EUDORA
WELTY E O CONTO SULISTA DOS ANOS 60 *
Tereza
Marques de Oliveira Lima
UFF - Universidade Federal Fluminense
Resumo:
Eudora Welty, escritora nascida no Mississipi, sempre se revelou
consciente da sua identidade regional, do seu tempo e lugar, como
atestam seus ensaios "Place in Fiction" (1956), "Must the Novelist
Crusade?" (1965) e "Some Notes on Time in Fiction" (1973). O presente
trabalho busca analisar a relação da História
e da Literatura no conto "Where Is the Voice Coming from?" (1963),
escrito logo após o assassinato de Medgar Evers, líder
negro dos Direitos Civis em Jackson, Mississipi, em junho de 1963.
Nele, Welty nos apresenta um instigante retrato do Sul nos turbulentos
anos da década de 60.
Abstract:
Eudora Welty, a writer born in Mississippi, has always revealed
herself as conscious of her regional identity, her time and place,
as attest her essays "Place in Fiction" (1956), "Must the Novelist
Crusade?" (1965) and "Some Notes on Time in Fiction" (1973). The aim
of this essay is to analyse the relationship between History and Literature
in the short story "Where Is the Voice Coming From?" (1963), written
just after the murder of Medgar Evers, a black Civil Rights leader,
in Jackson, Mississippi, in June 1963. In this work Welty presents
an amazing portrayal of the South in the turbulent years of the 60's.
Eudora Welty nasceu em 1909 em Jackson, capital do Estado
do Mississipi. É uma das mais importantes e das mais premiadas
escritoras da literatura norte-americana, tendo escrito contos, romances,
resenhas e crítica literária. Seu estado natal, que é
o mais pobre dos Estados Unidos, vai ser palco de quase toda a sua obra.
Queimado pelos ianques, devastado pela Reconstrução e pelo
próprio rio Mississipi. Atualmente, contudo, encontra-se em fase
de crescimento econômico[1]
Welty, em 1941, publicou o seu primeiro livro de contos: A curtain
of green cujo cenário é o Mississipi, exceto pela história
"Flowers for Marjorie", situada em Nova Iorque, mas em que aquele surge
como paisagem psíquica. O livro focaliza pequenas cidades onde
a vida decorre sem pressa, em um espaço em que a solidão
e o grotesco estão presentes em personagens que procuram incansavelmente
uma completude. Em The wide net and other stories (1943) seu lirismo
começa a sobressair, juntamente com o seu método indireto
que mostra a personagem e a história, cabendo ao leitor uma participação
mais ativa para captar toda a arquitetura do discurso. Em The golden
apples (1949) cria, à maneira do condado de Yoknapatawpha de
William Faulkner, a pequena cidade fictícia de Morgana, habitada
por personagens que também buscam integração. Esses
contos apresentam um fio condutor que fez com que muitos críticos
o vissem como um romance. Entretanto, ao incluí-lo no Collected
stories of Eudora Welty publicado em 1980, fica claro que a autora
o considera um livro de contos. Em The bride of the Innisfallen and
other stories (1955) mostra cenários e personagens norte-americanas
e européias retratadas em situações que conduzem
algumas delas a um momento de epifania. São histórias localizadas
na Europa e no Sul dos Estados Unidos.
Seus romances apresentam a trajetória do Sul, em momentos decisivos
da sua transformação histórica: começa pelo
mundo exuberante da fronteira em The robber bridegroom (1942);
passa pelo mundo quase agonizante das antigas plantações
do Delta, em 1923, retratadas em Delta wedding (1946); em
The ponder heart (1954) mostra o Sul das cidadezinhas em que uma
pequena aristocracia decadente persiste em sobreviver; apresenta as batalhas
de um clã formado por uma família pobre em plena região
das montanhas do Mississipi- a região mais pobre do Estado - na
época da Depressão, em Losing battles (1970), e,
por último, introduz o Novo Sul, em que a memória busca
uma conciliação com a nova realidade circundante em The
optimist's daughter (1972), ganhador do prêmio Pulitzer.
Podemos afirmar que, no universo ficcional weltiano, o lugar vai assumir
um papel importante, sendo muito mais do que os elementos decorativos
que o compõem. Para os escritores sulistas, assim considerados
os que nasceram no Sul e o elegeram como temática, o lugar não
se resume em uma simples representação do espaço
físico, mas é visto enquanto força que gera sentimentos,
enraizados ao longo do processo histórico.[2]
Para Welty, o lugar vai ser um elemento primordial na configuração
do homem sulista. Entretanto, irá ligar-se ao conceito de ponto
de vista, já que é o autor, com sua imaginação,
quem irá transformá-lo a partir do que almeja criar na sua
obra. Tendo a exata consciência de que em sua moldura vê dois
quadros, o seu e o do mundo, o escritor elabora, com paixão, o
seu mundo ficcional a partir dessa realidade, e oferece, a seu leitor,
esse resultado. Welty esclarece:
[...] Vimos que o escritor deve cuidadosamente
escolher, combinar, sobrepor, encobrir, sacudir, alterar o mundo exterior
com um propósito único, o bem de sua história.
Para fazer isso, ele está sempre vendo uma imagem dupla, dois
quadros ao mesmo tempo na moldura, o seu e o do mundo, um fato que
ele constantemente compreende; e ele trabalha melhor em um estado
de referência constante, sutil e sensata entre os dois. É
sua clara intenção - sua paixão eu deveria dizer
- fazer o leitor ver somente um dos quadros - o do autor- sob a agradável
ilusão de que é o do mundo; este feito colossal é
o resultado de uma boa história. (WELTY, 1990 : 124-125)[**]
Até hoje, no Mississipi, ainda se encontram remanescentes
do passado, que vão se refletir na arquitetura e no imaginário
coletivo. É essa presença que faz com que a literatura sulista
norte-americana seja vista pela história literária como
possuindo entre as suas características básicas a historicidade,
à medida em que o lugar traz as marcas do tempo, e, conseqüentemente,
da História. [3] Esse espaço
geográfico, histórico e mítico que é o Sul
dos Estados Unidos, atualmente não é mais visto como uma
entidade monolítica, mas como uma região de muitos espaços
que se entrelaçam, tendo como denominador comum o estigma da escravidão,
a peculiar institution que tanto denegriu a imagem democrática
que os Estados Unidos queriam mostrar nos séculos XVIII e XIX.
Jorge Luiz Barbosa no artigo "As paisagens naturais nos Estados Unidos:
signos, simulacros e alegorias" apresenta uma análise da imagem
norte-americana, dessa amplidão cartográfica, na
qual se salientam a vastidão territorial e a grandeza:
Grandes conjuntos de "paisagens naturais" podem
ser identificados de imediato como representativos da imensidão
territorial dos Estados Unidos: as cadeias de montanhas (Apalaches
e Rochosas), as grandes planícies do meio-oeste e os desertos
que recortam os territórios do sul e do oeste. Grandeza e policromia
transformadas pela mass media em paisagens-espetáculo
que povoam nosso imaginário e configuram, como senso comum,
a impressão permanente do gigantismo dos Estados Unidos.
(BARBOSA, 1997: 13)
Barbosa mostra que a paisagem é, ao mesmo tempo,
uma marca, porque expressa uma civilização, e é uma
matriz, enquanto veículo de mitos, valores e tradições
ao contribuir para a transferência de "saber, crenças,
sonhos e atitudes sociais de uma geração a outra."(BARBOSA,
1997: 14). Essa grandeza não é uma construção
natural,
"como nos mostra a imagem extraída da leitura
dos mapas escolares. É realização humana. Geografia
construída como `destino manifesto', como ideário de
estender a `comunidade americana' até o Pacífico",
através de aquisições e anexações
territoriais. (BARBOSA, 1997: 15)
Qual o lugar reservado ao Sul nessa configuração
da paisagem norte-americana? Ao contrapor o Sul ao Oeste, Barbosa apresenta
aquele como sendo o emblema da negação do mito do Sonho
Americano:
O Sul era a plantation, a escravidão,
a aristocracia empedernida e arrogante. Negação da terra
livre (e, por isso, do homem livre) e do trabalho como expressão
da liberdade. O Oeste era geografia sem história, página
em branco, futuro sem passado para os homens, livres e iguais. Antítese
e síntese dos princípios de liberdade e cidadania, duelo
presente na formação da jovem nação americana:
o Oeste a utopia do "self-made man"; o Sul, a negação
do sonho. A viagem poética/idílica de Mark Twain no
Mississipi começava a partir de St. Louis, rio acima, deixando
o Sul para trás. (BARBOSA, 1997: 17)
O Sul é o espaço da negação
do sonho, da ruptura e da exclusão, tendo sido o causador de uma
guerra civil, e, por mais de um século, o palco de muitas discussões
e conflitos. Como bem lembra Eliane Borges Berutti, no artigo "A luta
pelos direitos civis no Sul", a Proclamação da Emancipação,
assinada pelo presidente Abraham Lincoln, viria a vigorar a partir de
1° de janeiro de 1863, sendo seguida, mais tarde, a 18 de dezembro
de 1865, ao fim da Guerra de Secessão, pela 13ª emenda à
Constituição, que proibia a escravidão. A situação
pareceu ter chegado a bom termo com a promulgação, dez anos
mais tarde, em 1875, da Lei dos Direitos Civis (proibição
da discriminação racial em locais públicos). Entretanto,
a trégua durou pouco, pois tal lei "tornou-se inconstitucional
em 1883, segundo o Supremo Tribunal." (BERUTTI, 1997 : 95)
Os ecos dissonantes da escravidão continuaram a se expandir, contaminando,
cada vez mais, a imagem do país do sonho americano, criando
novas práticas para ratificar a exclusão dos negros. Berutti
esclarece que:
Nos estados do Sul, os brancos não abraçaram
a causa da igualdade racial. Desde a segunda metade do século
XIX, os brancos sulistas resolveram adotar leis Jim Crow, que
segregavam os lugares públicos. Cabe assinalar que a lei de
1954 [Em 17 de maio de 1954, no caso Brown versus Junta da Educação
de Topeka, a Suprema Corte considerou inconstitucional a segregação
racial nas escolas públicas] acarretou a fúria dos sulistas
que tinha origem na associação da extinção
de práticas Jim Crow com o casamento interracial. Em
julho desse mesmo ano, formou-se, no estado do Mississipi, Conselhos
de Cidadãos Brancos (White Citizen's Councils) com o
objetivo de lutar pela permanência de leis Jim Crow..
Esses Conselhos tiveram a duração de cinco anos.
(BERUTTI, 1997: 96)
Desde meados dos anos 50 e no começo dos anos
60, o Sul estava passando por um período de grande agitação
social e política, que viria somar-se ao impacto da guerra do Vietnã.
A luta pelos Direitos Civis estava adquirindo uma configuração
mais ativa e precisa, que deixava na sociedade um sentimento intrincado
composto de tensão, mal-estar, preocupação e vergonha,
como, por exemplo, o incidente com Rosa Parks a qual, no dia 5 de dezembro
de 1955, inseriu seu nome na História ao recusar-se a sentar na
parte de trás - que era a reservada para os negros - de um banco
de ônibus em Montgomery, no Alabama, um reacionário estado
no Sul dos Estados Unidos. Anteriormente, uma jovem havia sido presa por
tentar a mesma coisa e a Rosa Parks coube o mesmo destino. A doutrina
do separado mas igual da segregação racial norte-americana
já evidenciara a total desigualdade das condições
do negro. Quando Rosa Parks não sentou no lugar reservado aos negros
em um ônibus, estava expressando sua revolta e sua desobediência
a uma lei injusta que deveria ser mudada em um país cuja propaganda
sempre enfatizou o fato de ser a terra das oportunidades.
Em protesto à prisão de Rosa Parks, liderados por Martin
Luther King, Jr., um então desconhecido pastor protestante, adepto
da filosofia da não-violência, os negros boicotaram os ônibus
da rede local durante 381 dias, indo a pé ou de carona para seus
trabalhos e casas. Antes da total falência, a empresa de ônibus
decidiu acabar com a segregação. A essa altura, a ação
impetrada por Rosa Parks contra o governo norte-americano e o apoio do
futuro prêmio Nobel da Paz, Martin Luther King, Jr., atingiram repercussão
nacional.. Em 13 de novembro de 1956, a Suprema Corte vem a declarar a
inconstitucionalidade da segregação nos ônibus. A
luta pelos Direitos Civis estava deflagrada.
No ano seguinte, Martin Luther King, Jr. fundou a Conferência da
Liderança Cristã Sulista (SLCL - Southern Christian Leadership
Conference ) com o intuito de continuar lutando pela causa dos Direitos
Civis. A resposta à sua luta viria em agosto desse mesmo ano quando
o Congresso aprovou a "Lei dos Direitos Civis, com a função
de `investigar as infrações dos direitos civis em virtude
de raça, religião ou origem nacional.'" (BERUTTI, 1997 :
97)
A resistência passiva como forma de luta já era conhecida
desde o ensaio do escritor transcendentalista Henry David Thoreau, intitulado
"Civil Disobedience", mais tarde seguida pelo Mahatma Ghandi na Índia.
Depois do boicote aos ônibus, surgiu a prática dos sit-ins,
em que jovens negros sentavam-se em restaurantes públicos à
espera de serem servidos, o que lhes era negado por causa de sua cor.
O primeiro sit-in aconteceu em Greenboro na Carolina do
Norte a 1.o de fevereiro de 1960. Nos anos 60, essa prática pacifista
estendeu-se a piscinas públicas, teatros, bibliotecas, hotéis
e playgrounds, causando a prisão, entre 1960 e 1963, de mais de
24.000 pessoas, além de algumas mortes. (BERUTTI, 1997 : 98)
No panorama da luta pelos Direitos Civis destacaram-se duas organizações:
o SNCC - Comissão Estudantil de Coordenação Não-Violenta
(Student Nonviolent Coordinating Committee (1960) e o CORE - Congresso
da Igualdade Racial (Congress of Racial Equality) (1961).
Envolvendo militantes negros e brancos, lutavam, principalmente, pelo
direito ao voto. Entre seus programas, destacavam-se os freedom rides,
viagens em ônibus para averiguar o cumprimento da lei do Supremo
Tribunal (1960) contra a discriminação dos negros nos transportes.
O contraste entre o Sul e outras regiões dos Estados Unidos, depois
da Guerra de Secessão (1861-1865), vai ficar mais marcado, portanto,
na década de 60, com a acirrada e necessária luta pelos
Direitos Civis no sentido de permitir a todos os norte-americanos a liberdade
e a cidadania a que deveriam ter direito. Nesse contexto, qual o papel
do escritor sulista? Eudora Welty vai nos dar uma resposta a essa pergunta,
no ensaio "Must the novelist crusade?" (1965). Por ser escritora e ter
nascido e vivido no Sul, Welty era constantemente interpelada ao telefone,
que não parava de tocar, com ligações em que cobravam
dela uma literatura que abordasse os problemas políticos e sociais
desse difícil momento histórico. No ensaio acima referido,
ela vai se posicionar enquanto escritora, e escritora que nasceu e viveu
no Sul. Declara que a literatura não é o lugar certo para
se fazer propaganda ou para empunhar bandeiras e que o escritor e o editorialista
não devem se misturar. Segundo ela, os escritores sulistas devem
escrever com amor e não para instruir, ou em exorcismo:
E então finalmente eu penso que nós
[os escritores no Sul] precisamos escrever com amor. Não em
defesa própria, não com ódio, não objetivando
instruir, não como refutação, não em qualquer
tipo de militância, ou como apologia, mas com amor. Nem também
como exorcismo, o que seria fazer o leitor arcar com isso em seu lugar.
(WELTY, 1990: 156)
Esse posicionamento de Welty, contudo, não implica
na indiferença do escritor face aos problemas da humanidade, pois
é essa mesma empatia pela condição humana que vai
levá-lo a escrever. É esse trabalho da imaginação,
feito com paixão, que será distorcido, caso o escritor troque
o seu lugar com o editorialista:
A indiferença seria certamente perniciosa
para o escritor de ficção, a indiferença a qualquer
aspecto da situação humana. A paixão é
o principal componente da boa ficção. Ela resplandece
na empatia pela condição humana e permeia toda a grande
literatura. ( E com certeza a paixão e a têmpera são
coisas diferentes; escrever sob o calor da paixão pode ser
feito com extremo equilíbrio ). Mas distorcer um trabalho de
paixão por uma causa é trapacear e o fim, longe de justificar
os meios, é bem certo de se perder com ele. Então o
romance não terá sido o trabalho da imaginação,
ao mesmo tempo apaixonado e objetivo, feito por um homem lutando em
seu recolhimento com algo de seu para dizer, mas somente seria um
pedaço de comida. (WELTY, 1990: 156-157)
Foi essa empatia e o calor da paixão que envolveram
Eudora Welty, fazendo com que ela escrevesse o conto "Where is the voice
coming from?"(1963). Compartilho da opinião de Jan Nordby Gretlung
ao sustentar que a morte do líder negro dos direitos civis Medgar
Evers, em Jackson, cidade natal de Welty, foi a gota d'água para
ela. Evers (1926-1963), que desde 1954 era secretário da NAACP
- Associação Nacional pelo Desenvolvimento da Gente de Cor
(National Association for the Advancement of Colored People), fundada,
em 1909, por W.E.Dubois. Evers, defendendo a não-segregação,
começara a se distinguir na cidade, ao liderar boicotes e defender
a aceitação de homens negros na polícia local. Ele
mesmo fora, no passado, uma vítima da segregação
quando tentou, em vão, se matricular em uma Faculdade de Direito.
Enquanto uma escritora que sempre procurou fazer da literatura um instrumento
que ajudasse aos homens a se olharem uns aos outros, afastando as cortinas
do desentendimento na busca da compreensão, Welty sentiu uma necessidade
vital de exteriorizar toda a sua indignação no exato momento
em que soube da morte de Evers. Foi para a máquina de escrever
e colocou no papel a sua visão desse momento histórico em
um conto, que escreveu de uma só vez, sem parar, claramente movida
pelo calor da paixão a que se referira acima. Anos depois, iria
declarar em uma entrevista que
[...] sabia o que estava na mente daquele homem
porque eu havia vivido toda a minha vida no lugar onde isso aconteceu.
Senti o mais estranho sentimento de horror e compulsão; tudo
junto.Tentei escrever do interior do meu próprio Sul e essa
é a razão porque ousei colocar a história na
1.a pessoa. ( PRENSHAW, 1985: 83)
Na sua Collected stories of Eudora Welty (1980),
os dois contos sobre a década de 60, "Where is the voice coming
from?" (1963) e "The demonstrators" (1966) aparecem na seção
"Uncollected stories". No prefácio, ela, ao se referir sobre
o primeiro, comenta:
Aquela noite quente de agosto quando Medgar Evers,
o líder local dos direitos civis, levou um tiro pelas costas
em Jackson, pensei, com opressiva clareza: Quem quer que seja o assassino,
eu o conheço: não sua identidade, mas como ele foi surgindo
neste lugar e neste tempo. Isto é, eu deveria já ter
aprendido por viver aqui, o que se passava pela cabeça de um
homem assim, intencionado a cometer tal ato. Escrevi a história
dele - minha ficção- na primeira pessoa: sobre esse
ponto de vista da personagem, senti, através de meu choque
e revolta, que eu não poderia errar. (WELTY, 1980 : XI)
O conto "Where is the voice coming from?" foi enviado
ainda em junho para uma revista do Norte, a New Yorker, de grande
circulação e renome nos Estados Unidos, tendo sido publicado
daí a duas semanas, passando a frente de outras matérias.
Quando prenderam o suspeito do assassinato, Welty, por telefone, teve
que fazer algumas alterações, pois sua história,
embora uma obra de ficção, trazia elementos que poderiam
influenciar o julgamento do caso. O fato historiográfico que é
a fonte do conto é a data de 2 de junho de 1963, quando Medgar
Evers foi assassinado ao voltar de um comício por volta da meia-noite
em sua casa. Foi morto por um tiro que o pegou pelas costas. O assassino
deixou a arma perto do morto em uma árvore comum no Sul, uma madressilva,
uma pista que acabaria levando a polícia até ele. Essa é
a noite em que John Kennedy havia se dirigido à nação,
dizendo que iria encaminhar uma lei ao Congresso no sentido de assegurar
justiça racial.
O conto, como já foi mostrado, foi escrito na primeira pessoa,
um ponto de vista quase nunca adotado por Welty. A autora prende a atenção
do leitor desde a primeira frase, fazendo o narrador revelar traços
de sua personalidade racista, expostos em uma análise psicológica
profunda que nos revela a mente de um assassino frio e calculista, que
mata por pura satisfação:
Eu digo para a minha esposa, "Você pode chegar
perto e desligar. Você não precisa ligar e olhar para
a cara preta de um negro não mais do que você quiser,
ou escutar o que você não quer ouvir. Este ainda é
um país livre".
Acho que foi isso que me deu a idéia. (WELTY, 1980:
603)
O narrador de Welty - essa voz não identificada,
a que o título do conto alude- pode ser visto como o resultado
de longos anos de hegemonia da elite branca sulista: seu discurso revela
sua vaidade e arrogância que a ele são outorgadas somente
pela cor de sua pele. Para o narrador, matar um ser humano é tão
fácil quanto desligar uma máquina. Ele acha que James Meredith,
o estudante negro que teve de ser escoltado pela polícia federal
para entrar na Universidade do Mississipi em Oxford em 1962, deve ser
assassinado com um tiro. Cabe aqui lembrar que, em abril de 1963, dois
meses antes do assassinato de Medgar Evers, o comissário de polícia,
Eugene "Bull" Connor e o governador George Wallace do Alabama, este último
famoso por desrespeitar leis federais e negar o acesso de estudantes negros
à Universidade, agrediram os participantes de uma manifestação
em prol dos Direitos Civis, liderada pelo pastor Martin Luther King, Jr.
Eudora Welty completa, aos poucos, a diegese do texto: o negro que o narrador
quer matar e do qual o leitor ainda não sabe nada, mora perto de
sua casa, em uma região de prostitutas, quase nos limites da cidade.
Usando o carro que pediu emprestado ao cunhado, ele vai à casa
do negro e se esconde atrás de uma árvore, de tocaia, escondendo-se
na escuridão da noite. Como o homem não aparece, ele imagina
que "Ele está em algum lugar planejando ainda alguns outros
meios de fazer o que nós dizemos a eles que eles não podem
fazer" (WELTY, 1980: 603). Ao descrever o momento do assassinato,
usa uma imagem que parece remeter a uma águia, imagem essa que
nos remete, por sua vez, à águia americana, símbolo
dos Estados Unidos, parecendo implicar a legitimidade que vê no
seu próprio ato:
Algo mais escuro do que ele, como as asas do pássaro,
abriu-se sobre as suas costas e o jogou ao chão. Ele se levantou
uma vez, como um homem sob garras ruins, e como com sangue pesando
uma tonelada, ele andou com isso nas costas em direção
à luz. Não foi além de sua porta. E caiu e ficou
ali mesmo. (WELTY, 1980: 604)
Durante todo o tempo, um pássaro canta, empoleirado
em uma árvore próxima. O assassino, que pouco a pouco vai
revelando a sua motivação, compara a si mesmo com ele, dizendo
que, pelo menos uma vez, ele ficara no topo do mundo. Não totalmente
satisfeito com o assassinato, ele quer mais. Acerca-se do corpo e o interpela,
exercendo a sua supremacia temporária
[...] Agora eu estou vivo e você não.
Nós não somos agora e nunca seremos iguais, e você
sabe por que? Um de nós está morto. O que você
acha disso, Roland", eu disse. "Bem, você procurou, não
foi? (WELTY, 1980: 604)
Calculista e frio, saboreando o seu ato criminoso como
um artista observa a sua obra, ele espera para ver se alguém sai
de dentro da casa. Quando a esposa de Roland sai, nota que ela parecia
não ter estado dormindo e sim estar esperando o marido voltar para
casa, o que o leitor pode interpretar como um sinal de preocupação
da parte dela. [Mais tarde ele pergunta a sua mulher porque não
deixou nenhuma luz ligada para que ele se guiasse ao retornar.] Enquanto
vê essa cena, repara na grama bem verde do jardim da casa e nota
que eles devem gastar muito dinheiro com água e eletricidade. Acrescenta
que tudo correu muito bem, só ressentindo a falta de uma cadeira
para apoiar as costas enquanto esperava a vítima. Quando volta
para casa, vemos que a mulher partilha sua atitude racista: só
está preocupada com os mosquitos que poderiam tê-lo mordido.
Mais tarde, ao saber que a NAACP está mandando alguém à
cidade, ela diz ao marido que ele poderia ter esperado mais e matado alguém
mais importante que Roland Summers. Quando ele lhe conta que largou a
arma perto do corpo, ela briga com ele, já que isso poderia fornecer
pistas que o incriminassem.
Começamos a detectar no discurso do narrador pistas que nos conduzem
a uma maior configuração da personagem criada por Welty,
desvelando um homem cheio de inveja, sentimento de inferioridade, ressentimento
e medo de mudanças. Como um negro tem uma situação
econômica melhor que a dele? Como um negro desafia a tradição
de opressão? Como a foto de um negro aparece nos jornais enquanto
ele mesmo nunca teve um retrato seu tirado? Como ninguém o conhece
enquanto um negro é aplaudido e querido?
O narrador vai, aos poucos, revelando a sua insatisfação
face ao modo como a cidade reage ao assassinato: a comunidade branca,
de quem ele esperava apoio e reconhecimento pelo seu ato, na realidade
parece estar dividida em relação à questão
racial. A divulgação do assassinato pela mídia é
grande, mas ninguém tem a idéia de que é ele o assassino.
Quando surge a hipótese de que o assassinato foi encomendado pela
NAACP, ele retruca , "Você não consegue ganhar!",
em uma alusão de que a luta é desigual. Alude também
ao governador do Mississipi na época, Ross Barnett, dizendo que
mesmo que ele viesse a lhe recompensar com um tapinha nas costas, ele
não aceitaria, pois matou por puro prazer, como já dissera
anteriormente. Em seu discurso vemos também a sua raiva contra
os Kennedys. É importante ressaltar, que, como apontamos anteriormente,
Evers morre na noite em que o presidente Kennedy dirigiu-se a nação,
comunicando o encaminhamento de uma nova lei que asseguraria a justiça.
Kennedy viria a ser assassinado em 22 de novembro do mesmo ano, fato que
ainda não acontecera no momento em que Welty escreve o conto. Após
a morte de Evers e face à violência nos estados do Alabama
e Mississipi, o presidente encaminhou ao Congresso uma série
"de propostas legislativas para pôr fim à
segregação nas acomodações e logradouros
públicos (restaurantes, lojas, teatros, hotéis, etc.):
acabar com a discriminação nos empregos; e garantir
a integração nas escolas." (PAMPLONA, 1996: 85)
A cidade de Jackson retratada no conto recebe o nome
de Thermopylae, que em grego quer dizer portas quentes e, com efeito,
todo o discurso do narrador aponta para o calor insuportável daquela
noite, em uma alusão, talvez, ao estado febril da mente do narrador.
Lembra também o calor de uma batalha na História Antiga:
no ano de 480 A.C. os gregos e os persas se enfrentaram, sendo que, apesar
dos últimos estarem em muito maior número, os gregos se
comportaram bravamente. No texto de Welty os gregos serão os negros,
que resistiram até o momento histórico descrito no conto?
Welty apresenta Thermopylae como uma cidade sulista cujos ânimos
acirrados retratam os turbulentos anos 60. Depois do assassinato, esse
espaço fica como em chamas. E o narrador ainda anseia por mais
agitação:
Não vou ficar triste se eu vir aqueles pedaços
de tijolos chover em cima de nós, só para agitar mais.
Garrafas estourando também, elas podem vir voando quando eles
quiserem. Centenas delas, todas quebradas, como em Birmingham. Estou
esperando que eles tragam facas automáticas poderosas como
em Harlem e Chicago. Fique bastante ligado na TV que você vai
logo ver isso acontecer na Deacon Street em Thermopylae. O que é
que os está impedindo? Isso é tudo? Porque isso está
neles. (WELTY, 1980: 607)
O narrador não gosta quando os policiais protegem
uma manifestação pacífica de crianças negras
que cantam e empunham bandeiras norte-americanas. Sua raiva continua a
se manifestar. Diz ele:
Eu já estou preparado para esse funeral.
[...]Mas eu aviso a eles para irem com cuidado. Já não
está na hora de nós, pagadores de impostos, começarmos
a fazer mudanças? Começar a dizer para os professores
e para os pregadores e para os juízes do que chamamos de nossas
cortes até onde eles podem ir? (WELTY, 1980: 607)
Nos últimos momentos do monólogo, somos
informados de que o narrador foi um garoto nascido na zona rural, que
fugiu de casa cedo, só retornando quando soube que a mãe
colocara um anúncio para achá-lo, o que aponta para a possibilidade
de ele poder fugir de novo. Ao final do conto, ele retira o violão
da parede e começa a tocar, repetindo as palavras "pra baixo, pra
baixo, pra baixo". Será esta uma alusão, talvez, ao seu
ato criminoso que levou ao chão o corpo morto de um líder?
Ele também está quase certo de que vai ser difícil
eles o prenderem, o que realmente veio a ocorrer na vida real. A História
nos mostra que, onze dias após a morte de Medgar Evers, Byron de
la Beckwith, um ativista segregacionista foi preso como suspeito. Beckwith,
diferentemente da personagem concebida por Welty, é um homem branco
descendente de uma família sulista que fora importante no passado.
Morando em uma fazenda decadente em Greenwood, onde nasceu, ele afirmou
que seu avô fora um coronel no exército confederado. Para
se ter idéia do nível de racismo em Greenwood é importante
lembrar que essa cidade entrou para um dos capítulos mais amargos
da História do Mississipi quando um garoto negro de catorze anos
foi assassinado por ter assobiado, para uma mulher branca, um tipo de
assobio chamado wolf-whistling, que consiste de um som alto e baixo,
normalmente produzido por um homem ao se sentir sexualmente atraído
por uma mulher. (GRETLUND, 1994 : 222-223)
Byron de la Beckwith foi a julgamento várias vezes, sem contudo
ser condenado. Sua condenação somente se daria em 1994,
ou seja, vinte e um anos depois do crime.
Para finalizar, recorro a um trecho do artigo de Luis Filipe Ribeiro intitulado
"Literatura e História: uma relação muito suspeita"
em que ele aborda o caráter de processo histórico inerente
a cada ato de leitura. Diz ele:
Há no texto, qual um palimpsesto, uma superposição
de camadas que demandam o trabalho de leitura para oferecerem-se plenas.
É, ele também, um processo histórico. A cada
leitura, socialmente dada, deposita-se, sobre as já existentes,
uma nova camada de significações, que a ele se agrega
como um elemento a mais de sua história. Cada uma dessas camadas
constitui, a sua vez, um outro texto, que adotará ou não
a forma escrita. Mas, de qualquer forma, adquirirá existência
social e especificidade histórica. Assumindo a forma material
de texto escrito, candidatar-se-á à perenidade e a constituir-se
como elemento pertencente a uma determinada cultura. (RIBEIRO,
2000 : 123-124)
"Where is the voice coming from?" apresenta um fato historiográfico
que foi transformado em arte pela imaginação de Eudora Welty.
Com a leitura que a História nos oferece dos fatos podemos entender
melhor a década de 60 no Sul e o movimento dos Direitos Civis.
Com a história de Welty, podemos empreender uma nova leitura dessa
época turbulenta, acompanhando, ficcionalmente, o processo mental
de um assassino que cresceu no Sul e é parte integrante dele. São
essas camadas, que formam esse palimpsesto a que Ribeiro se refere, que
tentamos objetivar. A História e a história de Welty não
nos deixam, felizmente, esquecer o passado.
Notas
[*] Este
trabalho foi originalmente apresentado no painel "Rumos da História
e da Literatura, sob o Impacto da Luta pelos Direitos Civis, nos anos
60" na XI Jornada de Estudos Americanos: Raízes e Rumos da ABEA
- Associação Brasileira de Estudos Americanos, realizada
na Universidade Federal Fluminense no período em junho de 2000.
[**]
- A tradução dos textos em Língua Inglesa são
de minha autoria.
[1]
Ver HALL, B. C. & Wood, C. T. The South. New York, Scribner,
1995. O capítulo n.7 (p.188-212), que focaliza o Mississipi, intitula-se
"Why we all live at the P.O", em uma clara alusão ao conto de Eudora
Welty "Why I live at the P.O."
[2] Frederic J. Hoffman oferece uma análise
da distinção entre cena e lugar, em que, inclusive, usa
alguns dos conceitos de Welty em seu ensaio "Place in fiction". Ver HOFFMAN,
Frederic J. Definitions and limits. In: The art of Southern fiction:
a study of some modern novelists. Prefácio de Harry T. Moore.
Carbondale and Edwardsville : Southern Illinois University Press, 1968,
p. 3-28.
[3] Para Lewis P. Simpson, a consciência
do self e da História é fundamental para os romancistas
sulistas. Ver SIMPSON, Lewis P. Southern
Fiction. In: HOFFMAN, Daniel, ed. Harvard guide to contemporary American
writing.. Cambridge, Massachusetts : The Belknap Press of Harvard
University, 1979, p. 153-190.
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Organizado por Tereza Marques de Oliveira Lima. Niterói, EDUFF,
1997, p. 13-25.
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Paulo : Atual Editora, 1996.
PRENSHAW, Peggy W., ed. Conversations with Eudora Welty. Jackson:
University Press of Mississippi, 1996.
PRENSHAW, Peggy W., ed. More conversations with Eudora Welty. Jackson:
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muito suspeita. In: Geometrias do Imaginário.. Santiago
de Compostela, Espanha : Edicións Laiovento, 2000, p. 121-128.
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essays and reviews. New York : Vintage International, 1990, p. 116-133.
WELTY, Eudora. Must the novelist crusade? In: The eye of the story:
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p. 146-158.
WELTY, Eudora. "Where is the voice coming from?" In: The collected
stories of Eudora Welty. San Diego : Harcourt, Brace, Jovanovich,
1980, p. 603-607.
WELTY, Eudora. Preface. In: The collected stories of Eudora Welty.
San Diego : Harcourt, Brace, Jovanovich, 1980, p. IX-XI.
Tereza
Marques de Oliveira Lima é Doutora
em Língua Inglesa, Literatura Inglesa e Norte-Americana pela Universidade
de São Paulo. É professora adjunta de Literatura Norte-Americana
do Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense. Sua área
de pesquisa é a literatura sulista norte-americana. Sua pesquisa
atual é a questão da identidade do sujeito feminino no conto
produzido pelas escritoras sulistas das três últimas décadas.
Tem publicado capítulos em livros, artigos em revistas especializadas
nacionais e internacionais e em jornais.
E-mail: tmolima@attglobal.net
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