O LIMBO VISTO DE PERTINHO

 

Julio Cesar Monteiro Martins

Universidade de Pisa

 

Versão em Italiano


 

 

"...e quem vem de um outro sonho feliz de cidade
aprende depressa a chamar-te realidade
porque és o avesso do avesso do avesso do avesso.
"

Caetano Veloso, in Sampa

 

 

É assim que eu me vejo: um cronista do limbo. Ao meu redor, desde sempre, não uma daquelas cidades de brinquedo onde escritores gostam de aninhar-se na sua fase madura, mas uma cidade de verdade, terrível, engolfante, superpovoada; a anti-utopia do milênio à nossa frente, o espólio trágico do milênio que termina. Um parque de diversões sitiado por um parque de atrocidades. Uma grande cidade brasileira.

Sou um cronista do limbo, lá de onde ninguém traz notícias. Território sem definição, mais do que esquecido, sequer conceituado, para onde vão os sem-nome, os varridos da memória coletiva do Ocidente, os que "não existem" aos milhões. Trata-se de uma miragem às avessas, que desobstrui o poluído imaginário da Europa de hoje para abrir espaço para a fantasia de um Brasil caricato, de virtudes rurais, de doce languidez praiana, da bananeira em flor no centro do festival da cor. E são cores mais que vivas, são berrantes, como os tons de verde e amarelo das frutas numa feira livre. Jamais como o vermelho-sangue sobre cinza dos cadáveres que amanhecem em estranhas posições sobre o cimento rachado das calçadas. Jamais o verde-escuro sobre cinza do musgo que cobre os paredões de concreto dos prédios da paisagem penitenciária onde sobrevivemos: o cartão-postal da morte próxima.

De onde vem o desconforto causado pelas palavras duras das "crônicas do limbo"? Ele ocorre em primeiro lugar porque lá, onde toda vida é um estado crítico e onde toda situação é limite, sabe-se muito sobre o homem, talvez mais do que convém saber. E não se trata de um "outro homem", mas do mesmo homem que se encontra por toda parte. É no Rio ou em São Paulo onde a Europa tem os seus segredos revelados, pois foi lá onde ela pecou e continua pecando. Para a Europa, o circo das multidões em êxtase ou desespero, em Niterói, Brasília ou Vitória, não é tanto um limbo quanto um purgatório secreto. As bordas da Europa, a América Latina e o Leste Europeu, são os seus espelhos, onde ela, contrariada, vê-se sem maquiagem, sob o foco de uma luz crua. As multidões brasileiras são o fim de uma certa valsa dançada à meia-luz.

Não é mais possível que os temas e os enfoques de ordem filosófica, metafísica, psicológica, existencial e ideológica continuem a ser uma prerrogativa exclusiva dos países ricos na literatura quando há muito tempo não o são mais na vida. A condição humana é colocada à prova de igual maneira em Belo Horizonte ou em Bruxelas, em Curitiba ou em Los Angeles, quando confrontada com as relações em crise, com a falta de sentido generalizada, com a perspectiva da morte precoce, com o esmagamento da identidade ou com o sítio implacável do espírito pela mídia. A pobreza, o ruído e a violência das megalópoles tropicais apenas desmascaram ou agravam problemas que são os mesmos hoje em dia onde quer que se vá. As obras que representam aquele mundo não são obras exóticas, mas estranhamente familiares. São a face desfigurada, embora ainda reconhecível, de um parente próximo. E negar, por desconforto ou por covardia intelectual, a existência e a potência dessas obras é o mesmo que tentar fugir inutilmente de um planeta que evoluiu na direção indesejada.

Há ainda uma outra questão: aos países do meu continente foram impostas as monoculturas, como a da cana de açúcar, a do algodão, a do café, a da banana ou a da borracha. A região só podia produzir o que interessasse à Europa naquele momento, e passaria a depender dela para todo o resto. A monocultura foi a imposição de uma estratégia de miséria. Mas até que ponto esta atitude mental colonialista se modificou? Temos hoje um subproduto daqueles tempos de açoites e correntes, que é a monocultura da cultura. Os escritores da América tropical devem escrever sobre um certo continente desejado pela fantasia européia, fornecer o produto imaginário que hoje interessa à Europa, que abre janelas dentro do sonho, que convida à evasão e aos sabores e odores de fascinantes excessos, de um sempre diverso cosmético do mundo a que chamam "exotismo". É esta a origem do sucesso do "realismo mágico e maravilhoso", da edulcoração "capa e espada" da luta política dos guerrilheiros, das nuvens de borboletas, dos tiranos lacrimejantes e das mulatas com lábios de mel e suores de jasmim que seguem para o Hemisfério Norte todos os dias, embaladas em containers abstratos, em troca de remessas ocasionais de marcos. Liras ou francos, lada a lado com containers concretos, cheios de chumaços de algodão, sacas de café ou peças de automóveis. Neste nosso novo mundo de lazer e de serviços, de consumo cultural em larga escala, a fantasia tornou-se um produto nobre, uma especiaria da pós-modernidade, e a cultura da monocultura faz-se ouvir mais uma vez: "Nós compramos o que é diferente do que temos aqui, e que seja curioso o bastante para nos entreter e nos seduzir, para nos ajudar a enganar alegremente o tédio, o resto não nos interessa, não queremos comprar e não queremos saber, não queremos sequer ouvir falar disso... " confirmando assim que o imaginário mundial, com suas "fazendas" de idéias e de imagens, está sujeito às mesmas leis implacáveis do mercado, e é a partir do próprio mercado que, infelizmente, ele busca a sua definição e as suas vias de desenvolvimento.

Mas a verdade também tem a sua força. Ela é como um pólen repleto de sementes, soprado por muitos ventos, rebelde à monocultura planificada, e que germina onde quer. Ela costuma germinar muito e bem. A vida brasileira de verdade produz há pelo menos quatro décadas a sua literatura profunda, enigmática, terrível e sublime como a vida. Produz os seus "cronistas do limbo", um universo literário espantoso, onde o homem aparece no melhor e no pior de si mesmo, onde seus atos e gestos são epifanias que emanam de sua essência, assim como do tecido humano puído, esgarçado, rasgado por forças que desconhece. Ele traz nas mãos as suas vísceras que oferece ao século, sem saber que ninguém as receberá, que ninguém está disposto a vê-las.

É por tudo isto que os escritores do Brasil urbano de hoje são todos eles mártires obscuros da literatura, a serviço da mais incômoda de todas as verdades. Perdem-se em meio aos homens mais perdidos. Dizem o que o resto do mundo tem medo de ouvir. Vivem torturados pela própria sensibilidade, sua ferramenta de trabalho, e morrem como vivem, descrevendo as sensações extremas do limbo.

Sim senhores, somos nós que desenhamos a face mais autêntica deste fim de século em tantos, teimosos livros. Somos nós os operários da palavra. Construimos uma literatura irrecusável, onde os homens que nela não se reconhecerem terão a oportunidade preciosa de se conhecerem.

Nós viemos de onde menos se esperava, para mostrar que o nosso limbo, senhores, é uma exuberante mistura de inferno e paraíso até agora mantida à distância dos olhos e do coração dos homens.


Julio Julio Cesar Monteiro Martins, (Niterói 1955), publicou no Brasil os livros: Torpalium (contos, 1977), Sabe quem dançou ? (contos, 1978), Artérias e Becos (romance, 1978), Bárbara (romance, 1979), A Oeste de Nada (contos, 1981), As Forças Desarmadas (contos,1983), O Livro das Diretas (ensaios, 1984), Muamba (contos1986), e O Espaço Imaginário (romance, 1987); e na Itália, onde leciona Literatura Brasileira e Tradução na Universidade de Pisa, Il percorso dell'idea e as peças teatrais L'isteria del marmo e Il galleriere
E-mail: jmontei@tin.it


Retorna ao Índice