©by Luis Filipe Ribeiro
Mulheres de Papel: um estudo do imaginário em José de Alencar e Machado de Assis. Niterói: EDUFF, 1996.

 

Capítulo X


Memórias Cínicas de Brás Cubas


Publicado em 1881, quando ele contava 42 anos de idade, Memórias Póstumas de Brás Cubas é o quinto romance de Machado. É, também, o primeiro que sai à luz, depois da doença que o reteve largo tempo em Friburgo.
Apontado pela crítica como um divisor de águas em sua carreira, ele vai interessar-me pelo que acrescenta, em sua obra e no romance brasileiro, à construção da imagem da mulher. Deixo à excelente e abundante bibliografia existente a discussão da obra nas suas significações mais amplas e abrangentes, já que essa é uma longa e convidativa viagem.
Para os fins a que me proponho, vou limitar-me à abordagem de alguns aspectos de sua construção, de forma a poder relacioná-lo com os demais romances escolhidos e revelar uma unidade de arquitetura e de temática que aponta para um conjunto de valores, que constituem uma articulação ideológica significativa na segunda metade do nosso século XIX.
O primeiro e grande problema que este livro instigante nos propõe é o da constituição de seu narrador. Não só o título, mas também a sua dedicatória:
Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas Memórias Póstumas.[1]
remetem claramente à temática da morte do narrador, invertendo a expectativa tradicional de que um vivo fale de outros vivos ou de outros mortos. Mas, um morto narrar a sua vida e a de outras personagens vivas não se enquadra na chamada verossimilhança até aí vigente.

CAPíTULO PRIMEIRO / ÓBITO DO AUTOR


Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo: diferença radical entre êste livro e o Pentateuco.[1]

Ao afirmar que seu narrador é um defunto que se torna autor e não um autor que se torna defunto, a ironia cortante atinge em cheio o meio cultural de que se desprende este texto. A tradição mandava que os autores mortos fossem os consagrados, como se só a solenidade da campa legitimasse os méritos literários. Machado despacha seu Brás Cubas do além, para imiscuir-se no universo dos vivos, invertendo a demanda consagratória vigente. Este narrador vai observar o mundo dos vivos, de um ponto de vista atemporal, despojado das pressões sociais, das contigências históricas e das conveniências tão presentes numa sociedade regida pela instituição do favor. Além de que, de uma perspectiva do outro-mundo, este aqui perde muito da sua seriedade e compostura. Brás Cubas pode rir-se de tudo e de si mesmo, tem o privilégio da ausência do contexto: já não é mais parte do jogo de mútuas conveniências que cimentam as relações sociais. Pode, livremente soltar o verbo, pois não o alcançarão mais as represálias da opinião pública.
E o deboche, não pára por aí:


...Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seria curioso, mas nìmiamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimento da obra. A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus.[2]

Com um piparote, na verdade, ele despacha a nós leitores, sem contar como um narrador constrói, no outro mundo, uma representação deste: problema de não pequeno porte. Todas as dificuldades são ultrapassadas por uma tirada de estilo, como se tudo sempre se resolvesse por uma acrobacia retórica. Afinal a obra em si mesma é tudo.
Resolve, de uma penada, alguma coisa que, no século XX, dependeria da eclosão do que se costuma chamar de realismo fantástico, em que as leis da lógica do cotidiano estão definitivamente suspensas, em prol da construção de um tipo de imaginário alegórico que se faz passar como se não o fosse. Machado faz um mesmo tipo de movimento, sem perder a verossimilhança realista, de que zomba sistematicamente, e sem sair de seus limites. Machado não é um realista, mas finge sê-lo com tal eficiência que a crítica até hoje assim o toma, sem se dar conta de que cai, dessa forma, numa armadilha fatal para a interpretação.
Ao afirmar que a obra é tudo, Machado poderia ser tomado como um paladino do movimento parnasiano, cuja característica essencial, enquanto construção do discurso, é exatamente anular a presença do enunciador em benefício da objetividade do texto. O que está a léguas de distância do seu projeto literário.
Em verdade, o que está em jogo aqui é a existência de um narrador absolutamente livre de quaisquer convenções, que não sejam as que o tornam inteligível para os leitores seus contemporâneos. Com tal narrador, pode ele escrever o que queira, sem ser limitado por conveniências e por regras castradoras do objeto histórico que se dispõe a construir.
Exemplo magnífico disso é o capítulo referente ao delírio, que se contrapõe à lógica, à verossimilhança e à causalidade, pilares da forma narrativa. A partir da eternidade, qualquer ponto de vista passa a ser tão legítimo quanto qualquer outro. Não há mais espaço para verdades privilegiadas ou para centramentos filosóficos. A relatividade entroniza-se como única referência relativa...
Este narrador relativo e debochado constrói sua estória, ridicularizando-se a si próprio, em primeiro lugar, e aos outros, em seguida. É a forma segura que tem para evitar o estabelecimento de uma seriedade que poderia ser confundida com algum tipo de verdade.
No Capítulo Primeiro, este axioma assim se expressa:

Dito isto expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro e possuía cêrca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem anúncios. Acresce que chovia -- peneirava -- uma chuvinha miúda, triste e constante, tão constante e tão triste, que levou um daqueles fiéis da última hora a intercalar esta engenhosa idéia no discurso que proferiu à beira de minha cova: -- "Vós, que o conhecestes, meus senhores, vós podeis dizer comigo que a natureza parece estar chorando a perda irreparável de um dos mais belos caracteres que têm honrado a humanidade. Êste ar sombrio, estas gotas do céu, aquelas nuvens escuras que cobrem o azul como um crepe funéreo, tudo isto é a dor crua e má que lhe rói à natureza as mais íntimas entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado."
Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei. [3]

Em primeiro lugar, sendo a personagem da qual se fala o próprio narrador, as imprecisões com que se expressa têm, necessariamente, alguma intenção. Como morreu em uma sexta-feira, tendo uns sessenta e quatro anos? Tal tipo de indefinição informativa cabe quando o narrador avalia, de fora, aspectos que desconhece ou conhece incompletamente. Ri-se de de nós ou de si mesmo, nessa farsa?
A inserção do discurso do fiel de última hora, em si mesmo falso pela empostação retórica, é confirmada com uma expressão eivada da mais cruel ironia: Bom e fiel amigo! As palavras do orador, no exagero que as desqualifica, afirmam que tudo isto é a dor crua e má que lhe rói à natureza as mais íntimas entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado. Estaria tudo bem, se no CAPíTULO VII /O DELÍRIO não deparássemos com este diálogo cruel entre a Natureza e o narrador:

-- Chama-me Natureza ou Pandora; sou tua mãe e tua inimiga.
Ao ouvir esta última palavra, recuei um pouco, tomado de susto. A figura soltou uma gargalhada, que produziu em tôrno de nós o efeito de um tufão; as plantas torceram-se e um longo gemido quebrou a mudez das cousas externas.
-- Não te assustes, disse ela, minha inimizade não mata; é sobretudo pela vida que se afirma. Vives: não quero outro flagelo.
-- Vivo? perguntei eu, enterrando as unhas nas mãos, como para certificar-me da existência.
-- Sim, verme, tu vives. Não receies perder êsse andrajo que é teu orgulho; provarás ainda, por algumas horas, o pão da dor e o vinho da miséria. Vives: agora mesmo que ensandeceste, vives; e se tua consciência reouver um instante de sagacidade, tu dirás que queres viver.
[4]


Não seria essa a Natureza capaz de prantear-lhe a morte. Não bastasse a postura cediça do discurso fúnebre, apesar de sua solenidade, para denunciar a falsidade da situação, o narrador escolhe colocar-se, no delírio que lhe antecede à morte, frente a uma Natureza cruel e impiedosa que será, mais para a frente, o suporte para a filosofia de Humanitas, paródia descarnada dos ideais positivistas e darwinistas, tão em voga e tão prestigiados no contexto de Machado de Assis. Tal atitude narrativa apenas confirma o contrário do que se afirmara, quer no discurso fúnebre, quer na própria descrição do narrador. Não há que levá-lo a sério; ele não tem qualquer compromisso com a coerência. E isto se repete ao longo do livro. A cada afirmação, surgirá a correspondente negação, clara ou implícita, sonegando ao leitor uma base firme sobre que se sustente para uma interpretação baseada na coerência e na verossimilhança.
Assim é no caso de sua genealogia: seu sobrenome, Cubas, tendo origem num bisavô tanoeiro -- que lhe não dava os fumos aristocráticos que sua posição ensejava. É, num primeiro momento, pespegado a um capitão-mor, seu homônimo e fundador da Vila de São Vicente, no século XVI. Em seguida, devido à reação dos herdeiros daquele, é relacionado a um outro ascendente, que se heroicizara nas lutas contra os mouros, por haver arrebatado trezentas cubas aos infiéis. Ou, nas suas próprias palavras:

Como êste apelido de Cubas lhe cheirasse excessivamente a tanoaria, alegava meu pai, bisneto do Damião, que o dito apelido fôra dado a um cavaleiro, herói nas jornadas da África, em prêmio da façanha que praticou, arrebatando trezentas cubas aos mouros. Meu pai era homem de imaginação; escapou à tanoaria nas asas de um calembour. Era um bom caráter, meu pai, varão digno e leal como poucos. Tinha, é verdade, uns fumos de pacholice; mas quem não é um pouco pachola nesse mundo? Releva notar que ele não recorreu à inventiva senão depois de experimentar a falsificação; primeiramente, entroncou-se na família daquele meu famoso homônimo, o Capitão-mor, Brás Cubas, que fundou a vila de S. Vicente, onde morreu em 1592, e por êsse motivo é que me deu o nome de Brás. Opôs-se-lhe, porém, a família do capitão-mor, e foi então que êle imaginou as trezentas cubas mouriscas. [5]

O mesmo movimento repete-se, em relação ao seu pai, que é construído e desconstruído logo em seguida. Era um bom caráter, meu pai, varão digno e leal como poucos e, apesar disso, releva notar que ele não recorreu à inventiva senão depois de experimentar a falsificação . Além disso, tinha, é verdade, uns fumos de pacholice; mas quem não é um pouco pachola nesse mundo? Recorrendo ao mestre Aurélio, podemos constatar que pachola aceita significações diferentes:
Pachola. S.m. 1. Madraço, mandrião. 2. Farsola, farsante; patusco. 3. Indivíduo pedante, cheio de si. 4. Indivíduo de elegância duvidosa. 5. Homem femeeiro, mulherengo. * Adj. 2g. 6. Bras. Cheio de si; orgulhoso, vaidoso; gabola. 7. Pretensiosamente apurado no trajar. [6]
A qual delas recorrer, se mais de uma pode encaixar-se, com sentido na frase? É o narrador, mais uma vez, jogando com as possibilidades ambíguas que o discurso lhe oferece. Claro está que o dicionário fornece significações contemporâneas e que não coincidem, necessariamente, com as acepções correntes na época de Machado. Mas não temos muitas razões de ordem filológica para acreditar que este vocábulo, já em desuso entre nós, tenha abrigado significações muito divergentes das dicionarizadas. O que importa é frisar, uma vez mais, o processo de construção usado pelo narrador. O pai é e não é, ao mesmo tempo, uma e outra coisa. O que fica, ao final? O esvaziamento das significações estabelecidas e cristalizadas. O próprio conceito de pai -- tabu nos discursos filiais -- é submetido a duro, mas simpático, tratamento desmitificador.
Processo semelhante encontramos, por exemplo, em O Alienista, Idéias de Canário e Um homem célebre, para citar apenas três de seus contos mais conhecidos. No primeiro, fica-se sem saber qual a significação de loucura; no segundo, de mundo; no último, de criação artística. Este procedimento, talvez central na obra de Machado, termina por abalar os próprios alicerces da verossimilhança, não só literária, mas cultural como um todo. É como se ele estivesse empenhado em corroer, por dentro, não a ordem social ou política, mas filosófica e ética, mostrando sempre que o que é, não é, e o que parece ser é o seu contrário. O que, em última instância, termina por denunciar a falsidade intrínseca do mundo em que lhe tocava viver e onde faz suas personagens desfilarem suas misérias cotidianas. Porque grandeza, nenhuma delas tem...
E este ponto conduz ao que é central, em minha preocupação, nesse capítulo. Essa falsidade intrínseca atinge, de cheio, suas personagens femininas. Aqui, especialmente Virgília, mas sem poupar as demais coadjuvantes desse drama pequeno e despido de qualquer grandiosidade épica. Longe de suas intenções os arquétipos femininos tão competentemente talhados pelo buril verbal de um José de Alencar. Aqui habitam mulheres comuns, medíocres mesmo, tiradas, estas sim, ao vivo da sociedade carioca do nosso século XIX. Incultas, muitas vezes desgraciosas, incoerentes e astutas, ingênuas calculistas e simplórias desfrutáveis, elas desfilam sua mesmice e vacuidade ao longo das páginas de seus romances.
Aqui mesmo, o grande amor da vida de Brás Cubas, seu único amor, surge em cena nestes termos:

Com esta reflexão me despedi eu da mulher, não direi mais discreta, mas com certeza mais formosa entre as contemporâneas suas, a anônima do primeiro capítulo, a tal, cuja imaginação à semelhança das cegonhas do Ilisso... Tinha então 54 anos, era uma ruína, uma imponente ruína. Imagine o leitor que nos amamos, ela e eu, muitos anos antes, e que um dia, já enfêrmo, vejo-a assomar à porta da alcova... [7]


E logo adiante:

Saiu; Virgília deixou-se estar de pé; durante algum tempo ficamos a olhar um para o outro, sem articular palavra. Quem diria? De dous grandes namorados, de duas paixões sem freio, nada mais havia ali, vinte anos depois; havia apenas dous corações murchos, devastados pela vida e saciados dela, não sei se em igual dose, mas enfim saciados. Virgília tinha agora a beleza da velhice, um ar austero e maternal; estava menos magra do que quando a vi, pela última vez, numa festa de São João, na Tijuca; e porque era das que resistem muito, só agora começavam os cabelos escuros a intercalar-se de alguns fios de prata.[8]

Com qual das duas imagens ficamos? A mais formosa entre as contemporâneas suas; ou uma ruína, uma imponente ruína , ou ainda, a beleza da velhice, um ar austero e maternal, o que é verdadeiro, se é que esta palavra tem algum sentido aqui ? Mais uma vez, o narrador, à plena luz da cena, faz pouco caso de nós leitores ou, mesmo, nos faz de bobos. Ser e não-ser, ao mesmo tempo; esvaziamento de qualquer referência mais sólida. Mas, a delicadeza do eufemismo -- ao dizer que estava menos magra -- , o toque realista sobre a cor dos cabelos e a observação sobre a resistência fazem o pêndulo deter-se, nesta passagem, do lado positivo. A imagem é tratada, de início, sarcasticamente, onde o adjetivo imponente tanto pode ser lido como um quantificador, numa pauta negadora, quanto como, na escala positiva, majestosa, magnificente, admirável. Mas da beleza da velhice à ruína medeiam léguas de desconsideração...
Nega, também, a vida e a paixão: "De dous grandes namorados, de duas paixões sem freio, nada mais havia ali, vinte anos depois; havia apenas dous corações murchos, devastados pela vida e saciados dela, não sei se em igual dose, mas enfim saciados." O que houve, se houve e quando houve transforma-se, uma vez mais, em nada. Da paixão, das vibrações, do amor nada restou, tudo são ruínas, corações murchos. E a vida? O que resta está marcado pela saciedade; não a saciedade feliz pelo alimento farto e saboroso, mas a saciedade da inapetência, da ausência do desejo.
E, como quem se justifica, aduz logo em seguida:

Creiam-me, o menos mau é recordar; ninguém se fie da felicidade presente; há nela uma gôta da baba de Caim. Corrido o tempo e cessado o espasmo, então sim, então talvez se pode gozar deveras, porque entre uma e outra dessas duas ilusões, melhor é a que se goza sem doer. [9]

Retorna a seu mote predileto de negação do real imediato. Nega tanto a felicidade presente, quanto a recordação, deixando-nos o consolo de gozar de uma das ilusões: a presente ou a que será presente no futuro. E, como é de seu gosto, talha o presente dentro da moldura da baba de Caim, ofertando um gozo menos ácido para o exercício da rememoração. Estamos condenados à memória afetiva que, ao fim e ao cabo, oferece-nos uma visão menos amarga da vida. E é seguramente por isso que o narrador assim descreve a chegada de Virgília à beira de seu leito de morte:

Vejo-a assomar à porta da alcova, pálida, comovida, trajada de prêto, e ali ficar durante um minuto, sem ânimo de entrar, ou detida pela presença de um homem que estava comigo. Da cama, onde jazia, contemplei-a durante êsse tempo, esquecido de lhe dizer nada ou de fazer nenhum gesto. Havia já dous anos que nos não víamos, e eu via-a agora não qual era, mas qual fôra, quais fôramos ambos, porque um Ezequias misterioso fizera recuar o sol até os dias juvenis. Recuou o sol, sacudi todas as misérias, e êste punhado de pó, que a morte ia espalhar na eternidade do nada, pôde mais do que o tempo, que é o
ministro da morte. Nenhuma água de Juventa igualaria ali a simples saudade.[10]

O jogo da afirmação/negação segue certeiro seu rumo; afirma e nega, a um só tempo, a presença de Virgília. Sobrepõe-se à mulher real e presente, a mulher ausente e conduzida pela recordação. É a vitória, como sempre, da memória afetiva sobre o real imediato. Num outro plano, o estilístico, ao executar um movimento de virtuose, afirma: "Da cama, onde jazia, contemplei-a durante êsse tempo, esquecido de lhe dizer nada ou de fazer nenhum gesto". O curso normal da construção apontaria para um complemento afirmativo do verbo esquecer. Entretanto, ele se esquece de dizer nada e de fazer nada. Claro está que o jogo estilístico termina por inverter este sentido literal, mas sem apagá-lo. Convivem na frase, mais um vez, o ser e o não-ser, no mesmo processo de esvaziamento detectado em outros planos do discurso. Sua atitude epistemológica é de uma conseqüência a toda prova.
No curso desse mesmo movimento, surge a dissimulação de Virgília:

Nhonhô era um bacharel, único filho de seu casamento, que, na idade de cinco anos, fôra cúmplice inconsciente de nossos amôres. Vieram juntos, dous dias depois, e confesso que, ao vê-los ali, na minha alcova, fui tomado de um acanhamento que nem me permitiu corresponder logo às palavras afáveis do rapaz. Virgília adivinhou-me e disse ao filho:
-- Nhonhô, não repares nesse grande manhoso que aí está; não quer falar para fazer crer que está à morte.
Sorriu o filho, eu creio que também sorri, e tudo acabou em pura galhofa. Virgília estava serena e risonha, tinha o aspecto das vidas imaculadas. Nenhum olhar suspeito, nenhum gesto que pudesse denunciar nada; uma igualdade de palavra e de espírito, uma dominação sobre si mesma, que pareciam e talvez fossem raras. Como tocássemos, casualmente, nuns amores ilegítimos, meio secretos, meio divulgados, vi-a falar com desdém e um pouco de indignação da mulher de que se tratava, aliás sua amiga. O filho sentia-se satisfeito, ouvindo aquela palavra digna e forte, e eu mesmo perguntava a mim mesmo o que diriam de nós os gaviões, se Buffon tivesse nascido gavião... [11]

Há aqui a repetição do processo, Virgília é construída como amante, para, em seguida, ser desconstruída. Nhonhô é, a um só tempo, testemunha inconsciente de amores adulterinos e portador do orgulho filial, diante da palavra digna e forte de sua mãe. Mas, por sobre isto, o cinismo descarado do narrador, de um lado infantilizando o rapaz, tratando-o por Nhonhô; de outro, reforçando, para nós leitores, a consciência de sermos conhecedores da verdade e sermos engambelados pelo discurso moralizador que ele desenvolve, encobrindo-a. O tratamento de Nhonhô é uma forma típica do discurso do escravo, para referir-se aos filhos do senhor: é o diminutivo -- de caráter, inclusive, afetivo -- com que as amas tratavam as crias do senhor branco. O narrador Brás Cubas, ao colocar na boca de Virgília tal tratamento para o filho, abre um leque amplo de possibilidades de significações. Ou zomba de sua maternidade, ou coloca-a em inferioridade na escala hierárquica familiar, ou infantiliza definitivamente o jovem, ou tudo isso ao mesmo tempo. O que é mais provável...
Da parte de Virgília, o narrador brinca todo o tempo e parece divertir-se às custas dela e de nós. "Sorriu o filho, eu creio que também sorri, e tudo acabou em pura galhofa. Virgília estava serena e risonha, tinha o aspecto das vidas imaculadas. Nenhum olhar suspeito, nenhum gesto que pudesse denunciar nada; uma igualdade de palavra e de espírito, uma dominação sobre si mesma, que pareciam e talvez fossem raras". Se tudo acabou em pura galhofa, o que se segue a essa frase fica contaminado, desde já por essa marca. Ele nos avisa e, entretanto, em seguida, passa a narrar seriamente o caráter acima de qualquer suspeita de sua amante. Culmina com a igualdade de palavra e de espírito. Ou seja, ela não fingia. O fingimento supõe, exatamente, a desigualdade entre eles. Ela é, para esse discurso, séria e fiel esposa, mãe exemplar e, concomitantemente, amante e adúltera.
Não é, tampouco, ocasional a referência a Buffon. Machado aproveita-se, em todas as ocasiões, para fazer uso de sua ampla erudição e leitura. De um lado, para colocar seu leitor diante de um quadro de possível desconhecimento e aceitar o que ele afirme, sem discutir, tal é a sua cultura e a autoridade intelectual, daí decorrente. De outro, como sempre, para provocar relações que funcionem como pistas de leitura ou, mais simplesmente, para esconder tais pistas. No caso, Buffon, além de ser o retórico que cunhou o, hoje, lugar-comum "o estilo é o próprio homem", foi um dos cientistas mais respeitados do século XVIII francês.

Georges Louis Leclerc Comte de Buffon , b. Sept. 7, 1707, d. Apr. 16, 1788, a French naturalist, wrote Natural History, one of the most widely read scientific works of the 18th century. In 1739 he became the intendant, or director, of the Jardin du Roi, the French botanical gardens. With the help of collaborators, Buffon spent almost 50 years until his death writing the eventually 44-volume Natural History, which concerns almost all nature, as well as presenting Buffon's views on the origin and age of the Earth--one of the first not based on biblical interpretations. Well known and respected, he was made a count in 1753 by King Louis XV. [12]


Buffon (Georges Louis Leclerc, comte de). Naturaliste et écrivain français (Montbard, 1707 - Paris, 1788). Partageant son temps entre ses fonctions d'intendant du jardin du roi (1739) e son domaine en Montbard, il rédigea son Histoire Naturelle , suivie des époques de la Nature, avec plusieurs collaborateurs dont Daubetton. Soucieux de baser la connaissance scientifique sur des faits d'expérience, il critiqua le caractère, selon lui trop systématique de la classification des espèces de Linné. Croyant en la génération spontanée, il expliqua la genèse des espèces (38 types originels) à partir de "molécules organiques". Il semble avoir admis un transformisme limité, en particulier sous l'influence du milieu, de la nourriture et de la domestication. Convaincu que "les ouvrages bien écrits seront les seuls qui passeront à la postérité" et soucieux avant tout de l'ordre et de l'enchaînement des idées, il prôna une parfaite adaptation de l'expression au sujet ( Discours sur le style , 1753), théorie que ses écrits illustrent: plein de vivacité dans la monographie sur l'écureuil, son style, devient épique pour évoquer "les époques de la nature". [13]

Mas, além do fato de ser cientista respeitado, Buffon defende algumas idéias que têm a ver com a nossa história:

La mode est à la vulgarisation de la science. Le dessein de l'Encyclopédie le révèle bien. Aussi l'oeuvre de BUFFON (1707-88) directeur du Jardin du Roi, auteur de l'imposant Histoire naturelle (1749-88), livre à succès.
OEuvre de science solide. Observation scrupuleuse: aidé de collaborateurs (Daubeton, l'abbé Bexon), Buffon pousse loin le souci de la documentation exacte. Hypothèse intelligente: montrant l'unité naturelle, du minéral au végétal et à l'animal (l'homme seul échappe encore à la série) Buffon est l'ancêtre du transformisme. Surtout, s'élevant contre toute logomachie, il n'aime pas que l'on prenne pour la science les formules et les dictionnaires: méthodes et symboles, en mathématique ou en biologie, appareil d'allure savant, ne sont que des
échafaudages qui ne doivent pas trop en imposer ni remplacer l'effort proprement philosophique, le progrès du savoir.[14]

O cientista coloca-se frontalmente contra o emprego de fórmulas vazias ou definições meramente formais, empenha-se na busca de documentação exata e filia-se à necessidade de desenvolver um esforço filosófico na busca do progresso do saber. Ora nada disso caracteriza o discurso de nosso Brás Cubas, muito pelo contrário, tudo aí é engenhosidade formal, vacuidade de pensamento. Claro está que a remissão a Buffon faz-se, num primeiro momento, em função do lugar-comum: os gaviões, se tivessem o seu retórico, julgar-nos-iam, pelo nosso estilo. Mas, num outro plano, o cientista estudou todas as espécies animais com um detalhe levado a extremos e as estudou com método científico. De qual dos dois Buffon-gavião nos fala o narrador? É apenas uma tirada de estilo ou, mais uma vez, o jogo da desconstrução? E, repetidamente, a negação global da realidade humana, desde que observada de um outro ângulo diverso do nosso...
O que há de novo aí é a publicação do caráter dissimulado da personagem feminina que será o leitmotiv de Dom Casmurro e estará ensaiado, em larga escala, na personagem Sofia, do Quincas Borba . Não é uma aparição ocasional nem exclusiva da Capitu dos olhos oblíquos e dissimulados de cigana. O efeito de triangulação entre os três romances permite ver o que, de outra forma, pode passar desapercebido.
Virgília não pode negar o adultério porque, sendo o narrador o seu amante, a traição torna-se constitutiva da história. Mas, mesmo assim, pode armar-se de uma postura familiar e, mesmo, moralista no curso de uma bem construída dissimulação. Entretanto a Virgília, que aí está, é construída pelo discurso de Brás Cubas. Não é o marido ciumento que fantasia a dissimulação de uma esposa que pode ser culpada ou não e que transforma a sua narrativa em libelo acusatório. Mas, entre Bentinho e Brás Cubas há algo mais que o fato de serem narradores criados por Machado de Assis. Em posições opostas no espectro da fidelidade conjugal, ambos compartilham a mesma crença numa natureza feminina necessariamente falsa. O próprio Palha que, cafajestemente, joga sua Sofia nos braços de Rubião -- por sabê-la incapaz de gostar dele --, tem lá as suas desconfianças quanto à igualdade de palavra e de espírito de sua esposa.
Machado de Assis não escapa assim ao círculo de giz preconceituoso de sua época. Como, entretanto, seus narradores são marcados pelo cinismo constitutivo, até desse preconceito somos capazes de duvidar, uma vez que nunca se sabe quando eles falam a sério ou estão tomando o pêlo ao leitor.
De tudo, entretanto, resta o fato de que, entre a fidelidade conjugal e o adultério, a dissimulação move-se totalmente à vontade , como parte constitutiva da natureza feminina...
Este romance é construído numa sucessão de relações amorosas de Brás Cubas. A primeira, aos dezessete anos, com Marcela, uma espanhola de vida airada; a segunda com Eugênia -- filha ilegítima de Dona Eusébia; Virgília, a noiva prometida e sonegada, foi a número quatro; Nhã-loló encerra a lista. Das quatro relações, duas foram consumadas: com a prostituta e com a adúltera. As outras duas não passaram de namoricos, sem conseqüências mais sólidas.
A relação com Marcela, que o inicia nos mistérios do amor, tem características marcadamente românticas. É o jovem bem nascido que se apaixona pela moça de vida fácil, ao invés de apenas desfrutar de seus préstimos como determinava a moral do sistema. Lances de emoção e suspense, desperdício de recursos e planos insensatos levam o pai a transferi-lo à força para Coimbra: forma de afastá-lo de Marcela e proporcionar-lhe a indispensável formação bacharelesca. Mas, se no plano da história isto se passa assim, o narrador aborda o assunto de uma forma quantitativamente irônica:

Gastei trinta dias para ir do Rocio Grande ao coração de Marcela.
..............................................................................................
Teve duas fases nossa paixão, ou ligação, ou qualquer outro nome, que de nomes eu não curo; teve a fase consular e a fase imperial. Na primeira, que foi curta, regemos o Xavier e eu, sem que êle jamais acreditasse dividir comigo o govêrno de Roma; mas, quando a credulidade não pôde resistir à evidência, o Xavier depôs as insígnias, e eu concentrei todos os poderes na minha mão; foi a fase cesariana. Era meu o universo; mas, ai triste! não o era de graça. Foi-me preciso coligir dinheiro, multiplicá-lo, inventá-lo. Primeiro explorei as larguezas de meu pai; êle dava-me tudo o que eu lhe pedia, sem repreensão, sem demora, sem frieza; dizia a todos que eu era rapaz e que êle o fôra também. Mas a tal extremo chegou o abuso, que êle restringiu um pouco as franquezas, depois mais, depois mais. Então recorri a minha mãe, e induzi-a a desviar alguma cousa, que me dava às escondidas. Era pouco; lancei mão de um recurso último: entrei a sacar sôbre a herança de meu pai, a assinar obrigações, que devia resgatar um dia com usura. [15]


Entre o narrador, já postado na outra vida, e o jovem ardente coloca-se um discurso, em tudo e por tudo, marcado pela ironia e, mesmo, pelo deboche. A fórmula consagrada para medir sua relação com Marcela tem uma estrutura fixa:


...Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos. Meu pai, logo que teve aragem dos onze contos, sobressaltou-se deveras; achou que o caso excedia as raias de um capricho juvenil. [16]

É o lugar-comum marcado pelo contraste de duas quantidades, onde a verossimilhança romântica veria apenas qualidades imensuráveis. Assim, a aproximação e a conquista são medidas pela régua da quantidade, que é toda a moral desse primeiro amor de Brás Cubas. Para entender as fases consular e imperial, vale coligir outra informação:

Era boa môça, lépida, sem escrúpulos, um pouco tolhida pela austeridade do tempo, que lhe não permitia arrastar pelas ruas os seus estouvamentos e berlindas; luxuosa, impaciente, amiga de dinheiro e de rapazes. Naquele ano, morria de amôres por um certo Xavier, sujeito abastado e tísico, -- uma pérola.[17]

A disputa pelo cetro do poder era, no fundamental, econômica. Donde a necessidade irrefreável de conseguir os recursos, pelos métodos que mais conviessem aos resultados, estes sim indispensáveis. Não estava em jogo o amor de uma dama, estava em disputa o poderio econômico. Tanto é assim que o narrador hesita ao qualificar sua relação amorosa: paixão, ligação, ou qualquer outro nome. Hesitação nascida do tipo irregular relacionamento. Pois, ao falar da moça, os adjetivos chovem-lhe da pena, com uma precisão só comparável ao sarcasmo com que a qualifica. E, se ao designar sua relação descamba para uma pensada imprecisão, ao qualificá-la, o vocabulário da história política surge-lhe espontâneo e brilhante. Roma antiga é o palco de suas fantasias de poder e, do consulado ao império, são-lhe suficientes poucos meses e muitos contos de réis. Não bastava ao herdeiro ser rico, era necessário parecê-lo. Até aí tudo bem. A ultrapassagem dos limites, a dilapidação da fortuna, o desgaste do capital, isso sim era necessário reprimir. Não há pecado maior no sistema que a pulverização da riqueza. Isto seria intolerável. Passar para outras mãos, sem retorno previsível, os bens de raiz não cabe nos limites desse mundo e a análise de Helena já no-lo mostrou à exaustão.
Outro traço que aqui se repete é o da visão da mulher. Marcela finge, Marcela é simulada, Marcela mantém os dois amantes, sem que um deles fosse informado da circunstância: "quando a credulidade não pôde resistir à evidência, o Xavier depôs as insígnias." A própria mãe, ao desviar algum dinheiro, para fornecê-lo clandestinamente, não deixa de enganar ao pai e ser, ela também, dissimulada.
O segundo relacionamento é com Eugênia. Esta moça era filha ilegítima de uma antiga amiga da família, Dona Eusébia, a quem o pequeno Brás Cubas delatara, em 1814, quando contava com apenas 9 anos. O objeto da delação fora um beijo dado às escondidas no Dr. Vilaça, "um homem grave, medido e lento, quarenta e sete anos, casado e pai." O motivo, este:

Não foi outro o delito do glosador: retardara a compota e dera causa à minha exclusão. Tanto bastou para que eu cogitasse uma vingança, qualquer que fôsse, mas grande e exemplar, cousa que de alguma maneira o tornasse ridículo. Que êle era um homem grave o Dr. Vilaça, medido e lento, quarenta e sete anos, casado e pai. Não me contentava o rabo de papel nem o rabicho da cabeleira; havia de ser cousa pior. Entrei a espreitá-lo, durante o resto da tarde, a segui-lo, na chácara, aonde todos desceram a passear. Vi-o conversar com D. Eusébia, irmã do sargento-mor Domingues, uma robusta donzelona, que se não era bonita, também não era feia.
..............................................................................................
Disse isto; puxou-a para si; ela resistiu um pouco, mas deixou-se ir; uniram os rostos, e eu ouvi estalar, muito ao de leve, um beijo, o mais medroso dos beijos.
-- O Dr. Vilaça deu um beijo em D. Eusébia! bradei eu correndo pela chácara.
Foi um estouro esta minha palavra; a estupefação imobilizou a todos; os olhos espraiavam-se a uma e outra banda; trocavam-se sorrisos, segredos, à socapa, as mães arrastavam as filhas, pretextando o sereno. Meu pai puxou-me as orelhas, disfarçadamente, irritado deveras com a indiscrição; mas no dia seguinte, ao almoço, lembrando-se do caso, sacudiu-me o nariz, a rir: Ah! brejeiro! ah! brejeiro! [18]


Testemunha indiscreta e rancorosa de amores clandestinos, o pequeno Brás assume a delação como vingança, levando à condenação dos infratores. Não nos esqueçamos de que o narrador é o mesmo Brás Cubas, amante e infrator da moralidade estabelecida, quem fará o pequeno Brás Cubas denunciar o adultério alheio, da mesma forma como Virgília já o fizera, capítulos antes. É o ser e o não-ser do jogo discursivo que se reflete, inclusive, na caracterização de D. Eusébia: "uma robusta donzelona, que se não era bonita, também não era feia". Isto em 1814.
É em 1830, quando regressa da Europa, já bacharel, que, após perder a mãe, vai passar uns dias na Tijuca. Lá reencontra D. Eusébia, vizinha da casa dos Cubas naquele bairro de chácaras. E, com ela, uma filha de 16 anos, Eugênia. Feitas as contas, o episódio de 1814 fecundara e prosperara na forma da donzela apetecível.

Ocorreu-me logo o episódio de 1814, e senti-me vexado; mas adverti que os acontecimentos tinham-me dado razão. Na verdade, fôra impossível evitar as relações íntimas do Vilaça com a irmã do sargento-mor; antes mesmo do meu embarque, já se bosquejava misteriosamente no nascimento de uma menina. Meu Tio João mandou-me dizer depois que o Vilaça, ao morrer, deixara um bom legado a D. Eusébia, cousa que deu muito que falar em todo o bairro.[19]


O narrador aproveita-se de tudo para virar o jogo a seu favor. Não foi a delação um ato lamentável, pois os acontecimentos pósteros lhe vieram dar razão. Passa a figurar como natural o ato, em si, condenável; e passa a ser condenada a pobre da moça donzela que se entregara a um homem casado. Ele, não; ele comportara-se como um cavalheiro, deixando, inclusive, um bom legado para a amante. E, mais ainda, a expressão de que lança mão é exatamente esta: "fôra impossível evitar as relações íntimas do Vilaça com a irmã do sargento-mor". Ou seja, tais relações, em princípio, deveriam e poderiam ser evitadas. Esta é a verdade ética do sistema. Mas, não parece que Brás Cubas estivesse credenciado a ser o seu portador e divulgador. É o adúltero confesso a julgar os crimes de adultério. É como colocar a raposa para administrar o galinheiro.
O curioso é que o Vilaça é quem rompe o pacto de fidelidade e a condenada é a robusta donzelona, que a ele se entregara. Entende-se melhor a expressão pouco lisonjeira com que o narrador a trata, ao confirmar que, no adultério, só há um culpado: a mulher. Essa era a opinião dominante no século XIX e, apesar de tudo, continua a sê-lo em pleno século XX...
Tanto é assim que o fruto desses amores proibidos é duplamente marcado pelo narrador: pelo nome e pelo físico. Chama-se Eugênia e é coxa.

EUGÊNIO, -A , gr. Eugênes: "de bom (eu) nascimento (genes)", "de nobre estirpe". [20]
Não bastasse a maldade de fazê-la nascer defeituosa, Brás Cubas delicia-se em nomeá-la com a mais insidiosa das ironias. E não atinge só a ela, não lhe escapa a autora de seus dias:
EUSÉBIO, -A, gr. Eusébios, deriv. de eusebés: "pio, religioso". [21]

E não há levantar a hipótese da arbitrariedade dos nomes das personagens. Todos são escolhidos, por critérios conscientes ou não, a partir de uma grade de leitura mais ou menos codificada, conforme a época. E de Machado não se pode levantar a pecha de desconhecedor da língua e, principalmente, da cultura clássica. Os dois nomes citados têm sua origem no grego e percorrem as obras clássicas da cultura ocidental.
É seguramente a maldade do narrador e o seu descarnado cinismo que o fazem deliciar-se em massacrar suas personagens. A pobre Eugênia, além de filha natural -- como então se dizia -- , ainda traz inscrita no seu corpo e no seu nome a marca da maldade. Não me deixa mentir o narrador, ao intitular o capítulo em que dela trata de "A flor da moita", que remete a uma passagem assaz significativa:

Tinham-me dado razão os acontecimentos. Ainda porém que ma não dessem, 1814 lá ia longe, e, com êle, a travessura, e o Vilaça, e o beijo da moita...[22]


Eugênia aí está apenas para publicar o pecado de sua mãe e carregar com seu andar capenga a vergonha da culpa alheia. E toda essa condenação parte exatamente de quem?
Do narrador, que, em seguida, faz o jovem Brás Cubas interessar-se por ela, enamorar-se mesmo. Começa um namorico que poderia, se continuado, alçar a moça a um patamar social mais alto, ao preço de o jovem herdeiro descer na escala matrimonial. Não vai ele tão longe... Alguns dias bastam para que, a conselho do pai, desça para a cidade para conhecer a noiva prometida e adequada: Virgília.
E quanto a Eugênia, Brás Cubas entretém-se com ela -- tanto o narrador quanto a personagem:

Palavra que o olhar de Eugênia não era coxo, mas direito, perfeitamente são; vinha de uns olhos pretos e tranqüilos.
.....................................................................................
O pior é que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma bôca tão fresca, uma compostura tão senhoril; e coxa! Êsse contraste faria suspeitar que a natureza é às vêzes um imenso escárnio. Por que bonita, se coxa? por que coxa, se bonita? Tal era a pergunta que eu vinha fazendo a mim mesmo ao voltar para casa, de noite, sem atinar com a solução do enigma.
........................................................................................
Manhãs bonitas, frescas, convidativas; lá embaixo a família a chamar-me, e a noiva, e o Parlamento, e eu sem acudir a cousa nenhuma, enlevado ao pé de minha Vênus Manca. Enlevado é uma maneira de realçar o estilo; não havia enlêvo, mas gôsto, uma certa satisfação física e moral. Queria-lhe, é verdade; ao pé dessa criatura tão singela, filha espúria e coxa, feita de amor e desprêzo, ao pé dela sentia-me bem, e ela creio que ainda se sentia melhor ao pé de mim. E isto na Tijuca. Uma simples égloga. D Eusébia vigiava-nos, mas pouco; temperava a necessidade com a conveniência. A filha, nessa primeira explosão da natureza, entregava-me a alma em flor. [23]


Até aí a parte, digamos, leve do assunto. Uma alma em flor enamorando-se e um jovem herdeiro exercendo seu perfil narcísico e deixando-se gostar. Uma mãe hábil na vida, dando as facilidades recomendáveis, ainda que à custa de alguns arranhões na moral professada. E um narrador cínico: da Vênus Manca à simples égloga passam-se cenas inconfessáveis. Se é ele quem a constrói coxa, como tem o descaramento de acusar a natureza de escárnio? E, com que superioridade coloca a personagem Brás em relação a Eugênia... "Queria-lhe, é verdade; ao pé dessa criatura tão singela, filha espúria e coxa, feita de amor e desprêzo, ao pé dela sentia-me bem, e ela creio que ainda se sentia melhor ao pé de mim." O sentir-se bem do jovem Brás é todo feito de uma superioridade que vai do social ao físico, passando pelo moral. A própria construção da frase filha espúria e coxa denuncia a extrema maldade do narrador. Ao atribuir dois adjetivos a um mesmo nome, cria entre eles uma relação de equivalência, ou seja, as qualidades espúria e coxa equivalem-se nesse sintagma, como a dizer que uma e outra decorrem da mesma causa. A mesma coisa vale para a construção seguinte feita de amor e desprêzo . Onde se pode ler cada uma das causas atribuída a um dos pais. E nada havia, até aqui, que colocasse em dúvida a relação D. Eusébia/Vilaça, no que diz respeito à afetividade. A insídia nasce nessa frase e aí se despede, sem maiores explicações...
Mas, o pior está por vir, é a exasperação do cinismo e do escárnio, é o massacre final da pobre Eugênia:

Não desci, e acrescentei um versículo ao Evangelho: -- Bem-aventurados os que não descem, porque dêles é o primeiro beijo das môças. Com efeito, foi no domingo êsse primeiro beijo de Eugênia, -- o primeiro que nenhum outro varão jamais lhe tomara, e não furtado ou arrebatado, mas cândidamente entregue, como um devedor honesto paga uma dívida. Pobre Eugênia! Se tu soubesses que idéias me vagavam pela mente fora naquela ocasião! Tu, trêmula de comoção, com os braços nos meus ombros, a contemplar em mim o teu bem-vindo espôso, e eu com os olhos em 1814, na moita, no Vilaça, e a suspeitar que não podias mentir ao teu sangue, à tua origem...
D. Eusébia entrou inesperadamente, mas não tão súbita, que nos apanhasse ao pé um do outro. Eu fui até à janela; Eugênia sentou-se a concertar uma das tranças.
Que dissimulação graciosa! que arte infinita e delicada! que tartufice profunda! e tudo isso natural, vivo, não estudado, natural como o apetite, natural como o sono. Tanto melhor! D. Eusébia não suspeitou nada.[24]


Há que selecionar, entre as atrocidades, as que merecem comentário. A primeira e mais sugestiva reside na avaliação econômica do primeiro beijo, "cândidamente entregue, como um devedor honesto paga uma dívida". Não, o jovem Brás não furta o beijo, dele é credor natural. Resta perguntar-se o porquê. Ela paga-o como um devedor honesto deve pagá-lo. Ele é o herdeiro, o bafejado pelas benesses do sistema, ela uma pobre flor da moita que deve agradecer às solas que a pisam a honra de por elas ser pisada. Afinal o Brasinho a estava honrando com descer ao seu nível. E tanto é assim que a vingança vem súbita. Ela enlevada, no momento do beijo, e ele a pensar no beijo da moita, a transferir, mais uma vez, para ela a carga dos pecadilhos alheios, transformados em desvio fatal. Ele a fingir e ela a sentir. Mas -- as surpresas não se detêm aí --, é ela a dissimulada, aliás como qualquer mulher, na opinião do narrador. E não só dissimulada, mas de uma "tartufice profunda". O substantivo, evidentemente derivado de Tartufo, denota a qualidade essencial da personagem de Molière: a hipocrisia.
Pobre Eugênia, massacrada, enganada, tripudiada e, ainda por cima, acusada de dissimulação e de hipocrisia. Mais uma vez, por quem? Justamente por Brás Cubas que, no Capítulo XIV / O PRIMEIRO BEIJO, narra a sua primeira experiência, com Marcela -- esta sim , moça de vida fácil -- em que, aproveitando-se de uma distração rouba-lhe o primeiro beijo de sua vida. Da prostituta ele rouba; Eugênia entrega-o, como uma honesta devedora...
Mas a desfaçatez não se detém diante de nada. É necessário transcrever o capítulo que se segue a essa cena, para entender até onde vão os limites de Brás Cubas:

CAPÍTULO XXXIV / A UMA ALMA SENSÍVEL

Há aí, entre as cinco ou dez pessoas que me lêem, há aí uma alma sensível, que está decerto um tanto agastada com o capítulo anterior, começa a tremer pela sorte de Eugênia, e talvez... sim, talvez, lá no fundo de si mesma, me chame cínico. Eu cínico, alma sensível? Pela coxa de Diana! esta injúria merecia ser lavada com sangue, se o sangue lavasse alguma cousa nesse mundo. Não, alma sensível, eu não sou cínico, eu fui homem; meu cérebro foi um tablado em que se deram peças de todo o gênero, o drama sacro, o austero, o piegas, a comédia louçã, a desgrenhada farsa, os autos, as bufonerias, um pandemonium, alma sensível, uma barafunda de cousas e pessoas, em que podias ver de tudo, desde a rosa de Esmirna até a arruda do teu quintal, desde o magnífico leito de Cleópatra, até o recanto da praia em que o mendigo tirita o seu sono. Cruzavam-se nêle pensamentos de vária casta e feição. Não havia ali a atmosfera sòmente da águia e do beija-flor; havia também a da lêsma e do sapo. Retira, pois, a expressão, alma sensível, castiga os nervos, limpa os óculos, -- que isso às vêzes é dos óculos, -- e acabemos de uma vez com esta flor da moita. [25]

O sarcasmo inicia-se com a pseudo-desqualificação do livro, no afirmação de que apenas cinco a dez pessoas constituiriam seu público leitor. É uma pose de falsa modéstia que combina bem com o que virá a seguir. E, dentre as poucas, apenas uma alma seria sensível ao drama de Eugênia. Com isso, ele está afirmando que a maioria de seus leitores pensa exatamente como ele; o que, se não é verdade, passa a funcionar como se fosse, na medida em que não cabe ao leitor o papel de contestar. E, mesmo essa única alma sensível estará decerto um tanto agastada com o capítulo anterior, começa a tremer pela sorte de Eugênia, e talvez... sim, talvez, lá no fundo de si mesma, me chame cínico . O argumento é falaz. Diante de tamanha desfaçatez, o que se pode sentir é, no mínimo, indignação. E a boa alma leitora poderá estar, quando muito, um tanto agastada. O mestre Aurélio nos diz a respeito:

Agastado. [Part. de agastar.] Adj. 1. Que se agastou; irritado, encolerizado, irado. 2. Aborrecido, enfadado, zangado. 3. Bras., Al. Fam. V. encarapinhado. [26]

Há aí hipóteses diversas de significações possíveis, sendo de sublinhar-se que o uso mais comum tende para o grupo dois. Há um evidente propósito de amenização do sarcasmo, primeiro reduzindo a divergência a um só dos leitores, ironizado todo o tempo como uma alma sensível. Aos demais resta-lhes a concordância com o narrador que está, com isso, afirmando que seu círculo de leitores, a sociedade dos que lêem, concorda, no fundamental, com as idéias arrogantes de Brás Cubas. Inclui a nós leitores no processo de esmagamento de Eugênia. Somos todos cúmplices!
Para responder à possível acusação velada de cinismo, lança mão de um cinismo ainda maior, porque assumido. "Eu cínico, alma sensível? Pela coxa de Diana! esta injúria merecia ser lavada com sangue, se o sangue lavasse alguma cousa nesse mundo. Não, alma sensível, eu não sou cínico, eu fui homem."
A crer-se na sua sinceridade, que dizer da expressãozinha que cunha, num infeliz trocadilho, sobre a coxa de Diana? Pode haver maior crueldade de expressão, justamente para indignar-se contra o único leitor que, teoricamente, poderia estar solidário com a pobre Eugênia?
Cruzam-se aqui um conjunto de referências advindas da mitologia grega. De um lado, Dionisos, deus do prazer, nasceu pela segunda vez da coxa de Zeus. De outro, Diana é a deusa da castidade e cuida dos partos, mas é também ligada à fertilidade. Se se acresce a isto que Eugênia é a flor da moita, pode-se ler aí uma outra cruel referência, ao seu nascimento e concepção. Foi ela feita na moita, com todas as ressonâncias semânticas daí derivadas. Ou, em outra escala, sendo Diana casta e falando-se de sua coxa, por que não pode a pobre Eugênia ter vindo ao mundo, depois de feita nas coxas?
Tudo isto, na verdade, é a forma que Machado de Assis encontra para expressar a hediondez da classe dominante brasileira da época, colocando na boca de um dos mais lídimos representantes as idéias que praticava, sem a coragem de defendê-las. Roberto Schwarz já o demonstrou, com seu insuperável brilho e rigor, a consistência desta tese e suas conseqüências para o plano formal da obra.[27]
Retomando seus argumentos, em seguida nega a possibilidade de lavar-se honra com sangue, tese corriqueira e corrente em nossa cultura e não só daquele tempo. Partindo de Brás Cubas uma tal afirmação, só pode ser colocada entre aspas. Talvez esteja aqui como uma defesa prévia do que virá, em seguida. O argumento de que se serve para opor-se à suposta acusação de cinismo é o de que simplesmente portou-se como um homem de seu tempo. Mais uma vez, escora-se na moral vigente para, com ela, escarnecer dos mais pobres, ao mesmo tempo que revela sua intrínseca desigualdade. Passa daí, como num passe de mágica, para o terreno da retórica literária e tudo termina em uma questão de gêneros e espécies literárias, e num conjunto heterogêneo em que os opostos se cruzam e se anulam, no já analisado movimento entre ser e não-ser. Igualam-se, pois, aí: a rosa de Esmirna e a arrruda do quintal; o leito de Cleópatra e o não-leito do mendigo; em outros termos, o rico e o pobre; o luxuoso e o carente. E, por que não?, Brás e Eugênia. Tudo se iguala na retórica, enquanto se desiguala na vida. E entre iguais não há violência, nem hierarquia de classes, nem a superioridade -- real ou pretendida -- capaz de alicerçar o sarcasmo.
E isto permite-lhe atribuir o agastamento do leitor a um cotidiano problema de visão: pode ser dos óculos... O objeto depende do ponto de vista e se aqui já não há mais desigualdade, acabou-se o cinismo e já é tempo, também, de acabar com esta flor da moita. Depois de aplainar retoricamente o terreno, desfaz-se da incômoda moça, tripudiando sobre os seus sentimentos e posando de igualitário, a um só tempo. Este é o jogo preferido do narrador Brás Cubas: reduzir tudo ao mesmo, esvaziar o real de suas contradições, como forma de sentir-se humanitário quando castiga; normal, quando cínico; democrata, quando tirano. Não há mais perfeito retrato de um membro da aristocracia que necessitava viver com uma auto-imagem muito complacente e exercer com mão-de-ferro o poder que lhe garantia, exatamente, o privilégio de ser classe dominante. Assim o jovem Brás tripudia sobre a pobre Eugênia, age como o mais completo canalha, recoloca-a no seu verdadeiro lugar, humilha-a, a mais não poder, diante dos seus leitores e termina com o maior fair play de bom-moço. Mas, para que não restem dúvidas de quem é quem, muitas páginas adiante e cento e vinte e quatro capítulos depois, relata-nos, na maior gratuidade, o seguinte:

CAPÍTULO CLVIII / DOUS ENCONTROS


No fim de alguns anos, três ou quatro, estava enfarado do ofício, e deixei-o, não sem um donativo importante, que me deu direito ao retrato na sacristia. Não acabarei, porém, o capítulo sem dizer que vi morrer no hospital da Ordem, adivinhem quem?... a linda Marcela; e vi-a morrer no mesmo dia em que, visitando um cortiço, para distribuir esmolas, achei... Agora é que não são capazes de adivinhar... achei a flor da moita, Eugênia, a filha de D. Eusébia e do Vilaça, tão coxa como a deixara, e ainda mais triste.
Esta, ao reconhecer-me, ficou pálida, e baixou os olhos; mas foi obra de um instante. Ergueu logo a cabeça, e fitou-me com muita dignidade. Compreendi que não receberia esmolas de minha algibeira, e estendi-lhe a mão, como faria à espôsa de um capitalista. Cortejou-me e fechou-se no cubículo. Nunca mais a vi; não soube nada da vida dela, nem se a mãe era morta, nem que desastre a trouxera a tamanha miséria. Sei que continuava coxa e triste. Foi com esta impressão profunda que cheguei ao hospital, onde Marcela entrara na véspera, e onde a vi expirar meia hora depois, feia, magra, decrépita... [28]

E isto que estamos a dois capítulos do final do livro... Conforme registra o defunto-narrador, ele mesmo morreu pouco depois, em agosto de 1869. Tais encontros devem ter ocorrido no mesmo ano, alguns meses antes. Nessa época, Eugênia somava já 55 anos; Virgília, 54; Brás Cubas, 64 e Marcela, seguramente, mais que ele. Estavam todos irremediavelmente velhos, para os padrões da época. Não era, pois, esperável que estivessem tinindo -- belos e lampeiros! Isto só magnifica a maldade desse narrador impiedoso.
Num único e curto capítulo, ele despacha para o nada duas das mulheres de sua vida. Uma terceira ele já fizera baixar à terra, vitimada pela febre amarela, poucos capítulos atrás e alguns dias antes de casar-se com ela. Restou Virgília, que lhe sobrevive, inclusive para assistir-lhe a morte. Não é de pouca monta o fato de ser a única que lhe igualava e até sobrepujava a condição de classe social e de riqueza. Só aqui, efetivamente, não houve desequilíbrio na relação; e, como Virgília trocou-o por noivo mais promissor, pode-se até supor uma desvantagem para o nosso orgulhoso Brás Cubas.
Nada a estranhar que complete ele aqui o rosário de maldades que constitui a sua biografia. Parece sentir uma enorme necessidade de vingar-se das mulheres pobres por quem sentiu alguma coisa. Reduzir Eugênia à indigência já é de uma violência única, tripudiar sobre ela, para exibir-se frente ao leitor, é de um descarado exagero. "Achei a flor da moita, Eugênia, a filha de D. Eusébia e do Vilaça, tão coxa como a deixara, e ainda mais triste." Como se fosse esperável que sua deficiência diminuísse com anos, finge espantar-se com o fato e assinala, como se também fosse estranho, que a via mais triste. Miserável, aleijada, abandonada na vida -- inclusive e principalmente por ele -- que mais esperava o nosso Brás Cubas? Mas o espanto, no plano da retórica, absolve-o, uma vez mais. Ele sinceramente não poderia imaginar que a moça terminasse assim. Não fosse ele o narrador -- o Deus criador -- de tal infeliz criatura. E, quanta generosidade!, estende-lhe a mão "como faria à esposa de um capitalista," quando lê em seu gesto uma dignidade acima de qualquer miséria. Mas quem seria a pobre Eugênia, se tivesse casado com ele, senão a esposa de um capitalista? A ironia e o sarcasmo aliam-se outra vez, para terminar de liquidar o que sobrara da pobre personagem. Caso contrário, o ricaço generoso, que andava de visitas a hospitais e enfermos, não poderia minimizar o enorme legado de miséria que a atingia, sem o alarde humilhante da esmola? Isto seria dar sobrevida a alguém que o narrador precisava reduzir ao nada, para que lhe não restasse partícula de culpa sobre a terra, antes de partir para uma carreira de escritor no além-tumba.
Faz o mesmo com a linda Marcela. E com não menos convicção e, mesmo, alguma alegria:


Dadas as voltas, ao passar pela Rua dos Ourives, consulto o relógio, e cai-me o vidro na calçada. Entro na primeira loja que tinha à mão; era um cubículo, -- pouco mais, -- empoeirado e escuro.
Ao fundo, por trás do balcão, estava sentada uma mulher, cujo rosto amarelo e bexiguento não se destacava logo, à primeira vista; mas logo que se destacava era um espetáculo curioso. Não podia ter sido feia; ao contrário, via-se que fora bonita, e não pouco bonita; mas a doença e uma velhice precoce destruíram-lhe a flor das graças. As bexigas tinham sido terríveis; os sinais, grandes e muitos, faziam saliências e encarnas, declives e aclives, e davam uma sensação de lixa grossa, enormemente grossa. Eram os olhos a melhor parte do vulto, e aliás tinham uma expressão singular e repugnante, que mudou, entretanto, logo que eu comecei a falar. Quanto ao cabelo, estava ruço e quase tão poento como os portais da loja. Num dos dedos da mão esquerda fulgia-lhe um diamante. Crê-lo-eis, pósteros? essa mulher era Marcela.[29]


Esta passagem está no CAPíTULO XXXVIII/ A QUARTA EDIÇÃO. A cena anterior situa-se no CAPÍTULO CLVIII. Logo medeiam, entre os dois, 120 capítulos e, na minha edição, 81 páginas. É difícil pois encontrar-se coerência na narração dos dois episódios. Se Marcela já era, nesse então, uma ruína muito maior do que Virgília, na abertura do romance, é um pouco difícil imaginar-se como ainda pode o narrador falar da linda Marcela. Apenas a necessidade de desconstruir os mitos que esculpira, no início, pode levá-lo a assumir o risco da incoerência, para privilegiar uma significação com tamanha tenacidade buscada. Outro dado importantíssimo é que esse encontro casual com Marcela ocorre, justamente, minutos antes de o jovem Brás ir a casa do Conselheiro Dutra, para jantar com Virgília, na esperança de consolidar sua aliança conjugal e política. Ganharia a mulher e uma cadeira na Câmara dos Deputados, sem nenhuma loteria da vida, mas simplesmente dando conseqüência a seu destino de herdeiro rico. Desde logo, o encontro com Marcela, no plano da narrativa perde qualquer casualidade, para assumir o caráter de uma liquidação de faturas passadas. Tinha que estar com o coração e a memória livres , para assumir uma relação que, esta sim, o interessava, do ponto de vista de classe, de seu capital e da importância que se auto-atribuía na pirâmide social. É um movimento em tudo e por tudo semelhante àquele que executou para livrar-se de Eugênia, na véspera de descer para a cidade, para conhecer a sua Virgília. Neste sentido, a análise de Schwarz, sobre o episódio das borboletas pretas, é antológica [30]. Aí, ele relaciona de forma insofismável, o assassinato da borboleta com o necessário esmagamento de Eugênia, tudo em prol da boa ordem social.
Os aristocratas podem e devem relacionar-se com mulheres de outros segmentos da sociedade, mas sempre de forma superficial e sem responsabilidades. Às outras usa-se e abandona-se; às iguais oferece-se o matrimônio. Esta é a lógica irretorquível que orienta todos os movimentos da narrativa, na área dos relacionamentos amorosos, numa cruel metáfora do conjunto das relações sociais que constituem o contexto dentro de que se move o narrador e, por trás dele, o próprio Machado de Assis.
No caso de Marcela, vale ainda fazer algumas observações sobre o método empregado pelo narrador, no processo de desconstrução da personagem. "Uma mulher, cujo rosto amarelo e bexiguento não se destacava logo, à primeira vista; mas logo que se destacava era um espetáculo curioso. Não podia ter sido feia; ao contrário, via-se que fora bonita, e não pouco bonita; mas a doença e uma velhice precoce destruíram-lhe a flor das graças." Parte da constatação presente: uma mulher com rosto amarelo e bexiguento, em que a adjetivação é claramente agressiva. Não há nenhum cuidado em amenizar as constatações; não busca o eufemismo; diz com transparência e duramente, conseguindo um adjetivo que, além de enfatizar, magnifica a qualidade atribuída: bexiguento. Em seguida, empregando uma forma pouco usual -- o infinitivo pessoal pretérito --, indica para o verbo ser um estado ou qualidade permanente. Ou seja, Não podia ter sido feia, equivale a um eufemismo ao contrário; ao invés de afirmar que ela tinha sido bonita -- o que fez, tantas vezes, nos capítulos correspondentes -- o narrador opta por negar-lhe a feiúra, num primeiro momento. Para logo depois, dizer-nos: via-se que fora bonita; e, num crescendo, concluir, ainda negativamente, que fora não pouco bonita. O processo é o uso do eufemismo de uma forma inusitada. Seu uso habitual é para atenuar a dureza de alguma afirmação, de alguma forma, desagradável. Como quando, ao falar de Virgília, nos diz que "estava menos magra" do que na última vez que a vira. Aqui, usa-o para atenuar uma informação positiva e agradável. Começa descrevendo-a de forma negativa, pelo irreconhecível, e segue na negatividade em direção ao afirmativo. Assim, na verdade, vai, de eufemismo em eufemismo, do disforme ao belo, num efeito de estilo apreciável e que, em termos de discurso, faz o leitor passar de um extremo a outro, sem se dar conta, completamente, da contradição aí instalada. E, no segmento final, introduz a necessária historicização, sem que a frase padeceria da mais elementar lógica: "mas a doença e uma velhice precoce destruíram-lhe a flor das graças."
E, como o jovem Cubas caminhava em direção a outro jardim, estas flores destruídas pela doença, pela velhice e pelo narrador tinham que ser, naturalmente, deixadas de lado. Daí a naturalidade do espanto que tenta passar ao leitor, ao mesmo tempo que lhe fornece a necessária chave para a leitura: "Crê-lo-eis, pósteros? essa mulher era Marcela." Com isto, o parágrafo faz sentido: a beleza que sobrevivera, em meio a tanta negatividade, tem agora uma explicação lógica. E a maldade se reafirma nessa destruição do que fora a Marcela de alguns anos atrás. Por onde passa esse Átila nativo, não sobrevive flor alguma. Nem mesmo a da moita...
A partir daí o campo está livre para que entre no jogo a personagem feminina dominante: Virgília. A cena estava preparada para a consumação de mais uma história de sabor romântico, apesar de tudo. O jovem dissoluto, encontrado o amor, reintegra-se à ordem e contribui para a manutenção do sistema, um pouco à moda do Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida. Entretanto não é isso que nos prepara o bruxo. O seu Brás Cubas não vai trilhar caminhos tão fáceis e conhecidos, nem a ordem instituída vai sair tão ilesa de sua pena afiada. Virgília, mesmo tendo gostado dele, troca-o por Lôbo Neves, noivo mais promissor em termos de carreira política, capaz de chegar ao ministério e, mesmo, à titularidade. As razões emocionais dobram-se, facilmente, ao peso dos argumentos econômicos e jurídicos. Claro está que Virgília não irá posar de megera e interesseira. Estava interessada em Brás, mas, que há de mal nisso?, interessara-se também pelo recém-chegado. E, entre dois interesses, a escolha fez pender, mais para um lado do que para o outro, a balança das emoções. Fica tudo resolvido, inclusive para ela:
Então apareceu o Lôbo Neves, um homem que não era mais esbelto que eu, nem mais elegante, nem mais lido, nem mais simpático, e todavia foi quem me arrebatou Virgília e a candidatura, dentro de poucas semanas, com um ímpeto verdadeiramente cesariano. Não precedeu nenhum despeito; não houve a menor violência de família. Dutra veio dizer-me, um dia, que esperasse outra aragem, porque a candidatura de Lôbo Neves era apoiada por grandes influências. Cedi; tal foi o comêço de minha derrota. Uma semana depois, Virgília perguntou ao Lôbo Neves, a sorrir, quando seria êle ministro.


-- Pela minha vontade, já; pela dos outros, daqui a um ano.
Virgília replicou:
-- Promete que algum dia me fará baronesa?
-- Marquesa, porque eu serei marquês.
Desde então fiquei perdido. Virgília comparou a águia e o pavão, e elegeu a águia, deixando o pavão com o seu espanto, o seu despeito, e três ou quatro beijos que lhe dera. Talvez cinco beijos; mas dez que fossem não queria dizer cousa nenhuma. O lábio do homem não é como a pata do cavalo de Átila, que esterilizava o solo em que batia; é justamente o contrário. [31]


Nota-se um procedimento estilístico equivalente ao usado na desconstrução de Marcela: a operação pela negatividade. O rival Lôbo Neves não é uma série de coisas relativamente ao narrador. Usa, claramente, a técnica do eufemismo; não para aliviar a carga sobre o outro, mas para marcar a sua pretensa superioridade. Só se dá conta do contrário, quando o Conselheiro Dutra afirma que "a candidatura de Lôbo Neves era apoiada por grandes influências". Por outro lado, é pelo caminho indireto e o seu tanto tortuoso que ataca a volubilidade de Virgília. Escolhe a comparação entre águia e pavão, numa clara referência entre um, capaz de altos vôos, e outro só capaz de exibir a própria cauda, ainda que belíssima. Derrotado na comparação, guarda dentro dela um tipo qualquer de superioridade. Como também, a referência ao cavalo de Átila tem, em si, a semente da narrativa futura: o lábio do homem não esteriliza, fecunda. Ainda que aqui o fruto demore muitos anos para amadurecer...
A descrição da trajetória de Lôbo Neves, curiosamente, repete uma construção que o narrador já empregara para descrever a sua própria vitória sobre Xavier, na disputa por Marcela. É a comparação a Júlio César na conquista do poder em Roma:

Teve duas fases nossa paixão, ou ligação, ou qualquer outro nome, que de nomes eu não curo; teve a fase consular e a fase imperial. Na primeira, que foi curta, regemos o Xavier e eu, sem que êle jamais acreditasse dividir comigo o govêrno de Roma;mas, quando a credulidade não pôde resistir à evidência, o Xavier depôs as insígnias, e eu concentrei todos os poderes na minha mão; foi a fase cesariana. [Grifos meus][32]


Comparado com "foi quem me arrebatou Virgília e a candidatura, dentro de poucas semanas, com um ímpeto verdadeiramente cesariano" as coisas tornam-se cristalinas. No primeiro caso, Brás Cubas venceu por seu ímpeto amoroso e econômico, impondo a sua superioridade incontestável. Principalmente porque o outro era tísico, ainda que abonado. Aqui, as coisas mudam de figura: Lôbo Neves detém a supremacia amorosa e a supremacia política, conquistando a mulher e a candidatura.

-- Promete que algum dia me fará baronesa?
-- Marquesa, porque eu serei marquês.

Brás Cubas consegue impor seu domínio sobre mulheres de extração social inferior à sua. Aí seu prestígio de herdeiro rico é o cacife com que entra no jogo. Impõe-se, de saída, não tendo dificuldades em solidificar uma superioridade já dada, desde sempre.
Com Virgília, as coisas mudam de figura. Ela, através do pai, detém o poder político: fará de seu marido deputado, ministro, barão ou marquês. Além desse cacife, ela tem plena consciência do poder que lhe veio com o nascimento. Aqui, a supremacia de Brás não está dada, como coisa quase natural. Ela tem que ser disputada; e com outras armas... Ele se atrapalha e perde. E, como bom perdedor, sabe perder. Aceita os fatos, ironizando-se a si próprio e tocando a narrativa por outros rumos. Não sem antes acentuar a dimensão social da perda, projetada na frustração do pai:

Meu pai ficou atônito com o desenlace, e quer-me parecer que não morreu de outra cousa. Eram tantos os castelos que engenhara, tantos e tantíssimos os sonhos, que não podia vê-los assim esboroados, sem padecer um forte abalo no organismo. A princípio não quis crê-lo. Um Cubas! E dizia isto com tal convicção, que eu, já então informado da nossa tanoaria, esqueci um instante a volúvel dama, para só contemplar aquêle fenômeno, não raro, mas curioso: uma imaginação graduada em consciência. [33]


Estamos em 1830, que foi o mesmo ano da morte da mãe de Brás, e atribuir ao término de seu quase-noivado tal ponderação na morte do pai, termina por desmerecer o desaparecimento da mãe. Mas isto não quita que, para o ordenamento familiar, um bom casamento para Brás Cubas solidificaria o capital, dando-lhe a legitimação de casta de que se ressentia.
O casamento do filho, para o velho Cubas, era a forma de legitimar suas origens, agora incompatíveis com o nível social a que ascendera a família. Seu instrumento e todo o seu investimento, Brás, mentem-lhe ao grande projeto que lhe desenhara ao longo de tanto tempo. E, mesmo frente à dor do pai, ele não se apieda e trata-o com o mesmo tom de ironia que adota para as demais personagens. Retorna, também, à temática da genealogia, para poder dar mais uma espetadela no orgulho familiar.
O que há de comum, em todas as passagens, é um mesmo distanciamento do narrador em relação às personagens e fatos narrados. Consegue isto, quer pelo afastamento no tempo, quer pela construção retórica adotada: "E dizia isto com tal convicção, que eu, já então informado da nossa tanoaria, esqueci um instante a volúvel dama, para só contemplar aquêle fenômeno, não raro, mas curioso: uma imaginação graduada em consciência". A dor do pai termina sendo apenas um objeto de observação que é abordado com uma frieza quase científica. É assim que a tentação romântica é espantada, a par do cinismo da narração e do sarcasmo diante de tudo e de todos, armas não menos eficazes no distanciamento do leitor frente ao imaginário com que se depara.
1830 é um ano fundamental nesta história. Nele se dão o regresso de Brás, a morte da mãe, o conhecimento com Eugênia, o namoro com Virgília, o desenlace e a morte do pai. É o momento em que conta 25 anos de idade e em que, face às circunstâncias, tem que assumir seu próprio destino. Sem pai e sem mãe, sem noiva e com uma herança a ser disputada, palmo a palmo, com a irmã e o cunhado, tem que enfrentar a vida, queira-o ou não.
Tanto é assim que à narração dos eventos desse ano o livro dedica 24 capítulos, de um total de 160. Isto significa 15% de toda a narrativa. Percentual só superado pelos 42,5%, correspondentes aos 68 capítulos dedicados aos 11 anos durante os quais foi amante de Virgília. E igualado, pelos 30 capítulos que se interpõem entre o reencontro com Virgília, depois da presidência de Lôbo Neves, até a sua morte.
Isto nos mostra que o narrador privilegia três momentos na sua vida: o retorno ao Brasil, aos 25 anos; a relação com Virgília, dos 37 aos 48; e a fase pós-Virgília, dos 50 aos 64. O que faz destas Memórias um conjunto fragmentário de momentos escolhidos, sem nenhuma preocupação com a cobertura, mais ou menos integral, de sua própria cronologia. Tanto é assim que entre a ruptura do namoro com Virgília e o reencontro apaixonado decorrem 11 anos a que a narrativa concede um capítulo de dois parágrafos, cuja parte descritiva resume-se ao seguinte:


...vem comigo, entra nessa casa, estira-te nessa rêde que me embalou a maior parte dos anos que decorreram desde o inventário de meu pai até 1842. Vem; se te cheirar a algum aroma de toucador, não cuides que o mandei derramar para meu regalo; é um vestígio da N. ou da Z. ou da U. -- que tôdas essas letras maiúsculas embalaram aí a sua elegante abjeção. Mas, se além do aroma, quiseres outra cousa, fica-te com o desejo, porque eu não guardei retratos, nem cartas, nem memórias, a mesma comoção esvaiu-se, e só me ficaram as letras iniciais.
Vivi meio recluso, indo de longe em longe a algum baile, ou teatro, ou palestra, mas a mor parte do tempo passei-a comigo mesmo. Vivia; deixava-me ir ao curso e recurso dos sucessos e dos dias, ora buliçoso, ora apático, entre a ambição e o desânimo. Escrevia política e fazia literatura. Mandava artigos e versos para as fôlhas públicas, e cheguei a alcançar certa reputação de polemista e de poeta.[34]


Isto é tudo. O inventário do pai foi processado em 1830, depois de sua morte e a narrativa encontra-se, agora, em 1842. É um longo salto, para ser preenchido em tão poucas linhas, em que não falta a nota de sarcasmo contra as mulheres que povoaram seu vazio. Todas "embalaram aí a sua elegante abjeção". E como poderia ser diferente, se o narrador continua o mesmo, coerente consigo mesmo? Além de que, o vazio amoroso mantido garante a vaga para Virgília, que chegará a seu tempo. Há aí uma dívida para com o Romantismo, mas só na articulação da narrativa, não nas suas motivações.
Nesse período, cria uma reputação literária -- tema tão caro ao romance dos oitocentos -- e isso não lhe merece senão um registro seco e curto. Que combina à perfeição com a mediocridade escolhida para si mesmo, já quando regressara de Portugal:

Para lhes dizer a verdade tôda, eu refletia as opiniões de um cabeleireiro, que achei em Módena, e que se distinguia por não as ter absolutamente. Era a flor dos cabeleireiros; por mais demorada que fôsse a operação do toucado, não enfadava nunca; êle intercalava as penteadelas com muitos motes e pulhas, cheios de um pico, de um sabor... Não tinha outra filosofia. Nem eu. Não digo que a Universidade me não tivesse ensinado alguma; mas eu decorei-lhe só as fórmulas, o vocabulário, o esqueleto. Tratei-a como tratei o latim; embolsei três versos de Virgílio, dous de Horácio, uma dúzia de locuções morais e políticas, para as despesas da conversação. Tratei-os como tratei a história e a jurisprudência. Colhi de tôdas as cousas a fraseologia, a casca, a ornamentação...
Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha mediocridade; advirta que a franqueza é a primeira virtude de um defunto. [35]


Que melhor retrato de si mesmo e do padrão cultural de nossas elites? O sarcasmo, agora, atinge-o também e com aguda profundidade. Mas, Brás Cubas, assim, assume ser um modelo e uma média da classe a que pertence. Os anos de Universidade, em Coimbra, não chegam a merecer um capítulo inteiro, na verdade, apenas um parágrafo, em que se contam as aventuras extra-acadêmicas. Mas, ainda assim, sente-se defraudado:


No dia em que a Universidade me atestou, em pergaminho, uma ciência que eu estava longe de trazer arraigada no cérebro, confesso que me achei de algum modo logrado, ainda que orgulhoso.[36]


É impiedoso no próprio auto-retrato: sua maldade não se exerce apenas sobre os demais. Com a diferença de que, agindo assim, legitima a maldade com conseqüências que derrama, generosamente, sobre os menos favorecidos.
Mas, no mais, esse foi um tempo de espera que combina com o título dado ao capítulo: O Recluso.
A partir daí, o reencontro e a relação com Virgília se dão de forma totalmente natural. Em dois capítulos dá conta do recado. Na verdade, dois pedaços de dois capítulos:

Cêrca de três semanas depois recebi um convite dêle para uma reunião íntima. Fui; Virgília recebeu-me com esta graciosa palavra: -- O senhor hoje há de valsar comigo. -- Em verdade, eu tinha fama e era valsista emérito; não admira que ela me preferisse. Valsamos uma vez, e mais outra vez. Um livro perdeu Francesca; cá foi a valsa que nos perdeu. Creio que nessa noite apertei-lhe a mão com muita fôrça, e ela deixou-a ficar, como esquecida, e eu a abraçá-la, e todos com os olhos em nós, e nos outros que também se abraçavam e giravam... Um delírio.


CAPíTULO LI / É MINHA!

"É minha!" disse eu comigo, logo que a passei a outro cavaleiro; e confesso que durante o resto da noite, foi-se-me a idéia entranhando no espírito, não à fôrça de martelo, mas de verruma, que é mais insinuativa.
"É minha!" dizia eu ao chegar à porta de casa.
Mas aí, como se o destino ou o acaso, ou o que quer que fôsse, se lembrasse de dar algum pasto aos meus arroubos possessórios, luziu-me no chão uma cousa redonda e amarela. Abaixei-me; era uma moeda de ouro, uma meia dobra.
"É minha!" repeti eu a rir-me, e metia-a no bôlso. [37]


Essa reunião íntima deu-se, cerca de dois meses depois da chegada de Virgília. Não se diz porque havia partido, nem porque só retornou em 1842. Talvez para dar maior tensão à narrativa; não há explicação melhor alcançável, no texto. E vinha, exatamente, de São Paulo. Também não se diz porquê.
"Valsamos uma vez, e mais outra vez. Um livro perdeu Francesca; cá foi a valsa que nos perdeu. Creio que nessa noite apertei-lhe a mão com muita fôrça, e ela deixou-a ficar, como esquecida, e eu a abraçá-la". Seu diálogo com a Divina Comédia não deixa de ser extremamente interessante. A referência clara a Francesca (da Rimini) nos conduz, de imediato, ao V Canto do Inferno . A personagem de Dante entrega-se a Paolo Malatesta, seu cunhado, após lerem juntos passagens amorosas de Lancelote, personagem de novelas de cavalaria medievais. O marido , irmão de Paolo, descobre o romance e mata-os. E é por isso que Dante vai encontrá-los no segundo círculo do inferno, destinado àqueles que se entregavam aos pecados da carne:

La bufera infernal, che mai non resta,
mena li spirti con la sua rapina:
voltando e percotendo li molesta.
Quando giungon davanti alla ruina,
quivi le strida, il compianto, il lamento;
bestemmiam quivi la virtú divina.
Intensi che a cosí fatto tormento
enno danati i peccator carnali,
che la ragion sometono al talento. [38]


A perdição aqui é muito mais para metafórica, até porque a paixão não lhes traz malefícios. Mas, latente, fica a condenação do narrador ao nos lembrar do sofrimento de Francesca e de Paolo. Estes dois vivem uma paixão, antes de tudo literária. É a leitura de lances amorosos que os leva a praticá-los, configurando a literatura como instrumento corruptor de costumes, idéia nada espantosa no século XIV italiano:

Noi leggiavamo um giorno per diletto
di Lanciolotto come amor lo strinse:
soli eravamo e sanza alcun sospetto.
Per piú fiate li occhi ci sospince
quella lettura, e scolorocci il viso;
ma solo un punto fu quel che ci vinse.
Quando leggemmo il disïato riso
esser baciato da cotanto amante,
questi, que mai da me non fia diviso,
la bocca mi bació tutto tremante.
Galeotto fu il libro e chi lo scrisse:
quel giorno piú non vi leggemmo avante. [39]

Aqui, de uma leitura a sós, as sugestões do texto os levam à prática amorosa; lá, num baile público, ou quase, o texto do passado retoma os seus direitos. Aqui, suspende-se a leitura e nesse dia não a retomam mais; lá, terminada a valsa, Virgília parte para outros parceiros e Brás, para sua casa. A consumação vem depois, não há a pulsão insopitável que enceguece a razão. Muito ao contrário, sabem bem o que fazem e fazem-no tão bem que embalam um ao outro durante onze largos anos, sem qualquer desenlace sangrento. Há, no narrador, ao que parece, um desejo de cotejar as duas paixões para, uma vez mais, diminuir a que lhe toca, num movimento já conhecido de amesquinhamento de si mesmo e do real em que lhe toca viver.
Mas foi tudo rápido, muito rápido. Ao tempo de uma valsa. Mas, não tão rápido que o narrador não tenha tempo de colocar, uma vez mais, uma relação metafórica, aqui, altamente eficaz: Virgília e a moeda. A última, o acaso colocou-a no seu caminho -- mas não há nenhum acaso no fato de estar colocada como articulação da narrativa! --; Virgília não é, nem muito menos, obra de nenhum acaso. Mas apropria-se das duas, atribuindo-lhes, assim, equivalência enquanto valor. Só que, no caso da moeda, entrega-a ao Chefe de Polícia, para que seja devolvida ao legítimo dono. Isto garante-lhe, inclusive aos olhos de Virgília -- já que o fato torna-se de público conhecimento -- , um prestígio a mais, como homem de bem. Ele, ao devolver a moeda, acresce-se em valor social, muito mais do que aquela poderia valer como padrão econômico. Entretanto, no capítulo imediatamente seguinte e somente alguns dias depois, descobre, na Praia de Botafogo, um embrulho misterioso. Apropria-se dele, com muita desconfiança. Ao chegar em casa -- e só aí atreve-se a abri-lo, com medo de alguma armadilha de garotos --, descobre que continha, nada mais, nada menos do que cinco contos de réis. O que, para a época, era uma pequena fortuna. Daria, seguramente, para resolver os problemas de uma família de pequena classe média, por um bom tempo... Este dinheiro, entretanto, ele não o devolve. Guarda-o e aplica-o, pensando em alguma boa ação futura. Veremos logo qual.
Mas as três fortunas lhe vêm sempre do acaso. Se a moeda e o pacote assim lhe vieram, Virgília que está colocada em relação direta com tais achados, se lhes assemelha em valor e em circunstância.
O pacote para ele significa um prêmio do acaso:

Gostava de falar de tôdas as cousas, menos de dinheiro, e principalmente de dinheiro achado; todavia, não era crime achar dinheiro, era uma felicidade, um bom acaso, era talvez um lance da Providência. Não podia ser outra cousa. Não se perdem cinco contos, como se perde um lenço de tabaco. Cinco contos levam-se com trinta mil sentidos, apalpam-se a miúdo, não se lhes tiram os olhos de cima, nem as mãos, nem o pensamento, e para se perderem assim tôlamente, numa praia, é necessário que... Crime é que não podia ser o achado; nem crime, nem desonra, nem nada que embaciasse o caráter de um homem. Era um achado, um acêrto feliz, como a sorte grande, como as apostas de cavalo, como os ganhos de um jôgo honesto e até direi que a minha felicidade era merecida, porque eu não me sentia mau, nem indigno dos benefícios da Providência. [40]


De que, realmente, está falando o narrador? Num primeiro plano, evidentemente, do pacote; mas, em outra clave, pode perfeitamente estar falando de seu encontro com Virgília. Pode, não; seguramente, está. As equivalências são muitas e não há como não proceder à leitura metafórica. Está aí uma longa e brilhante justificação de Brás Cubas, para poder dizer, sem culpa, "É minha!". Afinal, se alguém tem uma riqueza dessas nas mãos e a perde tolamente numa praia qualquer...
O que vale a pena assinalar aqui é que, antes de narrar a consumação do reencontro, ele necessita de toda uma teoria justificativa. Não assim, com as mulheres de outras classes sociais. Esses luxos não são para uma Marcela, para uma Eugênia, nem para uma Nhã-loló. Afinal Virgília era casada, mulher de um deputado nacional, filha de um Conselheiro, freqüentada por baronesas e, desde sempre, colocada acima de Brás Cubas na escala social. Com ela o sarcasmo não tem vez; não se dá a condição básica para seu funcionamento retórico: a presunção de superioridade. O narrador não vai tão longe!
Sendo assim, a valer a leitura metafórica, é a própria Providência a responsável pelo acontecido e, afinal, "a minha felicidade era merecida, porque eu não me sentia mau, nem indigno dos benefícios da Providência". E, mais ainda, a primeira moeda, que a mesmíssima Providência lhe colocara diante dos pés, frente à sua casa, ele teve o cuidado de devolvê-la ao legítimo dono, usando para isso a própria instituição do Estado. Da segunda vez, por insistência da determinação celeste, termina por assumir a posse, uma vez que o proprietário não devia estar cuidando com trinta mil sentidos, apalpando a miúdo, não lhes tirando os olhos de cima, nem as mãos, nem o pensamento.
"Crime é que não podia ser o achado; nem crime, nem desonra, nem nada que embaciasse o caráter de um homem". A partir daí, a posse é tranqülia, a relação se estabelece com uma normalidade que beira ao casamento e dura, de 1842 a 1853. E mais duraria, se Lôbo Neves não fosse encarregado de uma Presidência de Província.
Ele mesmo, ao início, narra já o epílogo:

Uniu-nos êsse beijo único, -- breve como a ocasião, ardente como o amor, prólogo de uma vida de delícias, de terrores, de remorsos, de prazeres que rematavam em dor, de aflições que desabrochavam em alegria, -- uma hipocrisia paciente e sistemática, único freio de uma paixão sem freio, -- vida de agitações, de cóleras, de desesperos, de ciúmes, que uma hora pagava à farta e de sobra; mas outra hora vinha e engulia aquela, como tudo mais, para deixar à tona as agitações e o resto, e o resto do resto, que é o fastio e a saciedade: tal foi o livro daquele prólogo.[41]


Não há muito a acrescentar ao narrador, mas apenas sublinhar que, depois de um processo de auto-absolvição, ao conquistar Virgília, expõe, com o cinismo de sempre e com a clareza de que só ele é capaz, a situação presente:

Sim, senhor, amávamos. Agora, que todas as leis sociais no-lo impediam, agora é que nos amávamos deveras.[42]


Tudo corre, sem excessivos sobressaltos. Aqui e ali, algumas desconfianças de Lôbo Neves, algumas propostas radicais logo descartadas:


CAPÍTULO LXVII / A CASINHA


Jantei e fui a casa. Lá achei uma caixa de charutos, que me mandara o Lôbo Neves, embrulhada em papel de sêda, e ornada de fitinhas côr-de-rosa. Entendi, abri-a, e tirei êste bilhete:
Meu B...
Deconfiam de nós; está tudo perdido; esqueça-me para sempre. Não nos veremos mais, Adeus; esqueça-se da infeliz
V...a.
Foi um golpe esta carta; não obstante, apenas fechou a noite, corri à casa de Virgília. Era tempo; estava arrependida. Ao vão de uma janela, contou-me o que se passara com a baronesa. A baronesa disse-lhe francamente que se falara muito, no teatro, na noite anterior, a propósito da minha ausência no camarote do Lôbo Neves; tinham comentado as minhas relações na casa; em suma, éramos objeto da suspeita pública. Concluiu dizendo que não sabia que fazer.
-- O melhor é fugirmos, insinuei.
-- Nunca, respondeu ela abanando a cabeça.
Vi que era impossível separar duas cousas que no espírito dela estavam inteiramente ligadas: o nosso amor e a consideração pública. Virgília era capaz de iguais e grandes sacrifícios para conservar ambas as vantagens, e a fuga só lhe deixava uma. Talvez senti alguma cousa semelhante a despeito; mas as comoções daqueles dous dias eram já muitas, e o despeito morreu depressa. Vá lá; arranjemos a casinha.
Com efeito, achei-a, dias depois, expressamente feita, em um recanto da Gamboa. Um brinco! Nova, caiada de fresco, com quatro janelas na frente e duas de cada lado, -- tôdas com venezianas côr de tijolo, -- trepadeira nos cantos, jardim na frente; mistério e solidão. Um brinco!
Convencionamos que iria morar ali uma mulher, conhecida de Virgília, em cuja casa fôra costureira e agregada. Virgília exercia sôbre ela verdadeira fascinação. Não se lhe diria tudo; ela aceitaria fàcilmente o resto.
Para mim era aquilo uma situação nova, do nosso amor, uma aparência de posse exclusiva, de domínio absoluto, alguma cousa que me faria adormecer a consciência e resguardar o decôro. Já estava cansado das cortinas do outro, das cadeiras, do tapête, do canapé, de tôdas essas cousas, que me traziam aos olhos constantemente a nossa duplicidade. Agora podia evitar os jantares freqüentes, o chá de tôdas as noites, enfim a presença do filho dêles, meu cúmplice e meu inimigo. A casa resgatava-me tudo; o mundo vulgar terminaria à porta; -- dali para dentro era o infinito, um mundo eterno, superior, excepcional, nosso, sòmente nosso, sem leis, sem instituições, sem baronesa, sem olheiros, sem escutas, -- um só mundo, um só casal, uma só vontade, uma só afeição, -- a unidade moral de tôdas as cousas pela exclusão das que me eram contrárias. [43]


A transcrição de todo um capítulo se fazia aqui imprescindível. Capítulo fundamental e, em si mesmo, pequena obra-prima da ficção. Aí estão todos os ingredientes da receita literária de Machado de Assis. Todos os estilos e todas as armadilhas; navega, com extrema habilidade, entre o romantismo mais internalizado ao mais cínico dos realismos; prega a moral do sistema, ao tempo em que a destroça com a mais fina das ironias.
Primeiro as suspeitas. Que não são do marido, ou só dele. Já se tornaram públicas e comentam-se no teatro. Levando-se em conta que a população da cidade do Rio de Janeiro, em 1840, era de exatos 137.078 habitantes e que as cenas narradas se passam, provavelmente em 1842, ano do início da relação entre os dois, pode-se avaliar o tipo de catástrofe que era uma suspeita dessas. Quantos eram os membros da chamada "boa sociedade", que freqüentavam teatros? De que forma poderia haver alguma privacidade numa cidadezinha minúscula, para os padrões de hoje? Como não ser "falado", em tal contexto?
Frente ao desastre, a atitude de Brás Cubas é típica de um heroísmo romântico, até pela sua inviabilidade prática. Como romântica fora a primeira reação e o bilhete de Virgília. Coisas rápidas, entretanto. Horas depois, tudo volta à razão cotidiana. Frente à proposta desatinada do amante, Virgília, pesando os dados em jogo, assume uma posição sensata. Ou seja, não estava em seus planos, apesar da paixão, romper com o sistema vigente ou a ele opor-se, de alguma maneira. Na forma, é claro! Afinal,"Virgília era capaz de iguais e grandes sacrifícios para conservar ambas as vantagens, e a fuga só lhe deixava uma".
Ainda, num capítulo emotivo, talvez o mais apaixonado do livro, o narrador não deixa de lançar a sua farpa venenosa. É Virgília quem coloca o cálculo social por sobre a paixão, cabendo a ele solucionar as coisas sem prejudicar aquele. Sempre a mulher no papel de simuladora e calculista. Pobre do Brás...
Um passo adiante e estamos na casinha da Gamboa. Bairro, na época, retirado, quase fora da cidade. No tempo em que a Rua da Gamboa dava de frente para o mar, era uma colônia de pescadores e ostentava nas suas encostas o Cemitério dos Ingleses. Machado descreve o bairro, com minúcias de quem nele viveu boa parte da infância, no Quincas Borba , onde Rubião vai dar asas às suas suspeitas sobre Sofia e um possível amante. Vê-se que, também, a Gamboa não era um lugar acima de qualquer suspeita. Ao que parece, era um ninho de amores clandestinos.
A solução da casinha da Gamboa vem revelar algumas coisas que a narrativa escamoteara, até então. O adultério acontecia na própria casa de Virgília. "Já estava cansado das cortinas do outro, das cadeiras, do tapête, do canapé, de tôdas essas cousas, que me traziam aos olhos constantemente a nossa duplicidade. Agora podia evitar os jantares freqüentes, o chá de tôdas as noites, enfim a presença do filho dêles, meu cúmplice e meu inimigo". A traição era doméstica, com todo um mundo de criados e escravos, agregados e parentes a rodeá-los e a vigiá-los, a cada momento.

Havia, enfim, umas duas ou três senhoras, vários gamenhos, e os fâmulos, que naturalmente se desforravam assim da condição servil, e tudo isso constituía uma verdadeira floresta de olheiros e escutas, por entre os quais tínhamos de resvalar com a tática e maciez das cobras.(Grifos meus)[44]


A casa nova viria resgatar tudo isso. "Para mim era aquilo uma situação nova, do nosso amor, uma aparência de posse exclusiva, de domínio absoluto, alguma cousa que me faria adormecer a consciência e resguardar o decôro". Ou seja, de um lado, institui uma relação, em tudo e por tudo, similar à do casamento, visto como posse exclusiva e domínio absoluto, nos padrões de então. Relação elevada aos mais exigentes padrões éticos: "-- dali para dentro era o infinito, um mundo eterno, superior, excepcional, nosso, sòmente nosso, sem leis, sem instituições, sem baronesa, sem olheiros, sem escutas, -- um só mundo, um só casal, uma só vontade, uma só afeição, -- a unidade moral de tôdas as cousas pela exclusão das que me eram contrárias". Nessa frase, unem-se contrários conflitantes, como se estivessem na maior harmonia -- recurso largamente explorado pelo autor e já analisado anteriormente. Existe aí uma concepção romântica de relacionamento -- a unidade absoluta de dois seres, do mundo externo à afeição mais íntima, passando pela relação social e pela razão. É um mundo atemporal, anômico, ahistórico e absolutamente privado, constituindo um imaginário em estado puro e não contaminado pela inserção real na vida. Tudo é uno e indivisível, na unidade moral de todas as cousas. Com o cínico adendo: pela exclusão das que me eram contrárias. Com o que a crítica de uma tal visão romântica se completa de forma irrefutável. Uma vez mais, o nosso Brás está se divertindo às nossas custas.
Ao mesmo tempo, viver seu romance na casa nova, significa, para ele, um recurso para adormecer a consciência e resguardar o decôro . Sintoma de que havia no narrador, mesmo situado na eternidade, onde não devia contas a mais ninguém, um resquício de culpa e de respeito, senão pelas normas jurídicas, ao menos pelas regras sociais da conveniência. Logo ele que havia, linhas antes, lançado sobre a amada a pecha de calculista e acomodada à consideração pública.
Como, ao que tudo indica, a entronização da Gamboa se deu no primeiro ano do relacionamento amoroso, a partir daí a narrativa só revela mais uma cena explícita de suspeita, em onze anos de convivência. É quando o marido, Lôbo Neves, alertado por uma carta anônima, resolve fazer uma visita a Dona Plácida, a senhora que "morava" na casa da Gamboa e quase os pilha em flagrante. Nada mais a registrar, numa relação que, uma vez acomodada às conveniências da moral das aparências, nada tinha mais para nos emocionar. O marido, de sua parte, acomoda-se também. Era impossível no Rio de Janeiro do tempo, toda a cidade saber do caso, menos ele. A carreira política, as conveniências de não viver um escândalo -- pior do que a permanente suspeita --, o respeito pelas regras do jogo e, principalmente, o fato de ter vindo de Virgília o seu poder político fazem com que leve adiante seu casamento e a sua suspeita


Poucas horas depois, encontrei Lôbo Neves, na Rua do Ouvidor, falamos da presidência e da política. Êle aproveitou o primeiro conhecido que nos passou à ilharga, e deixou-me, depois de muitos cumprimentos. Lembra-me que estava retraído, mas de um retraimento que forcejava por dissimular. Pareceu-me então (e peço perdão à crítica, se êste meu juízo fôr temerário!) pareceu-me que êle tinha mêdo -- não mêdo de mim, nem de si, nem do código, nem da consciência; tinha mêdo da opinião. Supus que êsse tribunal anônimo e invisível, em que cada membro acusa e julga, era o limite pôsto à vontade do Lôbo Neves. Talvez já não amasse a mulher e, assim, pode ser que o coração fôsse estranho à indulgência dos seus últimos atos. Cuido (e de novo insto pela boa vontade da crítica!) cuido que êle estaria pronto a separar-se da mulher, como o leitor se terá separado de muitas relações pessoais; mas a opinião, essa opinião que lhe arrastaria a vida por tôdas as ruas, que abriria minucioso inquérito acêrca do caso, que coligiria uma a uma tôdas as circunstâncias, antecedências, induções, provas, que as relataria na palestra das chácaras desocupadas, essa terrível opinião, tão curiosa das alcovas, obstou à dispersão da família. Ao mesmo tempo tornou impossível o desfôrço, que seria a divulgação. Êle não podia mostrar-se ressentido comigo, sem igualmente buscar a separação conjugal; teve então de simular a mesma ignorância de outrora, e, por dedução, iguais sentimentos. [45]


Não há muito a acrescentar a essa análise tão lúcida, quanto cruel; tão sarcástica, quanto pungente. Verdadeiro manual das conveniências sociais, código indiscutível da ação política, tais princípios resumem o pacto de convivência vigente nas altas esferas de nossa sociedade aristocrática do século XIX. Machado de Assis, ele mesmo, parece tê-lo seguido à risca ao longo de sua vida pública. Não que tenha sido traído, ao que se saiba, mas nos problemas de outra ordem que se viu obrigado a enfrentar.
O nosso Lôbo Neves tem, às vezes, gestos de Bentinho, o ciumento marido de Capitu de Dom Casmurro :


CAPÍTULO CVII / BILHETE


Não houve nada, mas êle suspeita alguma cousa; está muito sério e não fala; agora saiu. Sorriu uma vez somente, para Nhonhô, depois de o fitar muito tempo carrancudo. Não me tratou mal nem bem. Não sei o que vai acontecer; Deus queira que isto passe. Muita cautela, por ora, muita cautela.


CAPÍTULO CVIII / QUE SE NÃO ENTENDE


Eis aí o drama, eis aí a ponta da orelha trágica de Shakespeare. Êsse retalhinho de papel, garatujado em partes, machucado das mãos, era um documento de análise, que eu não farei neste capítulo, nem no outro, nem talvez em todo o resto do livro. Poderia eu tirar ao leitor o gôsto de notar por si mesmo a frieza, a perspicácia e o ânimo dessas poucas linhas traçadas à pressa; e por trás delas a tempestade de outro cérebro, a raiva dissimulada, o desespêro que se constrange e medita, porque tem de resolver-se na lama ou no sangue, ou nas lágrimas? [46]


Como o narrador é o amante e não o marido, as relações entre Bentinho e Lôbo Neves tem que ser colocadas nas devidas proporções. Lá o marido era o narrador e o observador; aqui é na voz de Virgília que surge a dúvida sobre a paternidade, e de modo extremamente sutil. É o narrador quem tem que sublinhar a raiva e o desespero do outro. É a ele, o amante, que cabe o papel de traduzir as reais cores que tingem a tragédia pessoal do desafeto, como se à mulher não fosse possível avaliar a dimensão do drama. Coerente com isto, vem à tona, novamente, o cinismo de Brás Cubas, ao sugerir, com todas as letras, a frieza, a perspicácia e o ânimo de Virgília ao escrever o bilhete. Mais uma vez a imagem da mulher como calculista, dissimuladora e, basicamente, inconfiável. E tudo isto, depois de afirmar e reconfirmar que não se entregaria à análise do bilhete, que não nos tiraria, a nós leitores, o prazer de chegarmos às nossas próprias conclusões...
Dois capítulos depois, Virgília parte com o marido para uma presidência de província. Era o final de uma paixão que tinha, talvez, chegado à saciedade. Quando volta, dois anos depois, já não há retorno possível.
Durante o namoro, há que prestar atenção à figura de uma outra mulher: Dona Plácida. É ela a mulher pobre, que fora costureira e agregada à casa de Virgília, encarregada do humilhante ofício de alcoviteira, em troca de um teto para morar e algum sustento para sobreviver. Como está muito abaixo de Brás na escala social, tem que sofrer as impertinências e arrogâncias do rico herdeiro. Tem que ceder aos seus princípios, para continuar vivendo e desfrutando da amizade de Virgília.


Virgília fêz daquilo um brinco; designou as alfaias mais idôneas, e dispô-las com a intuição estética da mulher elegante; eu levei para lá alguns livros, e tudo ficou sob a guarda de D. Plácida, suposta, e, a certos respeitos, verdadeira dona da casa.
Custou-lhe muito a aceitar a casa; farejara a intenção e doía-lhe o ofício; mas afinal cedeu. Creio que chorava, a princípio: tinha nojo de si mesma. Ao menos, é certo que não levantou os olhos para mim durante os primeiros dous meses; falava-me com êles baixos, séria, carrancuda, às vezes triste. Eu queria angariá-la, e não me dava por ofendido, tratava-a com carinho e respeito; forcejava por obter-lhe a benevolência, depois a confiança. Quando obtive a confiança, imaginei uma história patética dos meus amôres com Virgília, um caso anterior ao casamento, a resistência do pai, a dureza do marido, e não sei que toques de novela. D. Plácida não rejeitou uma só página da novela; aceitou-as tôdas. Era uma necessidade da consciência. Ao cabo de seis meses, quem nos visse a todos três juntos diria que D. Plácida era minha sogra.
Não fui ingrato; fiz-lhe um pecúlio de cinco contos, -- os cinco contos achados em Botafogo, -- como um pão para a velhice. D. Plácida agradeceu-me com lágrimas nos olhos, e nunca mais deixou de rezar por mim, tôdas as noites, diante de uma imagem da Virgem, que tinha no quarto. Foi assim que lhe acabou o nojo. [47]


Como mulher pobre e livre, numa sociedade escravocrata, não tinha ela muitas opções no mercado de trabalho. Inúmeros historiadores já se debruçaram sobre o tema e conhecemos-lhes os resultados. D. Plácida, fora dos trabalhos de alfaia em alguma casa rica, não encontraria alocação num mercado estreito e em que a maioria das tarefas domésticas estavam afeitas aos escravos. Seu drama é antes econômico e, só depois, moral. Tanto que aceita. Chorando, com nojo de si mesma, mas aceita. No caso da população mais pobre, as questões morais não se resolvem com artifícios de retórica. Primeiro porque lhes falta a retórica -- adorno de escolarização das elites aristocráticas; segundo, porque a ética para elas, como segmento dominado, transforma-se em questão de crença, instilada em doses maciças pela igreja. As elites criam as éticas e as manipulam a seu bel-prazer. E disto o nosso personagem Brás Cubas , como também a sua Virgília, são exemplos acabados à perfeição. Os segmentos pobres aceitam-nas e as praticam, como valores religiosos que terminam por ser. É, para estes, um drama maior ter que afrontar os mandamentos aceitos: não lhes é dado o recurso do distanciamento cínico e da manipulação das conveniências.
Como remédio final, depois de homeopáticas doses de paciência e de gotas contínuas de retórica literária, Brás Cubas lança mão do argumento contra o qual é muito difícil argumentar, em especial para quem passa necessidade : o dinheiro. E, com o cinismo de sempre, nos faz lembrar do dinheiro que lhe destinara a própria Providência, ao colocá-lo diante de si, na Praia de Botafogo. Achado que lhe permite inocentar-se a si mesmo, quando arrebata Virgília, e, agora, serve para anestesiar a consciência de D. Plácida, já abalada pela retórica da dissimulação e pela chantagem afetiva do casal. Mas, até nisso, o Brás Cubas é exemplo acabado de nossa elite: mesmo para comprar a consciência alheia e a própria segurança -- que outra coisa não significa o assédio sobre D. Plácida -- usa do dinheiro alheio ou adquirido por meios discutíveis, o que vem a dar no mesmo.
Entretanto, a maldade com que passa a tratar sua personagem depois disto raia aos limites do absurdo. Depois de fazê-la contar sua história, tão igual a milhares de outras, tão desinteressante como a pobreza que sempre carregam consigo, o narrador sai-se com o seguinte capítulo:

 

CAPÍTULO LXXV / COMIGO


Podendo acontecer que algum dos meus leitores tenha pulado o capítulo anterior, observo que é preciso lê-lo para entender o que eu disse comigo, logo depois que D.Plácida saiu da sala. O que eu disse foi isto:
"Assim, pois, o sacristão da Sé, um dia, ajudando à missa, viu entrar a dama, que devia ser sua colaboradora na vida de D.Plácida. Viu-a outros dias, durante semanas inteiras, gostou, disse-lhe alguma graça, pisou-lhe o pé, ao acender os altares, nos dias de festa. Ela gostou dêle, acercaram-se, amaram-se. Dessa conjunção de luxúrias vadias brotou D. Plácida. É de crer que D. Plácida não falasse ainda quando nasceu, mas se falasse podia dizer aos autores de seus dias: -- Aqui estou. Para que me chamastes? E o sacristão e a sacristã naturalmente lhe responderiam: -- Chamamos-te para queimar os dedos nos tachos, os olhos na costura, comer mal ou não comer, andar de um lado para o outro, na faina, adoecendo e sarando, com o fim de tornar a adoecer e sarar outra vez, triste agora, logo desesperada, amanhã resignada, mas sempre com as mãos no tacho e os olhos na costura, até acabar um dia na lama ou no hospital: foi para isso que te chamamos, num momento de simpatia." [48]


Que mais se pode acrescentar depois de um sarcasmo tão desabusado, de uma maldade tão bem pensada e melhor produzida? Fica transparente aí o enorme desprezo que ele nutria, não só por D. Plácida, mas pelos pobres de maneira geral. Cassa-lhes todos os direitos, inclusive o de amar. Afinal, é ela filha de uma conjunção de luxúrias vadias e nasce exclusivamente para sofrer. Nega-lhes um sentido qualquer para as suas vidas e, com isto, nega-lhes a própria condição humana. E, desde logo, alerta-nos para o fim de D.Plácida, apesar de seu dote. Mas, ainda não satisfeito, continua, no capítulo seguinte e com a retórica de sempre, a filosofar sobre a alheia miséria, para daí extrair, naturalmente, algum lucro:

Súbito a consciência deu-me um repelão, acusou-me de ter feito capitular a probidade de D. Plácida, obrigando-a a um papel torpe, depois de uma longa vida de trabalho e privações. Medianeira não era melhor que concubina, e eu tinha-a baixado a êsse ofício, à custa de obséquios e dinheiros.
.............................................................................................
Concordei que assim era, mas aleguei que a velhice de D. Plácida estava agora ao abrigo da mendicidade: era uma compensação. Se não fôssem os meus amôres, provàvelmente D. Plácida acabaria como tantas outras criaturas humanas: donde se poderia deduzir que o vício é muitas vêzes o estrume da virtude. O que não impede que a a virtude seja uma flor cheirosa e sã. A consciência concordou, e eu fui abrir a porta a Virgília. [49]


Esse diálogo dele com sua própria consciência é extremamente revelador. Em primeiro lugar, da concepção que tem de sua própria relação com Virgília: "Medianeira não era melhor que concubina, e eu tinha-a baixado a êsse ofício, à custa de obséquios e dinheiros". D. Plácida é colocada como medianeira, termo que hoje não tem mais a significação que a frase sugere: alcoviteira. Mas, na gradação da degradação, equivale a concubina.

CONCUBINA, s.f. mulher ilegítima.
CONCUBINATO, s.m. o estado de um homem e uma mulher, que coabitam como cônjuges, sem serem casados. [50]
CONCUBINA sf. `mulher que vive amasiada com um homem' 1813. Do lat. concubina| concubinÁRIO XV | concubinATO 1813. Do lat. concubinatus -us. [51]


Ora, se têm razão os dicionaristas, a concubina é a mulher casada de fato e não de direito. É mais uma situação de marginalidade jurídica do que moral. Em termos contemporâneos, cunhou-se a expressão companheira reconhecida, inclusive, pela legislação trabalhista e cível. A situação da concubina é, em tudo, moralmente mais confortável do que a situação da amante, em especial, se ela é casada, pois vive uma marginalidade moral, legal e social. Isto hoje e, com muito mais razão, no século passado. O Dicionário Etimológico Nova Fronteira registra, depois do vocábulo, a data provável de seu primeiro emprego na Língua Portuguesa. Concubina é termo relativamente recente, é de 1813 o seu primeiro uso registrado. Não deve ter sofrido alterações de monta no seu emprego, a variação deve ter mais relação com as conotações que assuma, dependendo do grau de preconceito de cada época. Mas tudo isto não altera o fato de que, em qualquer das hipóteses, a concubina desfruta de uma situação menos incômoda do ponto de vista ético, do que a amante. Claro está que, no discurso de Brás Cubas, há que levar em consideração que a situação de concubinato é encontrável, quase que exclusivamente, nas classes pobres da sociedade. O que a desqualifica, de saída, aos olhos preconceituosos do narrador. A instituição da amante, ainda que universal em termos de classes, é comum no universo da aristocracia. O que faz com que seja encarada com muito mais naturalidade do que o concubinato. Mas isto já faz parte dos valores que constituem a ideologia dos segmentos dominantes naquela época.
Mas uma coisa é indiscutível, no mínimo, concubina e amante se equivalem na escala moral do narrador desta história. Como fica então Virgília, nisto tudo? Ser amante, seria um ofício tão baixo quanto concubina ou medianeira? Se D. Plácida foi levada a um papel torpe, que qualificação terá a atitude de Virgília, aos olhos do narrador?
"Se não fôssem os meus amôres, provàvelmente D. Plácida acabaria como tantas outras criaturas humanas: donde se poderia deduzir que o vício é muitas vêzes o estrume da virtude. O que não impede que a virtude seja uma flor cheirosa e sã. A consciência concordou, e eu fui abrir a porta a Virgília". Os amores são de Brás Cubas, este meus não deixa margem a especulações. E, Virgília, exerce o ofício de amante? Onde está ela, na escala que leva do vício à virtude? No estrume, ou tem alguma coisa de flor?
Quer parecer que aqui, como em muitas outras passagens, Machado de Assis ele mesmo, em ato falho, esquece que o discurso é de Brás Cubas e põe-se a externalizar sua visão nada favorável ao comportamento das elites.
Pouco depois de seu retorno, em 1855, com a relação já desfeita, Virgília pede a Brás que atenda D. Plácida que está muito mal. Ele reluta, a princípio nega-se, depois termina indo, o que resulta neste pequenino capítulo:

CAPÍTULO CXLIV / UTILIDADE RELATIVA


Mas a noite, que é boa conselheira, ponderou que a cortesia mandava obedecer aos desejos de minha antiga dama.
-- Letras vencidas, urge pagá-las, disse eu ao levantar-me.
Depois do almôço fui à casa de D. Plácida; achei um molho de ossos, envolto em molambos, estendido sôbre um catre velho e nauseabundo; dei-lhe algum dinheiro. No dia seguinte fi-la transportar para a Misericórdia, onde ela morreu uma semana depois. Minto: amanheceu morta; saiu da vida às escondidas, tal qual entrara. Outra vez perguntei, a mim mesmo, como no capítulo LXXV, se era para isto que o sacristão da Sé e a doceira trouxeram D. Plácida à luz, num momento de simpatia específica. Mas adverti logo que, se não fôsse D. Plácida, talvez meus amôres com Virgília tivessem sido interrompidos ou imediatamente quebrados, em plena efervescência; tal foi, portanto, a utilidade da vida de D. Plácida. Utilidade relativa, convenho; mas que diacho há de absoluto nesse mundo? [52]


O retorno à linguagem econômica é sintomático. A referência às letras vencidas é, a sua vez, ambígua. Não se pode saber se se referem a D. Plácida, a Virgília ou às duas. Provavelmente, às duas...
Ao visitar D. Plácida, ele está, pois, pagando duas letras ao mesmo tempo. Predomina a teoria da maximização do lucro. A descrição que faz dela contém uma dose de maldade grande, na medida que coincide com as predições que havia feito muitos capítulos antes, relativamente às pessoas pobres como ela. Sua única atitude é dar-lhe dinheiro. Seriam os juros dos cinco contos? Providencia sua transferência para a Santa Casa e aproveita, mais uma vez, para filosofar sobre as misérias alheias. A sua conclusão sobre a utilidade da vida de D. Plácida é a exata medida do valor que atribui aos pobres, neste mundo. Valem para servir aos que possuem. De preferência, calados...
Em relação aos cinco contos que defenderiam D. Plácida da miséria, na velhice, a explicação não é menos cruel e sarcástica:


Quanto aos cinco contos, não vale a pena dizer que um carteiro da vizinhança fingiu-se enamorado de D. Plácida, logrou espertar-lhe os sentidos, ou a vaidade, e casou com ela; no fim de alguns meses inventou um negócio, vendeu as apólices e fugiu com o dinheiro. [53]


Vale lembrar que, quando achou o dinheiro, alertou que quem leva cinco contos tem que levá-los com mil olhos, com toda atenção, etc. D. Plácida não soube levá-los. Como, em geral, os pobres -- segundo quem tem -- não sabem lidar com o dinheiro. Mais ainda, não houve amor, por parte de D. Plácida, o carteiro soube apenas espertar-lhe os sentidos, ou a vaidade.
Ela é castigada, uma vez mais. Como Eugênia e Marcela, morre na miséria, numa casa de misericórdia. Não é excessiva coincidência? Todas mulheres e todas castigadas da mesma forma. As duas últimas tiveram alguma relação amorosa com Brás Cubas e a primeira foi instrumento fundamental para a manutenção de seus amores com Virgília, único amor de sua vida. Não está o narrador expondo, talvez sem sabê-lo, as entranhas de sua alma, o inferno astral de sua visão de mundo?
Depois de Virgília, e como a confirmar o anterior, Brás Cubas conhece e namora, já cinqüentão, uma jovem pobre, mas freqüentadora do seu círculo de relações. Trata-se de Nhã-loló, de 19 anos, cujo nome real só vamos conhecer no seu epitáfio: Eulália Damascena de Brito. É um episódio menor que só vale ser referido, por confirmar o que vimos examinando até aqui. A moça é sobrinha do Cotrim, seu cunhado e marido de Sabina. É pobre, seu pai não dispõe sequer de educação suficiente para manejar-se com Brás Cubas. Reaparece o quadro da flor da moita, com tintas talvez um pouco menos dramáticas.

O que vexava a Nhã-loló era o pai. A facilidade com que êle se metera com os apostadores punha em relêvo antigos costumes e afinidades sociais, e Nhã-loló chegara a temer que tal sogro me parecesse indigno. Era notável a diferença que ela fazia de si mesma; estudava-se e estudava-me. A vida elegante e polida atraía-a, principalmente porque lhe parecia o meio mais seguro de ajustar as nossas pessoas. Nhã-loló observava, imitava, adivinhava; ao mesmo tempo dava-se ao esfôrço de mascarar a inferioridade da família. Naquele dia, porém, a manifestação do pai foi tamanha que a entristeceu grandemente. Eu busquei então diverti-la do assunto, dizendo-lhe muitas chanças e motes de bom-tom; vãos esforços, que não a alegravam mais. Era tão profundo o abatimento, tão expressivo o desânimo, que cheguei a atribuir a Nhã-loló a intenção positiva de separar, no meu espírito, a sua causa da causa do pai. Êste sentimento pareceu-me de grande elevação; era uma afinidade a mais entre nós. "Não há remédio, disse eu comigo, vou arrancar esta flor a êste pântano" [54]


A pobre menina pobre esforça-se por merecer tão requintado partido: rico, cinqüentão e preconceituoso. Todo o movimento do narrador nessa passagem resume-se a listar as vias que restavam a Nhã-loló, para atravessar a barreira de classe que os separava. Ela bem que se esforça, tem talento e aplicação; mas tem um pai que não colabora. É o de que necessitava o narrador, para expressar, de forma ligeiramente diferente, os seus valores sociais. Dentro de tal perspectiva, a superioridade de Brás é natural e tem como corolário a natural inferioridade de Nhã-loló. Desta forma, tudo o que ele faz vem envolto em benemerência: "Não há remédio, disse eu comigo, vou arrancar esta flor a êste pântano". Cabe a ele o papel de resgatá-la do nada social para uma posição a seu lado. Tudo isto sem paixão, encaixado num cálculo social, em que a possibilidade de um filho desponta como variável importante. Mais que um filho, um herdeiro, para que o capital não se fragmente e disperse, numa sucessão entre a parentalha remanescente. Projeto assumido sem muita convicção e embalado pelo vazio existencial, que é a marca do homem rico que nunca trabalhou. Brás Cubas encarna o protótipo do parasita social, pois jamais moveu uma palha na vida, sequer para aumentar suas posses, ampliar seu cabedal ou dar uma aparência social aceitável ao seu ganho. O sistema trabalha por ele, não há porque preocupar-se e, afinal, trabalho é coisa para as donas plácidas da vida, não para cavalheiros bem-nascidos. A única ocupação declarada que teve, além de pertencer a duas ou três irmandades, foi um mandato de deputado, que não se explica como, nem onde foi conseguido. E, neste, o único projeto que apresentou dizia respeito ao tamanho das barretinas dos membros da Guarda Nacional. Não chegando a Ministro, logo desinteressou-se e não volta a tocar no assunto ao longo do romance.
Porém, mais que o pouco entusiasmo, o que lhe corta o projeto matrimonial é a febre amarela que lhe cassa Nhã-loló, semanas depois de formulá-lo e, antes mesmo, de assumi-lo publicamente. Mais uma morta para a galeria das mulheres desse barba-azul retórico.

 

CAPÍTULO CXXV / EPITÁFIO
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AQUI JAZ
D. EULÁLIA DAMASCENA DE BRITO
MORTA
AOS DEZENOVE ANOS DE IDADE
ORAI POR ELA!
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CAPÍTULO CXXVI / DESCONSOLAÇÃO


O epitáfio diz tudo. Vale mais do que se lhes narrasse a moléstia de Nhã-loló, a morte, o desespêro da família, o entêrro. Ficam sabendo que morreu; acrescentarei que foi por ocasião da primeira entrada da febre amarela. Não digo mais nada, a não ser que a acompanhei até o último jazigo, e me despedi triste, mas sem lágrimas. Concluí que talvez não a amasse deveras. [55]

Tem o tom, melancólico como um adágio, de alguém, que mesmo na outra margem, já está cansado de suas próprias peripécias. Não nos acrescentou nada mais ao que já havia dito, relativamente às mulheres de sua vida.
Neste livro, talvez o mais acabado do escritor, Machado de Assis trabalhou exaustivamente o ponto de vista de um aristocrata do nosso século XIX. Entregando-lhe a função de narrar a história, o autor, conscientemente, deixa-se ficar atrás da cena, manejando as luzes e as gambiarras, dando o tom ao espetáculo. Deixa a Brás Cubas o centro do palco e o foco das atenções. Este assume o comando da história, ainda que criado e, na verdade, manejado pelo escritor. Toda a grande arte deste romance reside na enorme competência com que Machado maneja a intrincada dialética entre o autor e o narrador: um colocado no centro da dinâmica social do final do século e o outro acomodado num não-lugar qualquer da eternidade.
A voz que nos fala, mesmo vindo de onde vem, é radicalmente histórica e só pelos desvãos da retórica se legitima como o discurso de um morto. É um defunto-autor que se vale da ante-sala da eternidade para poder falar sem rebuços, assumir um cinismo revoltante e exercitar, todo o tempo, um sarcasmo demolidor. Mas é, ao mesmo tempo, uma personagem fincada profundamente nas contradições históricas que seu próprio discurso tematiza. Joga com o tempo e o não-tempo, com uma habilidade de virtuose, de forma a, estando dentro e fora concomitantemente, poder ver a história de pespectivas divergentes. Ao passear o olhar do morto sobre os vivos, sente-se livre para zombar de tudo o que estes tomam a sério; mas, ao passear entre os vivos a sua autopersonagem, fá-lo com um substrato daquele conhecimento do outro lado. Isto cria uma narrativa que beira, muitas vezes, o inversossímil mas que se legitima, exatamente, por estar obedecendo a uma ótica deslocada no tempo e na história. Faz, de alguma forma, o maravilhoso funcionar dentro dos parâmetros de um realismo que nunca assumiu. Fica no fio da navalha, a equilibrar-se e levando o seu leitor a malabarismos constantes, para reordenar os dados da narrativa de forma a dar-lhe a consistência e a coerência, sem a qual a leitura perderia o fio da meada. O texto machadiano é extremamente fragmentário, mas a sua narrativa é dotada de uma totalidade e de uma lógica causal e temporal irretorquível.
Isto é o que lhe permite, neste livro, colocar em cena um narrador extremamente cínico e mordaz, desabusado e sarcástico, inconveniente e desrespeitador, sem que a narrativa assuma os valores de quem a conduz. Ao final da leitura, se alguma simpatia criamos por Brás Cubas -- e por que não? por que não se pode simpatizar com canalhas? -- , isto não significa que tenhamos perdido a capacidade de saber exatamente quem é ele e a possibilidade de julgá-lo por suas maldades. Ele nos conta sua história, do seu ponto de vista, tentando convencer-nos de que ele está sempre certo. Entretanto, o resultado da leitura não é necessariamente, e muito menos normalmente, este. É aqui que aparece a mão do mestre, sabiamente escondida, a desenhar o tempo todo as linhas e as contralinhas, tecendo sob o discurso do narrador um outro discurso, que não fala, mas se faz entender; não mete bulha, mas incomoda; é clandestino, mas decide. Não fora assim, como teríamos sempre a dimensão do enorme ridículo que é o nosso Brás Cubas? como exercitaríamos e afiaríamos, ainda mais, as nossas verrumas críticas diante das estrepolias desse valdevinos aristocrata?
O acesso a uma dimensão crítica frente à estória que nos conta Brás Cubas só se faz possível pela presença permanente de uma dimensão discursiva, que se infiltra pelas dobras da sua escrita, tornando-a, de algum modo, vulnerável. Um certo exagero retórico, uma demasia qualquer na convicção de seus preconceitos, uma falsidade latente na sua natural arrogância, um falseamento de dicção em algum diálogo, tudo isto e muito mais, que existe e não se sistematiza, que age e não se revela inteiramente, tudo isto, de alguma forma, trinca a superfície discursiva e deixa as marcas que nos permitem apreendê-la criticamente.
O que é genial no livro é exatamente isto. É a narrativa de um aristocrata acanalhado, que constitui um imaginário a seu molde e dentro de seus valores, e que, curiosamente, termina tendo como significação possível de leitura exatamente a crítica desses mesmos valores. É uma forma de narrativa que expõe e se expõe e termina por negar a sua própria base e fundamento. Se a hipótese fosse outra, por exemplo, um narrador estranho ao mundo narrado, certamente a narrativa pecaria por inverossimilhança. Uma personagem tão canalha, tão cáustica, tão sarcástica e tão contraditória consigo mesma terminaria por não ser crível e descambaria para o pastiche. Mas narrada por si mesma, com uma sinceridade revoltante, com um cinismo explícito e assumido, com uma capacidade de diminuir-se e desvalorizar-se a extremos, com a maldade afiando-lhe a língua e a pena, acaba convencendo e construindo-se com uma materialidade quase palpável.
Brás Cubas entroniza-se como o primeiro mau caráter de nossa literatura, produzido pela sua própria narrativa, que tem a manejar-lhe os cordões a mestria de Machado de Assis que na vida -- a crer no testemunho dos contemporâneos -- foi seu antípoda radical.
Não fosse assim, como poderíamos ter ido tão fundo no conhecimento da forma de pensar e de agir de um aristocrata brasileiro do nosso século XIX? Como poderíamos, hoje, perceber, nos desvãos da vida privada, a forma de a história movimentar-se, de criar limites e expectativas para as pessoas, sem os quais a existência careceria de significação?


Notas

[1] MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Memórias Póstumas de Brás Cubas in Obra Completa . Rio de Janeiro: J. Aguillar, 1962. 3 Vol. Volume I., p.509.
[1 ]op. cit., p. 511.
[2 ]op. cit., p. 511.
[3] op. cit., p. 511-512.
[4] op. cit., p. 519.
[5] op. cit., p. 513-514.
[6] AURÉLIO Buarque de Holanda Ferreira. Novo Dicionário da Língua Portuguesa . 1ª, 4ª impressão ed.. Trad. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s/d. 1516 p., p.1023.
[7] MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Memórias Póstumas de Brás Cubas in Obra Completa . Rio de Janeiro: J. Aguillar, 1962. 3 Vol. Volume I., p.516.
[8] op. cit., p. 517.
[9] op. cit., p. 516.
[10] op. cit., p. 516.
[11] op. cit., p. 517-518.
[12] GROLIER. The Academic American Encyclopedia(TM).(Electronic Version). Danbury, CT: Grolier Incorporated, 1991.
[13] ROBERT. Le Petit Robert.2 - Dictionaire Universel des Noms Propres . Paris: S.E.P.R.E.T., 1975. 2 v., p. 302 .
[14] SAULNIER, Verdun L. La Littérature Française du Siècle Philosophique (1715-1802) . Paris: Presses Universitaires de France, 1948. 136 p.
[15] MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria . Memórias Póstumas de Brás Cubas in Obra Completa . Rio de Janeiro: J. Aguillar, 1962. 3 Vol. Volume I., p.532.
[16] op. cit., p. 534
[17] op. cit., p. 531.
[18] op. cit., p. 529.
[19] op. cit., p. 545.
[20] GUÉRIOS, Rosário Farâni Mansur. Dicionário Etimológico de Nomes e Sobrenomes. 3ª ed. São Paulo: Editora Ave Maria Ltda., 1981. 267 p., p. 113.
[21] op. cit., p. 114.
[22] MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Memórias Póstumas de Brás Cubas in Obra Completa . Rio de Janeiro: J. Aguillar, 1962. 3 Vol. Volume I., p.545.
[23] op. cit., p. 551-552.
[24] op. cit., p. 552.
[25] op. cit., p. 553.
[26] AURÉLIO Buarque de Holanda Ferreira. Novo Dicionário da Língua Portuguesa . 1ª, 4ª impressão ed.. Trad. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s/d. 1516 p., p.49.
[27] SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades, 1990. 227 p.
[28] MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Memórias Póstumas de Brás Cubas in Obra Completa . Rio de Janeiro: J. Aguillar, 1962. 3 Vol. Volume I., p.636.
[29] op. cit., p. 555.
[30]SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades, 1990. 227 p
[31] MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Memórias Póstumas de Brás Cubas in Obra Completa . Rio de Janeiro: J. Aguillar, 1962. 3 Vol. Volume I., p. 558-559.
[32] op. cit., p. 532.
[33] op. cit., p.559.
[34] op. cit., p.562.
[35] op. cit., p.543-544.
[36] op. cit., p.540.
[37] op. cit., p.564.

[38] ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia . ed.bilingüe . Trad. Xavier Pinheiro. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d. 697 p.
[Da tormenta o furor, nunca abatido,/Perpetuamente as almas torce, agita,/Molesta, em seus embates recrescido./Quando à borda do abismo as precipita,/Ais, soluços, lamentos vão rompendo./Blasfema a Deus a multidão maldita./Ouvi que estão no padecer horrendo/Os que aos vícios da carne se entregavam,/Razão aos apetites submetendo]
[39] ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia . ed.bilingüe . Trad. Xavier Pinheiro. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d. 697 p.
[ Por passatempo eu lia e o meu dileto / De Lanceloto extremos namorados: / Éramos sós, de coração quieto. / Nossos olhos, por vezes encontrados, / Cessam de ler: ao gesto a cor mudara. / Um ponto só deu causa aos nosso fados. / Ao lermos que nos lábios osculara / O desejado riso, o heróico amante, / Este, que mais de mim se não separa, / A boca me beijou todo tremante (sic), / De Galeotto fez o autor e o escrito. / Em ler não fomos nesse dia avante.]
[40] MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Memórias Póstumas de Brás Cubas in Obra Completa . Rio de Janeiro: J. Aguillar, 1962. 3 Vol. Volume I., p. 566
[41] op. cit., p. 567.
[42] op. cit., p. 569.
[43] op. cit., p. 578-579.
[44] op. cit., p. 578.
[45] op. cit., p. 610.
[46] op. cit., p. 607.
[47] op. cit., p. 581.
[48] op. cit., p. 584.
[49] op. cit., p. 584-585.
[50]AULETE, Caldas. Dicionário Contemporâneo de Língua Portuguêsa . 2ª ed. brasileira. Rio de janeiro: Editora Delta, 1964. 5 v., p. 889.
[51] CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa . 2ª ed., 4ª impressão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991. 840 p. 204.
[52] MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Memórias Póstumas de Brás Cubas in Obra Completa . Rio de Janeiro: J. Aguillar, 1962. 3 Vol. Volume I., p. 628-629.
[53] op. cit., p. 629.
[54] op. cit., p. 617.
[55] op. cit., p. 619.


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