vogue é título do livro sobre o mesmo tema, de David Levering Lewis (Oxford University Press, 1989). Ambos são referências indispensáveis em estudos sobre a Harlem Renaissance.
[9] - Destacamos, nesta criatividade que apontamos na literatura afro-americana moderna, a lucidez crítico/poética de Paul Laurence Dunbar ("We Wear the Mask") e de James Baldwin (Nobody Knows My Name: More Notes of a Native Son, 1961); o talento de romancista de Ralph Ellison (Invisible Man, 1952); o realismo agônico de Richard Wright (Uncle Tom's Children, 1938); a genial versatilidade de Jean Toomer (Cane, 1923); o experimentalismo romanesco de Toni Morrison, entre o gótico e o histórico (Beloved, 1987); a retomada do filão autobiográfico por parte de Richard Wright (Black Boy: A Record of Childhood and Youth, 1945) e Maya Angelou (I Know Why the Caged Bird Sings, 1970); finalmente, a exuberante celebração da linguagem e da vida, de Zora Neale Hurston (Their Eyes Were Watching God, 1937).


HELOISA TOLLER GOMES é doutora em letras pela PUC-RJ. Fez estudos complementares de doutoramento e de pós-doutoramento nos Estados Unidos (Howard University e Yale University, respectivamente). Nos últimos anos tem lecionado e pesquisado sobre questões ligadas a minorias populacionais. Como tradutora e ensaísta, seu último trabalho publicado é a edição crítica de As Almas da Gente Negra, de W.E.B. Du Bois (R.J., Lacerda/Nova Aguilar, 1999)


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