SOMBRAS
DA ESCURIDÃO NA IDADE DO ILUMINISMO
RESUMO
Frankenstein se passa na Idade da
Razão. A narrativa registra as ansiedades do período,
ou seja, as revoluções social e industrial na França
e na Grã-Bretanha. Nesses tempos conflitantes surge uma nova
ordem, em que a burguesia assume controle da sociedade, reorganizando
as esferas sociais e políticas. O homem torna-se responsável
pela refeitura do mundo: uma re-criação que emerge
do caos.
Durante os primeiros anos da Revolução Francesa o
romance gótico floresce na Inglaterra. Paralelo a esse gênero,
outros livros e panfletos transbordam as prateleiras, discutindo
os efeitos políticos dos tempos de mudanças. Nesse
entrelaçamento entre o gótico literário e o
discurso político emerge Frankenstein.
ABSTRACT
Frankenstein is set in the
Age of Enlightenment and it registers the anxieties of the period,
namely, the social and industrial revolutions in France and in Britain.
In that conflicting time a new order emerges, where the bourgeoisie
assume control of society, reorganizing social and political spheres.
Man becomes responsible for the re-making of a world: a re-creation
out of chaos. It was during the first years of the French Revolution
that the Gothic novels flourished in England. Parallel to that genre,
books and pamphlets poured all over England, discussing the political
effects of a time of change.
In this overlapping of the literary gothic and the political discourse,
Mary Shelley creates her Frankenstein. It emerges as a narrative that
shows the power of imagination and feelings in a true dialogue against
the tyranny of reason alone, or better, the author proves how the
artistic womb of the imagination can create into the real world of
reason.
Mary Shelley (1792-1851) imaginara uma
estória que falasse aos medos recônditos da nossa natureza
e que despertasse horror. Uma estória que levasse o leitor a temer
olhar a sua volta, a acelerar as batidas do coração e a
ter o sangue congelado. Assim, a autora inventa, em Frankenstein,
uma narrativa que nasce do caos em vez do vazio.
Parece-me difícil que o leitor do nosso tempo sinta algum temor
na leitura de Frankenstein, acostumado aos horrores sociais vividos
a cada esquina. Assim, a narrativa gótica de Frankenstein
incita, hoje, mais ao questionamento do que ao medo.
O romance de Shelley se passa na Idade da Razão. A narrativa registra
as ansiedades do período, ou seja, as revoluções
social e industrial na França e na Grã-Bretanha.
Durante os primeiros anos da Revolução Francesa o romance
gótico floresce na Inglaterra. Paralelo a esse gênero, outros
livros e panfletos transbordam as prateleiras, instigados pela polêmica
obra de Edmund Burke: Refections on the Revolution in France (1790).
De acordo com Burke muita proteção foi dada ao espírito
de inovação, o qual, logo, voltou-se contra aqueles que
o encorajaram, levando-os à ruína (Burke, 1986:237).
Tom Paine, em Rights of Man, responde a Burke, sugerindo que é
exatamente por se exaltar alguns homens de forma distorcida que outros
são distorcidamente desonrados (Paine, 1969:81).
Ao contrário de Paine, que vê a raiz de todo o mal na aristrocacia
e na Constituição Francesa - que, segundo ele, destruíram
a lei da primogenitura e lá está o monstro (Paine,
1969:104)-, Mary Wollstonecraft atribui a origem da monstruosidade à
sofisticada corte francesa, onde o brilho celestial é obscurecido
e o homem aparece ou como um monstro repugnante, uma besta devoradora,
ou como um réptil desalmado, sem dignidade ou humanidade (Apud,
Baldick, 1996:21).
Nesse entrelaçamento entre o gótico literário e o
discurso político emerge Frankenstein, num momento em que
a promessa social da Revolução Francesa mostrava aos escritores
da primeira fase do Período Romântico que eles viviam tempos
de mudanças.
Para M. H. Abrams muitos escritores do período viam o ser humano
dotado de aspirações ilimitadas ao bem infinito, pressentidas
pela faculdade da imaginação (Abrams, 1993:127-9). A
ênfase na imaginação e sentimento não posiciona,
necessariamente, os escritores da assim chamada "Idade da Sensibilidade"
contra o racionalismo do Iluminismo.
Jean-Jacques Rousseau se insurge contra o racionalismo imoderado. Ele
sustenta a idéia de que os seres humanos são governados
por um princípio de autopreservação, assim como de
revulsão, ao verem os seus semelhantes morrer ou sofrer. Dessa
forma, para Rousseau, a razão não é o princípio
que move o homem, mas a liberdade, a que o estado social avilta.
Segundo Peter Gay, Rousseau não
é uma figura representativa do Iluminismo. Entretanto, Gay admite
que ele
impulsionou os homens na direção
em que o Iluminismo, como um todo, queria que a humanidade fosse [...]
ele cumpriu a tarefa do Iluminismo, deu-lhe substância, mais
que qualquer outro filósofo, para a ainda jovem e sempre precária
ciência da liberdade (Gay, 1973, II:552).
Peter Gay conclui que, embora a análise
racional fosse um princípio cardinal de grande parte do pensamento
iluminista, ela não promoveu a exclusão completa do sentimento.
Dessa forma, acredito que o Iluminismo possa ser caracterizado em termos
do seu questionamento a autoridades, modelos e instituições
tradicionais.
Nesses tempos conflitantes surge uma nova ordem, em que a burguesia assume
controle da sociedade, reorganizando as esferas sociais e políticas.
O homem torna-se responsável pela refeitura do mundo: uma re-criação
que emerge do caos.
Frankenstein aparece como uma
narrativa que mostra o poder da imaginação e do sentimento
contra a tirânia da razão. A imaginação pode
ser vista, aqui, como um processo transgressor de manifestação
do real. Em Frankenstein vê-se revolução e
reação, a ascensão e a queda de um processo único,
a dinâmica da criação gótica.
No gótico tanto o passado quanto o presente são essencialmente
relacionados. Ao resuscitar o morto, chamando para a vida um passado idealizado,
o gótico tenta erradicar as rupturas das mudanças rápidas
e preservar a continuidade (Kilgour, 1995:29).
Embora Mary Shelley tenha escrito o romance entre amigos, o prefácio
foi escrito numa época em que estava só: uma autora solitária.
O prefácio sucede a estória, e ainda assim, paradoxalmente,
é uma antecipação da solidão que Victor Frankenstein
experimentará no ato da criação, assim como os outros
narradores também a viverão. Isolamento e solidão,
passado e presente, são imagens recorrentes em Frankenstein.
Victor e Walton experienciam algo semelhante à sua criadora, no
sentido de que o passado sentimental de uma comunidade compartilhada é
estabelecido contra a presença gótica do isolamento.
Em Shelley, concentrar-se no passado funciona como tranqüilizador
para uma sociedade perturbada por tempos de turbulência política
e momentos inseguros na história.
Em Frankenstein a narrativa se abre de forma epistolar. Robert
Walton escreve cartas para a irmã, Margaret. A mensagem recorrente
nas suas cartas é a falta de amigos, o que de certo modo o impele
a comunicar-se com a irmã. Pensamentos podem ser transpostos no
papel, mas esse é um meio precário para a comunicação
dos sentimentos (Shelley, 1994:17). Walton buscava, desesperadamente,
a companhia de um homem, um amigo, um Ancient Mariner. Seu desejo
é um presságio do que virá, isto é, o encontro
com Victor Frankenstein. As cartas servem de moldura narrativa simbólica
da busca do conhecimento. O `conhecimento' que busca a própria
escuridão escondida na alma humana, essa região desconhecida.
O conhecimento que ele vai adquirir na voyage of discovery, em
direção ao Pólo Norte.
A forma epistolar é substituída por um manuscrito registrado
durante a noite, a transcrição de uma história contada
durante o dia por Victor.
Victor Frankenstein narra sua própria história, trazendo
o passado para o presente. Ele recorda a infância, que está
vinculada a um modelo ideal familiar em que os seus pais são agentes
criadores de todos os muitos prazeres que ele tivera (Shelley,1994:36).
Tempos de doces lembranças do território não corrompido
e sagrado do lar, espaço onde
Sinto raro prazer em reviver as recordações
da infância, antes que as desgraças que manchassem minha
mente, transformando suas luminosas visões de grande valia
em reflexões cinzentas e acanhadas sobre o ser. [...]. Também
recordo-me daqueles eventos que conduziram [...] à minha triste
narrativa, pois quando me dou conta do nascimento daquela paixão
que, depois, governara o meu destino, concluo que ela se origina de
fontes ignóbeis e quase esquecidas, [...], que no seu percurso
varreu todas as minhas esperanças e prazeres (Shelley,
1994:37)
A infância de Victor é tanto
marcada como um período em que a corrupção ainda
não havia invadido o seu espaço, quanto como um período
em que aparecem as primeiras perturbações da alma, as quais,
como em Hamlet, buscam os segredos do céu e da terra.
Ao contrário de Fausto, que é
levado à maldição depois de ser seduzido por Mefistópheles,
Victor Frankenstein é o seu próprio demônio tentador.
Aparentemente, a intenção de Victor é puramente social:
ser útil à humanidade, eliminando doenças. Não
tem o objetivo de desafiar e nem de tornar-se Deus. Ainda assim, torna-se
um Criador; para o monstro ele é o seu Deus: Juro, pela terra
que habito e por ti que me fizeste, [...] jamais amaldiçoarei o
meu criador (Shelley, 1994:142).
O pai do monstro é uma figura opressora que nega à sua criação
o direito de ser e, mais do que isso, o direito de construir-se com uma
identidade, a qual, para ele, só poderá existir se puder
relacionar-se com o outro em todos os níveis.
Dessa forma, a reação do
monstro contra o mundo social é prova da sua insatisfação
com a humanidade, que o exclui dos prazeres da vida. Como à Satã
de Milton, lhe foi também negada a felicidade:
And more I see Pleasures about
me, so much more I feelTorment within me [...];
all good to me becomes Bane (Paradise Lost,
Book IX, ll.118-123).
A grande força que o monstro possui e que Victor jamais imaginara
criar é o seu discurso. Essa voz o afasta, radicalmente, de qualquer
alusão mecânica que lhe possa ser atribuida. Dessa forma,
ele emerge da posição de `criado' para uma posição
de ser em busca de uma identidade, motivado pelo desejo. A eloqüência
do monstro é tudo para a construção da sua identidade.
É o que o faz humano e superior ao seu criador. Ele tem voz, ele
tem desejo.
Quando o monstro se dirije a Victor pela
primeira vez, não lhe pede senão reconhecimento e amor.
Quer passar da posição de objeto, ou seja, de `inseto vil',
`demônio', `monstro' (assim o chama Victor) para tornar-se sujeito.
Embora Victor narre a vida do monstro para Walton, que a registra, o seu
discurso não pode ser castrado. O monstro é o focalizador
e o objeto focalizado da sua narrativa, assumindo a posição
de sujeito que questiona e demanda.
Num diálogo doce-feroz com Satã,
de Milton, o monstro considera-se um anjo caído
a quem negaste o prazer por nenhuma
culpa. Em toda parte vejo prazer, de que estou irrevogavelmente excluído;
[...] a tristeza me faz mau. Faz-me feliz e eu serei novamente virtuoso.
O seu grande conflito é ver-se excluído das várias
relações que unem um ser humano a outro em laços
mútuos (Shelley, 1994:116).
Em Paradise Lost, Satã vive
o mesmo desespero, quando vê
These two Imparadis't in one another's
arms
The happier Eden, shall enjoy their fill
Of bliss on bliss, while I to Hell am thrust,
Where neither joy nor love, but fierce desire,
Among our other torments not the least, [...] (Milton, Book
IV, ll. 505-09)
O monstro herda a curiosidade de conhecimento
do seu criador, mas em nível diferente. Frankenstein busca o conhecimento
a fim de descobrir os mistérios do Universo, a fim de explorar
poderes desconhecidos capazes de desvelar os mais profundos mistérios
da criação, enquanto o monstro questiona a "natureza estranha"
do conhecimento. Ao adquirir conhecimento, o monstro enfrenta os paradoxos
da vida, sua incoerência, descobrindo que existia apenas uma
maneira de superar a dor, através da morte (Shelley, 1994:116).
Ainda assim, ele não o entendia.
O monstro precisa descobrir "Quem sou eu?" Essa é a pergunta crucial
que o leva à busca de ser no mundo. Ao ler Paradise Lost
ele se compara, primeiramente, com Adão, mas reconhece que a sua
condição de vida aproxima-o mais de Satã. Conhecimento
para o monstro funciona como meio de perceber a sua existência miserável
de excluído.
Como lhe fora negada a felicidade, busca a dor e a morte (Shelley,
1994:133). Ele é rejeitado por ser diferente, por raciocinar com
paixão, com desejo. Como não pode ser sujeito, ele se desconstrói
e se torna mau: também posso criar desolação (Shelley,
137). Torna-se, assim, o criador da dor.
O monstro conscientiza-se de que a única alternativa que lhe resta
para não sucumbir na posição de objeto é descobrir
um outro igual a ele com quem pudesse se comunicar e partilhar uma vida.
Deseperado, pede a Frankenstein, o criador das criaturas, que lhe faça
uma companheira que não se negasse a ele, que compartilhasse da
sua solidão. O Pai nega-lhe o prazer.
Dessa forma, como o prazer lhe é negado, lhe é negado também
o direito de ser. Só lhe resta voltar à posição
de objeto, reassumindo a sua monstruosidade, vingativo e cheio de ódio.
Ainda assim, a grande força da narrativa é mantida. O leitor
é seduzido pelo seu discurso e conflito. Frankenstein é
totalmente sobrepujado pelo monstro, tornando-se nada mais que uma simples
sombra de um ser humano (Shelley, 1994:177).
A incapacidade de Frankenstein de responder
à sexualidade do monstro pode ser atribuída à dificuldade
que tem em lidar com a sua própria impotência em relação
às mulheres e, conseqüentemente, ao sexo e à criação.
Para Poovey, Shelley insiste no potencial destrutivo do desejo individual
(Poovey, 1984:194). Frankenstein rejeita a alteridade do monstro, pois
o vê como negativo e a si como positivo. Não existe complementaridade.
Assim, o outro é uma ameaça potencial.
A mulher em Frankenstein é
silenciada. Sua voz é ouvida de forma indireta, canalizada pelas
vozes dos narradores masculinos. No discurso patriarcal a representação
do feminino é feita pelo silêncio. Para a crítica
teórica francesa, a mulher é aquilo que foge à representação
no discurso patriarcal; ela fica no lado da ausência. A mulher habita
a esfera privada, que é o espaço ideológico das relações
corretas.
Em Frankenstein a criatividade e a família estão,
paradoxalmente, interligadas na narrativa. Entretanto, a segunda destrói
a primeira, refletindo a impotência de Victor para criar uma família,
para relacionar-se, sexualmente, com o outro, para criar no útero.
Em vez do útero, Victor escolhe um espaço-mãe desgenitalizado,
escuro e frio, onde não há orgasmo. Espaço aberto
apenas para procriar.
Quando Victor deixa o lar em busca do conhecimento, jamais descarta a
possibilidade de um retorno. O modelo dialético de exílio
e retorno rompe-se quando a sua criação torna-se maior que
ele, tornando assim impossível a volta. Para Kilgour, Victor Frankenstein
é mais eficiente como desmembrador ou desconstrutor de corpos velhos
do que como construtor de algo novo (Kilgour, 1995:204).
O sonho de Frankenstein, depois do nascimento da criação,
é marcado por desejo, vida, amante, assim como por repulsão,
morte, mãe. Creio que esses elementos dicotômicos contribuem
para mostrar que o monstro funciona como uma representação
de elementos com que Victor não consegue lidar, ou seja, as diferenças
que são essenciais para a sua identidade.
O momento crucial na vida de Frankenstein ocorre quando o monstro o ameaça:
Estarei contigo na tua noite de núpcias (Shelley, 1994:168).
Sem dúvida, o monstro não tem a intenção de
matar Victor, mas de fazê-lo sofrer a falta daquilo que lhe negara:
o direito de viver a sexualidade.
Por outro lado, Victor teme entrar num território de onde sempre
pareceu escapar: o próprio ato sexual. Na busca pelo monstro ele
posterga o ato, chegando a eliminá-lo da sua vida. Creio que se
Victor tivesse vivido a experiência sexual, ele estaria contradizendo
sua própria criação do monstro. Ao criar o monstro
ele torna possível a procriação sem a penetração
sexual no corpo da mulher. Ao destruir o corpo inacabado do monstro fêmea,
ele nega, metonicamente, o direito dos homens e mulheres de se relacionarem
sexualmente, principalmente se considerarmos que nessa época a
maioria das uniões visava a reprodução - pelo menos
no que concerne à imposição ideológica. Não
havendo necessidade de reprodução, o ato sexual seria desnecessário.
Victor, que mergulha num empreendimento egoista para alcançar a
reprodução sem parceiro/a sexual, fracassa em reconhecer
a necessidade que o monstro tem do outro. Conseqüentemente, Victor
joga o monstro num abismo onde encontra escuridão, solidão
e silêncio. Dessa forma, o monstro pode também ser visto
como uma projeção da conduta anti-social de Victor. O temor
de Victor na noite do casamento não é da morte mas, sim,
do contato com o corpo da mulher. No percurso de Victor, a figura da mulher
é sempre associada à morte e à sua impotência:
ele se torna cientista depois da morte da mãe, vê Justina
morrer sem defendê-la, a sua esposa é morta e ele escapa.
É também importante notar que a maioria das mulheres em
Frankenstein é de origem humilde, pedras raras no mundo
da pobreza. Todas precisam morrer, como se a morte fosse o único
horizonte possível.
Ao contrário de Victor, o monstro procura constuir uma família
e no seu encontro com o outro, construir a identidade através da
diferença. A história do monstro consiste na busca do outro,
como forma de adaptar-se ao mundo. Adquire o conhecimento por si mesmo,
e é precisamente através do conhecimento que aprende que
não é engendrado socialmente mas fabricação
literal do outro.
Entretanto, o conhecimento me mostrou, claramente, que eu era um rejeitado
desprezível (Shelley, 1994:131). Através da própria
vivência, o monstro adquire uma percepção clara da
sua absoluta diferença em relação ao outro:
Achava-me similar e, ainda, ao mesmo
tempo, estranhamente diferente dos seres da minha leitura e daqueles
de quem ouvia a conversa [...]. A minha pessoa era horrenda e a minha
estatura gigantesca. [...] Quem era eu? O que eu era? De onde vim?
[...] Perguntas que continuamente recorriam, mas eu era incapaz de
resovê-las (Shelley, 1994:124).
Esse reconhecimento remete à observação
de Foucault em que o Estranho era exposto ao olhar:
mas esse olhar no fundo não
o atingia; atingia apenas sua superfície monstruosa, sua animalidade
visível; e comportava pelo menos uma forma de reciprocidade,
uma vez que ali o homem são podia ler, como num espelho, o
movimento iminente de sua própria queda (Foucault, 1997:480).
A figura híbrida do monstro está
interligada à monstruosidade política vigente. A representação
da transgressão ameaçadora na figura da deformidade física
surge como uma variante daquele vunerável cliché do discurso
político: o corpo político. Quando a discórdia
política e a rebelião surgem, esse `corpo' é considerado
não só doente, mas deformado, abortivo, monstruoso (Kilgour,
1995:14).
O monstro desloca-se de uma fase inocente
para uma adulta perversamente gótica. Numa sociedade em que a sua
diferença não podia ser reconhecida, deixa-se dominar por
sentimentos cruéis. Mais uma vez dialoga com Satã, ao alegar
que
O mal desde então tornou-se
o meu bem. Dessa forma impelido, não tive escolha, mas adaptar
a minha natureza a um elemento que escolhera de livre e espontânea
vontade. A realização do meu escopo diabólico
tornou-se uma paixão insaciável (Shelley, 1994:212).
O monstro escolhe isso pois não
lhe é dado alternativa. É uma escolha prescrita, contrária
ao seu desejo. Dessa forma, não há escolha, mas remoção
do desejo.
Criador e criatura unem-se através de uma corrente de oposições
e identificações. Assim, cada um se vê como vítima
inocente da hostilidade do outro e o outro como a causa responsável
por todo o mal (Kilgour, 1995:206).
Retomando a mulher em Frankenstein, vê-se que ela não
constitui um corpo dentro da economia da sexualidade. Victor decide casar
com a sua mais que irmã Elizabeth Lavenza, que não
é mais que uma posse minha (Shelley, 1994:34).
A mulher desempenha o papel de companheira que está ali para servir,
para ajudar. A sua inferioridade social é problematizada, uma vez
que não tem acesso ao discurso, exceto através do refúgio
no sistema masculino de representação, o qual a aliena da
sua própria relação consigo mesma. O `feminino' não
é nunca identificado, a não ser mediante, através
do e pelo masculino, não sendo verdadeira a proposição
recíproca (Irigaray, 1985:85).
Em Frankenstein os homens se relacionam com as mulheres num círculo
incestuoso. As cartas de amor que Walton remete à irmã,
Mrs Saville, fazem com que o leitor a veja como um pouco mais que simplesmente
irmã. Caroline Beaufort e Alphonse Frankenstein estão mais
para irmão e irmã do que para marido e mulher. Justine torna-se
mais que irmã. Além disso, se Victor tivesse criado o monstro-fêmea,
ela também se relacionaria com o seu macho tanto como companheira
sexual quanto como irmã. Afinal, os dois teriam sido criaturas
de um mesmo Criador.
Em outras palavras, o que me parece claro em Frankenstein é
a castração completa da sexualidade. Conseqüentemente,
as mulheres têm que morrer, pois a criação terá
que vir do vazio, do caos; criação que reproduz sombras
da escuridão.
Como sombras todas têm que morrer.
O sobrevivente Walton funciona como figura-trama que começa e termina
a narrativa. As figuras-chave masculinas são obsecadas por descobertas
e mistérios. Walton sacrificaria fortuna, existência e esperança
em favor do empreendimento. Qualquer sacrifício seria válido
para a aquisição do conhecimento que buscava, ou seja, o
domínio que adquiriria e transmitiria aos adversários elementares
da nossa raça (Shelley, 1994:27). Victor buscava abarcar os segredos
do céu e da terra, os segredos físicos do mundo.
Victor, como Satã em Paradise
Lost, empreende sozinho a viagem de descoberta do conhecimento:
To search the truth [...] in Heaven
concerning another world and another kind of creature [...] about
this time to be created. [...] He passes on his journey to Hell Gates,
finds them shut, [...] and discover to him the great Gulf between
Hell and heaven; with what difficulty he passes through, directed
by Chaos, the Power of that place, to the sight of this new world
which he sought (Paradise Lost, Book II, The Argument).
A personificação do Caos
é uma marca forte nas diferentes vozes desse diálogo. O
conhecimento é adquirido através do Caos. Os três
narradores em Frankenstein são satanizados na busca da descoberta.
Enquanto isso, o objeto sem nome busca respostas epistemológicas
para tentar compreender a sua própria natureza: Quem era eu?
O que eu era? De onde vinha? (Shelley, 1994:124).
É um discurso sem retorno. A dialética do exílio
e do retorno não é resolvida. Victor não pode voltar
para o lar de onde partira. A sua busca do fogo fora dominada e ele fora
destruído no gelo das regiões frias, vítima da sua
ambição.
Frankenstein incorpora o seu tempo. Como nos debates da revolução,
aquele que fabrica o monstro é também acusado de negligenciar
a sua criatura. Nas alusões a Paradise Lost, Victor e o
seu objeto misturam-se às figuras de Adão, Deus e Satã.
Como sugere Chris Baldick, a natureza diabólica da forma narrativa
é inerente ao que chamaríamos seu processo dialógico
(Baldick, 1996:43).
Em Frankenstein, os narradores não tem sucesso nas suas
buscas pelo conhecimento. Como bem conclui o objeto sem nome a dor
aumenta com o conhecimento (Shelley, 1994:116).
O monstro recorre ao crime por sentir-se objeto oprimido. Torna-se uma
figura louca, rasgando o mundo afora, mas, sem dúvida, existe um
certo método na sua loucura. Como fora injustamente condenado pela
sua diferença, decide agir como Satã, o anjo caído.
Quando o monstro pondera sobre as injustiças sociais, o seu discurso
faz lembrar Elizabeth, que, depois da morte de Justina, reflete sobre
a monstruosidade dos homens na sociedade e confessa a Victor que
Quando reflito sobre a triste morte
de Justine Moritz, não consigo mais ver o mundo e o seu trabalho
como antes [...] agora o desalento bate à nossa porta e os
homens parecem monstros sedentos de sangue (Shelley, 1994:88).
Tanto no discurso de Elizabeth quanto
no do monstro os problemas sociais são enfatizados, fazendo-os
representantes das classes oprimidas. Victor, ao contrário, representa
a negligência grosseira que assegura a ordem dominante. Dessa forma
creio que Frankenstein pode ser visto como uma metáfora
da monstruosidade, e o monstro é uma gota dágua no mar tempestuoso
do caos político e social do seu tempo. Segundo Mary Wollstonecraft
a violência do oprimido origina-se da frustração com
a negligência e injustiça do `pai' social ( Apud, Baldick,
1996:21).
Na narrativa sem retorno de Frankenstein o leitor vê uma
das mais eloqüentes figuras da Literatura Inglesa desaparecer, carregada
pelas ondas, perdida na distância e na escuridão (Shelley,
215), o anjo caído. Tragada pelo útero desconhecido da natureza
selvagem, a sombra da escuridão vai para um lugar onde o passado,
presente e história são vencidos pela tópica da morte.
Não existe outra saída. Todos precisam ser destruídos,
pois carregam o peso de ideologias irreconciliáveis, tão
poderosas nas suas autonomias individuais que só poderão
levar a auto-anulação. Através da morte o passado
e o presente são unificados harmonicamente.
Em Frankenstein, Mary Shelley apodera-se do útero artístico
da imaginação como forma de manifestar o mundo real da razão.
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Maria
Conceição Monteiro é
Doutora em Literatura Comparada, Professora de Literatura Inglesa na Universidade
Federal Fluminense.Autora de Sombra Errante: a Preceptora na Narrativa
Inglesa do Século XIX. Niterói: EdUFF, 2000; de diversos
artigos em periódicos nacionais e estrangeiros. Pesquisa, atualmente,
o discurso do desejo na narrativa das escritoras inglesas do século
XVIII.
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