NAS ENTRELINHAS DO DISCURSO:
CRÍTICA E CENSURA NO BRASIL
OITOCENTISTA
Luciane Nunes
UFF - Universidade Federal Fluminense
Resumo
Tendo como ponto de partida a análise de alguns artigos de
crítica literária e teatral escritos por Machado de Assis
e os pareceres de censura escritos pelo crítico, de 1862 a 1864,
para o Conservatório Dramático Brasileiro, órgão
responsável pela censura teatral no século XIX, refletiremos
sobre os possíveis pontos de intercessão entre os dois
tipos de discursos em questão, procurando investigar os pressupostos
a partir dos quais foram textualmente construídas as concepções
de atividade crítica, de arte nacional e de moralidade, consideradas,
por alguns intelectuais da época, fundamentais no processo de
afirmação da nação e de construção
de uma cultura letrada nacional.
Resumée
En ayant comme point de départ l´analyse de quelques articles
de critique littéraire et théâtrale écrits
par Machado de Assis et des avis de censure qu´il a écrit,
de 1862 à 1864, dans le "Conservatório Dramático
Brasileiro", organe responsable de la censure théâtrale
au XIX siècle, nous réfléchirons à propos
des possibles points d´intercession entre les deux types de discours
en question, en essayant de rechercher les presupposés à
partir desquels ont été textuellement construites les
conceptions d´activité critique, d´art national et
de moralité, considérées, par quelques intellectuels
de l´époque fondamentales dans le processus d´affirmation
de
nation et de construction d´une culture lettrée nationale.
Crítica e críticos
De acordo com as palavras de Antonio Candido,
a atividade crítica no Brasil se estabeleceu com o romantismo,
inserindo-se na mesma linhagem da produção literária
baseada no nacionalismo.[1]
Mais tarde, quando a longevidade da estética romântica passou
a ser questionada, o nacionalismo se manteve expressivo nos textos de
crítica. Em 1858, Machado de Assis[2]
reafirmou a importância da atividade artística para o processo
de afirmação da nação. Para ele, as iniciativas
mais fecundas para o "progresso" e para a "civilização"
adviriam da valorização do trabalho intelectual e de sua
maior intervenção na dinâmica da sociedade. Após
ressaltar a necessidade de libertar a literatura da influência ultramarina,
fez a seguinte declaração:
"No estado atual das coisas, a literatura
não pode ser perfeitamente um culto, um dogma intelectual,
e o literato não pode aspirar a uma existência independente,
mas sim tornar-se um homem social, participando dos movimentos da
sociedade em que vive e de que depende"[3].
Num primeiro momento, vale ressaltar
que para o crítico o termo literatura abarcava as noções
de romance, drama e poesia, sendo todas elas consideradas "formas literárias
essenciais"; assim, ao lermos a sua exortação aos literatos
devemos estendê-la a todos que direta ou indiretamente se dedicavam
à atividade artística.
No artigo " O ideal do crítico"[4],
publicado em 1865, Machado associou o termo crítica a noções
como "ensinamento", "utilidade" e "correção", atributos
considerados essenciais ao melhoramento da arte. Este artigo pode ser
lido como um "manual", pelo seu caráter didático, ou ainda,
como um manifesto, verdadeira "profissão de fé", onde Machado
afirmou a concepção de crítica que considerava ideal.
Assim, a crítica aparece vinculada a um desejo reformador, no sentido
de formar de novo, de reconstruir não só o sistema intelectual,
em suas diferentes ramificações, mas também de dar
novo vigor à atividade artística.
Sílvio Romero, crítico famoso por suas polêmicas,
ao refletir sobre a atividade intelectual no Brasil, fez a seguinte análise:
"A grande pobreza das classes populares,
a falta de instrução e todos os abusos de uma organização
civil e social defeituosa, devem ser contados entre os empecilhos
ao desenvolvimento de nossa literatura. As academias são poucas
e de criação recente. Ainda hoje há muita dificuldade
para a aquisição de cultura neste país(...).
Os livros são caros; a carreira das letras não traz
vantagens; a vida intelectual não oferece atrativos; não
há editores nem leitores para as obras nacionais(...) nunca
fomos, nem somos ainda uma nação culta, livre e original."[5]
Mesmo apontando para essa realidade adversa
ao desenvolvimento da atividade intelectual, Romero reafirmou a importância
dos "homens de letras" para o desenvolvimento do país, e ao falar
sobre o papel da crítica[6], não deixou de defender o seu caráter
fundador na construção de uma literatura nacional. Embora
deixasse explícita uma interpretação negativa do
sistema intelectual de sua época e denunciasse o que acreditava
ser "falta de fôlego" ou "força" do país para as grandes
conquistas e verdades da ciência, Romero acreditava que a atividade
crítica seria redentora dos males causados pelo atraso da nação.
Em 1866, no artigo "Propósito"[7],
Machado registrou toda sua indignação a respeito do sistema
intelectual vigente e denunciou a indiferença com que os literatos
eram tratados. Fazendo uma importante descrição do funcionamento
dos meios de publicação, lamentou a precariedade da situação
do escritor no país, a escassa presença de um público
leitor e a "ausência de um gosto formado", Machado também
reiterou a sua crença no papel fundador da crítica. Para
ele, desde que "conscienciosa", "justa" e "severa", esta atividade poderia
adquirir a função pedagógica de atuar na formação
do escritor e difundir uma concepção de arte elevada, útil
e formadora, intervindo, assim, no gosto dos leitores.
Nos textos de crítica teatral esse ideal de arte também
se fez presente. Neles, Machado convocava os " homens de letras" a assumirem
um compromisso missionário com o trabalho de afirmação
do teatro nacional. No artigo, "Idéias sobre o teatro", publicado
em 1859[8], o crítico assim define a função
desta atividade:
"O teatro é para o povo o
que o coro era para o antigo teatro grego; uma iniciativa de moral
e de civilização. Ora, não se pode moralizar
fatos de pura abstração em proveito das sociedades;
a arte não deve desvairar-se no doido infinito das concepções
ideais, mas identificar-se com o fundo das massas; copiar, acompanhar
o povo em seus diversos movimentos, nos vários modos de sua
atividade."[9]
Este ideal de arte vinculado à
vida, à dinâmica social, seria reiterado mais tarde, em 1873,
no artigo "Notícia da atual literatura brasileira- Instinto de
nacionalidade"[10], onde o crítico, destacou a importância de se
construir no país uma literatura de caráter atual, preocupada
com os homens do presente e que contribuísse para a correção
dos vícios e excessos. Para ele, a arte dramática deveria
ir além dos limites do tablado e atuar diretamente sobre a formação
da platéia, influenciando na educação de todo o povo.
Embora ambicionasse chegar ao povo, o projeto crítico de Machado
fatalmente não transcenderia ao "estreito círculo do tablado"[11]; primeiro, por ser o Brasil um país
escravocrata, onde a maioria da população era analfabeta
e vivia à margem da cultura letrada; segundo, porque o acesso ao
teatro não era garantido a todos: vigorava na corte um Código
de Posturas que não só cuidava da censura e fiscalização
dos espetáculos, mas também estabelecia o tipo de vestimenta
da platéia. Em seu parágrafo 8o, pode ser lida
a seguinte exigência:
"Ninguém poderá estar
na platéia, ou à frente dos camarotes, sem estar decentemente
calçado e vestido de casaca, sobrecasaca ou farda. Os infratores
serão multados em 6$000 e terão 3 dias de cadeia, e
os porteiros das platéias que os deixarem entrar, incorrerão
na metade destas penas."[12]
Segundo a opinião de algumas testemunhas
da época, o preço dos ingressos não era nada popular
e o público, basicamente formado pela "sociedade verdadeiramente
distinta" e por "figuras esplêndidas ricamente vestidas"[13].
Há, ainda, relatos que assinalam que a platéia constituía
um espetáculo à parte, uma vez que se ia ao teatro não
para assistir às peças, mas para admirar as ações
travadas no interior dos camarotes. O naturalista francês Victor
Jacquemont[14], que esteve no Rio em
fins do ano de 1828, em seu Diário de viagem, lamentou a
ausência de " pessoas de cor" na platéia, avaliada por ele
como ostensiva e arrogante. Tais relatos assinalam um importante aspecto
da política de desenvolvimento da arte no Brasil, historicamente
vinculada à chegada da Família Real e à necessidade
de construir um espaço que lhe propiciasse diversão.
Junto à idéia da fundação de um teatro oficial
tem origem a história da censura no Brasil. Em 1813, D. João
funda o Real Teatro de São João[15]
e, em 1824, o destino das artes dramáticas já estava nas
mãos da Intendência Geral de Polícia, instituição
responsável pela fiscalização e funcionamento dos
teatros e espetáculos. No documento em que o controle da atividade
artística é oficializado, a "manutenção da
ordem" é apresentada como condição primordial para
que a arte se tornasse verdadeiramente útil à formação
do público. Assim, no Edital datado de 29 de novembro de 1824,
à censura é atribuída a função de"
evitar (...) as desordens e irregularidades que privam os povos da utilidade
que este divertimento [ ou seja, o teatro] deve-lhes produzir quando
é bem ordenado"[16].
O Conservatório Dramático Brasileiro
O Conservatório Dramático Brasileiro foi fundado
em 1843[17], dando continuidade à
tradição discursiva que apresentava a censura como necessária
ao desenvolvimento da atividade artística, vinculando-a a um ideal
de utilidade e pedagogia. Diferente do projeto de censura que vigorava
na época e que atribuía aos Chefes de Polícia a função
de julgar as peças teatrais, o do Conservatório constituía
uma tentativa de conferir aos "homens de letras" o controle da arte dramática.
Sendo uma instituição formada basicamente por intelectuais
e tendo como censores personalidades como Gonçalves de Magalhães,
Manuel de Araújo Porto Alegre, Martins Pena, o Cônego Januário
da Cunha Barbosa, Joaquim Manuel de Macedo, José Clemente Pereira
e Machado de Assis, o Conservatório definiu como
objetivo:
"(...) animar e exercitar o talento
nacional para os assuntos dramáticos e para as artes acessórias-
corrigir os vícios da cena brasileira, quanto caiba na sua
alçada- interpor o seu juízo sobre as obras, quer de
invenção nacional, quer estrangeiras, que ou já
tenham subido à cena, ou que se pretendam oferecer às
provas públicas, e finalmente dirigir os trabalhos cênicos
e chamá-los aos grandes preceitos da Arte(...)[18]
E a direção para onde o
Conservatório pretendia conduzir a arte estaria implícita
em seus critérios de julgamento das peças. O artigo
8o do conjunto de seus Artigos Orgânicos revela os principais
fundamentos da censura exercida pela instituição: a veneração
à Santa Religião; o respeito devido aos poderes políticos
da nação e às autoridades constituídas; a
guarda da moral e da decência pública e o zelo pela castidade
da língua[19].
Tais fundamentos influenciaram tanto o trabalho do Conservatório
que o tipo de censura que a instituição exerceu pouco se
distanciou do tradicional; longe de promover o "melhoramento" da arte
nacional, o Conservatório conseguiu apenas ser "guardião
da moral e da decência". Em 1859, no artigo "Idéias sobre
o teatro"[20], Machado de Assis criticou a atuação
meramente censória da instituição:
"Julgar uma composição
pelo que toca às ofensas feitas à moral, às leis
da religião, não é discutir-lhe o mérito
puramente literário, no pensamento criador, na construção
cênica, no desenho dos caracteres, na disposição
das figuras, no jogo da língua."[21]
No entanto, ao participar efetivamente
do trabalho do Conservatório, o crítico viu-se muitas
vezes obrigado a licenciar peças que considerava esteticamente
medíocres. Dos dezesseis pareceres[22]
de censura que escreveu, de 1862 a 1864, para a instituição,
três foram desfavoráveis aos pedidos de licença[23], recurso somente utilizado quando a obra era considerada
ofensiva à moral, à religião oficial e às
autoridades constituídas. Por desconsiderar a avaliação
estética das peças, o Conservatório, em
seus documentos, lamentou a pouca relevância de sua função
no panorama cultural da época. Em um dos seus relatórios,
lê-se:
"foram censuradas 233 peças,
das quais 19 foram devolvidas aos seus autores, 23 reprovadas e 191
licenciadas. Destas, grande parte, como sempre, foi de verdadeiro
(...) conjunto de parvoíces, quando não de imoralidades
e indecências"[24].
Conforme sugere a citação,
mesmo reclamando da baixa qualidade estética das obras, o Conservatório
Dramático Brasileiro jamais deixou de exercer a função
de "guardião da moral e da decência" ou de considerá-la,
no mínimo, importante.
Martins Pena, mesmo sendo membro da instituição foi posto
no banco do réus. E teve de lutar para obter a licença para
representar uma de suas peças[25].
Após ter feito as várias emendas sugeridas pelo Conservatório,
o comediógrafo desabafou com o secretário da instituição:
"Aqui te remeto a comédia(...)
com as emendas pedidas pela Censura. Deus me dê paciência
com a Censura!... muito custa ganhar a vida honradamente... melhor
é roubar os cofres da Nação, e para isso não
há censura; o Sr. Censor... coitado! Julgo que está
com catarata na inteligência(...)[26]"
Em 1858, foi a vez de José de Alencar
entrar para a lista dos autores vetados pela censura. No entanto, quem
"roubou a cena" para defender a moral e os bons costumes foi a polícia,
não o Conservatório. Sob a alegação
de conter exageros da escola realista As asas de um anjo foi proibida.
Dois anos mais tarde, Machado de Assis[27]
declarou sua opinião favorável ao veto. Segundo ele, não
havia na temática da "reabilitação da mulher perdida"
nenhuma utilidade, em outras palavras, tal assunto poderia destituir a
arte do seu caráter exemplar e formador. Alencar, no entanto, ao
defender o seu texto apresentou o seguinte argumento:
"Quando tive a idéia de escrever
As asas de um anjo, hesitei um momento antes de realizar o
meu pensamento; interroguei-me sobre a maneira por que o público
aceitaria essa tentativa, e só me resolvi depois de refletir
sobre as principais obras dramáticas filhas da chamada escola
realista - A dama das camélias, As
mulheres de mármore, e As parisienses têm
sido representadas em nossos teatros; (...) confiado nestes precedentes,
animei-me a acabar a minha obra e apresentá-la ao público,
esqueci-me porém que tinha contra mim um grande defeito, e
era ser a comédia produção de um autor brasileiro
e sobre costumes nacionais; esqueci-me que o véu que para certas
pessoas encobre a chaga da sociedade estrangeira, rompia-se quando
se tratava de esboçar a nossa própria sociedade.[28]"
A argumentação de Alencar
aponta para o fato de que, embora críticos e censores se apresentassem
como fiéis defensores e animadores da arte nacional, as obras de
autores brasileiros eram analisadas por olhos mais "severos" e "desconfiados"
do que as de origem estrangeira. Em um dos pareceres que escreveu, Machado
ratificou essa idéia com as seguintes palavras: "Sou dos que
pensam que a análise deve ser mais minuciosa, e por ventura mais
rigorosa com as composições nacionais. Só por este
modo pode a reflexão instruir a inspiração."[29]
Intelectuais em defesa da moral e da ordem estabelecida
Machado de Assis, nos pareceres que escreveu para o Conservatório
Dramático Brasileiro, não se afastou, quer do ponto
de vista textual quer do ponto de vista ideológico, de um modelo
de censura já estabelecido pela instituição ao longo
de suas duas décadas de existência. Embora a censura moral
estivesse sempre em primeiro plano, a preocupação com a
estética apareceu nas avaliações feitas por Machado
e também nos pareceres de outros censores.
Por ocasião da censura da peça O Conde de Penedono,[30] três censores foram designados pelo Presidente
da instituição para o ofício. O primeiro deles foi
Antônio José Vitorino de Barros[31]. Este, após ler a peça, apresenta ao Presidente
da instituição um parecer apontando inúmeros defeitos
estéticos na obra e vetando a sua representação nos
teatros. Neste texto, Vitorino de Barros assinalava desde os erros ortográficos
que encontrara na composição até o "pecado" maior
de o autor: blasfemar contra o Santo Ofício.
No que diz respeito à crítica estética do texto,
o censor assim se refere à obra: "O Conde de Penedono
é uma composição que não tem nome"; além
disso, a peça seria um conjunto de "palavras indigestas escritas
em grego", cujas vulgaridades não eram dignas de serem enumeradas
no parecer. No entanto, Antônio José Vitorino de Barros,
fez questão de explicar que tais defeitos formais não constituíam
o motivo que o levara a reprovar a peça. O motivo fora a representação
da Companhia de Jesus e a tentativa de o autor maldizer o Santo Ofício.
Para defender a Igreja, o censor argumentou:
"Poderia escrever muito relativamente
à corporação dos Jesuítas e à Inquisição
e mostrar o lado favorável por que se pode ajuizar destes fatos
históricos hoje tão discutidos. Diria alguma coisa de
bom grado, mas para quê? A peça e quem a escreveu que
fiquem com o que sabem de ambas as instituições(..)"[32]
Um segundo censor é chamado a dar
seu parecer sobre a obra. E é nesse momento que o argumento do
zelo pela perfeição estética das peças se
sobrepõe ao discurso de respeito à moral e aos costumes
oficiais. Diferente do primeiro censor que, apesar de apontar os problemas
formais da obra, declarou condená-la devido aos "defeitos" morais
que, segundo ele, nela dominavam, o censor, Carlos Emílio Adet[33],
apresenta o seguinte parecer:
"O drama é detestável
como obra literária, mas creio que nas atribuições
do Conservatório Dramático não cabe negar licença
para a representação, se houver empresário de
teatro que queira tentá-la. Em parte nenhuma encontrei as ofensas
à religião, a que se refere o ilustrado censor que antes
de mim foi ouvido."
Carlos Emílio Adet, ao trazer para
primeiro plano o que o outro censor considerou apenas como um componente
acessório, torna movediças as bases da argumentação
de Victorino de Barros. No entanto, o segundo censor, não seria,
por isso, "menos" conservador do que o primeiro, visto que este também
afirmou que as falhas formais apresentadas na peça constituíam
um problema cuja solução não dependia do Conservatório
Joaquim Manuel de Macedo também foi designado para dar o seu parecer
sobre a peça. E suas conclusões não foram diferentes
das apresentadas por Carlos Emílio Adet. Declarou que o drama carecia
de merecimento literário, considerando-o um "ensaio infeliz de
escritor novo", mas afirmou que não encontrara na obra nenhuma
das condições passíveis de reprovação
previstas pela lei do Conservatório. No entanto recomendou
o seguinte encaminhamento a respeito do destino da peça:
"Em consciência creio que o
Conservatório deva aconselhar ao autor do drama a não
representá-la em público(...) deixa-se ao autor e aos
teatros a responsabilidade de uma imprudente exibição."
Assim, Macedo termina por corroborar as
conclusões do segundo censor: para ambos a resolução
do problema encontrado na peça não constituía uma
atribuição do Conservatório.
Além da preocupação com a moral, Machado também
demonstrou certa cautela ao tratar de assuntos como a questão da
escravidão. Em censura feita à peça portuguesa Mistérios
Sociais, em 1862, o crítico considerou incorreto o fato de
o protagonista, um escravo, casar-se com uma baronesa. Sobre tal união,
fez a seguinte observação:
"A teoria filosófica não
reconhece diferença entre dois indivíduos que como aqueles
tinham as virtudes no mesmo nível; mas nas condições
de uma sociedade como a nossa, este modo de terminar a peça
deve ser alterado."[34]
Para resolver o problema, Machado propõe
uma mudança no argumento do drama, sugerindo que a origem do protagonista
fosse modificada, a alteração foi feita e a peça
foi liberada. Tal aprovação causou um certo burburinho no
sistema, visto que pelo mesmo motivo, em 1859, a mesma peça fora
reprovada. O censor que a reprovara na época preferiu negar-lhe
a representação a alterar obra de tão distinto autor[35].
Considerou "perigosa" a representação de uma peça
cujo herói era um escravo. Victorino de Barros assim se justificou:
"É infelicidade nossa haver
escravos em nosso país, mas, uma vez que os há, (...)
é além de inconveniente perigosa a representação
de um drama cujo herói nasceu escravo. Não é
por timidez que o digo, é para prevenir os excessos a que obriga
a conquista da liberdade, a possibilidade de cenas de insurreições,
que tem ensangüentado algumas províncias do Império
e a freqüência de processos e execuções de
assassinos de seus senhores. Sinto não poder votar pela licença(...)"[36]
Além do julgamento severo do Conservatório
e do controle policial a que era submetido, o teatro - aquele mesmo que
toda intelectualidade se propunha a "fundar" - também enfrentava
outras dificuldades e carecia de espaço e de credibilidade no panorama
cultural da época. João Caetano[37],
por exemplo, considerado pelos seus contemporâneos o primeiro grande
ator brasileiro, sendo também um dos mais influentes empresários
de teatro no Brasil, raramente representava peças nacionais, para
tristeza dos nacionalistas. Conforme nos informa Décio de Almeida
Prado[38], após a representação,
em 1838, da peça Antônio José ou O poeta e a Inquisição,
de Gonçalves de Magalhães, João Caetano não
mais se colocou a serviço do teatro nacional. A parceria entre
Magalhães e João Caetano recebeu elogios da crítica
e do público, coroando o talento do ator e conferindo ao dramaturgo
o título de "fundador" do teatro nacional. Esse "casamento" durou
pouco; a identidade de João Caetano como ator, voltada para o estilo
grandioso e solene dos dramas clássicos, afastá-lo-ia, mais
tarde, das peças nacionais. Sobre tal assunto, Araújo Porto
Alegre, deixou-nos a seguintes palavras:
"(...) os autores não querem
hoje perder o seu trabalho, e não se convencem de que é
agradável passar noites e dias a pensar e a escrever somente
para lucro dos empresários, sem algum ponto firme em que se
apoiem; e os empresários dizem, que não se atrevem a
aventurar-se com peças nacionais, e com autores desconhecidos,
e exigentes, pois que tradução lhes dá mais lucro,
porque a pagam baratinho (...)"[39]
No entanto, diante dessa realidade, Araújo
Porto Alegre ainda conseguia entrever uma possível solução:
"Para que um ator se imortalize que
ele se encarne na literatura nacional, e que com ela caminhe de par
e a passo, ou produzindo obras próprias, ou realizando de uma
maneira satisfatória para as inteligências as produções
dessa mesma inteligência; porque assim como o poeta forma o
ator, o ator também aperfeiçoa o poeta, não só
realçando com o seu belo talento as suas concepções,
como fazendo surgir novas criações para os seus novos
e justos triunfos."[40]
Assim, propôs a união entre
ator e autor como solução para os problemas do balbuciante
teatro nacional. Obviamente, não se referia ele a qualquer ator,
mas ao mais importante e influente ator brasileiro da época.
A postura omissa e desinteressada de João Caetano em relação
ao teatro nacional rendeu-lhe inúmeras críticas severas
de Machado de Assis, relativas não só ao ator, mas também
à sua companhia de arte e ao Teatro São Pedro de Alcântara.
Estas críticas ficaram registradas tanto nos pareceres escritos
para o Conservatório quanto nos textos de crítica
teatral escritos para os jornais.
Em artigo publicado em 1859, Machado estabeleceu uma distinção
entre o repertório do Teatro Ginásio Dramático e
dos demais teatros da época. O Ginásio Dramático,
para Machado de Assis, fora o precursor da "nova arte " no Rio de Janeiro[41]. Nesse sentido, em oposição à imagem
do Ginásio associada à inovação, bom gosto
e modernidade, estavam as velhas noites do São Pedro, consideradas
fastidiosas, com suas repetidas cenas trágicas, conservadoras e
anacrônicas.
Décio de Almeida Prado[42] reproduziu
uma declaração dada por José de Alencar, no Prefácio
de O Jesuíta - drama representado, em 1875, no Ginásio
Dramático - publicado em 1876, em que o dramaturgo expunha a sua
opinião a respeito do mal vedado "boicote" que o teatro "oficial"
conferia às peças nacionais:
"(...) A empresa do Teatro de São
Pedro recebia uma subvenção do Estado, como auxílio
ao desenvolvimento da arte dramática; e era obrigada por um
contrato a montar peças brasileiras de preferência a
estrangeiras, determinadamente nos dias de gala. Dessa obrigação
eximia-se ela com a razão da falta de obras originais dignas
de cena."[43]
O controle da atividade artística
- através da censura e da prática de "mecenato" - e a vinculação
entre arte e moralidade tinham sua matriz no contexto intelectual da França.
Segundo Pierre Bourdieu[44], essa associação
não era nada prosaica e constituía o cartão de visita
da "arte burguesa", representada, principalmente, pelos escritores de
teatro[45]. Este ideal de arte, longe
de representar uma ação cívica e desinteressada ,
respondia oportunamente à necessidade de difundir a moral e os
valores úteis à consolidação do Estado burguês.
Apesar de tantas iniciativas e de tantos discursos comprometidos com o
desenvolvimento da atividade artística, o panorama cultural do
século XIX parece poder ser entendido como um conjunto de vozes
insatisfeitas, cada uma, a seu modo, demarcando o seu espaço e
atribuindo a si mesma a tarefa de "impulsionar o país". No entanto,
o nacionalismo expresso, em suas versões mais positivas, em defesa
da "civilidade", das "luzes", da "utilidade" e do "desenvolvimento" aparecia
como um projeto historicamente descolado dos verdadeiros desafios apresentados
pela realidade da ex-colônia. Nem mesmo a agudeza crítica
presente no discurso de críticos como Machado e Sílvio Romero
foi capaz de solucionar os problemas herdados de um passado colonial e
agravados pelas desigualdades da sociedade do presente. Diante disso,
nem o discurso da crítica e, muito menos, a tentativa de cerceamento
da arte em função do padrão de moralidade defendido
pelas elites conseguiriam corrigir os tão destrutivos "males" e
"vícios" da sociedade.
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[1] CANDIDO, Antonio.
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1993,v.2.
[2] ASSIS, Machado de. "O passado, o
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de Janeiro: J. Aguilar, v.3, 1997. Este artigo foi publicado no jornal
A Marmota.
[3] Ibidem, p.787-788.
[4] Ibidem, p.798-801. Artigo publicado
no jornal Diário do Rio de Janeiro.
[5] ROMERO, Sílvio. "Relações
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In: CANDIDO, Antonio. Sílvio Romero: teoria, crítica
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[6] Ibidem. "A função da
crítica". p.3.
[7] ASSIS, Machado de. Op.cit.,
p.841-843. Este artigo foi publicado no jornal Diário do Rio
de Janeiro.
[8] ASSIS, Machado de. Op.cit.,
p.789-798. Este artigo foi publicado no jornal O Espelho.
[9] Ibidem, p.791.
[10] Ibidem, p. 801-809. Na época,
o artigo foi publicado no jornal Novo Mundo.
[11] Ibidem, p.790.
[12] PAIXÃO, Múcio da.
O teatro no Brasil ( Edição Póstuma). Rio
de Janeiro: Brasília Editora, 1936(?), p.465.
[13] SOUSA, José Galante de.
O teatro no Brasil, Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro,
Tomo I, 1960,P.158. Descrição recolhida a partir do registro
do oficial alemão C. Schlichthorst que esteve na corte de 1824
a 1826 e escreveu o livro "O Rio de Janeiro como é".
[14] SOUSA, José Galante de.
Op.Cit., p. 159. Victor Jacquemont publicou, em 1841, seu Diário
de viagem, onde descreve suas impressões sobre o teatro carioca.
[15] Ao longo de sua história
e de acordo com as motivações políticas, este teatro
recebeu vários nomes: Teatro São João, Teatro de
São Pedro de Alcântara, Teatro Constitucional Fluminense
(depois de 1831), Teatro de São Pedro de Alcântara ( agora,
em homenagem ao Pedro II). Hoje, no local, está o teatro João
Caetano.
[16] SOUSA, José Galante de
.Op.cit., p.327.
[17] Em 10 de maio de 1864, o Conservatório
foi extinto. Em 1871, foi fundado um novo Conservatório.Com
o advento da República, a instituição foi fechada.
Houve também um Conservatório em Pernambuco e
na Bahia.
[18] Artigo 1o do conjunto
dos Artigos Orgânicos do Conservatório Dramático
Brasileiro.
[19] SOUSA, José Galante de.
Op.Cit., p.332.
[20] Jornal O Espelho.
[21] ASSIS, Machado de. Op.Cit,
p.795.
[22] Os pareceres que Machado escreveu,
entre os anos de 1862 e 1864, foram publicados em 1956, por José
Galante de Sousa, no primeiro número da Revista do Livro.
[23] As peças reprovadas foram:
A mulher que o mundo respeita, de Verediano Henrique dos Santos
Carvalho; As conveniências, de Quintino Francisco da Costa
e Espinhos de uma flor, de José Ricardo Pires de Almeida.
Todas de autores nacionais.
[24] Relatório apresentado à
Assembléia Geral do Conservatório - Informes sobre
o trabalho realizado durante o ano de 1862. Biblioteca Nacional , Seção
de Manuscritos, referência I-8,28,80.
[25] Peça Ciúmes de
um pedestre.
[26] PENA, Luís Carlos Martins
Pena. Apud. KHÉDE, Sônia Salomão. Censores de
pincenê e gravata: dois momentos da censura teatral no Brasil.
Rio de Janeiro: Codecri,1981,p.86.
[27] ASSIS, Machado de. "O teatro de
José de Alencar". Op.Cit.
[28] ALENCAR, José de. Apud.
KHÉDE, Sônia Salomão. Op.Cit., p.91.
[29] Censura feita à peça
Um casamento da época, em 8 de abril de 1862, de Constantino
do Amaral Tavares. Segundo Galante de Sousa, a peça foi representada
no teatro Ginásio Dramático
[30] Peça de autoria de Visconte
d'Almeida da Nóbrega, submetida à censura do Conservatório
Dramático Brasileiro no ano de 1863. Os pareceres encontram-se
na Seção de Manuscrito da Biblioteca Nacional, catalogados
sob o registro I-8, 23, 44.
[31] Foi sócio do Conservatório,
oficial da ordem da Rosa e cavaleiro da ordem de Cristo.
[32] Documento catalogado sob a referência
I-8, 23,44 ( Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional).
[33] Nasceu em Paris e lá faleceu
em 1867. Naturalizou-se cidadão brasileiro e dedicou-se às
letras, ao jornalismo e ao magistério. Também foi sócio
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
[34] Censura feita à peça
Mistérios sociais, de César de Lacerda.
[35] A censura foi feita por Antônio
José Victorino de Barros e encontra-se na Biblioteca Nacional,
Seção de Manuscritos, referência I-8,17,48.
[36]Ibidem.
[37] Nas mãos de João
Caetano, esteve o destino do teatro nacional, visto que a sua carreira
como ator e empresário sempre esteve ligada ao teatro oficial,
subvencionado pelo Governo. Desde 1831, data de sua estréia no
teatro oficial, então chamado Teatro Constitucional Fluminense,
até o seu falecimento, em 1863, a sua companhia teatral esteve
na direção do teatro que, desde a sua fundação-
1810, por D.João- recebera a "proteção" do Governo.
No Segundo Império, tal teatro passou a chamar-se Teatro São
Pedro de Alcântara. Hoje, no local em que fora erguido, encontra-se
o Teatro João Caetano.
[38] PRADO, Décio de Almeida.
João Caetano, o ator, o empresário, o repertório.
São Paulo: Perspectiva, 1972. P.122-128.
[39] Ibidem, p. 128.
[40] Ibidem,p.128.
[41] ASSIS, Machado de. Crítica
teatral. Rio de Janeiro: W.M. Jackson, 1938. p. 40-41
[42] PRADO.Décio de Almeida.
Op.Cit.
[43] Ibidem. p.131
[44] BOURDIEU, Pierre. As regras
da arte: gênesis e estrutura do campo literário. São
Paulo: Companhia das Letras, 1996.
[45] Alguns deles como Dumas Filho,
Émile Augier e Victorien Sardou tornaram-se bastante famosos
no Brasil. Os dois últimos foram muito elogiados por Machado.
Luciane
Nunes é mestra em Literatura Brasileira
e doutoranda em Literatura Comparada na Universidade Federal Fluminense.
Desenvolve pesquisa sobre o Conservatório Dramático Brasileiro
e, em 1999, defendeu a dissertação de mestrado intitulada
"Crítica literária ou Censura moral? Machado de Assis crítico
e censor".
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