Heroísmo, política e teatralidade no Coriolano de Shakespeare

 
Roberto Ferreira da Rocha
UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro

Resumo

O foco deste artigo é o protagonista da tragédia de Shakespeare, Coriolano (1607-8). Seu tema principal é o status heróico do personagem e a sua performance enquanto homem político. As leituras mais tradicionais da peça tenderam, no entanto, a despolitizá-la. Este artigo procura, porém, ver o texto como uma profunda e mesmo revolucionária reflexão sobre a crise do herói individual e do heroísmo no início da idade moderna.

Abstract

The focus of this article is the protagonist of Shakespeare’s Coriolano (1607-8). Its main theme is the character’s heroic status and his performance as a political man. The traditional readings of the play show a tendency to ignore its political aspect. This paper sees the text both as a deep and revolutionary reflection on the crisis of the individual hero as well as on the heroism at the beginning of the modern age.


 

Andrea em voz alta — Infeliz da terra que não tem heróis!...
Galileu — Não. Infeliz da terra que precisa de heróis
.
Bertold Brecht, Vida de Galileu

 

Este artigo é basicamente sobre o protagonista da peça de Shakespeare, Coriolano, que data provavelmente de 1608. O foco principal deste trabalho é o status heróico do personagem e a sua performance enquanto homem político.

A fonte principal da peça é um capítulo das Vidas Paralelas, de Plutarco. Neste livro, o historiador helenista, que viveu no primeiro século de nossa era (42 -120 DC), narra as vidas de heróis gregos e romanos, a fim de, como o próprio título indica, estabelecer um paralelo entre eles. O livro de Plutarco foi traduzido para o inglês em 1579, por Sir Thomas North, com o título A vida de nobres gregos e romanos. Shakespeare já se inspirara em Plutarco para escrever Júlio César (1599). E, em 1605-8, retornaria a Plutarco para escrever suas três últimas tragédias, Timão de Atenas, Antônio e Cleópatra e Coriolano.

Segundo o crítico G. R. Hibbard, o interesse de Shakespeare por Plutarco estaria provavelmente ligado ao fato de o autor helenista unir em sua obra os talentos do historiador, do biógrafo e do moralista. De acordo com Hibbard, Plutarco é adepto do uso de detalhes minuciosos sobre o comportamento pessoal e de casos reveladores, a fim de iluminar a complexa psicologia do homem. Ainda segundo o crítico, são estes pequenos toques que transformam seus heróis em seres humanos individuais. Seria, sem dúvida, esta humanidade dos heróis de Plutarco que interessou Shakespeare. Mas haveria ainda outras razões para que a escolha recaísse justamente sobre Coriolano? A resposta a esta pergunta, me parece, não pode residir apenas no estudo das fontes literárias da peça. Pelo contrário, a história de Coriolano talvez tenha interessado ao dramaturgo pelos paralelos que ela lhe permitia fazer entre o momento histórico em que vive o personagem, isto é, os primeiros anos da república romana, momento em que se solidifica o regime do tribunato, e os acontecimentos políticos-culturais que agitam a Inglaterra no período em que Shakespeare escreve sua peça, qual seja, o reinado de James I, também conhecido como período jacobino.

No capítulo que dedica a Coriolano, de seu livro Shakespeare and the popular voice, Annabel Patterson afirma que:

Assim como Henrique V tratou ( no texto do Fólio) da crise da autoridade política no final do reinado de Elizabeth I, Coriolano parece claramente referir-se a um outro estágio da crise que se torna patente aos olhos da população com o levante de Midland em 1607, que envolvia grandes questões concernentes à distribuição do poder dentro do estado e aos recursos da nação. Aqui também, como fora o caso de Elizabeth I que se auto-definia como um outro Ricardo II, existe o testemunho da analogia por fonte oficial: diversas vezes entre 1605 e 1606, James referiu-se aos líderes dos comuns como tribunos do povo ( Patterson ,1989:123).

A similaridade que Shakespeare encontra entre a história de Coriolano e sua própria época é o fato de que enquanto que na Inglaterra do início do século XVI, James I se sente ameaçado pela ascensão da câmara dos comuns no Parlamento, na Roma shakespeareana de Coriolano, patrícios (o equivalente aos nobres ingleses) e tribunos ( os "comuns") também se confrontam.

No início da peça, da mesma forma que na Inglaterra de 1607, há escassez de grãos para o povo romano, ocasionando fome e miséria. A ação se inicia com a revolta da população romana que exige a distribuição do trigo. É neste momento que o herói é citado pela primeira vez.

2o Cid. Pretende agir especialmente contra Caio Márcio?
Todos. Primeiro contra ele. Para o povo ele é um cão feroz.
2o Cid. Levaram em conta os serviços que ele prestou ao país?
1o Cid. Levamos; e ficaria satisfeito em dar-lhe boa nova por isso, se ele não pagasse a
si mesmo com seu orgulho.

2o Cid. Não, não fale com malícia.
1o Cid. Pois eu lhe digo que tudo o que ele fez de bom foi só para esse fim. Embora os que não pensam possam contentar-se em dizer que tudo foi pela pátria, ele fez tudo para dar satisfação à mãe e, em parte, por seu orgulho, que ainda é maior do que suas virtudes. ( 1, 1)

Caio Márcio, o futuro Coriolano, aparece aqui referido de forma extremamente negativa. Seu heroísmo é visto pelo povo como uma maneira de auto afirmar seu orgulho. Realmente, em sua primeira aparição em cena, o herói mostra toda a sua arrogância e seu desprezo pelo povo.

Quem for gentil com vocês só bajula
O que há de vil. O que querem, cachorros,
Que não amam paz nem guerra? Uma assusta,
Outra os leva a gabar-se. Quem espera
Que se afirmem leões, encontra lebres;
Raposas, gansos. São tão firmes, todos,
Quanto a brasa no gelo, ou o granizo
Que fica ao sol. (...)
O que tem mérito
Ganha seu ódio; as suas preferências
São fome de doente, que só tem desejos
Pelo que faz mal. (...)
Sentados junto ao fogo ousam saber
Que faz o Capitólio(...) ( 1, 1)

Nesta primeira fala já se encontram os ataques recorrentes de Coriolano contra o povo. Em primeiro lugar, sua covardia; em segundo, a falta de firmeza em suas posições; e, finalmente, a pretensão em querer fazer ouvir suas reivindicações pelo Estado.

Coriolano vê no povo a antítese perfeita dos ideais heróicos por ele cultivados: a honorabilidade pessoal, a força e a destreza guerreira e o heroísmo ligado à força moral. Coriolano vive para a conquista da honra guerreira como um fim em si mesma. Ele foi educado para se tornar uma verdadeira máquina de guerra. A seguinte fala de Volúmnia, mãe de Coriolano, deixa claro este ponto.

Se meu filho fosse meu marido eu acharia mais fácil alegrar-me com a ausência que lhe trouxesse honra do que nos braços de seu leito, onde ele mais amor demonstraria. Quando ele ainda tinha o corpo delicado e era o único filho de meu ventre; quando a juventude com sua beleza atraía para ele todos os olhares; quando nem todo um dia de rogos de um rei venderia qualquer mãe uma hora de distância de seu desvelo; eu, levando em consideração como a honra seria desejada para uma tal pessoa (...) tive prazer em deixá-lo buscar perigo onde era provável que encontrasse fama. (1, 3)

Tem razão, portanto, Wilson Knight em sugerir que a única paixão de Coriolano é a conquista da honra pessoal através de atos guerreiros. Diz o crítico: sua nobreza guerreira (his war’s nobility) é sempre algo violento, sangrento, cruel, feito às expensas do sofrimento alheio. (Knight, 1931:171). As palavras do crítico são confirmadas por esta fala de Volúmnia:

diante dele vem o clamor, atrás dele deixa lágrimas.
O espírito da morte por seu braço corre
E quando este se estende ou se abate, alguém morre. (2,1)

Será, portanto, com a conquista espetacular de Corioli na luta contra os vólcios e, consequentemente, ao receber o agnome ( termo latino que designa o nome extra recebido pelo autor de uma façanha notável) de Coriolano que Caio Márcio atingirá o ápice de sua carreira como herói guerreiro. O general Caio Márcio Coriolano é popular entre os soldados. Seu ato temerário de bravura ao entrar sozinho em Corioli e tomar a cidade, os enche de entusiasmo. As cenas da guerra contra os vólcios são um espetáculo de bravura, tendo Coriolano como protagonista absoluto. Ele é varias vezes levantado pelos soldados, que gritam o seu nome. Os feitos de Coriolano lhe granjeiam as honras dos senadores e patrícios romanos. Prefigurando, a volta triunfal de Coriolano à Roma , diz o general Romano, Comínio, leal companheiro de Coriolano no campo de batalha

Se eu te contasse tuas ações hoje
Não as crerias; mas hei de narrá-las
A senadores que hão de rir com lágrimas,
A patrícios atônitos que, ao fim,
Hão de aplaudi-lo; as damas, assustadas,
Que alegres te ouvirão; tribunos densos
Que com essa plebe odeiam tuas glórias,
No fundo irão dizer "Graças aos deuses
Roma tem tal soldado." (1,9)

De fato, na Roma do início do 5o AC, como diz Plutarco em sua "Vida de Coriolano", (traduzo da versão inglesa de North)

a coragem era honrada acima de todas as outras virtudes, a qual chamavam Virtus, pelo nome da própria virtude, como que incluindo no nome geral, todas as outras virtudes. De modo que Virtus em Latim era o mesmo que coragem (valentia).

Caio Marcio seria então a encarnação mais perfeita desta virtude romana. No entanto, no universo da peça, este valor supremo, típico das classes aristocráticas não é mais universalmente aceito.

Para o povo romano, a guerra, como diz Michael D. Bristol, possui um valor instrumental e puramente temporário. Para eles, diz o crítico, a guerra não pode ser a metáfora suprema da vida social, mas sim a subsistência, a constelação do processo homeostático de produção, reprodução e renovação representadas pelas imagens de um organismo vivo (Bristol, 1987:211). O povo romano percebe claramente que a "virtude" principal de Coriolano não está a serviço da sociedade como um todo. Por isso se enganam os patrícios em pensar que tal entusiasmo será plenamente compartilhado pelos tribunos, representantes do povo.

Menênio Diz o encarregado dos augúrios que teremos novas esta noite.
Brutus Boas ou más?
Menênio Não de acordo com as orações do povo, pois este não nutre
amor por Márcio.
Sicínio A natureza ensina os animais a conhecer seus amigos.
Menênio Diga-me, a quem o lobo ama?
Sicínio Ao cordeiro.
Menênio Sim, para devorá-lo, como os plebeus famintos gostariam de
fazer ao nobre Márcio.
Brutus Um carneirinho que bale como um urso.
Menênio Ele é mesmo um urso que vive como um carneiro. (2,1)

Para além do seu humor, a passagem prefigura o que irá se seguir.

O entusiasmo pelos feitos de Coriolano não é universal. Os tribunos vêem em sua popularidade um perigo para eles.

Sicínio Logo, logo,
O vejo cônsul.
Brutus Nossa autoridade,
Com ele no poder irá dormir.
Sicínio Falta-lhe calma pra transpor as honras
De onde nascem para os fins devidos,
E irá perdê-las.
Brutus Que bom.
Sicínio Não duvides
Que o povo a quem representamos,
Com seus antigos rancores esquecerão
na primeira oportunidade as novas honrarias,
a qual, não duvido, será dada por ele
por ser muito orgulhoso. (2,1)

Com a volta de Coriolano, os senadores romanos lhe oferecem o cargo de cônsul. No entanto, segundo os costumes da república romana, o candidato a este cargo deve pedir, com humildade, ao povo que lhe dê seus votos. E é este novo papel que Coriolano é incapaz de representa e ele reluta em aceitá-lo.

Se, para Coriolano, seus efeitos heróicos têm um fim em si. Para os outros membros de sua classe, tais feitos podem e devem ser capitalizados polticamente. As feridas que recebe na guerra são o trunfo maior que ele possui para conseguir votos, pois é pelos feitos heróicos que se conquista o poder político. Menênio, o senador e maior defensor de Coriolano frente a seus inimigos, e Volúnmia sabem disso muito bem.

Menênio Aonde ele foi ferido?
Volúmnia No ombro e no braço esquerdo: haverá grandes cicatrizes
para mostrar ao povo quando se apresentar para a eleição. (2,1)

O papel que Coriolano é obrigado a encarnar para conseguir o posto de cônsul vai de encontro a suas convicções. O papel de bajulador lhe é intolerável. Mas esta intolerância está montada sobre a convicção, por parte de Coriolano, de que qualquer tipo de acordo ou decisão política que dependa do apoio do povo só pode levar ao caos social e a desordem.

E aqui repito:
Se os agradarmos , só alimentamos
Contra o senado um joio de rebeldes,
Sedição, insolência, que nós mesmos
Plantamos e espalhamos aos mesclarmos
Conosco quem não tem virtude ou força
Senão as que ganharam por esmola. (3,1)

A ética guerreira e heróica assumida por ele não tolera nenhum rebaixamento ou profanação. É uma ética profundamente aristocrática. Mesmo as trompas que assinalam sua ascensão heróica, não devem ser misturadas aos embates cotidianos.

Que jamais essas trompas profanadas
Possam soar! Quando elas e os tambores
No campo possam ser bajuladores,
Que o falso mande na cidade e corte!
Quando o aço for seda de corruptos,
Que estes recebem tais louvores! Basta! (1,9)

Incitado por Menênio e os outros senadores, pelos generais romanos Comínio e Lárcio, e, finalmente, pela própria mãe, ele concorda em se apresentar em praça pública para pedir os votos do povc, porém a contragosto.

É um papel
Que eu coro em desempenhar, e podia
Ser tirado do povo. (2,2)

O povo, a princípio, lhe concede os votos. O que não constitui, na verdade nenhuma honra para o próprio Coriolano.

Que votos doces!

Melhor morrer, definhar de fome
Que mendigar a paga que merecemos.
Por que ficar aqui em toga de lob
A implorar de um João Ninguém
Seu voto dispensável (2,3 )

Porém, sob a influência, dos seus tribunos Sicínio e Brutus, o povo retira os votos. Coriolano se enfurece e acusa os tribunos de terem planejado tudo.

Isso é conluio e tem como propósito
Cercear a vontade da nobreza
Aceitá-lo é viver com quem não sabe
Nem governar, nem ser governado. (3,1)

A discussão se acirra. A questão da distribuição do trigo é novamente levantada pelo próprio Coriolano, que finalmente sugere a dissolução do tribunato pelo senado. Ou seja, ele propõem um golpe de estado.

E eu imploro -
Aos de menos temor e mais critério
Que amam a parte básica do estado
Mais que mudanças duvidosas; e acha
Melhor a vida nobre do que a longa
Preferindo remédios perigosos
À morte certa - arranquem fora agora
Essa múltipla língua: não a deixem
Lambê-los com veneno. Sua desonra
Macula o julgamento e priva o estado
Da integridade que lhe é devida,
Não podendo fazer o bem que deve
Se o mal o controlar. (3,1)

Os tribunos acusam Coriolano de traidor. O clima esquenta. O povo entra em cena e reafirma a retirada de seus votos. Coriolano, no auge da fúria, puxa a espada contra os tribunos . Sicínio e Brutos, então pedem, a morte para Coriolano por alta traição. Finalmente, Menênio consegue que Coriolano se retire para sua casa.

Para Coriolano, o pior é que, ao pedir os votos ao povo, ele sente sua identidade heróica profanada. A sua verdade enquanto indivíduo é ameaçada. Para ele, o papel que é obrigado a representar, coloca sob ameaça o seu próprio ser. Como diz Alexander Legatt em seu livro O drama político de Shakespeare:

A versatilidade do ator, um pesadelo para Ricardo II [protagonista do drama histórico A tragédia do rei Ricardo II] e uma oportunidade para Hal [personagem de Henrique IV], torna-se para Coriolano diferentes tipos de degradação. Ele se imagina perdendo sua posição social, sua força física, e sua identidade sexual.(Legatt, 1989:194)

De fato, ao ser praticamente obrigado a dirigir-se pela segunda vez ao mercado para pedir perdão ao povo por seus ataques enraivecidos, Coriolano não pode deixar de exclamar.

Adeus meus sentimentos. Que o espírito
De uma puta me tenha! A minha voz
Guerreira, que rufava, vire flauta
Fina de eunuco(...)
Risos de crápula
Acampem no meu rosto (...)
Língua de mendigo
Me mexa os lábios! Joelhos armados,
Que só dobravam pra montar, imitem
Quem recebeu esmola! Eu não posso,
Senão deixo de honrar minha verdade
E com meu corpo ensino à minha mente
A ser pra sempre vil. (3,2)

O profundo desprezo que Coriolano devota ao povo será outra importante razão de seu fracasso em assumir o papel político que lhe é designado. Em sua segunda ida ao mercado, ele novamente se enfurece, e acaba por ser banido de Roma, acusado de traição.

O orgulho e a intemperença de Coriolano o faz perder em pouco tempo tudo o que conquistara e no final da peça, o seu rancor o faz cometer o ato político mais indigno para um herói nacional, aliar-se ao inimigo. Talvez a seguinte fala de Aufídios, seu antogonista, nos dê a chave do fracasso de Coriolano como político e, também, como herói.

As nossas virtudes
Estão na interpretação que lhes dão os homens,
E o poder, cujo valor advém de si mesmo,
Não tem melhor monumento do que a tribuna
De onde grita seus feitos.
Fogo expulsa fogo, um prego o outro:
Direitos a direitos cedem, a força uma outra mingua. (4,7)

É interessante notar que esta fala de Aufídius é quase um eco de um trecho do Capítulo Nono da Terceira Parte dos Comentários sobre a Primeira Década de Tito Lívio, de Machiavel. Diz o pensador Florentino que a causa da boa sorte dos homens é a conformidade com os tempos que vivem. E, mais adiante,

as repúblicas possuem mais germe de vida, e têm sorte mais duradoura do que as monarquias; elas podem mais facilmente acomodar-se à variedade das circunstâncias do que um monarca absoluto, dada a diversidade de cidadãos que as compõem. O homem acostumado a agir de um modo só nunca muda, conforme já observei; se o tempo obrigar a alterações de conduta contrárias a seus hábitos, perecerá. (Machiavel, 1982:336)

Este desprezo pelo povo como símbolo de nobreza, que é a marca registrada de Coriolano, leva -nos a pensar numa outra referência de Shakespeare ao seu próprio tempo. Não teria ele em mente, ao criar seu herói, personagens típicos de sua época tais como o descrito por G. H. Hibbard:

A Inglaterra de Shakespeare possuía várias figuras públicas que tinham vários traços em comum com o tempestuoso e atrevido soldado Romano. Sir Walter Raleigh, para tomarmos apenas um exemplo, fora para guerra na França coma idade de quatorze anos. Sua rápida ascensão ao poder e às altas rodas de influência lhe granjearam vários inimigos. Baladas populares, acusando-o de extorsão e desprezo pelos pobres, circulavam em Londres por volta de 1601, e quando Aubrey o descreveu como ‘terrivelmente orgulhoso’, estava apenas repetindo um queixa comum (Hibbard, 1967:10).

Tal hipótese nos parece bastante provável. Tais figuras, no entanto, parecem ser o sintoma de uma situação política que procuramos esboçar no início dessa comunicação, qual seja a crise de legitimidade por que passava o estado monárquico inglês. Tal crise já bastante forte no final do reinado de Elizabeth, se acentua com a ascensão de James I e desembocará, fatalmente, na Revolução Gloriosa de 1642.

Útil a Roma, enquanto consegue vencer os inimigos da cidade, Coriolano não consegue, no entanto, viver o papel político que sua posição na sociedade exige dele. Ele diz que luta por sua pátria, mas seus atos heróicos só servem para reforçar seu orgulho. Ele terminará por trair Roma e seus próprios ideais de herói ao unir-se aos vólcios em busca de vingança pessoal. Coriolano é um herói que se auto-destrói. Ele não é amado pelo povo por despreza-lo. E colocando sua pessoa acima dos interesses de sua própria classe, ele transforma-se em um homem sem lugar do mundo.

Em Coriolano, como em outras peças, Shakespeare aponta para as contradições inerentes ao corpo social. Shakespeare escreve no momento político em que já é possível verbalizar o fato de que toda sociedade abriga em si uma série de disenções e conflitos. Ao mesmo tempo em que há a necessidade, sentida principalmente pela classe dominante, de uma harmonização, o texto shakespeareano aponta a necessidade premente de ideologias que mantenham estável a estrutura social.

Para concluir, diríamos que Coriolano é um herói de um momento em que não se precisa mais de heróis, mas de políticos capazes de enfrentar as contradições de um momento histórico conturbado. Por não possui em si a idéia de pertencer a um corpo social, ele é levado à ruína. Sua tragédia está no fato dele não conseguir viver o papel que sua classe espera que represente. Esta sua incapacidade o condena ao exílio e, finalmente, à morte. O clamor pela ordem e o medo da desordem que representam os clamores da classe dominante estão presentes de forma tão recorrente na obra de Shakespeare porque estavam presentes no universo social e político onde esta peças eram produzidas. A legitimidade de Elizabete era contestável. As dissidências entre a classe dominante, uma constante. Havia sempre a possibilidade da revolta das massas. A desordem do mundo estava na ordem do dia. Heróis não existem mais para dar a esse mundo uma diretriz. Seu poder é parcial. Seu heroísmo não é uma forma de defender a sociedade como um todo. É mera demonstração de orgulho e vaidade. Suas ações não conseguem dar as respostas que a sociedade precisa e anseia.

As leituras mais tradicionais da peça tendem a despolitiza-la. Os críticos, a princípio, consideraram como o conflito principal da peça o que existe entre o orgulho e destemperança anti-natural do protagonista e a força conciliadora do Amor, escrito em maiúscula, como para significar ser este o valor supremo dentro da visão de mundo expressa por Shakespeare nesta sua última tragédia. Em suma, Coriolano foi durante muito tempo visto como um grande herói que é quase destruído por um orgulho sobre-humano e anti-natural, mas que tem sua alma salva pelo poder mais alto do Amor. Isso, me parece, pode ser em parte verdade. A cena, porém, que apontada como o momento de sua redenção é aquela em que ele, aliado aos inimigos dos romanos , os Vólcios, está prestes a invadir a cidade para destruí-la, surdo aos clamores de seus antigos amigos, recebe a visita de sua mãe, esposa e filho. E Volúmnia consegue dissuadi-lo. E Coriolano parte só para enfrentar seu destino. Críticos como A. C. Bradley e Wilson Knight vêem Volúmnia, nesta cena, como o símbolo da piedade e do amor materno. Porém, me parece que, ao ter conseguido salvar Roma, ela volta as costas ao filho e o abandona à própria sorte.

O que as leituras mais recentes da peça procuram enfatizar, no entanto, é a natureza política do texto, tentando revelar as sutis ligações da peça com os levantes populares que agitaram a Inglaterra Jacobina e toda uma discussão política que nasce da leitura de textos de autores clássicos e de comentaristas contemporâneos de Shakespeare sobre a República romana. Coriolano é visto, desta forma, como um texto engajado dentro da perspectiva cultural da época em que foi escrito. Como esclarece, Annabel Patterson,

Em Coriolano, pela primeira vez, o público de Shakespeare é convidado a contemplar um sistema político alternativo; e, mais significante ainda, a experimentar uma ação dramática totalmente devotada a estas questões: quem deve falar pelo povo; que poder os comuns devem ter no sistema; em que medida é o poder do povo compatível com a segurança nacional? (Patterson, 1989:127)

Coriolano não pode mais apenas ser visto como um herói em busca de redenção para seu orgulho desumano, mas, acima de tudo, como o representante principal e defensor, até certo ponto, da classe dominante dentro da sociedade representada na peça. A nosso ver, o móvel da tragédia de Coriolano não são apenas seu orgulho excessivo e sua destemperança, mas, e principalmente, sua incapacidade em viver o papel político que lhe é reservado. As causas principais da catástrofe trágica não se encontram apenas nas características psicológicas individuais do protagonista, mas no conflito entre uma visão específica do herói e seus atributos e uma nova ordem política que os torna, de certa forma, inatuais. Coriolano, o herói, pertence a uma antiga ordem de poder na qual os valores guerreiros predominam dentro de um quadro fundamentalmente hierárquico, mas o cidadão Coriolano vive num universo em que esta hierarquia é contestada e as vozes populares, como diz Annabel Patterson, começam a ser ouvidas.

Para Coriolano, o povo é apenas a ralé. Ele não deveria participar das decisões políticas. Seu envolvimento nelas, para ele, é a causa principal de possíveis revoltas, sedições e do caos social. Sua morte é, portanto, necessária para que a sociedade romana possa construir as bases institucionais para o pacto republicano. Coriolano é a vítima do sacrifício que instaura uma nova ordem. Parafraseando a famosa fala do Galileu de Bertold Brecht, poderíamos lamentar o herói que não encontra nenhum país que precise dele realmente. Tanto é assim que, ao final, todos lhe darão as costas, seu país, sua classe e até sua família.

 

Bibliografia

BRISTOL, Michael D. " Lenten butchery: legitimation crisis in Coriolanus" in : HOWARD, Jean E. and O’CONNOR, Marion F., eds. Shakespeare Reproduced: the Text in History and Ideology. New York and London: Methuen, 1987.

HIBBARD, G. R. "Introduction" in SHAKESPEARE, William. Coriolanus. G. R. Hibbard (editor). London: Penguin Books, 1967.

LEGGATT, Alexander. Shakespeare’s Political Drama: the History Plays and the Roman Plays. London & New York: Routledge, 1994.

MACHIAVEL, Nicolo. Comentário sobre a primeira década de Tito Lívio. Trad. de Sergio Bath. Brasília, Universidade de Brasília, 1979. 2a edição, revistas, 1982.

PATTERSON, Annabel. " ‘Speak, speak!’ The Popular Voice and the Jacobean State" in Shakespeare and the Popular Voice. Cambridge: Basil and Blackwell, 1989.

SHAKESPEARE, William. Coriolano. Tradução de Barbara Heliodora. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.

WILSON KNIGHT, G. The Imperial Theme: Further Interpretations of Shakespeare’s Tragedies Including the Roman Plays. London: Methuen & CO. , 1972. (First Edition, 1931).


Roberto Ferreira da Rocha é Professor Assistente (Lecturer) de Literaturas de Língua Inglesa do Departamento de Letras Anglo-Germânicas da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); doutorando do Programa de Pós-Graduação em Inglês do Departamento de Línguas e Literaturas Estrangeiras da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)., onde desenvolve pesquisa sobre a orientação do Professor Doutor José Roberto O’Shea. Membro do Centro de Estudos Shakespeareanos e do GT de Estudos Shakespeareanos da Anpoll. Tem trabalhos sobre literatura pós-colonial em língua inglesa e teoria intercultural do teatro.


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