© by Luis Filipe Ribeiro - Expulso da Festa in Mulheres de Papel: um estudo do imaginário em José de Alencar e Machado de Assis. Niterói: EDUFF, 1996


 

 Capítulo XII

 

 Expulso da Festa

 

 

 Publicado em 1891, dez anos depois das Memórias póstumas de Brás Cubas e oito anos antes de Dom Casmurro, Quincas Borba compõe com eles uma trilogia. Todos tratam do tema do matrimônio e do adultério; Quincas Borba e Memórias póstumas compartilham uma personagem comum, o Quincas Borba, ainda que com uma mínima participação nos dois; e, na construção, têm traços de semelhança bastante nítidos.

Não fora assim, o próprio Machado de Assis não teria, no Prólogo da 3ª Edição, tocado no assunto:

Um amigo e confrade ilustre tem teimado comigo para que dê a êste livro o seguimento de outro. "Com as Memórias póstumas de Brás Cubas, donde êste proveio, você fará uma trilogia, e a Sofia de Quincas Borba ocupará exclusivamente a terceira parte." Algum tempo cuidei que podia ser, mas relendo agora estas páginas concluo que não. A Sofia está aqui tôda. Continuá-la seria repeti-la, e acaso repetir o mesmo seria pecado. Creio que foi assim que me tacharam êste e alguns outros dos livros que vim compondo pelo tempo fora no silêncio da minha vida. Vozes houve, generosas e fortes, que então me defenderam; já lhes agradeci em particular; agora o faço cordial e pùblicamente. (ASSIS, 1962b: p. 640)

Seguramente ele tem razão, no que diz respeito ao enredo. A história de Sofia e Palha mais Rubião está aqui praticamente esgotada. Não haveria muito que agregar, sem repetir. Talvez o amigo, fascinado, ele também, pela mulher do Palha, gostasse de vê-la em outras situações e observá-la de outros ângulos. Dificilmente descobrir-lhe-ia traços novos de caráter, tão bem está fixado seu perfil nestas páginas inesquecíveis. Mas, a própria vacilação do autor, quanto ao problema proposto pelo amigo, revela que há aí alguma coisa. Sofia está pronta e inteira. Mas o problema em que Sofia vive e respira - o matrimônio e a possibilidade do adultério -, pede desenvolvimento. Em Brás Cubas, ele tratou de um caso explícito de adultério; em Dom Casmurro, futuramente se há de conviver com uma sua possibilidade, nunca assumida. Nos dois casos, o narrador faz parte da história narrada. No primeiro, ele é o amante; no outro, é o marido suspeitoso. É, um pouco, a mesma história vista de ângulos diferentes, mas situados dentro do próprio espaço onde vivem e sofrem as personagens. No caso de Quincas Borba, o narrador está fora do mundo narrado e isto muda absolutamente tudo.

Primeiro, estando fora do universo de suas personagens, pode, se desejar, exercer a onisciência. Ou seja, a capacidade de saber tudo o que pensam e sentem as suas criaturas. Para ele, numa posição de deus criador de seu mundo, não pode haver segredos. A transparência é a regra. Há narradores, escrevendo de uma posição semelhante, que renunciam à onisciência, como forma de criar uma verossimilhança mais realista. Mas isto já são experimentos mais encontráveis em princípios do século XX e, dificilmente, coerentes com a proposta de que nascem. De quando em vez, a tentação divina aflora e lá se vai a idéia de renúncia pelo ralo da escrita.

Já no caso de o narrador ser uma das personagens do universo que se narra, ele não pode, ainda que queira, ser onisciente. Se Bentinho tivesse acesso a uma tal transparência das suas personagens, todo o seu drama desapareceria. Ele poderia ter a certeza que tanto buscou e a vida, sistematicamente, lhe sonegou. Saberia se Capitu fora infiel ou não, mas nós perderíamos a obra-prima que é Dom Casmurro. E, no caso de Memórias póstumas, se Brás Cubas não tem dramas de confiança conjugal - ao que parece, os amantes não são mordidos pela mosca fatal do ciúme... -, ele tampouco sabe o que pensa e sente Virgília e, por isso, não pode narrá-lo. O único que pode e deve, com sobejas razões, ter dúvidas é o pobre do Lôbo Neves, mas ele não é narrador e tampouco tem acesso à palavra. Para tentar descrever o que ele possa estar sentindo, o narrador vale-se dos testemunhos de Virgília, a esposa, que, por conhecê-lo melhor, pode construir uma imagem mais fiel de seu drama pessoal. Mas, nesse mundo, ninguém pode ver a alma de ninguém.

Nesse sentido, as experiências dos narradores de Dom Casmurro e Memórias póstumas de Brás Cubas constituem dois ensaios sobre a análise exterior dos outros e interna de si mesmos. Entre os dois, Machado cria o Quincas Borba, em que o narrador vai escarafunchar as intimidades de todos, mostrando-as ao leitor e sonegando-as às personagens umas relativamente às outras. Elas não podem conhecer o interior das demais, o que romperia a verossimilhança, a par de destruir o conteúdo dramático da história. Mas esse privilégio é estendido aos leitores que acompanham o ponto de vista do narrador.

Se, em Quincas Borba, perde-se a análise crispada que o narrador faz de si mesmo, ganha-se em amplitude. O universo dos romances narrados por alguém que se situa fora do universo das personagens, por ter o centro de observação deslocado para mais longe, possibilita um ângulo de visão mais abrangente. Mas é evidente que o que se ganha em extensão, perde-se em aprofundamento. Tal relação não é, nem pode ser, mecânica. Apenas o que se afirma aqui é que uma e outra forma de narrar prestam-se melhor a tal ou qual tipo de observação. Nem por situar seus narradores fora do mundo narrado, Dostoiévski deixa de aprofundar as análises psicológicas de suas criaturas. Nem toda narrativa em que o narrador habita o universo das personagens nos brinda com análises extremadas de seus conflitos internos. Em Sir Conan Doyle, o narrador Watson, amigo inseparável de Sherlock Holmes, escreve de dentro do universo narrado e, nem por isso, deixa de ser um mero observador quase impassível, que jamais fala de si mesmo.

O que desejo marcar é que, no caso destes três romances de Machado, a unidade se dá de várias formas e uma delas é a transição das formas de narrar. Em Brás Cubas há um narrador cínico e desabusado, que fala de si mesmo e dos outros, sem poder exercer nenhum tipo de visão interna sobre eles. Daí, passa-se a um narrador externo ao mundo dos fatos contados, ciente de tudo e de todos, mas mais distanciado, não podendo praticar o sarcasmo e o cinismo, senão em relação ao leitor, já que este constitui a sua única relação direta de enunciação. Ele pode divertir-se às custas das personagens, mas não pode exercer a arrogância de um Brás Cubas ou a impiedade de um Bentinho, que exigem o confronto social direto. No terceiro livro, ele retorna ao narrador habitante do mundo de suas personagens. Mas Bentinho não pode ser desabusado e irreverente como o primeiro, porque é ele, no caso, a provável vítima do sarcasmo público, se o que imagina coincidir com a realidade. Ele não pode rir-se de tudo e de todos, porque é sério candidato ao riso alheio. Ao contrário de Brás Cubas, não está refugiado na eternidade que tudo permite e nada cobra. Tem suas âncoras firmemente lançadas no solo social que coabita com suas criaturas. De Bentinho exige-se uma verossimilhança histórica, já que ele vive no seio de um mundo regido pelo tempo. Brás Cubas já se mandou desta dimensão para outra e manda às favas a história e outras formas de discurso, regidos pela lógica dos valores dominantes.

O narrador de Quincas Borba situa-se a 24 anos do início e a 20 do final dos fatos narrados. A história que relata abrange apenas cinco anos, de 1867 a 1871, que compreendem da chegada gloriosa de Rubião ao Rio de Janeiro à sua morte na miséria em Minas Gerais, sua terra natal. Aproximadamente nesse mesmo período, Bentinho vive de seu casamento à sua separação e Brás Cubas, já há muito separado de Virgília, vive seus últimos anos, morrendo dois anos antes de Rubião. A tragédia deste é paralela, no tempo, às desgraças de Bentinho e são muito posteriores às estripulias sem drama de Brás Cubas.

Sua história é simples. De uma simplicidade franciscana. Até porque ele é um simples, no pior sentido da palavra. E este fato é definitivo para impedir que ele fosse um dos narradores de Machado de Assis. Não combina com o estilo sibilino do mestre a presença de um narrador simplório, pouco inteligente, um zero de sagacidade, avesso ao cinismo - até por incapacidade! - e distante do sarcasmo, devido à sua bondade explícita.

O protagonista, neste romance, não é um membro da aristocracia carioca. É um pobre-diabo, professor primário em Barbacena, logo transformado em enfermeiro, que, por um golpe do destino, recebe uma herança, enriquece e vem para a Corte. Não tem ele as luzes ou o brilho das personagens citadinas, habituadas às luzes da ribalta e dedicadas, em tempo integral, ao carrossel das vaidades. Não tem origem ilustre, não é mais inteligente que a média, não é culto nem ilustrado. Apenas tornou-se rico. O caminho foi simples e inesperado: cuidou de Quincas Borba, em seus dias finais e granjeou-lhe a afeição.

Rubião ficou sendo o único amigo do filósofo. Regia então uma escola de meninos, que fechou para tratar do enfêrmo. Antes de professor, metera ombros a algumas emprêsas, que foram a pique.

Durou o cargo de enfermeiro mais de cinco meses, perto de seis. Era real o desvê-lo (sic) de Rubião, paciente, risonho, múltiplo, ouvindo as ordens do médico, dando os remédios às horas marcadas, saindo a passeio com o doente, sem esquecer nada, nem o serviço da casa, nem a leitura dos jornais, logo que chegava a mala da Côrte ou a de Ouro Prêto.

- Tu és bom, Rubião, suspirava Quincas Borba.

- Grande façanha! Como se você fôsse mau! (ASSIS, 1962b: p. 643)

Apesar de doente, Quincas Borba decide ir ao Rio de Janeiro. Aí morre, na casa de Brás Cubas, que escreve ao Rubião o mínimo indispensável:

A notícia correra a cidade; o vigário, o farmacêutico da casa, o médico, todos mandaram saber se era verdadeira. O agente do correio, que a lera nas fôlhas, trouxe em mão própria ao Rubião uma carta que viera na mala para êle; podia ser do finado; conquanto a letra do sobrescrito fôsse outra.

- Então afinal o homem espichou a canela? disse êle, enquanto Rubião abria a carta, corria à assinatura e lia: Brás Cubas. Era um simples bilhete:

O meu pobre amigo Quincas Borba faleceu ontem em minha casa, onde apareceu há tempos esfrangalhado e sórdido: frutos da doença. Antes de morrer pediu-me que lhe escrevesse, que lhe desse particularmente esta notícia, e muitos agradecimentos; que o resto se faria, segundo as praxes do fôro.

Os agradecimentos fizeram empalidecer o professor; mas as praxes do fôro restituíram-lhe o sangue. (ASSIS, 1962b: p. 651)

Há aqui dados curiosos. O primeiro deles diz respeito à figura de Brás Cubas, que faz a ponte entre as Memórias póstumas e o Quincas Borba. Curiosamente é a sua única aparição em cena e, ainda assim, indireta. Quando Rubião vai para a Corte, o natural seria procurá-lo. Se o fez, a narrativa não o registra. E, como personagem que é, se a narrativa não o diz, não o fez. Parece não haver ponte entre o mundo de Brás Cubas e o universo dos arrivistas e recém-chegados à fortuna. Segundo, a expectativa da herança mobiliza mais o narrador que a personagem. Não é uma manifestação desta, mas o discurso daquele que refere à insegurança sobre a solução final do destino dos bens. Mas não havia razões para tal:

Quando o testamento foi aberto, Rubião quase caiu para trás. Adivinhais por quê. Era nomeado herdeiro universal do testador. Não cinco, nem dez, nem vinte contos, mas tudo, o capital inteiro, especificados os bens, casas na Côrte, ações do Banco do Brasil e de outras instituições, jóias, dinheiro amoedado, livros, - tudo finalmente passava às mãos do Rubião, sem desvios, nem deixas a nenhuma pessoa, nem esmolas, nem dívidas. Uma só condição havia no testamento, a de guardar o herdeiro consigo o seu pobre cachorro Quincas Borba, nome que lhe deu por motivo da grande afeição que lhe tinha. (ASSIS, 1962b: p. 652)

O agora capitalista Rubião vem para o Rio de Janeiro e, já no caminho, mais exatamente na estação de Vassouras, conhece o casal que será definitivo na redação de sua tragédia: Sofia e Palha.

Provinciano e ingênuo, o pobre Rubião deslumbra-se com a sua nova situação de homem muito rico. Não sabe o que fazer e necessita de consultoria. Os novos amigos, íntimos da grande cidade - ele um ambicioso agenciador de negócios, ela uma mulher vistosa -, caem como uma luva para as mãos inábeis do novo rico. Resta saber se a recíproca não era verdadeira...

A amizade logo se solidifica e Rubião passa a freqüentar a casa de Palha, em Santa Teresa:

Rubião tinha vexame, por causa de Sofia; não sabia haver-se com senhoras. Felizmente, lembrou-se da promessa que a si mesmo fizera de ser forte e implacável. Foi jantar. Abençoada resolução! Onde acharia iguais horas? Sofia era, em casa, muito melhor que no trem de ferro. Lá vestia a capa, embora tivesse os olhos descobertos; cá trazia à vista os olhos e o corpo, elegantemente apertado em um vestido de cambraia, mostrando as mãos que eram bonitas, e um princípio de braço. Demais, aqui era a dona da casa, falava mais, desfazia-se em obséquios; Rubião desceu meio tonto. (ASSIS, 1962b: p. 658)

É o começo da perdição. Solteirão e solitário, a presença de Sofia em sua vida é uma questão de dias. Se não sabe haver-se com senhoras, o aprendizado será feito muito rapidamente. O que importa é que, no seu imaginário, as coisas começam a desenrolar-se com incomum velocidade.

"Mas que pecado é êste que me persegue? pensava êle andando. Ela é casada, dá-se bem com o marido, o marido é meu amigo, tem-me confiança, como ninguém... Que tentações são estas?"

Parava, e as tentações paravam também. Êle, um Santo Antão leigo, diferençava-se do anacoreta em amar as sugestões do diabo, uma vez que teimassem muito. Daí a alternação dos monólogos:

"É tão bonita! e parece querer-me tanto! Se aquilo não é gostar, não sei o que seja gostar. Aperta-me a mão com tanto agrado, com tanto calor... Não posso afastar-me; ainda que êles me deixem, eu é que não resisto.". (ASSIS, 1962b: p. 659)

Por outro lado, Sofia, sabendo ou não das fantasias do provinciano, esmera-se em alimentá-las:

- Quem é que me manda isto? perguntou Rubião.

- D. Sofia.

Rubião não conhecia a letra; era a primeira vez que ela lhe escrevia. Que podia ser? Via-se-lhe a comoção no rosto e nos dedos. Enquanto êle abria a carta, Freitas familiarmente descobria a cestinha: eram morangos. Rubião leu trêmulo estas linhas:

Mando-lhe estas frutinhas para o almôço, se chegarem a tempo; e, por ordem do Cristiano, fica intimado a vir jantar conosco, hoje, sem falta. Sua verdadeira amiga.

SOFIA.

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Rubião viu-os ir, entrou, meteu-se na sala, e ainda uma vez leu o bilhete de Sofia. Cada palavra dessa página inesperada era um mistério; a assinatura era uma capitulação. Sofia apenas; nenhum outro nome de família ou do casal. Verdadeira amiga era evidentemente uma metáfora. Quanto às primeiras palavras: Mando-lhe estas frutinhas para o almôço respiravam a candidez de uma alma boa e generosa. Rubião viu, sentiu, palpou tudo pela única fôrça do instinto e deu por si beijando o papel, - digo mal, beijando o nome, o nome dado na pia de batismo, repetido pela mãe, entregue ao marido como parte da escritura moral do casamento, e agora roubado a tôdas essas origens para lhe ser mandado a êle, no fim duma fôlha de papel... Sofia! Sofia! Sofia! [grifos do autor] (ASSIS, 1962b: p. 663-665)

Rubião, que almoçava com amigos, quando recebeu a prenda, foi alvo de chacotas e gozações. Todos imaginam que uma mensagem de amor acompanha as frutas, tal o rubor e o tremor do anfitrião. Quando saem, Machado nos brinda com um primor de análise de discurso. Partindo das premissas afetivas e eróticas de que partia, a leitura de Rubião é absolutamente coerente. Encontra metáforas em tudo: a própria Sofia transforma-se em metáfora. O que não impede, ao contrário, que se revelem alguns dos costumes da época. O de acompanhar convites com presentes, forma de gentileza há muito relegada aos museus; o uso do nome de família, como opção formal nos relacionamentos sociais e o emprego do nome de batismo, como índice de cumplicidade afetiva, numa leitura metafórica.

Aproveita o narrador para colocar, na boca de sua personagem, concepções pouco canônicas sobre o casamento, ao empregar a terminologia do direito de propriedade para a ele referir-se. Colocar o nome como parte da escritura moral do casamento, referir-se à sua posse e a seu roubo, transformam-no em coisa, em objeto, em valor de troca.

Apesar de narrada por um outro, Sofia irá surgir na cena do livro, influenciada pela ótica de sua fantasia:

As senhoras casadas eram bonitas; a mesma solteira não devia ter sido feia, aos vinte e cinco anos; mas Sofia primava entre tôdas elas.

Não seria tudo o que o nosso amigo sentia, mas era muito. Era daquela casta de mulheres que o tempo, como um escultor vagaroso, não acaba logo, e vai polindo ao passar dos longos dias. Essas esculturas lentas são miraculosas; Sofia rastejava os vinte e oito anos; estava mais bela que aos vinte e sete; era de supor que só aos trinta desse o escultor os últimos retoques, se não quisesse prolongar ainda o trabalho por dous ou três anos.

Os olhos, por exemplo, não são os mesmos da estrada de ferro, quando o nosso Rubião falava com o Palha, e êles iam sublinhando a conversação... Agora, parecem mais negros, e já não sublinham nada; compõem logo as cousas, por si mesmos, em letra vistosa e gorda, e não é uma linha nem duas, são capítulos inteiros. A bôca parece mais fresca. Ombros, mãos, braços, são melhores, e ela ainda os faz ótimos por meio de atitudes e gestos escolhidos. Uma feição que a dona nunca pôde suportar, - cousa que o próprio Rubião achou a princípio que destoava do resto da cara, - o excesso de sobrancelhas, - isso mesmo, sem ter diminuído, como que lhe dá ao todo um aspecto mui particular.

Traja bem; comprime a cintura e o tronco no corpinho de lã fina côr de castanha, obra simples, e traz nas orelhas duas pérolas verdadeiras, - mimo que o nosso Rubião lhe deu pela Páscoa.

A bela dama é filha de um velho funcionário público. Casou aos vinte anos com êste Cristiano de Almeida e Palha, zangão da praça, que então contava vinte e cinco. (ASSIS, 1962b: p. 666-667)

Esta bela descrição, cheia de detalhes, é coisa rara em Machado de Assis. A metáfora do escultor e sua obra introduz uma dinâmica na idéia de beleza, que há de corresponder ao grau de enamoramento de Rubião: "Não seria tudo o que o nosso amigo sentia, mas era muito". E é na descrição dos olhos - como sempre! - que o mestre há de superar-se. E não há negar que tal descrição contém uma quantidade de promessas, já que eles "não sublinham nada; compõem logo as cousas, por si mesmos, em letra vistosa e gorda, e não é uma linha nem duas, são capítulos inteiros". A observação a respeito das pérolas que traz por brincos introduz, na própria imagem de Sofia, a presença de Rubião. E uma presença economicamente ponderável! Como Capitu, Sofia é filha de um funcionário público, não tem nobreza de origem. Quer parecer que, em Machado, a beleza e a graça são atributos de moças de classe média em busca da ascensão. Virgília, filha de um conselheiro do Império, não tem tanta graça e, ao que parece, dela não necessita. Capitu, como Sofia, se não tiver como conseguir e manter um bom casamento, não terá espaço no mundo aristocratizado do Rio de Janeiro daquele então. E aí beleza e graça, sedução e magnetismo, tornam-se armas fundamentais na ascensão social. Virgília pode tê-las, mas, no plano da narrativa, elas não desempenham papel construtivo de importância. Ao contrário, Virgília é que daria ao seu marido o passaporte da ascensão política e do prestígio na sociedade.

O Palha também não tem origem, nem berço. Não se sabe de onde vem. Sabe-se que vem, e vem com muita vontade de subir e pagará, para isso, o preço que se fizer necessário. Ele é, quando se casa com Sofia, um zangão da praça. Este termo tanto pode designar o representante comercial, como o parasita. Ponhamos que Machado opte pelos dois! Pois este Palha tinha lá as suas preferências e suas artimanhas sociais:

O pior é que êle despendia todo o ganho e mais. Era dado à boa-chira; reuniões freqüentes, vestidos caros e jóias para a mulher, adornos de casa, mormente se eram de invenção ou adoção recente, - levavam-lhe os lucros presentes e futuros. Salvo em comidas, era escasso consigo mesmo. Ia muita vez ao teatro sem gostar dêle, e a bailes, em que se divertia um pouco, - mas ia menos por si que para aparecer com os olhos da mulher, os olhos e os seios. Tinha essa vaidade singular; decotava a mulher sempre que podia, e até onde não podia, para mostrar aos outros as suas venturas particulares. Era assim um rei Candaules, mais restrito por um lado, e, por outro, mais público.

E aqui façamos justiça à nossa dama. A princípio cedeu sem vontade aos desejos do marido; mas tais foram as admirações colhidas, e a tal ponto o uso acomoda a gente às circunstâncias, que ela acabou gostando de ser vista, muito vista, para recreio e estímulo dos outros. Não a façamos mais santa do que é, nem menos. Para as despesas da vaidade, bastavam-lhe os olhos, que eram ridentes, inquietos, convidativos, e só convidativos: podemos compará-los à lanterna de uma hospedaria em que não houvesse cômodos para hóspedes. A lanterna fazia parar tôda a gente, tal era a lindeza da côr, e a originalidade dos emblemas; parava, olhava e andava. Para que escancarar as janelas? Escancarou-as, finalmente; mas a porta, se assim podemos chamar ao coração, essa estava trancada e retrancada. (ASSIS, 1962b: p. 667)

O caráter de Palha está marcado pela vontade de gastar dinheiro, mais do que ganhá-lo. Necessita ostentar, mostrar o que tem e, principalmente, o que não tem. Ostenta nas comidas, reuniões, roupas e jóias para a mulher, adornos de casa. Precisa mostrar ao mundo o que tem, talvez mesmo para assegurar-se um lugar nessa nau dos insensatos que é a alta sociedade da Corte do Rio de Janeiro. E a necessidade de mostrar estende-se, inclusive, à sua bela mulher. É decotá-la e exibi-la. Certo que o narrador dá uma versão para tal costume:"para mostrar aos outros as suas venturas particulares." Se cambiarmos venturas pelo equivalente, mais materialista é verdade, fortunas, a frase faz um sentido adequado à sua necessidade de ostentação. E, entre seus capitais para exposição, Sofia não é, muito seguramente, dos menores.

E a comparação com o rei Candaules não é, em absoluto, gratuita. Este monarca reinou na Lídia, no século VIII a.C. Conta Heródoto que foi assassinado por Gyges, seu favorito. Ele elogiava muito a beleza da própria mulher e fez com que Gyges, escondido, assistisse ao banho da rainha para poder contemplar-lhe a beleza. Ela, ofendida, faz com que o favorito mate o rei e casa-se com ele. Palha não chega ao extremo de convidar Rubião para assistir ao banho de Sofia, mas expõe-na a um público muito mais amplo. Se o monarca termina assassinado por quem lhe viu a mulher nua, que sorte esperaria Palha ao decotá-la para o público da sociedade?

O narrador não dá respostas, mas coloca as questões. Conclua quem quiser. Mas a moral social não sairá sem arranhões de mais essa passagem de Quincas Borba.

Tudo isto entretanto tem um seguro de fidelidade. Sofia não está disponível e a metáfora da hospedaria torna isto absolutamente claro. É sobre essa segurança que se move o habilidoso Cristiano Palha. O narrador, como é de seu feitio, caracteriza a personagem Sofia pelos seus olhos, que são aqui ridentes, inquietos e convidativos . Curiosamente os três adjetivos empregados têm conotação de movimento. Ridente é derivado do verbo rir e corresponde ao seu particípio presente: ridente é, literalmente aquele que está rindo. Por ser um particípio verbal, já carrega, em si, a noção ineludível do movimento. Inquieto, a sua vez, deriva de quieto por agregação do prefixo in-, que significa negação ou privação. E quieto , segundo o mestre Aurélio, pode ter as seguintes significações:

Quieto. (Do lat. quietu.) Adj. 1. Que não se mexe; que não bole; imóvel, parado, quedo: "As gameleiras.... estão quietas e mudas, sem uma só palpitação de folha" (Olavo Bilac, Crítica e Fantasia: p. 39). 2. Que tem comedimento de maneiras. 3. Tranqüilo, calmo, sossegado, sereno, plácido; quedo: noite quieta; atitude quieta. 4. Dócil, manso, pacífico: criança quieta. 5. Suave, brando, delicado. ¥ S.m. 6. Bras. MG. Vida tranqüila. (FERREIRA: p. 1183)

Qualquer das significações que se assuma, os olhos de Sofia serão a negação da qualidade escolhida. Tudo é movimento: mexem-se, bolem, movem-se, andam, não quedam, não têm comedimento de maneiras, não são tranqüilos, não são calmos, não são sossegados, não são serenos, não são plácidos, nem dóceis, nem mansos, nem pacíficos, nem suaves, nem brandos, nem delicados. Ufa!!! E tudo isso são!

Finalmente, convidativos é também derivado de verbo e forma-se pelo acréscimo do sufixo -ivo, que pode significar ação, referência, modo de ser. Eles denotam, de alguma forma, a ação de convidar.

Tudo neles é movimento, mas, por outro lado, os adjetivos deverbais tendem a traduzir qualidades subjetivas, onde qualquer traço de materialidade está afastado. Uns olhos azuis, redondos e grandes estariam referidos a qualidades materiais observáveis pelo comum dos mortais. Mas olhos convidativos o serão para um observador interessado e que assim os leia. O mesmo vale para sorridentes e inquietos. Esta é uma característica de Machado de Assis. Quando ele fala de uma parte do corpo, necessariamente dotada de materialidade, ele, de alguma forma, a desmaterializa por uma adjetivação de caráter subjetivo. Que outra coisa são olhos de cigana oblíqua e dissimulada?

Este traço de estilo é, num outro plano, a tradução da atitude decididamente não-realista do escritor. Ele não se deixa prender pelos lugares-comuns da observação geral e vai buscar, nos seus torneios retóricos, uma maneira de dizer que traduza uma forma muito especial de ver o mundo e que não é, em absoluto, a que se prende às aparências sensíveis. Não bastasse isto para opô-lo ao positivismo vigente e reinante no seu meio cultural, teríamos que relembrar o Humanitismo, o sistema filosófico de Quincas Borba, como a mais acabada paródia da escola positivista ou, então, o trágico destino do cientista Simão Bacamarte, de O alienista , como a internação e a morte do positivismo dentro da Casa Verde.

Como os olhos de Sofia nos levaram para longe, é tempo de retornar.

O seu caráter está dado pelos seus olhos. Mas, cuida o narrador de reiterar que, se são convidativos, são apenas convidativos. Ou seja, convidam para nada . Sofia inventou o verbo convidar como intransitivo. Até então os gramáticos desconfiavam de que quem convida, convida alguém para alguma coisa. Não assim a nossa Sofia. Tanto que o narrador precisa lançar mão da inteligente e maliciosa metáfora da hospedaria. A malícia vai por conta da situação de Sofia, pois, se os seus olhos convidassem de forma transitiva, uma hospedaria não cairia de todo mal... A par de que as lanternas não são apenas indicativas de hospedarias. Em nossa cultura, é uma longa tradição que os prostíbulos se identifiquem pela presença, exatamente, de uma luz vermelha, pendendo em cima da porta.

A inteligência, aliada a uma dose considerável de sadismo, impõe uma hospedaria sui generis : não é que esteja lotada, ao contrário, é que ela sequer possui quartos para hóspedes . Os que vêm de passagem, os que chegam e vão, os que não se demoram, os hóspedes, enfim, estes não encontram ali cômodos. Por oposição, só o permanente, o morador, aí pode alojar-se. Que se admire a beleza e a originalidade da lanterna, até aí tudo bem. Era o desejo do marido. Escancarar as janelas? Vá lá! Mas não haverá chave que destranque a porta de entrada e, em conseqüência, a de saída...

Sofia oferece-se em sociedade, oferecendo nada . Tal situação tem seu paralelo, no final trágico de Rubião. Em adiantado estado de loucura, imaginando-se Imperador da França, Rubião age no mesmo sentido:

Poucos dias depois morreu... Não morreu súbdito nem vencido. Antes de principiar a agonia, que foi curta, pôs a coroa na cabeça, - uma coroa que não era, ao menos, um chapéu velho ou uma bacia, onde os espectadores palpassem a ilusão. Não, senhor; êle pegou em nada, levantou nada e cingiu nada; só êle via a insígnia imperial, pesada de ouro, rútila de brilhantes e outras pedras preciosas. O esfôrço que fizera para erguer meio corpo não durou muito; o corpo caiu outra vez; o rosto conservou porventura uma expressão gloriosa.

- Guardem a minha coroa, murmurou. Ao vencedor...

A cara ficou séria, porque a morte é séria; dous minutos de agonia, um trejeito horrível, e estava assinada a abdicação. [grifos meus] (ASSIS, 1962b: p. 804)

É nesse terreno extremamente rarefeito que se movem as artimanhas discursivas do mestre Machado. Sofia oferecia nada e convidava para nada, assim como Rubião ascendia ao trono de nada. Tudo simulações, para recorrer a uma palavra extremamente insistente nesta nossa trajetória. Mais por culpa das articulações do escritor do que por teimosia nossa. Vá que eu teime, mas a simulação surge como a organizadora da maioria das situações sociais tematizadas nos livros. É ela a arte dos mais fracos, no enfrentamento com os preconceitos e o poder dos mais fortes. Não será excessivo relembrar que tanto Sofia como Rubião emergem das camadas pobres da sociedade, ascendendo ao firmamento social, em grande parte ajudados pelo destino. Com uma diferença essencial, Rubião só consegue viver a simulação na vigência plena da loucura, pois lhe falta o mínimo de cinismo e de perspicácia necessários. Capitu é boa companhia para os dois. Já Virgília e Brás Cubas, legítimos representantes da aristocracia de berço, não precisam socorrer-se dela senão em situações muito especiais. Jamais a adotariam como forma de comportamento permanente. Até porque não precisam disto. Bentinho e Palha são, também, artistas nesse ramo. O primeiro já pudemos observar em detalhe, este último ainda nos dará o prazer de sua presença.

Ou seja, a simulação é uma arma das personagens em ascensão estudada e planejada. É arte que se adquire com o tempo e a experiência. Ao Rubião, faltava-lhe um mínimo de educação urbana e de vivência na Corte, para dominar um código tão complexo e sinuoso como esse. Só com a instalação da completa demência, ele simula sua coroação. Mas, em tal contexto, ela passa a ter significação completamente distinta e sua função, certamente, não é a de garantir qualquer vantagem social ou material. Muito pelo contrário.

Mas, antes disso quem se apresentará em cena é uma personagem secundária, mas nem por isso desimportante. Trata-se de D. Tonica, já adiantada em anos, solteira, ainda esperançosa de um casamento que a resgatasse aos olhos da sociedade. É esta personagem que há de denunciar, com o seu silêncio, os convites de Sofia para Rubião.

Entende-se que D. Tonica observasse a contemplação dos dous. Desde que Rubião ali chegou, não cuidou ela mais que de atraí-lo. Os seus pobres olhos de trinta e nove anos, olhos sem parceiros na terra, indo já a resvalar do cansaço na desesperança, acharam em si algumas fagulhas. Volvê-los uma e muitas vêzes, requebrando-os, era o longo ofício dela. Não lhe custou nada armá-los contra o capitalista.

O coração, meio desenganado, agitou-se outra vez. Alguma cousa lhe dizia que êsse mineiro rico era destinado pelo céu a resolver o problema do matrimônio. Rico era ainda mais do que ela pedia; não pedia riquezas, pedia um espôso. Tôdas as suas campanhas fizeram-se sem consideração pecuniária; nos últimos tempos ia baixando, baixando; a última foi contra um estudantinho pobre... Mas quem sabe se o céu não lhe destinava justamente um homem rico? D. Tonica tinha fé em sua madrinha, Nossa Senhora da Conceição, e investiu a fortaleza com muita arte e valor.

"Todas as outras são casadas", pensou ela.

Não tardou em perceber que os olhos de Rubião e os de Sofia caminhavam uns para os outros; notou, porém, que os de Sofia eram menos freqüentes e menos demorados, fenômeno que lhe pareceu explicável, pelas cautelas naturais da situação. Podia ser que se amassem... Esta suspeita afligiu-a; mas o desejo e a esperança mostraram-lhe que um homem, depois de um ou mais amôres, podia muito bem vir a casar. A questão era captá-lo; a perspectiva de casar e ter família podia ser que acabasse de matar qualquer outra inclinação da parte dêle, se alguma houvesse.

Ei-la que redobra esforços. Tôdas as suas graças foram chamadas a postos e obedeceram, ainda que murchas. Gestos de ventarola, apertos de lábios, olhos oblíquos, marchas, contramarchas para mostrar bem a elegância do corpo e a cintura fina que tinha, tudo foi empregado. Era o velho formulário em ação; nada lhe rendera até ali, mas a loteria é assim mesmo: lá vem um bilhete que resgata os perdidos.

Agora, porém, à noite, por ocasião do canto ao piano, é que D. Tonica deu com êles embebidos um no outro. Não teve mais dúvida; não eram olhares aparentemente fortuitos, breves, como até ali, era uma contemplação que eliminava o resto da sala. D. Tonica sentiu o grasnar do velho corvo da desesperança. Quoth the Raven: NEVER MORE. (ASSIS, 1962b: p. 667-668)

A passagem é longa, mas indispensável. Aí se vê, de corpo inteiro, de um lado, D. Tonica e, de outro, a maldade do narrador. A pobre é massacrada pelo cinismo e pelo sarcasmo impiedoso da voz que conta a história. Os olhos de D. Tonica são adjetivados de modo misto: "Os seus pobres olhos de trinta e nove anos , olhos sem parceiros na terra, indo já a resvalar do cansaço na desesperança , acharam em si algumas fagulhas." Um adjetivo - pobres -; uma locução adjetiva - sem parceiros na terra ; e uma oração adjetiva - indo já a resvalar do cansaço na desesperança , que lhe atribuem qualidades subjetivas, todas negativas conotando carência, isolamento, cansaço e desesperança. E uma locução adjetiva - de trinta e nove anos - de caráter claramente objetivo e, para os padrões de então, arrasador. Já antes lhe havia espetado alguma maldade:

Rubião caiu em si; mas não houve tempo para emendar a mão. Diante dêle, ao pé da casa, estavam sentadas em bancos de ferro umas quatro senhoras, caladas, olhando para êle, curiosas; eram visitas de Sofia que esperavam a vinda de um capitalista Rubião. Sofia foi apresentá-lo a elas. Três delas eram casadas, uma solteira, ou mais que solteira. Contava trinta e nove anos, e uns olhos pretos, cansados de esperar. (ASSIS, 1962b: p. 665)

A anotar, principalmente, a nova referência aos olhos, usando outra vez uma adjetivação mista. Um dado objetivo de cor e um subjetivo, de origem verbal e dinâmico. Além disso, a criação de uma nova categoria: mulher mais que solteira .

Entretanto, apesar de toda a carga de negatividade com que é construída pelo narrador, D. Tonica não desiste e vai à luta. Seu problema fundamental é a questão do casamento. Não há aí qualquer traço romântico, em que se possa ler um vestígio de paixão. Há que resolver a situação civil e preencher a solidão, não importa com quem. Uma mulher podia tudo, menos ficar solteira. Alencar já dissera que a mulher solteira era um aleijão social . Machado não vai tão longe ou, pelo menos, não é tão enfático e é, seguramente, mais sutil. Mas a maldade que perpetra contra D. Tonica não o deixa longe disso. Ela é um esboço de personagem, cuja característica principal e única resume-se em ser velha e solteira. Aproveitando, no entanto, a maldade que lhe faz, o narrador revela que a conquista do homem obedece a fórmulas sociais estabelecidas. Há todo um código de comportamentos, de gestos, de modas que se cristalizaram, no tempo, pelo uso social constante. O próprio fracasso de D. Tonica é uma forma de revelar, também, o artificialismo de tal tipo de comportamento e deixar mal, uma vez mais, a elite aristocrática. Mesmo não sendo D. Tonica um membro legitimado, é séria candidata a vir a sê-lo e, portanto, adota comportamentos tidos como aceitáveis ou, no mínimo, uma paródia deles.

O fato de Rubião, possivelmente, ter um caso com Sofia - na visão de D. Tonica - nada muda no essencial. Pode diminuir-lhe as esperanças e exigir esforços redobrados, mas não o desqualifica como marido potencial. Se alguém fica mal, do ponto de vista ético, é Sofia. Ela é que é vista pela rival como vil, indigna, miserável. A condenação, mesmo partindo de uma mulher, não atinge o homem. O que legitima o adultério enquanto comportamento masculino, transformando-o em dado natural. Mesmo não esquecendo de que D. Tonica é uma personagem de Machado de Assis, tal tipo de valor e de julgamento não devem ser invenção do escritor, mas comportamento observável no seu meio. Até mesmo porque não é ele o único a fazê-lo.

Mas, no contexto da narrativa, a grande função de D. Tonica é denunciar que nem só de fantasias se alimentava o nosso Rubião. Elas existem sim, mas são generosamente alimentadas pelo comportamento de Sofia. Pobre dele que não sabia ainda que Sofia oferecia nada e convidava para nada .

Depois da tal troca de olhares, flagrada pela triste solteirona:

Rubião estava resoluto. Nunca a alma de Sofia pareceu convidar a dêle, com tamanha instância, a voarem juntas até às terras clandestinas, donde elas tornam, em geral, velhas e cansadas. Algumas não tornam. Outras param a meio caminho. Grande número não passa da beira dos telhados.
CAPÍTULO XXXVIII

A lua era magnífica. No morro, entre o céu e a planície, a alma menos audaciosa era capaz de ir contra um exército inimigo, e destroçá-lo. Vêde o que não seria com êste exército amigo. Estavam no jardim. Sofia enfiara o braço no dêle, para irem ver a lua. Convidara D. Tonica, mas a pobre dama respondeu que tinha um pé dormente, que já ia, e não foi.

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Loquaz, destemido, Rubião parecia totalmente outro. Não parou ali; falou ainda muito, mas não deixou o mesmo círculo de idéias. Tinha poucas; e a situação, apesar da repentina mudança do homem, tendia antes a cerceá-las, que a inspirar-lhe novas. Sofia é que não sabia que fizesse. Trouxera ao colo um pombinho, manso e quieto, e sai-lhe um gavião, - um gavião adunco e faminto.

Era preciso responder, fazê-lo parar, dizer que ia por onde ela não queria ir, e tudo isso, sem que êle se zangasse, sem que se fôsse embora... Sofia procurava alguma cousa; não achava, porque esbarrava na questão, para ela insolúvel, se era melhor mostrar que entendia, ou que não entendia. Aqui lembraram-lhe os próprios gestos dela, as palavrinhas doces, as atenções particulares; concluía que, em tal situação, não podia ignorar o sentido das finezas do homem. Mas confessar que entendia, e não despedi-lo de casa, eis aí o ponto melindroso. (ASSIS, 1962b: p. 669-670)

Vê-se que a fantasia de Rubião e a coqueteria da dona da casa, cruzando-se, produzem substância explosiva. E o narrador, precavido, já advertira que com um luar daqueles... E Sofia toma-lhe do braço para, justamente, ir ver a lua. O tosco e rude Rubião aprendeu alguma coisa, em seu pouco tempo de Corte. Já tem suas tiradas poéticas, para uso de salão e, no caso, de jardim. Seu ataque é compreensível e a própria Sofia dá-se conta de que ela o alimentara. Não é esse o problema. O problema é, exatamente, como repeli-lo, sem repeli-lo. Como rejeitar a corte, sem afastar de casa o amigo capitalista? Como romper a cantada, sem romper as relações? E por que tanto interesse em manter ao pé de si e do marido aquele roceiro atrevido?

Depois da festa, a narrativa se detém, para analisar, em separado, as reações de Rubião, de D. Tonica e de Sofia junto com seu marido. Interessa-me, em primeiro lugar, a cena entre Palha e sua mulher. Estão os dois a conversar, logo depois que a casa se esvazia de convidados. Sofia, com os cuidados do caso, relata ao marido a cena da corte que lhe fez Rubião. Ela a acusá-lo e o marido a ajeitar as coisas, diminuindo a importância dos fatos. Ele a desculpá-lo e ela desejando puni-lo, em defesa de sua reputação. A conversa se alonga e culmina assim:

Sofia levantou-se; também não queria entrar em minudências. O marido pegou-lhe na mão, ela ficou de pé calada. Palha, com a cabeça reclinada nas costas do sofá, olhava sorrindo, sem achar que dizer. Ao cabo de alguns minutos, ponderou a mulher que era tarde, que ia mandar apagar tudo.

- Bem, tornou o Palha depois de breve silêncio; escrevo-lhe amanhã que não ponha aqui os pés.

Olhou a mulher esperando alguma recusa. Sofia coçava as sobrancelhas, e não respondeu nada. Palha repetiu a solução; e pode ser que desta vez com sinceridade. A mulher então com ar de tédio:

- Ora Cristiano... Quem é que te pede cartas? Já estou arrependida de haver falado nisto. Contei-te um ato de desrespeito, e disse que era melhor cortar as relações, - aos poucos ou de uma vez.

- Mas como se hão de cortar as relações de uma vez?

- Fechar-lhe a porta, mas não digo tanto; basta, se queres, aos poucos...

Era uma concessão; Palha aceitou-a; mas imediatamente ficou sombrio, soltou a mão da mulher, com um gesto de desespêro. Depois, agarrando-a pela cintura, disse em voz mais alta do que até então:

- Mas, meu amor, eu devo-lhe muito dinheiro.

Sofia tapou-lhe a bôca e olhou assustada para o corredor.

- Está bem, disse, acabemos com isto. Verei como êle se comporta e tratarei de ser mais fria... Nesse caso, tu é que não deves mudar, para que não pareça que sabes o que se deu. Verei o que posso fazer.

- Você sabe, apertos do negócio, algumas faltas... é preciso tapar um buraco daqui, outro dali... o diabo! É por isso que... Mas riamos, meu bem; não vale nada. Sabes que confio em ti.

- Vamos, que é tarde.

- Vamos, repetiu o Palha dando-lhe um beijo na face.

- Estou com muita dor de cabeça, murmurou ela. Creio que foi do sereno, ou desta história... Estou com muita dor de cabeça. (ASSIS, 1962b: p. 683)

A cena clareia e entende-se tudo. As relações de Palha com Rubião são mais profundas que a amizade de sala e sarau. O marido compreensivo está enrascado em dívidas com o galanteador. Como afastá-lo, sem pagar-lhe o devido? Como continuar a tomar-lhe o dinheiro, porque é disso que se trata, se o afasta de seu convívio e, muito em especial, do convívio de sua Sofia? É ela o instrumento de sua estratégia financeira e os dois têm consciência disso. Tanto é assim que, confessados os motivos de Palha, Sofia, imediatamente, não só os aceita sem restrições, como traça uma estratégia própria, para não desandar os negócios do marido. E, assim como se acostumou a decotar-se, por que não se há de acostumar com o assédio de Rubião? Além do que, reconciliada com o marido, Sofia apela para o histórico argumento da dor de cabeça, repetidamente, de forma a evitar sua aproximação. Alguma coisa quer dizer com isso...

As relações do casal com o capitalista estão marcadas pelo interesse financeiro, desde o início. Não é à toa que Palha, antes de desembarcar do trem que os trouxera ao Rio e trouxera-lhe, também, o manancial que haveria de enriquecê-lo, não se esquece de advertir o amigo recente:

- Outra coisa. Não repita o seu caso a pessoas estranhas. Agradeço-lhe a confiança que lhe mereci, mas não se exponha ao primeiro encontro. Discrição e caras serviçais nem sempre andam juntas. (ASSIS, 1962b: p. 658)

E foi, exatamente, por expor-se ao primeiro encontro que o nosso Rubião teve o fim que teve... Todo o desenrolar da narrativa vai mostrar os desdobramentos dessa equação imoral: Palha + Sofia + dinheiro de Rubião - Rubião = enriquecimento do casal + desgraça de Rubião.

Rubião, por seu lado, ao sair da festa tem consciência dos fatos, mas de uma ótica distinta. Ele desce de Santa Teresa, pensando, entre outras coisas:

Uma ou outra vez, Rubião acha que foi temerário, indiscreto, recorda o caso do jardim, a resistência, o enfado da môça, e chega a arrepender-se; tem então calafrios, fica aterrado com a idéia de que podem fechar-lhe a porta, e cortar inteiramente as relações; tudo porque precipitou os acontecimentos. Sim, devia esperar; a ocasião não era própria; visitas, muitas luzes, que lembrança foi aquela de falar de amôres, sem cautelas, desbragadamente?... Achava-lhe razão; era bem feito que o despedisse logo.

- Fui um maluco! dizia em voz alta.

Não pensava no jantar, que foi lauto, nem nos vinhos, que eram generosos, nem na eletricidade própria de uma sala em que há senhoras galantes; achava-se maluco, completamente maluco.

Logo depois, a mesma alma que se acusava, defendia-se. Sofia parecia tê-lo animado ao que fêz; os olhos freqüentes, depois fixos, os modos, os requebros, a distinção de o mandar sentar ao pé de si, à mesa de jantar, de só cuidar dêle, de lhe dizer melodiosamente cousas afáveis, que era tudo isso mais que exortações e solicitações? E a boa alma explicava a contradição da môça, depois, no jardim: era a primeira vez que ouvia tais palavras, fora do grêmio conjugal, e ali perto de todos, devia tremer naturalmente; demais, êle expandira-se muito e precipitou tudo. Nenhuma graduação; devia ter ido pé ante pé, e nunca segurar-lhe as mãos com tanta fôrça que chegasse a molestá-la. Em conclusão, achava-se grosseiro. Voltava o receio de lhe fecharem a porta; depois, tornava às consolações da esperança, à análise das ações da môça, à própria invenção do Padre Mendes, mentira de cumplicidade; pensava também na estima do marido... Aqui estremeceu. A estima do marido deu-lhe remorsos. Não só merecia a confiança dêle, mas acrescia certa dívida pecuniária, e umas três letras que Rubião aceitou por êle.

"Não posso, não devo, ia dizendo a si mesmo, não é bonito ir adiante. Também, é verdade que, a rigor, não sou autor de nada; ela é que, desde muito, me anda desafiando. Pois que desafie agora! Sim, é preciso resistir-lhe... Emprestei o dinheiro quase sem pedido, porque êle precisava muito e eu devia-lhe obséquios; as letras, sim, as letras foi êle que me pediu que assinasse, mas não me pediu mais nada. Sei que é honrado, que trabalha muito; o diabo da mulher é que fêz mal em meter-se de permeio, com os lindos olhos e a figura... Que admirável figura, meu pai do céu! Hoje então estava divina. Quando o braço dela roçava no meu, à mesa, apesar da minha manga..." (ASSIS, 1962b: p. 675)

Todo esse discurso quer do narrador, quer de Rubião, expõe as dolorosas contradições da personagem que se movimenta, ela sim, num universo ético. São os seus valores morais que o levam a acusar-se e tentar repelir o que o desejo e a paixão lhe pedem. É como ser humano e não como moralista que se apresenta diante de nós. Daí as idas e vindas, os prós e os contras. Rubião sofre e é feliz, ao mesmo tempo. Morre de medo de ser rejeitado e perder de vez a sua Sofia, tem remorsos e se pune, desculpa-se e culpa Sofia. É uma análise para psicólogo nenhum botar defeito. Ufa! A única evidência que não estava preparado para perceber era a da simulação, vinculada diretamente ao dinheiro. Ainda que Sofia não soubesse explicitamente das dívidas, era ao capitalista que ela agradava e não ao ex-professor de Barbacena. E agradava, a pedido do próprio marido e, certamente, vislumbrando um futuro muito melhor para eles.

Rubião, de sua parte, não sabe portar-se como dono do capital, como homem de negócios, como detentor de poder. Afinal, ele não pertence à aristocracia dominante; para lá chegar, não basta o dinheiro. Há um longo caminho de legitimação que passa, necessariamente, pelo aprendizado das regras do jogo. E ele, por desconhecê-las, está condenado a ser um eterno perdedor.

Entretanto, em meio a tudo isto, se a alguém ele condena é a Sofia. O Palha, não; o Palha é honrado e trabalhador, a mulher é que é o problema. Ela que se oferece e se nega, provoca e recua, tece cumplicidades e recusa a abordagem. Como sempre, e principalmente na mentalidade de Rubião - que não passa de um simples, sem refinamentos culturais -, a mulher encarna o lado tentação, o lado sensualidade, o lado provocação. Aos homens cabe o dever e a obrigação de resistir-lhes, apesar dos clamores do desejo. Parte da culpa de Rubião tece-se na necessária cumplicidade de macho com o marido Palha. Ele não pode fazer isso com o amigo. Não é ela, a esposa que jurou fidelidade no altar, quem deve resistir. Com isso temos de volta a velha tese da natural irresponsabilidade da mulher, tão em voga no romantismo. Na cabeça de Rubião isto é compreensível e o narrador, no caso, não é, em nada, seu cúmplice. Não só sabe das coisas, como nos chama a atenção para elas. Mal sabia o Rubião que todo o jogo e requebro de Sofia, as amabilidades e tudo o mais tinham sido parte de um jogo comandado pelo seu amigo Palha. Quando conversam, depois da festa, a respeito da declaração do apaixonado Rubião, ficamos sabendo do seguinte:

Sofia olhou para êle, contraindo as grossas sobrancelhas; ia responder, mas calou-se. Palha continuou a desenvolver a mesma ordem de considerações; a culpa era dela, não devia ter dado ocasião...

- Mas você mesmo não me tem dito que devemos tratá-lo com atenções particulares? Seguramente que eu não iria ao jardim, se pudesse imaginar o que passou. Mas nunca esperei que um homem tão pacato, tão não sei como, se tirasse dos seus cuidados para vir dizer-me cousas esquisitas...

- Pois daqui em diante evita a lua e o jardim, disse o marido, procurando sorrir... (ASSIS, 1962b: p. 682)

Exemplar acabado de cinismo e oportunismo, o Palha não pode dar razão à mulher, sem perder o livro-razão. Entre o dinheiro e a honra, fica com os dois, ainda que esta saia o seu tanto arranhada do episódio. Sofia ainda insistia, pois não tinha conhecimento da contabilidade bancária do marido. Evidenciada a razão dominante, ela se amolda sem dificuldade maior. Afinal, competia-lhe continuar oferecendo nada e convidando para nada, já que o objetivo era ganhar tudo.

A terceira personagem, D. Tonica, depois da festa, tem acessos de fúria em seu quarto de solteira. Desespera-se e culpa Sofia pelo desastre. Afinal há regras do jogo: ela era solteira e Rubião também. Nada impediria de acontecer, não fosse a intervenção de uma mulher casada. Nesse mercado matrimonial, Sofia está praticando o pecado do monopólio clandestino.

Chegaram à casa na Rua do Senado; o pai foi dormir, a filha não se deitou logo, deixou-se estar em uma cadeirinha, ao pé da cômoda, onde tinha uma imagem da Virgem. Não trazia idéias de paz nem de candura. Sem conhecer o amor, tinha notícia do adultério, e a pessoa de Sofia pareceu-lhe hedionda. Via nela agora um monstro, metade gente, metade cobra, e sentiu que a aborrecia, que era capaz de vingar-se exemplarmente, de dizer tudo ao marido.

"Conto-lhe tudo, - ia pensando - ou de viva voz, ou por uma carta... Carta não; digo-lhe tudo um dia, em particular."

E, imaginando o colóquio, antevia o espanto do homem, depois o agastamento, depois os impropérios, as palavras duras que êle havia de dizer à mulher, miserável, indigna, vil... Todos êsses nomes soavam bem aos ouvidos do seu desejo; ela fazia derivar por êles a própria cólera; fartava-se de a rebaixar assim, de a pôr debaixo dos pés do marido, já que o não podia fazer por si mesma... Vil, indigna, miserável... (ASSIS, 1962b: p. 673)

Enquanto Rubião divaga e sonha, entre a culpa e a esperança; o casal Palha acerta suas estratégias e amolda-se à moral da conveniência; D. Tonica desespera-se, ao ver fraudada sua esperança, em mais uma empresa matrimonial. Não, ela não está apaixonada por Rubião. Isto é coisa secundária. Ela precisa casar, seja lá com quem for. Ela representa, na sua carência, uma outra face do casal Palha. Estes aceitam a conveniência, para manter uma situação econômica. Ela procura a sua conveniência, para conquistar esta última. Não lhe importaria nada se Rubião gostasse de Sofia, conquanto que a desposasse. Seu desespero é de ver, mais uma vez, adiado o sonho do casamento - casamento enquanto instituição, não como realização afetiva. Seus projetos de vingança, ainda que viáveis e verossímeis na sociedade em que vive, só conduzem o leitor a mais um sorriso de comiseração. Mal sabia ela que, nessas alturas, a empresa Rubião já estava hipotecada ao casal Cristiano Almeida e Palha.

E a maldade do narrador completa-se quando, Rubião já demente, visita a sua casa. Nesse então, está ela noiva de um Rodrigues, viúvo com dois filhos, funcionário em uma repartição do Ministério da Guerra, e feliz por ter, enfim, concretizado sua empresa matrimonial. Há de casar dentro de cinco semanas... Mas não será assim, pois o narrador encarrega-se de matar-lhe o noivo, três dias antes do casamento. Continuaria, para o resto de seus dias, a ser mais que solteira!

Uma outra personagem feminina que merece a nossa atenção é a figura de Maria Benedita. Ela é prima de Sofia, filha de mãe viúva:

(...)Maria Benedita deu um muxoxo. Em verdade, não era uma beleza; não lhe pedissem olhos que fascinam, nem dessas bôcas que segredam alguma cousa, ainda caladas; era natural, sem acanho de roceira; e tinha um donaire particular, que corrigia as incoerências do vestido.

Nascera na roça e gostava da roça. A roça era perto, Iguaçu. De longe em longe vinha à cidade, passar alguns dias; mas, ao cabo dos dous primeiros, já estava ansiosa por tornar a casa. A educação foi sumária: ler, escrever, doutrina e algumas obras de agulha. Nos últimos tempos (ia em dezenove anos), Sofia apertou com ela para aprender piano; a tia consentiu; Maria Benedita veio para a casa da prima, e ali estêve uns dezoito dias. (ASSIS, 1962b: p. 694-695)

A descrição começa pela negativa. É uma forma eufemística de negar-se qualidades, mas a concessão reside em que era natural e tinha um donaire particular, capaz de suprir eventuais deselegâncias. Segundo Aurélio:

Donaire. (Do esp. donaire ) S.m . 1. Gentileza, elegância, garbo, graça. 2. Adorno, enfeite, atavio. (FERREIRA: p. 492)

Além de ser natural, um adjetivo que pode dizer qualquer coisa ou de uma neutralidade tão geral que não diz nada. Ou quando muito, pela negativa, que não é artificial. Ao lado dele, este donaire que lhe não atribui nenhuma qualidade física especial, não lhe afirma a beleza, nem a falta dela. Ou seja, pelo discurso do narrador, ela nada tinha que a fizesse especial, diferente da mediania. Sua educação, a básica da época, aliada a uma falta de interesse pelo que quer que seja, não constrói uma personagem que possa ser atraente. Além do que, sua situação econômica não é nada brilhante e, morando na roça, não deve aspirar a uma posição na girândola de amores da sociedade aristocrática do nosso século XIX.

E a que vem semelhante criatura? Em termos de construção da narrativa, ela surge como figura contrastante com Sofia, para aumentar-lhe o brilho e a graça, a beleza e a sedução. Mas, em um primeiro momento, ela serve também para marcar uma situação contrastiva: se Sofia repeliu os requestos de Rubião, isto para ela não era uma questão de princípios. Pois, na mesma época, surge-lhe a figura de Carlos Maria, jovem elegante da Corte. Requesta-a, é aceito e como diz o narrador:

Em verdade, cuidara ter arredado para longe essa figura aborrecida, e ei-la que reaparecia, que sorria, que a fitava, que lhe sussurrava ao ouvido as mesmas palavras do vadio egoísta e enfatuado, que a convidou um dia à valsa do adultério e a deixou sozinha no meio do salão. (ASSIS, 1962b: p. 775)

Sofia vê-se na mesma situação de Rubião. Chega a enamorar-se do jovem que a abandona antes de nada. Mas o que importa aí é que Maria Benedita estava verdadeiramente enamorada do rapaz e, qual uma D. Tonica, vigia-lhes os passos e contabiliza os minutos que ambos valsaram no baile da proposta. Assim, Sofia, outra vez, é pilhada por outra mulher, num passo, este sim, em falso. Pois, desta vez, parece que a hospedaria não só tinha quartos, como já escolhera o hóspede. Que parou, admirou a beleza da lanterna e não quis entrar...

Em sendo primas, a disputa se dá inter pares , ainda que Maria Benedita esteja em desvantagem, no discurso do narrador e aos olhos do pretendido, naquele momento. Mas é outra mulher a sublinhar que, se os olhos de Sofia oferecem nada e convidam a nada, fazem-no em relação às palavras do narrador e não assim nas ações entre personagens. Pois aos olhos de D. Tonica e de Maria Benedita ela, se não é adúltera, está muito perto de vir a sê-lo.

Maria Benedita serve assim, no desdobramento da narrativa, para marcar a situação dessa ambígua Sofia, desse ponto de vista, tão parente de Capitu!

Num segundo momento, o Palha pretende fazê-la casar-se com Rubião. Assim os negócios ficavam assegurados por outro tipo de laço que não apenas os comerciais. Pois :

É de saber que tinham decorrido oito meses desde o princípio do capítulo anterior, e muita cousa estava mudada. Rubião é sócio do marido de Sofia, em uma casa de importação, à Rua da Alfândega, sob a firma Palha e Compª. (ASSIS, 1962b: p. 700)

O avanço sobre o capital do outro era cada vez mais bem-sucedido. De tomador de empréstimos a sócio, e daí a administrador dos bens e valores do Rubião foi um passo rápido. Agora faltava amarrá-lo, de forma definitiva ao seu barco:

Maria Benedita não disse nada; passeou os olhos em um dos jornais, como se procurasse alguma notícia, trincando o beiço, trêmula, inquieta. Sofia teimou em querer saber a causa daquela mudança repentina; pegou-lhe nas mãos, achou-as frias.

- Você precisa casar, disse finalmente. Tenho já um noivo.

Era Rubião; o Palha queria acabar por aí, casando o sócio com a prima; tudo ficava em casa, dizia êle à mulher. Esta tomou a si guiar o negócio. Acudia-lhe agora a promessa; tinha um noivo pronto.

- Quem? perguntou Maria Benedita.

- Uma pessoa.

Crê-lo-eis, pósteros? Sofia não pôde soltar o nome de Rubião. Já uma vez dissera ao marido havê-lo proposto, e era mentira. Agora, indo a propô-lo deveras, o nome não lhe saiu da bôca. Ciúmes? Seria singular que esta mulher, que não tinha amor àquele homem, não quisesse dá-lo de noivo à prima, mas a natureza é capaz de tudo, amigo e senhor. Inventou o ciúme de Otelo e o do cavaleiro Desgrieux (sic!), podia inventar êste outro de uma pessoa que não quer ceder o que não quer possuir. (ASSIS, 1962b: p. 708)

É necessário sublinhar que esta cena se passa no dia seguinte ao do baile em que Sofia recebera os galanteios de Carlos Maria e, ao que parece, dispusera-se a dançar com ele a valsa do adultério. Em plena crise de ciúmes, Maria Benedita tem que ouvir esta notícia. Só que, como não sabe ainda o nome do noivo, acende-se, para ela, como para todos os apaixonados, o farol das esperanças.

- Mas quem? repetiu Maria Benedita.

- Direi depois, deixe-me arranjar as cousas, respondeu Sofia, e mudou de conversa.

Maria Benedita trocou de rosto; a bôca encheu-se-lhe de riso, um riso de alegria e de esperança. Os olhos agradeceram a promessa, e disseram palavras que ninguém podia ouvir nem entender, palavras obscuras:

- Gosta de valsar; é o que é.

Gosta de valsar quem? Provàvelmente a outra. Tinha valsado tanto na véspera, com o mesmo Carlos Maria, que bem se poderia achar na dança um pretexto; Maria Benedita concluía agora que era o próprio e único motivo. Conversaram muito nos intervalos, é certo, mas naturalmente era dela que falavam, uma vez que a prima tinha a peito casá-la e só lhe pedia que deixasse arranjar as cousas. Talvez êle a achasse feia, ou sem graça. Uma vez, porém, que a prima queria arranjar as cousas... Tudo isso diziam os olhos gaios da menina. (ASSIS, 1962b: p. 708)

A maldade do narrador não tem limites. Explora com mestria uma verdadeira comédia de equívocos. De um lado, Sofia negando-se a entregar-lhe sequer Rubião, de outro, Maria Benedita acreditando que ela ajustava com Carlos Maria o seu casamento. Mal sabia ela que Sofia se convidava a nada, prometia nada, também, era incapaz de entregar nada . Tem o espírito do amealhador, só que a sua moeda é a admiração masculina. Não abre mão de parcela de seu lucro na fogueira das vaidades.

Tudo isto faz parte do projeto de Palha Sofia. O casamento de Rubião com a prima consolidaria uma das fases da estratégia traçada. Não contavam nem com a recusa de Rubião, visivelmente apaixonado pela sua eterna Sofia, nem com a paixão de Maria Benedita. Ainda que o primeiro fator tenha sido o determinante do ponto de vista da narrativa. Se Rubião não pensa em casar-se, pelo menos com esta moça, havia que mudar de estratégia. Mas, se ele aceitasse, haveria o problema de como contornar a paixão de Maria Benedita. Uma simples como ela, e não passava disto, não aceitaria tão simplesmente as regras do jogo, pondo em movimento apenas a moral do interesse. Não nos esqueçamos de que ela tinha outra origem na geografia social do romance. Rubião sonha em casar-se, mas sonha muito mais com a festa, que povoa de todas as notoriedades conhecidas e por conhecer. A noiva, ainda não a tinha escolhido. Sonhava com muitas, mas todas tinham a cara de Sofia...

Frustrada a expectativa de Palha de incluir Rubião no rol dos familiares, resta-lhe buscar outros caminhos. E eles terminam por vir de onde menos se esperava. Maria Benedita, através de D. Fernanda, esposa de um deputado e amiga de Sofia, consegue um lugar ao sol e termina por casar-se, exatamente, com o Carlos Maria. É esta nova madrinha que encaminha, de verdade, os seus pleitos e com absoluto sucesso. Sofia, apesar dos disfarces, sofre duramente no seu orgulho com a solução. Era boa, muito boa, para Maria Benedita, órfã e pobre. Mas, como aceitar que logo ela viesse a casar com o jovem que a deixara a ver navios, depois de despertar-lhe o interesse e algo mais?

Importa, entretanto, analisar alguns aspectos desse casamento. Carlos Maria é o protótipo do narcisista. Pensa e crê somente em si mesmo, como se fora um deus descido à terra.

Depressa ergueu a alma. Viu de memória a sala, os homens, as mulheres, os leques impacientes, os bigodes despeitados, e estirou-se todo num banho de inveja e admiração. De inveja alheia, note-se bem; êle carecia dêsse sentimento ruim. A inveja e a admiração dos outros é que lhe davam ainda agora uma delícia íntima. A princesa do baile entregara-se-lhe. Definia assim a superioridade de Sofia, pôsto lhe conhecesse um defeito capital - a educação. Achava que as maneiras polidas da môça vinham da imitação adulta, após o casamento, ou pouco antes, que ainda assim não subiam muito do meio em que vivia.
CAPÍTULO LXXV

Outras mulheres vieram ali, - as que o preferiam aos demais homens no trato e na contemplação da pessoa. Se as requestava ou requestara tôdas? Não se sabe. Algumas, vá: é certo porém que se deleitava com tôdas elas. Tais havia de provada honestidade que folgavam de o trazer ao pé de si, para gostar o contacto de um belo homem, sem a realidade nem o perigo da culpa, - como o espectador que se regala das paixões de Otelo, e sai do teatro com as mãos limpas da morte de Desdêmona.

Vinham todas rodear o leito de Carlos Maria, tecendo-lhe a mesma grinalda. Nem tôdas seriam môças em flor; mas a distinção supria a juvenilidade. Carlos Maria recebias-as como um deus antigo devia receber, quieto no mármore, as lindas devotas e suas oferendas. No burburinho geral distinguia as vozes de tôdas, - não tôdas a um tempo, - mas às três e às quatro. (ASSIS, 1962b: p. 706-707)

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CAPÍTULO LXXVI

Montava bem. Tôda a gente que passava, ou estava às portas, não se fartava de mirar a postura do môço, o garbo, a tranqüilidade régia com que se deixava ir, Carlos Maria, - e êste era o ponto em que cedia à multidão, - recolhia as admirações tôdas, por ínfimas que fôssem. Para adorá-lo, todos os homens faziam parte da humanidade. (ASSIS, 1962b: p. 707)

Aqui o narrador, claramente, se coloca numa perspectiva interior a Carlos Maria, vê com os olhos dele, sente como ele sente. É, só formalmente, um narrador exterior à história. Tudo é visto a partir de um centro único e indivisível: a mente de Carlos Maria. Por isso os leques podem ser impacientes e os bigodes despeitados . Qualidades subjetivas que se realizam transitivamente, ou seja, se realizam para alguém. E esse alguém, definitivamente, não é o narrador. De forma que essa personagem sente-se acima de todas as demais e o narrador assim narra seus sentimentos. Mas, na medida em que percebemos o seu narcisismo e o quanto de ridículo e cabotino há nisso, manifesta-se, nas dobras do discurso, a crítica à sua própria construção. Recurso de que Machado lança mão com bastante freqüência e com sucesso indiscutível. A par disso, pode-se perceber que é um narcisismo, ao demais comum, que se delicia não só com a admiração, mas com a inveja alheia; necessita dela para viver e sobreviver. É desta matéria-prima que se faz este tipo de aristocrata enfatuado.

Ao mesmo tempo, pela primeira vez no romance, alguém é colocado acima de Sofia na pirâmide social. Ele requesta-a e, ao mesmo tempo, reconhece-lhe a inferioridade. Falta a ela o refinamento genuíno dos verdadeiros aristocratas; se de alguma forma o conquistou, seguramente, é de segunda mão. Não tem o matiz das obras originais. Ele a perdoa e segue em frente, como um Brás Cubas da vida...

De resto a humanidade aí está, com o único fim de adorá-lo. Não há, nessa imagem, uma similaridade profunda com a cena em que Brás Cubas filosofa a respeito da utilidade da vida de Dona Plácida?

É este mesmo narciso que iremos encontrar, na manhã do dia de seu casamento, cavalgando na Tijuca e dando asas aos seus pensamentos e imaginações. Deixemo-lo falar:

"A felicidade que eu lhe der será assim também interrompida?" reflexionou andando.

Cambaxirras voaram de um para outro lado da rua, e pousaram cantando a sua língua própria; foi uma reparação. Essa língua sem palavras era ininteligível, dizia uma porção de cousas claras e belas. Carlos Maria chegou a ver naquilo um símbolo de si mesmo. Quando a mulher, aturdida dos papagaios do mundo, viesse caindo de fastio, êle a faria erguer aos trilos da passarada divina, que trazia em si idéias de ouro, ditas por uma voz de ouro. Oh! como a tornaria feliz! Já a antevia ajoelhada, com os braços postos nos seus joelhos, a cabeça nas mãos e os olhos nêle, gratos, devotos, amorosos, tôda implorativa, tôda nada. [Grifos do autor] (ASSIS, 1962b: p. 750)

E ouçamos a voz de Maria Benedita, no mesmo momento, em outro lugar:

Ora bem, aquêle quadro, na mesma hora em que aparecia aos olhos da imaginação do noivo, reproduzia-se no espírito da noiva, tal qual. Maria Benedita, posta à janela, fitando as ondas que se quebravam ao longe e na praia, via-se a si mesma, ajoelhada aos pés do marido, quieta, contrita, como à mesa da comunhão para receber a hóstia da felicidade. E dizia consigo: "Oh! como êle me fará feliz!" Frase e pensamento eram outros, mas a atitude e a hora eram as mesmas. [grifos do autor] (ASSIS, 1962b: p. 750-751)

O diálogo está estabelecido e sua importância reside na imagem da mulher e do casamento que daí resultam. Um narcisista desse porte só poderia perceber o casamento como um dom que ele estaria fazendo à mulher; é dele a competência para atribuir felicidade ou infelicidade à companheira de vida. Ele fará dela um ser feliz ou infeliz. E ela? Ela será feita feliz por ele. As suas vozes são concordantes nisto. Nas duas imagens ela está de joelhos diante dele, variando apenas a adjetivação. Na perspectiva de Carlos Maria são os olhos que expressam a submissão: gratos, devotos, amorosos. Todas qualidades subjetivas, que só adquirem consistência no olhar que as vê. Já Maria Benedita se vê como quieta e contrita . Qualidades subjetivas que ela pode perceber no seu íntimo. Assim, se os dois empregam um mesmo tipo de adjetivação, utilizam-no em movimento contrário. Enquanto um vê de fora para dentro, o outro expressa de dentro para fora. Mas, ela vê-se contrita e lança mão, com evidente exagero, de uma comparação de mau gosto extremo. Relaciona a cena com o ato da comunhão, incorporando na hóstia, não o corpo e sangue de Cristo, mas a própria felicidade conjugal. Carlos Maria, a sua vez, se delicia ao ver, com os olhos da imaginação, sua mulher ajoelhada a seus pés, tôda implorativa, tôda nada.

Aqui completa-se o círculo. Rubião, Sofia, Carlos Maria, todos giram, de alguma forma, em torno de nada. Rubião coroa-se de nada e ascende ao trono de nada ; ela promete nada e convida para nada; Carlos Maria casa-se com nada . Tal redundância nada tem de ocasional. É a forma com que esta narrativa dá conta de uma vacuidade essencial. Ela se configura numa descarnada representação da vida em sociedade de personagens que se movimentam na parte alta da pirâmide, sem estar, todavia, no seu vértice. Suas vidas é que são vazias de um sentido social e histórico qualquer; suas existências se estiolam numa luta sem sentido e sem dimensão; seus conflitos giram em torno de quinquilharias e mesmices vazias. Na narrativa tudo retorna ao vazio, ao mesmo, ao nada.

A própria vida de Rubião começa num nada para dirigir-se a outro, no seu final. Entre as duas pontas, uma existência de vaidades e luxos na Corte, de infidelidades e ambições mesquinhas, de casamentos e sociedades comerciais, de glórias e desditas imaginárias. Todo o movimento em torno a Rubião, em sua curta estada na Corte, era o movimento provocado pela força de gravidade do seu capital. À medida que o capital diminui, diminui sua capacidade de atração; cada vez são menos os astros que lhe orbitam em derredor. Para, enfim, desaparecerem todos, como num grande eclipse universal. A pessoa do Rubião nunca contou para nada - outra vacuidade concomitante e adicional.

Além de Cristiano Palha e Sofia, um conjunto heteróclito de personagens secundárias aproximam-se, não de Pedro Rubião de Alvarenga, ex-mestre de meninos e ex-enfermeiro de um filósofo louco, mas do capitalista ingênuo e despreparado, da vítima fácil da cobiça alheia. De um lado, Camacho, político frustrado, toma-lhe vultosas quantias para manter um pasquim, cujo nome - A Atalaia - já explicita seu caráter "udenista", que lhe serve de instrumento para todas as composições e maquinações destinadas a reconduzi-lo aos caminhos do poder. Prometia a Rubião o que não conseguia para si mesmo, uma cadeira na Câmara dos Deputados. Outros amigos de vária estirpe e calado moral agregavam-se à sua mesa como comensais permanentes. Comiam-lhe, literalmente dessa vez, a fortuna pelas bordas. Espertalhões havia que lhe propunham negócios miraculosos, prometendo lucros e aliviando-lhe o capital. Todos juntos desfrutavam da fortuna alheia, gerida por uma alma generosa, esta sim, incompatível com as regras do jogo capitalista. Faltava a Rubião o espírito da usura e da poupança, molas mestras da reprodução ampliada do capital. Sem dedicar-se à exploração de ninguém, ao contrário, ajudando a todos, ele constituía, com o seu comportamento, a antítese do sistema econômico vigente. E o seu destino, como o de todo corpo estranho, é o de ser expelido, mais cedo ou mais tarde. Mas não tão cedo que impeça que o seu capital passe para mãos mais competentes e mais integradas à lógica econômica vigente.

Tanto é assim que Palha, uma vez frustradas as investidas matrimoniais contra o sócio, só espera livrar-se do fardo da prima Maria Benedita, para liquidar também a fatura de Rubião. E o seu descaramento é tal que, no mesmo dia e na mesma hora em que voltam do navio, onde foram deixar os dois recém-casados em viagem para a Europa, chama-o às falas.

Dizendo isto, tirou um cigarro, abriu-o, desfiou o fumo com os dedos, enrolou a palha outra vez, e riscou um fósforo, mas o vento apagou o fósforo. Então pediu ao Rubião que lhe fizesse o favor de segurar o chapéu, para acender outro. Rubião obedeceu impaciente. Bem pode ser que o sócio, esticando a espera, quisesse justamente fazer-lhe crer que se tratava de um terremoto; a realidade viria a ser um benefício. Puxadas duas fumaças:

- Estou com meu plano de liquidar o negócio; convidaram-me aí para uma casa bancária, lugar de diretor, e creio que aceito.

Rubião respirou.

- Pois sim; liquidar já?

- Não, lá para o fim do ano que vem.

- E é preciso liquidar?

- Cá para mim, é. Se a história do banco não fôsse segura, não me animaria a perder o certo pelo duvidoso; mas é seguríssima.

- Então no fim do ano que vem soltamos os laços que nos prendem...

Palha tossiu.

- Não, antes, no fim dêste ano.

Rubião não entendeu; mas o sócio explicou-lhe que era útil desligarem já a sociedade, a fim de que êle sòzinho liquidasse a casa. O banco podia organizar-se mais cedo ou mais tarde; e para que sujeitar o outro às exigências da ocasião? Demais, o Dr. Camacho afirmava que, em breve, Rubião estaria na Câmara, e que a queda do ministério era certa.

- Seja o que fôr, concluiu; é sempre melhor desligarmos a sociedade com tempo. Você não vive do comércio; entrou com o capital necessário ao negócio, - como podia dá-lo a outro ou guardá-lo.

- Pois sim, não tenho dúvida, concordou Rubião.

E depois de alguns instantes:

- Mas diga-me uma cousa, essa proposta traz algum motivo oculto? é rompimento de pessoas, de amizade... Seja franco, diga tudo...

- Que caraminhola é essa? redarguiu o Palha. Separação de amizade, de pessoas...Mas você está tonto. Isto é do balanço do mar. Pois eu, que tenho trabalhado tanto por você, eu que o faço amigo dos meus amigos, que o trato como um parente, como um irmão, havia de brigar à toa? Aquêle mesmo casamento de Maria Benedita com o Carlos Maria devia ser com você, bem sabe, se não fôsse a sua recusa. A gente pode romper um laço, sem romper os outros. O contrário seria despropósito. Então todos os amigos de sociedade ou de família são sócios de comércio? E os que não forem comerciantes?

Rubião achou excelente a razão, e quis abraçar o Palha. Êste apertou-lhe a mão satisfeitíssimo; ia ver-se livre de um sócio, cuja prodigalidade crescente podia trazer-lhe algum perigo. A casa estava sólida; era fácil entregar ao Rubião a parte que lhe pertencesse, menos as dívidas pessoais e anteriores. Restavam ainda algumas daquelas que o Palha confessou à mulher, na noite de Santa Teresa, cap.L. Pouco tinha pago; geralmente era o Rubião que abanava as orelhas ao assunto. Um dia, o Palha, querendo dar-lhe à fôrça algum dinheiro, repetiu o velho provérbio: "Paga o que deves, vê o que te fica". Mas o Rubião, gracejando:

- Pois não pagues, e vê se te não fica ainda mais.

- É boa! redarguiu o Palha rindo e guardando o dinheiro no bôlso. (ASSIS, 1962b: p. 752-753)

A manobra tem lá suas complicações e o Palha se sai muito bem no seu desempenho. Ele cerca, com todos os cuidados, o seu discurso cheio de ambigüidades. Ele oscila entre liquidar e separar de modo a ver-se livre de Rubião, sem criar arestas pessoais. Ele traz à cena uma possibilidade a médio prazo e exige uma separação de sociedade a curtíssimo, como se fizesse um bem ao outro. Acena-lhe com a cadeira no Parlamento, que ele sabe ser absolutamente inviável. Corta os laços, antes que a casa, além de sólida, torne-se lucrativa. Este é o xis da questão, ao lado da dilapidação da fortuna pessoal de Rubião que traria, seguramente, riscos para o empreendimento. Devolve-lhe o que era seu, mas não todo. Pois Rubião não aceita, por ora, o pagamento das dívidas pendentes. Nunca mais terá oportunidade de vê-las quitadas. Nesse movimento, o Palha está simplesmente sonegando ao pobre capitalista despreparado toda a valorização do capital no emprendimento. Paga-lhe a sua parte e está tudo liquidado. Rubião, mais uma vez, demonstra sua total incapacidade para a gerência de negócios, nos padrões capitalistas de então. Além de tudo, a verdade era outra:

Não havia banco, nem lugar de diretor, nem liquidação; mas como justificaria o Palha a proposta de separação, dizendo a pura verdade? daí a invenção, tanto mais pronta, quanto o Palha tinha amor aos bancos, e morria por um. A carreira daquele homem era cada vez mais próspera e vistosa. O negócio corria-lhe largo; um dos motivos da separação era justamente não ter que dividir com outro os lucros futuros. Palha, além do mais, possuía ações de tôda a parte, apólices de ouro do empréstimo Itaboraí, e fizera uns dous fornecimentos para a guerra, de sociedade com um poderoso, nos quais ganhou muito. Já trazia apalavrado um arquiteto para lhe construir um palacete. Vagamente pensava em baronia. (ASSIS, 1962b: p. 754)

A gangorra tem a sua lógica. Sobe um, enquanto desce o outro. A ascensão do Palha é exatamente proporcional à queda livre de Rubião. Este, explorado por tudo e por todos dilapida a sua fortuna, sem repor os capitais dispersados, numa espécie de justiça fiscal redistributiva de caráter pessoal. Todos os falsos amigos dela se beneficiam e são todos cúmplices conscientes desse processo de espoliação. Uma metáfora convincente desse processo se dá quando, Rubião ausente, seus comensais passam da sala de jantar ao escritório e começam a servir-se de seus charutos importados, sem qualquer cerimônia. Já o fato de que ele tivesse autorizado os serviçais a servirem os "habitués", mesmo na sua ausência, já cria um quadro conflitivo com o sistema. Há consumo suntuário, sem a presença do proprietário dos haveres. Um capital que se dilapida por si mesmo, sem controle de algum tipo, é uma contradição absoluta com o espírito do capitalismo. Rubião comparece a esta narrativa para encarnar a antítese do Palha. Este quando gasta, gasta para promover-se socialmente; gasta quando ainda não tem, para conseguir ganhar capital para outros vôos. Sua dilapidação é resultante de um cálculo, minuciosamente programado e executado. Rubião, ao contrário, gasta sem cálculo algum que não seja escalar o coração de Sofia. Abre todas as burras e não fecha nenhuma. Num prazo de quatro anos consegue acabar com um capital respeitável, constituído por imóveis, apólices, ações, dinheiro em espécie, escravos e tudo o mais. Ele pratica um uso do capital divergente ao do sistema. Este determina a reinversão como caminho para a multiplicação e o consumo apenas dos excedentes, numa lógica tão cerrada, quanto implacável. Rubião simplesmente esqueceu ou simplesmente nunca soube que o capital tem lá as suas leis. Sua relação com a riqueza tem traços míticos: uma vez obtida, por meios mágicos, é inesgotável. Como nas melhores histórias dos contos de fada.

Abre-se aí espaço para uma reflexão de caráter mais geral. Nesses mesmos contos de fada, pode-se sempre observar algumas constantes, no comportamento econômico das suas personagens. Em primeiro lugar, a riqueza é sempre obtida por meios mágicos. A personagem sai, por exemplo, em busca do mundo e, à beira de um rio, encontra uma velhinha necessitada e lhe dá a última de suas parcas moedas. Não era uma velhinha, era uma fada. Ela retribui a bondade entregando-lhe os meios mágicos que serão indispensáveis, mais à frente, para o sucesso e a fortuna dele recorrente. É a posse da força mágica - misteriosa e inexplicada - que abre ao herói a possibilidade de alcançar a riqueza.

Em segundo lugar, a conquista da riqueza nunca se dá no espaço histórico e social de que é originário o herói. Ele primeiro vai ao mundo, a lugares desconhecidos, lança-se à plena aventura. É em outro lugar, em outra sociedade e em outra história que ele consegue amealhar a riqueza, com que retorna ou não às suas origens.

Terceiro, a riqueza não é uma quantidade de bens. É um estado permanente: uma vez conquistada, está conquistada e pronto. Uns são ricos, outros não. Desde sempre.

Esta é a construção do mito por excelência. Sua função ideológica é clara: se a riqueza só se obtém por meios mágicos, é porque não é possível tornar-se rico pelo trabalho. Os que trabalham são pobres; os ricos não trabalham. Ninguém está pobre ou está rico. Tal compreensão já introduziria a história onde ela ainda não tem lugar. Nesse universo imaginário, as pessoas são ricas ou são pobres. Trata-se de um estado permanente e irreversível, pelos meios normais vinculados ao trabalho. É um mundo onde a acumulação de capital ainda não é visível pela cultura. Como, dentre os pobres, só os heróis podem ter acesso à riqueza, conclui-se que ela só é atribuída a pessoas excepcionais. Assim, em um único movimento, explica-se o inexplicável e justifica-se o hediondo. O inexplicável da diferença de fortunas num mundo de iguais. O hediondo de justificar-se a riqueza como um dom dos naturalmente superiores. Tais mitos congelam, em sua construção rígida, o movimento do mundo. Constroem um universo atemporal e estático, onde o bem sempre supera o mal e onde os merecedores serão sempre recompensados. E a maioria? Bom, a maioria construa outros mitos, se disso for capaz...

Tais narrativas não são, como muita gente boa pensa, uma forma de expressão exclusiva de sociedades agrárias e pré-capitalistas. Elas se movem, com extrema habilidade, em todas as sociedades onde haja necessidade de justificar as diferenças de sorte, como parte do processo da natureza. Como se sabe que o acesso à consciência histórica tem como pré-condição um domínio razoável dos códigos culturais, em todas as sociedades em que os bolsões de pobreza sejam consideráveis, tais narrativas míticas terão sempre o seu lugar. Elas estarão sempre a postos para, pelo menos, consolar os desvalidos, atribuindo a eles próprios a culpa de suas desgraças, num cinismo atuante que nos conduz, de pronto, às técnicas narrativas de Machado de Assis.

E o nosso Quincas Borba cai como uma luva nas redes de uma tal reflexão. O pobre Rubião, de alguma forma, ascende à fortuna inesperada já na meia-idade, recebendo uma herança que não suspeitava. Na sua simplicidade, esperava uma deixa, alguns contos de réis, uma quase esmola, como sempre. Não estava preparado para a fortuna, não tinha a cultura necessária para desfrutá-la, não pertencia ao universo da Corte. Vindo para cá, de sua Barbacena provinciana, deixa-se enredar pelos olhos de Sofia e pela lábia do marido. Assume, com visível desconforto e total deslumbramento, sua nova posição na vida. Mas assume-a miticamente:

Rubião fitava a enseada, - eram oito horas da manhã. Quem o visse, com os polegares metidos no cordão do chambre, à janela de uma grande casa de Botafogo, cuidaria que êle admirava aquêle pedaço de água quieta; mas, em verdade, vos digo que pensava em outra cousa. Cotejava o passado com o presente. Que era, há um ano? Professor. Que é agora? Capitalista. Olha para si, para as chinelas (umas chinelas de Tunes, que lhe deu recente amigo, Cristiano Palha), para a casa, para o jardim, para a enseada, para os morros e para o céu; e tudo, desde as chinelas, até o céu, tudo entra na mesma sensação de propriedade. (ASSIS, 1962b: p. 641)

A sensação de propriedade, que tudo engloba, vai muito além do que é apropriável pelo capital e, de uma maneira de ter , transforma-se numa maneira de ser . Não é o capitalista loteando o mundo para vendê-lo; é o sonhador apropriando-se do mundo para senti-lo. Vê-se que o delírio imperial em que termina sua vida tinha raízes bem mais profundas. Houve quem lesse - e já não me recordo quem! - essa passagem sob o signo da reificação, numa perspectiva marxista. Seria viável, numa latitude em que a noção de propriedade estivesse conscientizada historicamente. E não parece ser o nosso caso, mormente na personagem Rubião que, em nenhum momento, é capaz de historicizar alguma coisa que não seja em termos de antes e depois. Não é ele o capitalista obcecado por dinheiro e que tudo transforma em propriedade e capital. Não, Rubião, ao englobar o mundo em sua sensação de propriedade, fá-lo para sentir-se feliz e possuidor. A posse da riqueza não o transforma em outra pessoa, continuará sendo o bom homem de sempre, agora instalado num padrão de vida e em regras de convivência de que antes nunca suspeitara. Ele não chega nunca a ser um capitalista, no sentido de que vive para administrar o capital, reproduzi-lo e ampliá-lo. Sua competência não chega até aí. Na mocidade, metera-se em uma ou duas empreitadas e não conseguira resultados. Ele não domina a cultura dos números, de que Palha e Escobar são mestres incontestáveis. Atrapalha-se com juros e lucros, cálculo financeiro e humano. Seu universo é o das vagas humanidades: a política o encanta. Gosta de gente, não de negócios.

Isto o faz encarar a sua ascensão ao mundo da riqueza, como um movimento definitivo e natural. Uma vez rico, não há mais o que cuidar, senão de gastar generosamente o que havia recebido das mãos de um filósofo rico que morreu na mais completa miséria. Filósofo rico, a sua vez, por herança de um tio capitalista. Constituem os dois uma espécie de gente que não sabe lidar com o dinheiro, até porque não o ama suficientemente. Que diferença fazem com os usurários tenebrosos dos romances de Balzac, enfermados pela febre do ouro! São pacatos e meio pacholas, desarrumados no sistema, desajeitados nas regras do interesse, órfãos de outra humanidade.

Rubião aqui comparece para, de um lado, ratificar a tese burguesa de que os pobres não sabem o que fazer com o dinheiro. Quando o pilham, gastam-no todo sem saber fazê-lo render e multiplicar-se. Ele chega à riqueza, imaginando que ela é uma qualidade natural que, uma vez atribuída, nunca mais se despega da pele de quem foi bafejado. Assume o seu papel, sem saber que não lhe deram o texto completo de seu drama, e põe-se a viver como rico, generosamente. Vive com eles, tem as mesmas aspirações que eles, mas não é como eles. Se sonha com a política, não sonha com a titularidade, aspiração maior que pode alimentar um rico brasileiro. Quando voa, voa mais alto e quer ser direto imperador da França, mas não pelos caminhos do capital. Chega lá pela identificação esquizofrênica, pelas vias do imaginário despegado de qualquer solo minimamente real. Seu sonho não tem cálculo; seu imaginário não rende tributos ao ritmo da acumulação primitiva. E este é todo o seu drama.

Pois, assim como chega à riqueza, é dela despedido sem qualquer cerimônia. Abandonado por todos - menos pelo cão -, rejeitado por quem se fizera às suas custas, evitado por quem lhe comera da mesa farta e generosa, ele vai morrer na sua Barbacena, na casa de uma sua comadre. Morre na miséria - miséria econômica e miséria humana. Porque, na Corte fora despojado de tudo, inclusive de sua humanidade. Ele se torna, assim, um paradigma da crueldade das regras sociais, ao ser triturado por engrenagens que não chegou nunca a dominar. Ele é talvez uma das únicas personagens de Machado de Assis que nos desperta a piedade e a solidariedade. Não tem a arrogância fátua de um Brás Cubas; nem o cinismo reprimido de um Bentinho. É um simples. Como muitos de nós, na nossa incurável vontade de ajudar aos demais.

E Machado de Assis, contando a história de sua destruição, com as indisfarçadas cores tragicômicas que assume, não estaria querendo dar um recado muito claro, principalmente quando pauta a vida das personagens que lhe fizeram o entorno pela voluptuosa vacuidade do nada?

 


Referências bibliográficas

 

ASSIS, Machado de. Obra Completa. 2ª ed. Rio de Janeiro: J. Aguillar, 1962b. vol. II. Quincas Borba.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. 1ª ed., 4ª impr. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, [197-?]


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