SOMBRAS DA ESCURIDÃO NA IDADE DO ILUMINISMO


Maria Conceição Monteiro
UFF - Universidade Federal Fluminense


RESUMO

Frankenstein se passa na Idade da Razão. A narrativa registra as ansiedades do período, ou seja, as revoluções social e industrial na França e na Grã-Bretanha. Nesses tempos conflitantes surge uma nova ordem, em que a burguesia assume controle da sociedade, reorganizando as esferas sociais e políticas. O homem torna-se responsável pela refeitura do mundo: uma re-criação que emerge do caos.
Durante os primeiros anos da Revolução Francesa o romance gótico floresce na Inglaterra. Paralelo a esse gênero, outros livros e panfletos transbordam as prateleiras, discutindo os efeitos políticos dos tempos de mudanças. Nesse entrelaçamento entre o gótico literário e o discurso político emerge Frankenstein.

 

ABSTRACT

Frankenstein is set in the Age of Enlightenment and it registers the anxieties of the period, namely, the social and industrial revolutions in France and in Britain. In that conflicting time a new order emerges, where the bourgeoisie assume control of society, reorganizing social and political spheres. Man becomes responsible for the re-making of a world: a re-creation out of chaos. It was during the first years of the French Revolution that the Gothic novels flourished in England. Parallel to that genre, books and pamphlets poured all over England, discussing the political effects of a time of change.
In this overlapping of the literary gothic and the political discourse, Mary Shelley creates her Frankenstein. It emerges as a narrative that shows the power of imagination and feelings in a true dialogue against the tyranny of reason alone, or better, the author proves how the artistic womb of the imagination can create into the real world of reason.


Mary Shelley (1792-1851) imaginara uma estória que falasse aos medos recônditos da nossa natureza e que despertasse horror. Uma estória que levasse o leitor a temer olhar a sua volta, a acelerar as batidas do coração e a ter o sangue congelado. Assim, a autora inventa, em Frankenstein, uma narrativa que nasce do caos em vez do vazio.

Parece-me difícil que o leitor do nosso tempo sinta algum temor na leitura de Frankenstein, acostumado aos horrores sociais vividos a cada esquina. Assim, a narrativa gótica de Frankenstein incita, hoje, mais ao questionamento do que ao medo.

O romance de Shelley se passa na Idade da Razão. A narrativa registra as ansiedades do período, ou seja, as revoluções social e industrial na França e na Grã-Bretanha.
Durante os primeiros anos da Revolução Francesa o romance gótico floresce na Inglaterra. Paralelo a esse gênero, outros livros e panfletos transbordam as prateleiras, instigados pela polêmica obra de Edmund Burke: Refections on the Revolution in France (1790). De acordo com Burke muita proteção foi dada ao espírito de inovação, o qual, logo, voltou-se contra aqueles que o encorajaram, levando-os à ruína (Burke, 1986:237).

Tom Paine, em Rights of Man, responde a Burke, sugerindo que é exatamente por se exaltar alguns homens de forma distorcida que outros são distorcidamente desonrados (Paine, 1969:81).

Ao contrário de Paine, que vê a raiz de todo o mal na aristrocacia e na Constituição Francesa - que, segundo ele, destruíram a lei da primogenitura e lá está o monstro (Paine, 1969:104)-, Mary Wollstonecraft atribui a origem da monstruosidade à sofisticada corte francesa, onde o brilho celestial é obscurecido e o homem aparece ou como um monstro repugnante, uma besta devoradora, ou como um réptil desalmado, sem dignidade ou humanidade (Apud, Baldick, 1996:21).

Nesse entrelaçamento entre o gótico literário e o discurso político emerge Frankenstein, num momento em que a promessa social da Revolução Francesa mostrava aos escritores da primeira fase do Período Romântico que eles viviam tempos de mudanças.

Para M. H. Abrams muitos escritores do período viam o ser humano dotado de aspirações ilimitadas ao bem infinito, pressentidas pela faculdade da imaginação (Abrams, 1993:127-9). A ênfase na imaginação e sentimento não posiciona, necessariamente, os escritores da assim chamada "Idade da Sensibilidade" contra o racionalismo do Iluminismo.

Jean-Jacques Rousseau se insurge contra o racionalismo imoderado. Ele sustenta a idéia de que os seres humanos são governados por um princípio de autopreservação, assim como de revulsão, ao verem os seus semelhantes morrer ou sofrer. Dessa forma, para Rousseau, a razão não é o princípio que move o homem, mas a liberdade, a que o estado social avilta.

Segundo Peter Gay, Rousseau não é uma figura representativa do Iluminismo. Entretanto, Gay admite que ele

impulsionou os homens na direção em que o Iluminismo, como um todo, queria que a humanidade fosse [...] ele cumpriu a tarefa do Iluminismo, deu-lhe substância, mais que qualquer outro filósofo, para a ainda jovem e sempre precária ciência da liberdade (Gay, 1973, II:552).

Peter Gay conclui que, embora a análise racional fosse um princípio cardinal de grande parte do pensamento iluminista, ela não promoveu a exclusão completa do sentimento. Dessa forma, acredito que o Iluminismo possa ser caracterizado em termos do seu questionamento a autoridades, modelos e instituições tradicionais.

Nesses tempos conflitantes surge uma nova ordem, em que a burguesia assume controle da sociedade, reorganizando as esferas sociais e políticas. O homem torna-se responsável pela refeitura do mundo: uma re-criação que emerge do caos.

Frankenstein aparece como uma narrativa que mostra o poder da imaginação e do sentimento contra a tirânia da razão. A imaginação pode ser vista, aqui, como um processo transgressor de manifestação do real. Em Frankenstein vê-se revolução e reação, a ascensão e a queda de um processo único, a dinâmica da criação gótica.

No gótico tanto o passado quanto o presente são essencialmente relacionados. Ao resuscitar o morto, chamando para a vida um passado idealizado, o gótico tenta erradicar as rupturas das mudanças rápidas e preservar a continuidade (Kilgour, 1995:29).

Embora Mary Shelley tenha escrito o romance entre amigos, o prefácio foi escrito numa época em que estava só: uma autora solitária. O prefácio sucede a estória, e ainda assim, paradoxalmente, é uma antecipação da solidão que Victor Frankenstein experimentará no ato da criação, assim como os outros narradores também a viverão. Isolamento e solidão, passado e presente, são imagens recorrentes em Frankenstein. Victor e Walton experienciam algo semelhante à sua criadora, no sentido de que o passado sentimental de uma comunidade compartilhada é estabelecido contra a presença gótica do isolamento. Em Shelley, concentrar-se no passado funciona como tranqüilizador para uma sociedade perturbada por tempos de turbulência política e momentos inseguros na história.

Em Frankenstein a narrativa se abre de forma epistolar. Robert Walton escreve cartas para a irmã, Margaret. A mensagem recorrente nas suas cartas é a falta de amigos, o que de certo modo o impele a comunicar-se com a irmã. Pensamentos podem ser transpostos no papel, mas esse é um meio precário para a comunicação dos sentimentos (Shelley, 1994:17). Walton buscava, desesperadamente, a companhia de um homem, um amigo, um Ancient Mariner. Seu desejo é um presságio do que virá, isto é, o encontro com Victor Frankenstein. As cartas servem de moldura narrativa simbólica da busca do conhecimento. O `conhecimento' que busca a própria escuridão escondida na alma humana, essa região desconhecida. O conhecimento que ele vai adquirir na voyage of discovery, em direção ao Pólo Norte.

A forma epistolar é substituída por um manuscrito registrado durante a noite, a transcrição de uma história contada durante o dia por Victor.

Victor Frankenstein narra sua própria história, trazendo o passado para o presente. Ele recorda a infância, que está vinculada a um modelo ideal familiar em que os seus pais são agentes criadores de todos os muitos prazeres que ele tivera (Shelley,1994:36). Tempos de doces lembranças do território não corrompido e sagrado do lar, espaço onde

Sinto raro prazer em reviver as recordações da infância, antes que as desgraças que manchassem minha mente, transformando suas luminosas visões de grande valia em reflexões cinzentas e acanhadas sobre o ser. [...]. Também recordo-me daqueles eventos que conduziram [...] à minha triste narrativa, pois quando me dou conta do nascimento daquela paixão que, depois, governara o meu destino, concluo que ela se origina de fontes ignóbeis e quase esquecidas, [...], que no seu percurso varreu todas as minhas esperanças e prazeres (Shelley, 1994:37)

A infância de Victor é tanto marcada como um período em que a corrupção ainda não havia invadido o seu espaço, quanto como um período em que aparecem as primeiras perturbações da alma, as quais, como em Hamlet, buscam os segredos do céu e da terra.

Ao contrário de Fausto, que é levado à maldição depois de ser seduzido por Mefistópheles, Victor Frankenstein é o seu próprio demônio tentador. Aparentemente, a intenção de Victor é puramente social: ser útil à humanidade, eliminando doenças. Não tem o objetivo de desafiar e nem de tornar-se Deus. Ainda assim, torna-se um Criador; para o monstro ele é o seu Deus: Juro, pela terra que habito e por ti que me fizeste, [...] jamais amaldiçoarei o meu criador (Shelley, 1994:142).

O pai do monstro é uma figura opressora que nega à sua criação o direito de ser e, mais do que isso, o direito de construir-se com uma identidade, a qual, para ele, só poderá existir se puder relacionar-se com o outro em todos os níveis.

Dessa forma, a reação do monstro contra o mundo social é prova da sua insatisfação com a humanidade, que o exclui dos prazeres da vida. Como à Satã de Milton, lhe foi também negada a felicidade:

And more I see Pleasures about me, so much more I feelTorment within me [...]; all good to me becomes Bane (Paradise Lost, Book IX, ll.118-123).


A grande força que o monstro possui e que Victor jamais imaginara criar é o seu discurso. Essa voz o afasta, radicalmente, de qualquer alusão mecânica que lhe possa ser atribuida. Dessa forma, ele emerge da posição de `criado' para uma posição de ser em busca de uma identidade, motivado pelo desejo. A eloqüência do monstro é tudo para a construção da sua identidade. É o que o faz humano e superior ao seu criador. Ele tem voz, ele tem desejo.

Quando o monstro se dirije a Victor pela primeira vez, não lhe pede senão reconhecimento e amor. Quer passar da posição de objeto, ou seja, de `inseto vil', `demônio', `monstro' (assim o chama Victor) para tornar-se sujeito. Embora Victor narre a vida do monstro para Walton, que a registra, o seu discurso não pode ser castrado. O monstro é o focalizador e o objeto focalizado da sua narrativa, assumindo a posição de sujeito que questiona e demanda.

Num diálogo doce-feroz com Satã, de Milton, o monstro considera-se um anjo caído

a quem negaste o prazer por nenhuma culpa. Em toda parte vejo prazer, de que estou irrevogavelmente excluído; [...] a tristeza me faz mau. Faz-me feliz e eu serei novamente virtuoso. O seu grande conflito é ver-se excluído das várias relações que unem um ser humano a outro em laços mútuos (Shelley, 1994:116).

Em Paradise Lost, Satã vive o mesmo desespero, quando vê

These two Imparadis't in one another's arms
The happier Eden, shall enjoy their fill
Of bliss on bliss, while I to Hell am thrust,
Where neither joy nor love, but fierce desire,
Among our other torments not the least, [...] (Milton, Book IV, ll. 505-09)

O monstro herda a curiosidade de conhecimento do seu criador, mas em nível diferente. Frankenstein busca o conhecimento a fim de descobrir os mistérios do Universo, a fim de explorar poderes desconhecidos capazes de desvelar os mais profundos mistérios da criação, enquanto o monstro questiona a "natureza estranha" do conhecimento. Ao adquirir conhecimento, o monstro enfrenta os paradoxos da vida, sua incoerência, descobrindo que existia apenas uma maneira de superar a dor, através da morte (Shelley, 1994:116). Ainda assim, ele não o entendia.

O monstro precisa descobrir "Quem sou eu?" Essa é a pergunta crucial que o leva à busca de ser no mundo. Ao ler Paradise Lost ele se compara, primeiramente, com Adão, mas reconhece que a sua condição de vida aproxima-o mais de Satã. Conhecimento para o monstro funciona como meio de perceber a sua existência miserável de excluído.
Como lhe fora negada a felicidade, busca a dor e a morte (Shelley, 1994:133). Ele é rejeitado por ser diferente, por raciocinar com paixão, com desejo. Como não pode ser sujeito, ele se desconstrói e se torna mau: também posso criar desolação (Shelley, 137). Torna-se, assim, o criador da dor.

O monstro conscientiza-se de que a única alternativa que lhe resta para não sucumbir na posição de objeto é descobrir um outro igual a ele com quem pudesse se comunicar e partilhar uma vida. Deseperado, pede a Frankenstein, o criador das criaturas, que lhe faça uma companheira que não se negasse a ele, que compartilhasse da sua solidão. O Pai nega-lhe o prazer.

Dessa forma, como o prazer lhe é negado, lhe é negado também o direito de ser. Só lhe resta voltar à posição de objeto, reassumindo a sua monstruosidade, vingativo e cheio de ódio. Ainda assim, a grande força da narrativa é mantida. O leitor é seduzido pelo seu discurso e conflito. Frankenstein é totalmente sobrepujado pelo monstro, tornando-se nada mais que uma simples sombra de um ser humano (Shelley, 1994:177).

A incapacidade de Frankenstein de responder à sexualidade do monstro pode ser atribuída à dificuldade que tem em lidar com a sua própria impotência em relação às mulheres e, conseqüentemente, ao sexo e à criação. Para Poovey, Shelley insiste no potencial destrutivo do desejo individual (Poovey, 1984:194). Frankenstein rejeita a alteridade do monstro, pois o vê como negativo e a si como positivo. Não existe complementaridade. Assim, o outro é uma ameaça potencial.

A mulher em Frankenstein é silenciada. Sua voz é ouvida de forma indireta, canalizada pelas vozes dos narradores masculinos. No discurso patriarcal a representação do feminino é feita pelo silêncio. Para a crítica teórica francesa, a mulher é aquilo que foge à representação no discurso patriarcal; ela fica no lado da ausência. A mulher habita a esfera privada, que é o espaço ideológico das relações corretas.

Em Frankenstein a criatividade e a família estão, paradoxalmente, interligadas na narrativa. Entretanto, a segunda destrói a primeira, refletindo a impotência de Victor para criar uma família, para relacionar-se, sexualmente, com o outro, para criar no útero. Em vez do útero, Victor escolhe um espaço-mãe desgenitalizado, escuro e frio, onde não há orgasmo. Espaço aberto apenas para procriar.

Quando Victor deixa o lar em busca do conhecimento, jamais descarta a possibilidade de um retorno. O modelo dialético de exílio e retorno rompe-se quando a sua criação torna-se maior que ele, tornando assim impossível a volta. Para Kilgour, Victor Frankenstein é mais eficiente como desmembrador ou desconstrutor de corpos velhos do que como construtor de algo novo (Kilgour, 1995:204).

O sonho de Frankenstein, depois do nascimento da criação, é marcado por desejo, vida, amante, assim como por repulsão, morte, mãe. Creio que esses elementos dicotômicos contribuem para mostrar que o monstro funciona como uma representação de elementos com que Victor não consegue lidar, ou seja, as diferenças que são essenciais para a sua identidade.

O momento crucial na vida de Frankenstein ocorre quando o monstro o ameaça: Estarei contigo na tua noite de núpcias (Shelley, 1994:168). Sem dúvida, o monstro não tem a intenção de matar Victor, mas de fazê-lo sofrer a falta daquilo que lhe negara: o direito de viver a sexualidade.

Por outro lado, Victor teme entrar num território de onde sempre pareceu escapar: o próprio ato sexual. Na busca pelo monstro ele posterga o ato, chegando a eliminá-lo da sua vida. Creio que se Victor tivesse vivido a experiência sexual, ele estaria contradizendo sua própria criação do monstro. Ao criar o monstro ele torna possível a procriação sem a penetração sexual no corpo da mulher. Ao destruir o corpo inacabado do monstro fêmea, ele nega, metonicamente, o direito dos homens e mulheres de se relacionarem sexualmente, principalmente se considerarmos que nessa época a maioria das uniões visava a reprodução - pelo menos no que concerne à imposição ideológica. Não havendo necessidade de reprodução, o ato sexual seria desnecessário.

Victor, que mergulha num empreendimento egoista para alcançar a reprodução sem parceiro/a sexual, fracassa em reconhecer a necessidade que o monstro tem do outro. Conseqüentemente, Victor joga o monstro num abismo onde encontra escuridão, solidão e silêncio. Dessa forma, o monstro pode também ser visto como uma projeção da conduta anti-social de Victor. O temor de Victor na noite do casamento não é da morte mas, sim, do contato com o corpo da mulher. No percurso de Victor, a figura da mulher é sempre associada à morte e à sua impotência: ele se torna cientista depois da morte da mãe, vê Justina morrer sem defendê-la, a sua esposa é morta e ele escapa. É também importante notar que a maioria das mulheres em Frankenstein é de origem humilde, pedras raras no mundo da pobreza. Todas precisam morrer, como se a morte fosse o único horizonte possível.

Ao contrário de Victor, o monstro procura constuir uma família e no seu encontro com o outro, construir a identidade através da diferença. A história do monstro consiste na busca do outro, como forma de adaptar-se ao mundo. Adquire o conhecimento por si mesmo, e é precisamente através do conhecimento que aprende que não é engendrado socialmente mas fabricação literal do outro.

Entretanto, o conhecimento me mostrou, claramente, que eu era um rejeitado desprezível (Shelley, 1994:131). Através da própria vivência, o monstro adquire uma percepção clara da sua absoluta diferença em relação ao outro:

Achava-me similar e, ainda, ao mesmo tempo, estranhamente diferente dos seres da minha leitura e daqueles de quem ouvia a conversa [...]. A minha pessoa era horrenda e a minha estatura gigantesca. [...] Quem era eu? O que eu era? De onde vim? [...] Perguntas que continuamente recorriam, mas eu era incapaz de resovê-las (Shelley, 1994:124).

Esse reconhecimento remete à observação de Foucault em que o Estranho era exposto ao olhar:

mas esse olhar no fundo não o atingia; atingia apenas sua superfície monstruosa, sua animalidade visível; e comportava pelo menos uma forma de reciprocidade, uma vez que ali o homem são podia ler, como num espelho, o movimento iminente de sua própria queda (Foucault, 1997:480).

A figura híbrida do monstro está interligada à monstruosidade política vigente. A representação da transgressão ameaçadora na figura da deformidade física surge como uma variante daquele vunerável cliché do discurso político: o corpo político. Quando a discórdia política e a rebelião surgem, esse `corpo' é considerado não só doente, mas deformado, abortivo, monstruoso (Kilgour, 1995:14).

O monstro desloca-se de uma fase inocente para uma adulta perversamente gótica. Numa sociedade em que a sua diferença não podia ser reconhecida, deixa-se dominar por sentimentos cruéis. Mais uma vez dialoga com Satã, ao alegar que

O mal desde então tornou-se o meu bem. Dessa forma impelido, não tive escolha, mas adaptar a minha natureza a um elemento que escolhera de livre e espontânea vontade. A realização do meu escopo diabólico tornou-se uma paixão insaciável (Shelley, 1994:212).

O monstro escolhe isso pois não lhe é dado alternativa. É uma escolha prescrita, contrária ao seu desejo. Dessa forma, não há escolha, mas remoção do desejo.

Criador e criatura unem-se através de uma corrente de oposições e identificações. Assim, cada um se vê como vítima inocente da hostilidade do outro e o outro como a causa responsável por todo o mal (Kilgour, 1995:206).

Retomando a mulher em Frankenstein, vê-se que ela não constitui um corpo dentro da economia da sexualidade. Victor decide casar com a sua mais que irmã Elizabeth Lavenza, que não é mais que uma posse minha (Shelley, 1994:34).

A mulher desempenha o papel de companheira que está ali para servir, para ajudar. A sua inferioridade social é problematizada, uma vez que não tem acesso ao discurso, exceto através do refúgio no sistema masculino de representação, o qual a aliena da sua própria relação consigo mesma. O `feminino' não é nunca identificado, a não ser mediante, através do e pelo masculino, não sendo verdadeira a proposição recíproca (Irigaray, 1985:85).

Em Frankenstein os homens se relacionam com as mulheres num círculo incestuoso. As cartas de amor que Walton remete à irmã, Mrs Saville, fazem com que o leitor a veja como um pouco mais que simplesmente irmã. Caroline Beaufort e Alphonse Frankenstein estão mais para irmão e irmã do que para marido e mulher. Justine torna-se mais que irmã. Além disso, se Victor tivesse criado o monstro-fêmea, ela também se relacionaria com o seu macho tanto como companheira sexual quanto como irmã. Afinal, os dois teriam sido criaturas de um mesmo Criador.

Em outras palavras, o que me parece claro em Frankenstein é a castração completa da sexualidade. Conseqüentemente, as mulheres têm que morrer, pois a criação terá que vir do vazio, do caos; criação que reproduz sombras da escuridão.

Como sombras todas têm que morrer. O sobrevivente Walton funciona como figura-trama que começa e termina a narrativa. As figuras-chave masculinas são obsecadas por descobertas e mistérios. Walton sacrificaria fortuna, existência e esperança em favor do empreendimento. Qualquer sacrifício seria válido para a aquisição do conhecimento que buscava, ou seja, o domínio que adquiriria e transmitiria aos adversários elementares da nossa raça (Shelley, 1994:27). Victor buscava abarcar os segredos do céu e da terra, os segredos físicos do mundo.

Victor, como Satã em Paradise Lost, empreende sozinho a viagem de descoberta do conhecimento:

To search the truth [...] in Heaven concerning another world and another kind of creature [...] about this time to be created. [...] He passes on his journey to Hell Gates, finds them shut, [...] and discover to him the great Gulf between Hell and heaven; with what difficulty he passes through, directed by Chaos, the Power of that place, to the sight of this new world which he sought (Paradise Lost, Book II, The Argument).

A personificação do Caos é uma marca forte nas diferentes vozes desse diálogo. O conhecimento é adquirido através do Caos. Os três narradores em Frankenstein são satanizados na busca da descoberta.

Enquanto isso, o objeto sem nome busca respostas epistemológicas para tentar compreender a sua própria natureza: Quem era eu? O que eu era? De onde vinha? (Shelley, 1994:124).
É um discurso sem retorno. A dialética do exílio e do retorno não é resolvida. Victor não pode voltar para o lar de onde partira. A sua busca do fogo fora dominada e ele fora destruído no gelo das regiões frias, vítima da sua ambição.

Frankenstein incorpora o seu tempo. Como nos debates da revolução, aquele que fabrica o monstro é também acusado de negligenciar a sua criatura. Nas alusões a Paradise Lost, Victor e o seu objeto misturam-se às figuras de Adão, Deus e Satã. Como sugere Chris Baldick, a natureza diabólica da forma narrativa é inerente ao que chamaríamos seu processo dialógico (Baldick, 1996:43).
Em Frankenstein, os narradores não tem sucesso nas suas buscas pelo conhecimento. Como bem conclui o objeto sem nome a dor aumenta com o conhecimento (Shelley, 1994:116).
O monstro recorre ao crime por sentir-se objeto oprimido. Torna-se uma figura louca, rasgando o mundo afora, mas, sem dúvida, existe um certo método na sua loucura. Como fora injustamente condenado pela sua diferença, decide agir como Satã, o anjo caído.

Quando o monstro pondera sobre as injustiças sociais, o seu discurso faz lembrar Elizabeth, que, depois da morte de Justina, reflete sobre a monstruosidade dos homens na sociedade e confessa a Victor que

Quando reflito sobre a triste morte de Justine Moritz, não consigo mais ver o mundo e o seu trabalho como antes [...] agora o desalento bate à nossa porta e os homens parecem monstros sedentos de sangue (Shelley, 1994:88).

Tanto no discurso de Elizabeth quanto no do monstro os problemas sociais são enfatizados, fazendo-os representantes das classes oprimidas. Victor, ao contrário, representa a negligência grosseira que assegura a ordem dominante. Dessa forma creio que Frankenstein pode ser visto como uma metáfora da monstruosidade, e o monstro é uma gota dágua no mar tempestuoso do caos político e social do seu tempo. Segundo Mary Wollstonecraft a violência do oprimido origina-se da frustração com a negligência e injustiça do `pai' social ( Apud, Baldick, 1996:21).

Na narrativa sem retorno de Frankenstein o leitor vê uma das mais eloqüentes figuras da Literatura Inglesa desaparecer, carregada pelas ondas, perdida na distância e na escuridão (Shelley, 215), o anjo caído. Tragada pelo útero desconhecido da natureza selvagem, a sombra da escuridão vai para um lugar onde o passado, presente e história são vencidos pela tópica da morte. Não existe outra saída. Todos precisam ser destruídos, pois carregam o peso de ideologias irreconciliáveis, tão poderosas nas suas autonomias individuais que só poderão levar a auto-anulação. Através da morte o passado e o presente são unificados harmonicamente.

Em Frankenstein, Mary Shelley apodera-se do útero artístico da imaginação como forma de manifestar o mundo real da razão.



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Maria Conceição Monteiro é Doutora em Literatura Comparada, Professora de Literatura Inglesa na Universidade Federal Fluminense.Autora de Sombra Errante: a Preceptora na Narrativa Inglesa do Século XIX. Niterói: EdUFF, 2000; de diversos artigos em periódicos nacionais e estrangeiros. Pesquisa, atualmente, o discurso do desejo na narrativa das escritoras inglesas do século XVIII.


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