a literatura brasileira e as literaturas do Caribe
Zilá
Bernd
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)/CNPq -1997
Resumo:O artigo pretende mostrar que autores brasileiros e caribenhos utilizam procedimentos semelhantes de inscrição do oral e do popular nos romances que produzem a partir sobretudo dos anos 60. A reutilização de elementos do maravilhoso popular como o mito do lobisomem por José Candido de Carvalho, em O coronel e o lobisomem, e o mito do zumbi por autores da literatura francófona do Caribe como Patrick Chamoiseau, René Depestre e Dany Laferrière, revelam a necessidade destes autores de valerem-se de figuras híbridas e que passam pelo fenômeno da metamorfose para exprimirem a identidade americana. A reutilização, portanto de vestígios culturais populares (trace), portanto do menor, em montagem maior (formas literárias canonizadas como o romance), constituem-se em pólos de convergência entre a literatura brasileira e a literaturas francófonas do Caribe, comprovando a possibilidade da prática de um comparativismo literário inter-americano. A inserção de elementos do popular maravilhoso não se faz apenas para caracterizar efeitos de exotismo, mas para expressar a Diversidade estética e cultural latino-americana, através de uma escritura crioulizada e híbrida, alicerçada na não-hierarquização das diferenças.
Résume:
L'article veut montrer que les auteurs brésiliens et caribéens utilisent des processus semblables d'inscription de l'oral et du populaire dans les romans qu'ils produisent, surtout à partir des années 60. La réutilisation des éléments du merveilleux populaire comme le mythe du loup garou, par José Candido de Carvalho, dans Le colonel et le loup garou, et le mythe du zombi par des auteurs de la Caraibe francophone comme P. Chamoiseau, R. Depestre et D. Laferrière, revèlent le besoin de ces auteurs d'introduire des figures hybrides, qui passent par le phenomène de la metamorphose, pour exprimer l'identité américaine. La réutilisation de la trace, donc du mineur dans des montages majeurs, comme le roman, se constituent en poles de convergence entre la littérature brésilienne et les littératures francophones de la Caraibe, ce qui prouve la possibilité d'un comparativisme littéraire inter-américain. L'insertion des éléments du merveilleux populaire ne se fait pas seulement pour caractériser des effets d'exotisme, mais pour exprimer la Diversité esthétique et culturelle latino-américaine, par le biais d'une écriture créolisée et hybride, construite à partir du principe de la non-hiérarchisation des différences.
Literatura brasileira (e latino-americana): entre racionalidade e magia
Na tentativa de conferir uma identidade à
Literatura Brasileira em formação, seus autores, embora
com o olhar voltado para os modelos emanados pelo Centro (Europa),
nunca puderam deixar de captar o maravilhoso americano que os cercava
com seus encantamentos oriundos das culturas autóctone e
africana.
A escritura praticada pelas elites buscou privilegiar as formas
eruditas herdadas de uma tradição greco-latina,
pretendendo ficar incólume ao imaginário maravilhoso
presente na cultura dos povos subalternos. Deste modo, podemos dizer
que, até o Modernismo, o imaginário
mágico-sacral ou é excluído das diversas formas
de representação literária ou é captado a
partir de uma visão exógena, mais no sentido de obter o
que se costuma chamar de cor local.
As primeiras tentativas de incorporar ao patrimônio letrado a
visão mítica presente nas cosmogonias americanas,
só foram levadas a cabo pelos modernistas, graças
sobretudo ao ingente trabalho de pesquisa realizado por Mário
de Andrade. Sua tentativa de abolir a distância e a
hierarquização entre cultura de extração
popular e cultura letrada foi realmente significativa, tendo sido
determinante para que a Literatura Brasileira atingisse sua
maioridade.
Na seqüência, contudo, este projeto foi posto de lado
quando o Romance de 30, tomando os rumos do engajamento e da
denúncia da situação de opressão em que
vivia principalmente a população nordestina,
será responsável pela articulação de um
discurso que, por estar inteiramente comprometido com a melhoria da
situação dos oprimidos, procurará neutralizar
todo o misticismo presente na cultura popular por considerar que
é precisamente este misticismo que conforma a postura submissa
dos desfavorecidos face a seus opressores.
Um bom exemplo é Graciliano Ramos que buscou, através
do despojamento da linguagem, traçar um perfil realista da
sociedade nordestina. Não consegue, contudo, deixar de admirar
as produções populares do Nordeste, rico em cantadores
e cordelistas com seu versejar simples e despretencioso. Já em
1936, em Angústia, o escritor homenageia a
figura mais popular no Nordeste, o contador de histórias e,
entre as melhores lembranças da infeliz personagem Luiz da
Silva, está a de José Baía - figura que emerge
repetidas vezes em Infância - que vinha contar-lhe
histórias de onças no copiar.
Depois de escrever a parte mais importante de sua obra, tentando
evacuar a visão de mundo mística do nordestino que
poderia ser a causa da passividade da população face a
uma sociedade degradada, Graciliano deixa vir à tona em
Infância, ficção auto-biográfica, a
admiração que sempre teve pelo que ele chama de "obra
de arte popular".
Alfredo Bosi sustenta,em excelente artigo intitulado "Céu,
inferno", que Graciliano Ramos tinha grandes dificuldades em aderir
ao mundo mágico dos sertanejos. Apresenta interessante
comparação com João Guimarães Rosa,
argumentando que "ambos foram observadores agudos de tipos, ambientes
e situações arcaico-populares". Existiria,
porém, uma diferença entre eles: enquanto em Graciliano
Ramos, a mediação ideológica do determinismo o
separa da matéria sertaneja, em Guimarães Rosa, a
mediação da religiosidade popular o aproxima do mundo
mineiro.[1]
O modo de ver os homens e o destino aproxima Rosa da cultura popular,
fazendo com que o autor entre em sintonia com as versões
simbólicas e maravilhosas da realidade que tecem os sertanejos
para superar a extrema carência em que vivem. Na esteira de
Garcia Marques e Alejo Carpentier, Rosa coloca-se diante dos relatos
mágicos e insólitos dos iletrados, interpretando-os
como formas alternativas de narrar os acontecimentos
históricos e de aceitar o destino.
Assim, com Ramos, de modo ainda incipiente, e com Rosa,
explicitamente, começam a ser desbravados os caminhos que
levam à construção de um primeiro nível
de hibridação onde se associam tradição
oral e visão maravilhosa da realidade a elementos da cultura
letrada. Será com José Cândido de Carvalho na
década de 60 e com João Ubaldo Ribeiro, na
década de 80, que estes antagonismos serão
verdadeiramente ultrapassados, havendo uma real
apropriação por parte do escritor dos aportes da
cultura popular que são crioulizados com os da cultura
erudita, tendendo-se a uma dissolução gradativa das
fronteiras que separam as duas vertentes.
Com estes exemplos quisemos mostrar que foi somente a partir da
década de 60 que se deu a plena adesão ao
imaginário mágico, partindo os escritores para um
trabalho de apropriação, reutilização e
reciclagem destas formas que permaneceram em situação
de isolamento e de secundariedade durante largo tempo.
Neste sentido é exemplar a leitura que faz Garbuglio de um
conto de Graciliano Ramos intitulado "Inácio da Catingueira e
Romano".[2]
O crítico paulista serve-se deste texto para mostrar que os
dois personagens representam as duas vertentes culturais brasileiras
que sempre permaneceram incomunicáveis: a popular,
representada pela massa onde os geradores de cultura se mantêm
anônimos (ou quase) e a citadina, representada pela classe dos
senhores.
Os dois personagens estão preparados para um desafio
("martelo"): Inácio da Catingueira é negro e
analfabeto, simbolizando o esforço de
conservação da cultura popular, enquanto seu
adversário, Romano, é branco e letrado, como os romanos
que deram origem à cultura ocidental. Segundo Garbuglio, os
dois "refletem modos diferentes de sentir e recriar o mundo onde
convivem em precário equilíbrio".
O leitor presencia ao embate entre cultura letrada e cultura popular
com vitória da primeira. Romano vence Inácio, apelando
para termos de mitologia grega que seu adversário desconhece.
A crônica de Graciliano visa certamente aos intelectuais
seduzidos por uma cultura de importação, demonstrando a
preocupação de seu autor com a tendência ao
isolamento que se instaura no âmbito da cultura/literatura
brasileira, estabelecendo uma separação que precisa ser
superada. De um lado, receio e ignorância, de outro, desprezo e
arrogância, conclui Garbuglio, o que resultou na
segregação da cultura popular à periferia do
sistema..
É proposta deste trabalho mostrar o modo pelo qual José
Cândido de Carvalho constrói um romance onde se rompe o
cordão de isolamento de que falamos acima, diluindo-se as
fronteiras entre logos e mitos, entre a racionalidade,
que conforma a literatura "soi-disant" erudita, e a visão
mágico-maravilhosa que subjaz nos contos e lendas da
tradição oral e popular.
Em recente artigo[3],
Irlemar Chiampi distingue dois níveis de
hibridação. Segundo a autora, a literatura do "boom"
(anos 50 a 60) praticou um primeiro nível,
apropriando-se do imaginário maravilhoso presente nos mitos e
lendas populares. Somente os autores do "pós-boom", de 70 a
90, teriam praticado o segundo nível de
hibridação, apropriando-se da cultura de massas,
como letras de tango e de bolero, de histórias em quadrinhos,
etc.
Discordando em parte de Irlemar Chiampi que pretende que no primeiro
nível haveria resquícios de um princípio de
hierarquização no qual a cultura popular, embora
reutilizada ficaria em um plano inferior ao da cultura erudita, na
verdade, o que considero importante é fato de que, em ambos os
níveis, estamos em presença de mesclas e reciclagens
que pretendem pôr em relação a diversidade do
mundo, afastando-se, pela aceitação da impureza, da
pretensão do absoluto e engendrando uma escritura proliferante
que irá conferir identidade às literaturas das
Américas.
O universo maravilhoso do Coronel:
uma leitura de O coronel e o lobisomem de José Cândido de Carvalho
A leitura que ora empreendemos de O coronel e o lobisomem (1964), rege-se por um triplo objetivo:
O coronel e o lobisomem atingiu, entre 1964
e 1991, o número invulgar de 40 edições, feito
que poucas obras da Literatura Brasileira lograram alcançar em
tão curto período de tempo. Se o livro foi
comprovadamente sucesso de vendagem, tendo sido traduzido para o
francês, o espanhol e o alemão, e garantido a seu autor
um lugar na Academia Brasileira de Letras, são escassos os
estudos críticos que o avaliaram em profundidade.
Grandes nomes da Literatura Brasileira reconheceram desde a primeira
hora que estavam diante de uma obra notável como Raquel de
Queiroz, Herberto Sales, Erico Veríssimo, Ariano Suassuna e
tantos outros. Porém, com exceção de Dacanal
(1973) e Miyzaki (1988), não nos foi possível localizar
artigos escritos sobre a obra nos últimos 10 anos.
É nossa hipótese que a releitura desta obra, mais de
trinta anos após a sua publicação, contrapondo-a
à produção dos autores caribenhos que publicaram
entre 1960 e 1996, deverá contribuir para uma melhor
avaliação da mesma e para comprovar as possibilidades e
o interesse da prática de um comparativismo literário
inter-americano. Esta vinculação com a vertente
latino-americana do maravilhoso já havia sido pressentida por
Erico Veríssimo quando notou "a alta qualidade
literária" de O coronel e o lobisomem, cuja leitura nos
põe "em face de uma espécie de realismo
mágico".
Na realidade, a originalidade da obra já se dá a
conhecer no próprio subtítulo, onde se pode
ler:
Temos aí uma tentativa de esvaziamento da responsabilidade do autor que quer fazer o leitor pensar que não se trataria de uma obra de ficção, mas de "deixados", portanto de notas autobiográficas deixadas por Ponciano de Azeredo Furtado, o coronel que dá título à obra. Já ficamos também sabendo que as peripécias do coronel se passam no interior de Campos, no Estado do Rio de Janeiro, terra natal de JCC.
Permanecendo ainda atentos ao paratexto do
romance, é interessante notar que 1964, data da
publicação do livro, coincide com o golpe de Estado
praticado no Brasil pelos militares, isto é, os "oficiais
superiores da guarda nacional" de que fala o subtítulo.
Distanciados hoje que estamos 32 anos da publicação da
obra, não seria temerário afirmar que não foi
mera coincidência o fato de JCC escolher este momento para
falar de um coronel - figura símbolo de autoridade e
arbítrio tanto na realidade como na ficção
brasileiras - e de sua decadência e passeísmo. O tom
irônico e carnavalizado do romance diluiu o impacto da
crítica irreverente e seu caráter subversivo.
Outro aspecto importante da obra são as
ilustrações feitas por Poty, desde a primeira
edição, e o acréscimo de um original
prefácio gráfico, a cargo do cartunista Appe, para a
edição de 1970. Os grafismos de Poty aproximam-se dos
trabalhos dos ilustradores de cordel cujos traços, ao mesmo
tempo vigorosos e despojados, expressam de forma inigualável a
cultura popular brasileira.
Utilizar uma linguagem erudita, mas toda feita de saborosos
arcaísmos e regionalismos do falar da população
rural fluminense e entremear o texto de material gráfico
constituem-se em duas magistrais estratégias para produzir
literatura à moda do cordel, na tentativa de reproduzir a
fala, a gestualidade e o poder de encantamento do contador popular. A
iconografia duplica, prolonga e dramatiza o texto, condensando a
fábula.
A esta mistura de códigos semióticos vem agregar-se, na
terceira edição, de 1970, o prefácio, assinado
por Appe, que não é só interessantíssimo,
mas também originalíssimo, segundo a expressão
de JCC. São 7 páginas introdutórias, feitas no
estilo das revistas em quadrinhos. Estas imagens contribuem para
reforçar a imagem que o leitor construirá do coronel
que, "com todas as suas safadezas, mentiras e pabulagens", como disse
Raquel de Queiroz, o conquistará. A figura do coronel integra
a galeria dos grandes tipos humanos da literatura nacional, pois a
crítica literária muitas vezes tem se referido a ele
como de um personagem que realmente existiu.
A utilização das diferentes espécies de suportes
gráficos que referimos acima, e a
interpenetração dos traços de dois diferentes
artistas constituem-se em um primeiro nível de
hibridação, na medida em que a interação
entre verbal e icônico torna-se fonte de sedução,
oferecendo-se mais facilmente à leitura de um público
de massa. Empregamos aqui o conceito de hibridação por
considerarmos a expressão mais apropriada quando queremos
abarcar diversas mesclas interculturais [4],
quando estamos em presença de uma busca identitária
respeitosa da heterogeneidade e da diversidade.
Presença do maravilhoso americano
T.Y. Miyazaki, analisando simultaneamente
Grande sertão: veredas, O coronel e o
lobisomem e Sargento Getúlio (João
Ubaldo Ribeiro), destaca que "focalizando distintos momentos
históricos e diversas regiões brasileiras, dentro da
problemática geral do confronto de culturas, os romances
tratam do desaparecimento da função histórica de
certas figuras". "À perda de tal função -
de jagunço, coronel e sargento - sucede a tentativa de
reconquistar ou reconstruir uma identidade perdida"
[5]
Dacanal também insiste na figura do coronel decadente
(contraditório) e no seu dilaceramento entre meio urbano
(Campos) e meio rural (currais de Sobradinho), entre visão
lógico-racional e mítico sacral. "O coronel e o
lobisomem é o choque entre duas culturas que se encontram
em planos históricos defasados". [6]
Nesta encruzilhada entre dois tipos de cultura que se ignoram
mutuamente, é o coronel - por ser aquele que vive a passagem
dilacerante de um mundo a outro - o único que se conscientiza
da situação (Já morreu o antigamente) e
sente que precisa encontrar uma saída. Será uma
tentativa desesperada de (re)compor sua identidade. Assim, o romance
inicia pela afirmação, em primeira pessoa:
"A bem dizer, sou Ponciano Azeredo Furtado, coronel de patente, do
que tenho honra e faço alarde". (Coronel...,
p.3)
Assumir a narração em primeira pessoa é
característico do discurso de afirmação
identitária. Deste modo, logo nos primeiros parágrafos,
Ponciano identifica-se ao leitor pela patente (coronel), pela
loquacidade ("faço alarde", "sou invencioneiro e
linguarudo") e também pela sua formação
letrada ("leio no corrente da vista e até uns latins
arranhei"). Contudo, sabe que "já morreu o antigamente
em que Ponciano mandava saber nos ermos se havia um caso de lobisomem
a sanar" (Coronel..., p.3). Reconhece, pois,
não sem uma certa nostalgia, que o saber popular está
morrendo, que o pensamento mágico está restrito aos
"ermos" (lugar sem habitantes, deserto, descampado) dos currais do
Sobradinho.
O trabalho de rememoração, da memória individual
e da memória coletiva, desenvolve-se através de 13
capítulos. Como se sabe, desde a antigüidade o
número 13 é considerado de mau agouro: o
capítulo 13 do Apocalipse é o do Anticristo ou da Fera.
Mera casualidade ou não, o fato é que as
recordações do coronel são entremeadas dos mitos
mais consagrados do folclore brasileiro e universal como o da sereia,
o da onça e o do lobisomem, com a particularidade de que o
narrador torna-se o herói destas histórias inventadas a
partir dos modelos populares.
Valendo-nos dos aportes teóricos desenvolvidos por Irlemar
Chiampi [7],
poderíamos dizer que o narrador introduz o maravilhoso
através do suporte da narração tética
(representação do real), colocando real e maravilhoso
em relação não contraditória, como ocorre
nas narrativas do Realismo Maravilhoso.
Quase sempre, ao iniciar a narração de uma destas
histórias consagradas pelo folclore e repetidas oralmente
desde os tempos mais remotos, o narrador introduz a imagem do vento
como se este elemento natural é que tivesse trazido até
ele a história:
" Bem não tinha esquentado o assento na cadeira de meu avô veio o caso da onça-pintada. O zunzum trazido pelo vento dos pastos dizia grandezas da aparecida, que era onça sem medida..." (Coronel... p.27)
Idêntico procedimento é utilizado por
Jacques-Stephen Alexis, escritor haitiano que, no seu romanceiro de
contos populares de seu país (Romancero aux
étoiles, 1960), introduz o vento - le Vieux Vent
Caraïbe - como narrador dos contos, por ser ele quem
"desde tempos imemoriais canta nossas belas histórias
antigas, recentes e eternas". O vento é igualmente
símbolo de sopro, de Espírito. É interessante
notar que autores que certamente não tiveram contato,
utilizam, ao inscrever aspectos da tradição oral, a
figura do vento, simbolizando o sopro das vozes que conservaram
intactas histórias não escritas.
A onça, presente nas tradições orais mais
antigas como a chinesa, em que aquele que conseguia
caçá-la era tido como merecedor do respeito de toda a
comunidade, é amplamente utilizada no cordel brasileiro,
personalizando a força bruta, a violência e a
astúcia. Segundo Câmara Cascudo, é crença
geral que a onça tem o poder de fascinar outros animais.
Verifica-se que a narração em primeira pessoa passa
para a terceira quando o narrador resolve contar a parte mais
emocionante da caçada: ele se objetiva no narrado falando de
si mesmo como o outro, o herói, o Coronel Ponciano, que
tentará sozinho dar cabo da pintada. JCC retoma, portanto, - a
exemplo de João Guimarães Rosa em "Meu tio o
Iauretê", de Estas histórias - um dos mais
tradicionais mitos dos índios da América do Sul, para
os quais a onça era animal sagrado, percebido por algumas
tribos como ancestral dos homens aos quais teria transmitido o fogo.
Por isso, em "Meu tio o Iauretê", o personagem repete
"Onça é meu parente".
Do relato da onça, JCC prossegue falando de
assombrações, boitatás (cobra de fogo, um dos
primeiros mitos registrados no Brasil) e ururaus (jacaré de
papo-amarelo), apropriando-se assim de relatos orais, para inseri-los
nestas memórias do Coronel Ponciano de Azeredo Furtado que
são apresentadas ao público leitor sob o rótulo
de "romance". Conforme observa Miyazaki, ficam no romance
"satisfeitas as condições fundamentais da narrativa
oral: o contador e o seu auditório, as estórias que se
pretendem exemplares".[8]
Assim, revivendo relatos nos quais muitos já não
acreditavam taxando-os de "invencionices do povo bronco dos
ermos", o coronel empreende uma tentativa desesperada de
preservá-los da ameaça de desaparecimento. Ao
narrá-los, o coronel está, portanto, repetindo o gesto
dos contadores, compelidos a exercer a memória em meio a uma
população que não dominava a escrita. O gesto de
preservação, contudo é duplo: preservando a
oralidade, o narrador preserva sua própria figura de coronel
em vias de desaparição como as estórias que
conta.
O paralelo aqui com os autores francófonos do Caribe, como
Patrick Chamoiseaux (prêmio Goncourt 1992 com a obra
Texaco), se faz necessário. Como conferir identidade
à literatura da Martinica ou do Haiti onde os autores,
familiarizados com a língua e a cultura crioulas, delas se
afastam quando, na escola, entram em contato com a língua e a
cultura francesas? Como elaborar a síntese entre a cultura
vernacular crioula (oral) e a cultura francesa adquirida (escrita)?
Este trabalho vem se realizando pelo empenho dos autores caribenhos
contemporâneos em assegurar, em seus textos, a continuidade com
o oral, em enriquecer-se com as estórias dos últimos
conteurs que tiveram, nos primeiros tempos da
escravidão, de reinventar o mundo a partir de vestígios
(trace) de memórias diversas. Desta forma, o escritor
sente-se "herdeiro do mundo crioulo", tentando preservar a
oralidade através de uma vasta síntese, tentando
imobilizar, através da escritura, "a palavra da noite",
como eles costumam dizer por ter sido preservada durante as
vigílias noturnas, único momento em que os escravos
ficavam livres do domínio de seus senhores.
JCC adota postura semelhante ao ficar atento aos diferentes saberes
populares, sobretudo os de sua cidade natal, Campos (RJ), como os
relativos ao ururau, "animal fantástico devorador de
notívagos e de libidinosos, além de
função policial nos bandos fora de horas lícitas
e normais. Até certo ponto, o ururau campista é um
guardião da moral coletiva".[9]
A parte da narração relativa ao ururau é feita
nos moldes descritos por Irlemar Chiampi para caracterizar o Realismo
Maravilhoso: o autor organiza o elemento maravilhoso - a
descrição minuciosa do ururau (cauda de jacaré,
escama de cobra, força de cavalo e olho sugador de gente) - a
partir de um suporte realista, ou seja, um jantar na casa do major.
Pelos diálogos irônicos e debochados do coronel, o
maravilhoso é naturalizado, suspendendo-se a dúvida
sobre o insólito do narrado. Como em todos os episódios
em que Ponciano pretende enfrentar os seres sobrenaturais, no caso do
ururau também sobrevêm incidentes que despistam o
confronto, mas conferem ao coronel os méritos da coragem que
manifestou em enfrentá-lo.
Sem dúvida, entre os relatos maravilhosos feitos pelo coronel
o que tem maior efeito de encantamento, característico do
maravilhoso (em oposição ao fantástico que
produz efeito de medo e estranhamento), é o da sereia.
Lança mão aqui de mito recorrente nas mais
célebres epopéias da Antigüidade para
reenunciá-lo ao sabor americano, em relato repleto de erotismo
e sensualidade. Pensando tratar-se de um ururau, Ponciano toma a
espingarda, quando percebe que está diante de "uma
peça escamosa" que "deu de roçar a vassoura da
minha barba que boiava na frente do queixo sem leme e sem
governo" (O coronel..., p.105)
Ele mesmo se dá conta do efeito do maravilhoso, pois utiliza
repetidas vezes expressões como: "encantamento",
"encanto", "Ponciano está encantado", "o povo
encantado das águas", chegando a referir-se à
sereia como "a encantada". Podem ser associados
"encantamento", os seguintes sentidos: sortilégio,
magia, maravilha, sedução. Estando o personagem
solitário, por ter sido preterido por pelo menos duas
candidatas à noiva, deixa-se seduzir e envolver pela
"moça do mar".
Segundo Câmara Cascudo, este mito made in Europa,
assimila-se na América às
"superstições das águas do mar e dos
rios" (Dicionário, p.707), sendo às vezes
traduzido por Iara (senhora das Águas).
Aqui também, à semelhança do que ocorreu no
relato do ururau, o sobrenatural é naturalizado, na medida em
que a sereia diz ao coronel que o deseja para marido: "Por que
não toma o coronel estado comigo?" Assim, o efeito de
encantamento (percepção metonímica do
natural/sobrenatural) é inserido na narrativa irônica e
bem humorada do coronel, de maneira não
contraditória.
Irlemar Chiampi afirma que o Realismo Maravilhoso "coloca o
encantamento como efeito discursivo pertinente à
interpretação não-antitética dos
componentes diegéticos. O insólito, em óptica
racional, deixa de ser o "outro lado", o desconhecido, para
incorporar-se ao real: a maravilha é(está) (n)a
realidade".[10]
Por isso o narrador não se desconcerta diante do sobrenatural,
dizendo apenas ter fingido espanto e que não se deixaria levar
pela sereia para as "profundas das águas verdes".
Ir ao encontro deste mundo maravilhoso brasileiro (e americano)
corresponde a (re)valorizá-lo, aderindo às
explicações de mundo que ele contém. Relembrando
os ensinamentos de Pierre Mabille, poderíamos dizer que
"nos contos e nas canções que formam o
domínio do folclore, encontramos, associadas às
aspirações da humanidade, os conhecimentos que se
estabeleceram e se superpuseram pouco a pouco durante
séculos".[11]
O coronel e o lobisomem
O lobisomem é anunciado no romance desde os
primeiros capítulos, mas será somente a partir do
capítulo 7 que ele assume papel destacado no relato. Como
sabemos, a simbologia do número 7 é extraordinariamente
rica, não cabendo aqui recordá-la. Diremos apenas que 7
é o número do fim cíclico e de seu
recomeçar, indicando a passagem do conhecido ao desconhecido:
um ciclo se completa, qual será o
próximo?[12]
Segundo o mito, o filho do sexo masculino que nasce após uma
série de sete filhas, torna-se lobisomem. As
sextas-feiras, à meia-noite, principalmente em noite de lua
cheia, ao transformar-se em lobisomem, o penitente tem que visitar 7
cemitérios, 7 outeiros, 7 encruzilhadas, etc...
O capítulo inicia recorrendo a uma noção
corrente entre o povo de que agosto é o mês do desgosto:
"Veio então agosto e com esse mês de desgosto o caso
do lobisomem" (O coronel, p.139). Como referimos
anteriormente, também no início desta narrativa,
há a menção ao vento: "São Bartolomeu
abriu seu saco de ventos em cima dos ermos" (O coronel,
p.139).
E interessante mencionar que o mito do lobisomem é universal,
registrado desde Heródoto. Da Grécia (licantropia =
lobo-homem), chega a Portugal de onde se espalha para o continente
americano. Mistura de lobo e homem, na base desta infeliz criatura
está a dualidade: como homem é magro e macilento
(penitente), como lobo é forte e agressivo. Segundo
Câmara Cascudo, o lobisomem é o mais popular dos animais
fabulosos "com a maior área geográfica de
influência e crédito tradicional"
(Dicionário, p.441).
Lobisomem designa, pois, pessoa que tem a faculdade de se
transformar em lobo. Segundo Rolan Villeneuve, "o lobisomem
origina-se na Antigüidade e, inicialmente, nada mais é do
que um dos avatares da metamorfose dos
deuses". [13]
A natureza híbrida e o papel da metamorfose ou
transformação por que passa aquele que carrega o fado,
leva-nos a construir a hipótese de que a
utilização do lobisomem como tema literário no
Brasil e na América Latina pode estar simbolizando o
caráter híbrido e em constante metamorfose do
continente americano.
O narrador de O coronel e o lobisomem refere-se ao lobisomem
como "encantação" e, para demonstrar seu saber
jurídico, acrescenta "encantação de grande
jurisprudência". A notação sobrenatural
é assim destituída não só pelo humor como
pela vinculação à crença popular segundo
a qual, após alguns anos de penitência, ou se houver
ferimento, pode quebrar-se a maldição:
"Na primeira gota de sangue a maldição desencantava, como é de lei e dos regulamentos dessa raça de penitentes" (O Coronel, p.179)
Em O reino deste mundo, de Alejo
Carpentier, as metamorfoses de Mackandal, "vinculadas à
prática mágica da religião vodu, são
'naturalizadas', ao adquirirem uma função
histórica e social de promessa de
libertação", como assinala Chiampi. Em O coronel
e o lobisomem, as metamorfoses do "enfeitiçado" são
associadas a uma penitência, portanto vinculadas à
religiosidade popular.
A exemplo de João Guimarães Rosa que utiliza dezenas de
vocábulos para nomear o demo, José Cândido de
Carvalho vale-se de toda a riqueza do falar popular para referir-se
ao lobisomem. Encapetado, enfeitiçado,
penitente, assombrado, penado,
sabidão, bichão, montão de
malvadez, cachorrão, abusado,
encantação são algumas das
denominações empregadas no texto, reproduzindo a
tendência popular que procura evitar a menção
direta à palavra de mau-agouro: lobisomem.
O mito do zumbi na literatura francófona
do Caribe
Se a Literatura Brasileira se apropriou da figura do lobisomem, nas
literaturas de língua francesa do Caribe (Martinica,
Guadeloupe e Haiti), os autores apropriam-se, com
freqüência, do mito do zumbi que, a exemplo do lobisomem,
constrói-se a partir da noção de
metamorfose.
Zumbi (do termo kongo nzambi, significando fantasma, revenant) 1. No Haiti, indivíduo a quem foi administrada uma droga que induz a um estado próximo ao da morte, e que um feiticeiro vodu exuma para colocá-lo a seu serviço. 2. Familiar: pessoa com ar ausente, amorfo.
O processo de zumbificação equivale
a uma condenação: existiria no Haiti o costume de
desenterrar as pessoas para transformá-las em zumbis que se
tornam escravos de quem os zumbifica. O zumbi, segundo Hurbon
[14],
é um indivíduo mantido em estado letárgico.
Após sua morte, é retirado do cemitério,
passando a trabalhar como um escravo para seu proprietário nos
campos de cana ou em outros trabalhos. Alguns relatos dão
conta de que às vezes pode ocorrer que saiam do estado
cataléptico e de total submissão a seus amos, que
voltem ao lugar onde estão suas tumbas, que escavem e
regressem definitivamente ao reino dos mortos. Pode-se acreditar que
os zumbis sejam almas penadas, ou seja, aqueles que voltam da morte,
ou que sejam apenas doentes mentais que o imaginário popular,
em uma sociedade de cultura predominantemente oral, toma por
zumbis.
A interpretação literária de Maximilien
Laroche[15]
remete aos zumbis como personagens reduzidos ao estado de escravos.
"Diz-se morto-vivo e isso indica a posição ontológica do personagem que oscila entre a vida e a morte, que se encontra, em consequência, em uma verdadeira terra-de-ninguém onde não se sabe mais se é um ser vivo, logo uma pessoa de direito, ou um morto, logo uma não pessoa, um puro e simples objeto".
Na verdade, Laroche vê no mito de zumbi a
representação concreta do paradoxo da
situação dos haitianos: o zumbi é um morto que
vive e é utilizado como força de trabalho, isto
é, explorado, mais ou menos como os haitianos se sentem, tendo
conquistado sua independência em 1804, mas tendo continuado em
situação de dominados e subdesenvolvidos.
Vários romances haitianos contemporâneos como
Hadriana dans tous mes rêves (1988), de
René Depestre, Zombi blues (1996), de Stanley
Péan e Pays sans chapeau (1996) de Dany
Laferrière, reutilizam este velho mito inserindo-o em sua
produção literária. Vejamos de que modo a figura
do zumbi é utilizada no corpus haitiano e posteriormente, em
que medida podemos aproximá-la da inserção da
figura do lobisomem - ambos os mitos regidos pela metamorfose - na
Literatura Brasileira.
Em Hadriana dans tous mes rêves, de René
Depestre, poeta, ficcionista e ensaísta haitiano, radicado
atualmente no sul da França, reutiliza a figura do zumbi.
É a própria heroína, Hadriana, que cai morta no
dia de seu casamento; é enterrada em grande pompa e ressuscita
sob a forma de zumbi, uma das formas míticas do destino dos
haitianos.
"Em torno deste tema ligado aos mitos da escravidão e da colonização, símbolo da ambigüidade do real maravilhoso nas culturas do Caribe, o humor e a imaginação do contista se soltam para iluminar a vivência haitiana em sua fantasia, sua sensualidade, seu surrealismo, sua desordem sempre alucinante..." [16]
O romance estrutura-se em três movimentos: o
primeiro narra o episódio do casamento, a morte e a
"evaporação" de Adriana Siloé; o segundo,
corresponde a uma espécie de ensaio, corpo estranho no
interior do romance, onde o autor desenvolve uma série de
proposições relativas ao processo de
zumbificação; o terceiro e último retoma a
narrativa dos fatos transcorridos no primeiro movimento, agora a
partir do ponto de vista da morta transformada em zumbi
(Hadriana).
Temos aqui uma obra que apresenta diferentes níveis de
hibridação:
No capítulo ironicamente intitulado "Prolegômenos a um ensaio sem amanhã", o autor estende a condição de zumbi, logo de morto-vivo,a todo o país, o Haiti:
"Mon pays ne serait-il pas un zombi collectif?" (Hadriana, p.125)
Entre as nove proposições que
constituem sua tentativa de compreender o fenômeno da
zumbificação e que interrompem o fluxo da narrativa,
pois constituem o segundo movimento do romance, encontram-se
tentativas de apontar as raízes deste pensamento
mágico, na própria Europa, desfazendo assim o
estereótipo que associa feitiçaria e primitivismo como
características de negros oriundos da África. Assim,
Depestre aponta a presença de magia e feitiçaria na
corte de Henrique IV, bem como em outros países da Europa, da
Ásia, do Japão, enfim de quase todo o planeta.
A estes feiticeiros das diferentes partes do globo, foi sempre
atribuído o poder de metamorfosear seus adversários em
animais (lobisomem, borboleta, lagarto, etc.) com a finalidade de
apoderar-se de sua força vital. Com isto, os ditos feiticeiros
aumentavam sua influência na sociedade.
O destino do zumbi (de quem é retirada a alma, "petit bon
ange"), corresponderia, em escala mítica, ao dos africanos
deportados para as Américas como escravos. Desta forma, a
"noção de zumbi seria uma das armadilhas da
história colonial", na medida em que os escravos teriam
interiorizado, a ponto de transformá-la em mito, a
condição de morto-vivo a que fica relegado o ser humano
submetido à escravidão.
O mito do zumbi estaria também a simbolizar, segundo Depestre,
os processos de reificação do homem, sob regimes
políticos injustos. Zumbi corresponderia a uma espécie
de subnegro em uma sociedade com fraco coeficiente de direito e de
liberdade.
Pays sans chapeau (1996), de Dany Laferrière, é
a narrativa de um "retorno ao país natal",
temática recorrente entre os autores caribenhos e
latino-americanos em geral. O narrador, após de 20 anos em
Montréal, empreende a volta ao Haiti e passa a
descrevê-lo com os olhos novos de quem chega, após vinte
anos de exílio, durante os quais compôs uma visão
imaginada do país. Assim, se alternam capítulos
intitulados "pays réel" e "pays revé".
Nos primeiros, o autor, a exemplo dos pintores primitivos do Haiti,
propõe-se a pintar o "país real" que vai
observando. Nos capítulos intitulados "país
sonhado", tenta penetrar no imaginário mítico
haitiano, buscando através dos relatos da mãe, da tia e
de amigos, reencontrar a origem do pensamento mágico que criou
o mito do zumbi.
Já de início, anuncia que os capítulos
terão como epígrafe provérbios haitianos que
aparecem em crioulo, com a transcrição literal em
francês, revelando a intenção de
valorização da sabedoria popular e da "fértil
criatividade lingüística dos haitianos".
O projeto principal contudo é o de tentar desvelar o "au
delà" - o além, o país sem chapéu,
assim denominado porque jamais alguém foi enterrado com seu
chapéu. Para tanto, marca uma entrevista com um professor de
etnologia para obter informações sobre o
"exército de zumbis" de que ouvira falar. O professor
relata o estranho fato ocorrido no norte do país onde houve
uma revolta de zumbis; o fato é tanto mais estranho na medida
em que todos sabem, no Haiti, que zumbis não têm vontade
própria e que, portanto, não se revoltam.
O narrador empreende toda uma enquete no sentido de aproximar-se e de
apropriar-se do mito do zumbi, porém o que ocorre é que
as pessoas que interroga acreditam no mito. Impregnados do mito,
dão ao narrador recém-chegado respostas que não
chegam a convencê-lo porque são alicerçadas na
crença e não em explicações racionais.
Finalmente, recebe uma proposição de ultrapassar a
fronteira que separa o mundo dos vivos e o dos mortos para visitar o
"pays sans chapeau", acompanhando Lucrèce, personagem
que possui o poder de viver nos dois mundos.
Com seus informantes, o narrador acaba compreendendo que, enquanto os
Ocidentais praticam a Ciência diurna, que chamam simplesmente
de Ciência, os haitianos praticam a Ciência noturna, que
os Ocidentais chamam de superstição.
A proposta de ultrapassagem das barreiras para chegar ao au
delà é enfim aceita pelo narrador que , em seu
sonho, atravessa a fronteira que separa o mundo real do
"outro" mundo, acompanhado de Lucrèce que, de repente,
transforma-se em Legba (Exu), o que abre os caminhos. Penetram em um
mundo onde não há noite: há sempre luz. Outros
orixás vão surgindo como Erzulie (Iemanjá) e
Ogum. Após o passeio pelo país "sonhado", o
narrador retorna ao país "real" para constatar que
não há diferenças entre ambos.
Naturalizando o sobrenatural, o narrador que havia assumido desde o
princípio da narrativa a identidade de pintor primitivo
(naif), conclui que o que um escritor "pinta", isto é,
descreve, é o país sonhado (imaginado) e, quanto ao
país real, afirma que não há necessidade de
sonhá-lo, pois que ele se impõe. Desfazem-se nas
últimas páginas do romance as barreiras entre
país real/país imaginado; mundo real/outro mundo;
ciência/superstição; natural/sobrenatural;
racionalidade/magia em uma capítulo estrategicamente
intitulado "país real/país sonhado". Assim, a
narrativa de um retorno ao país natal, iniciada na dupla
perspectiva do reencontro com o "pays réel" e com o
"pays rêvé", encerra-se com a fusão de
ambos, coincidindo com o que o escritor haitiano da década de
60, Jacques-Stephen Alexis, havia proposto como
definição do maravilhoso:
"imagerie dans laquelle le peuple enveloppe son expérience et reflète sa conception du monde, sa confiance en l'homme et l'explication qu'il donne aux obstacles du progrès" (Alexis, 1970, p. 50)
Conclusões
Na origem do zumbi e do lobisomem está a
metamorfose. Na mitologia grega, eram os deuses que possuíam a
capacidade de metamorfosear-se para fins de punição,
ciúme ou sedução. Já na
Renascença, a acusação de que determinado
indivíduo possuía a faculdade de transformar-se em
outro, constituía motivo de condenação pela
Inquisição. Na verdade, estes monstros em que se
transformam os seres que estão sob o fado, representam a
violência, o estranho, em suma, os medos do ser humano. De onde
o empenho em eliminar (a onça, o zumbi, o lobisomem), pois a
sua eliminação corresponde ao reestabelecimento da
harmonia e da ordem originais. Expressando a ambigüidade humana,
estes seres híbridos constituem-se em bodes expiatórios
da comunidade que - ao eliminá-los - exorciza os seus medos
perante o estranho e o desconhecido.
No folclore brasileiro, Sílvio Romero funde o zumbi com o
lobisomem sergipano provavelmente devido a esta característica
comum, a metamorfose.
Ambos os mitos povoam o imaginário de escritores que, no
Brasil e no Caribe, em tempos de pós-modernidade, os
reutilizam em seus textos, instaurando - através destes
recursos insólitos - um salutar contraponto
dialógico.
Procedimentos de reutilização de vestígios
culturais (trace) em circulação na
tradição popular, de reutilização
portanto do menor (no sentido de Scarpetta) em montagem
maior (formas literárias canonizadas como o romance),
constituem-se em pólos de convergência entre as
literaturas das Américas.
Foi intenção deste estudo demonstrar que os
dispositivos de apropriação de materiais
díspares se efetuam de modo que os diferentes aportes se
intervalorizem numa ordenação nova, porém
respeitosa do Diverso. Sem visar à
homogeneização, que anula ou minimiza a
Diferença, a escritura praticada pelos autores analisados
preserva a alteridade, oportunizando o trânsito entre duas
lógicas que interagem sem se antagonizar.
O que os autores visam não é a construção
de uma escritura pasteurizada e previsível, ou a
inscrição de formas e sentidos populares pelo mero
gosto de produzir efeitos de exotismo. Creio que no bojo de seu
projeto de escritura está a elaboração de uma
identidade americana crioulizada ou híbrida, alicerçada
no reconhecimento do outro e estruturada com base na
não-hierarquização das diferenças.
Assim, nos romances do Brasil e do Caribe que acabamos de aproximar,
duas lógicas ou duas visões do mundo (racionalidade x
magia; logos x mitos) são apresentadas de forma
não-contraditória, abalando certezas e preferindo
proporcionar ao leitor "efeitos de verdade", uma vez que
não existe uma forma única de explicar e compreender as
Américas.
Referências
bibliográficas:
Corpus:
[1] BOSI, A. "Céu, inferno". In Graciliano Ramos. São Paulo: Ática, 1987. p.75-82.
[2]
GARBUGLIO, J.C. "A tradição do isolamento". In
Graciliano Ramos. São Paulo: Ática, 1987.
p.366-385.
[3] Chiampi,
Irlemar. "Le roman latino-américain du post-boom". In Moser,
W. Et alii, org. Recyclages: économies de l'appropriation
culturelle. Montreal: Balzac, 1996. P. 293-306. (Collection
l'Univers des Discours)
[4] CANCLINI,
Garcia. Las culturas hibridas: estrategias para entrar y salir de
la modernidad. México: Grijalbo, 1990.
[5] MIYASAKI,
T.Y. "Um tema em três tempos". Revista de Letras, Univ.
Estadual Paulista, v. 28, 1988. P. 27-35.
[6] DACANAL, J.
H. "As contradições do coronel". In Nova narrativa
épica no Brasil. Porto Alegre: IEL/Sulina, 1973.p.
110-124.
[7] Cf. CHIAMPI,
I. O realismo maravilhoso, São Paulo: Perspectiva,
1980.
[8] Miyazaki, op
cit. p.32
[9] CÂMARA
CASCUDO, L. da. Dicionário do folclore brasileiro. Rio
de Janeiro:Itatiaia, 1993.p 778.
[10] CHIAMPI, I.
Op.cit. p.59
[11] MABILLE,
P. Le miroir du merveilleux. Paris: Minuit, 1962. p.37.
[12]
CHEVALIER & GHEERBRANT. Dictionnaire des symboles. Paris:
Seghers, 1974.
[13]
VILLENEUVE, R. Loups-garous et vampires (Les amants de la
mort). Paris: Bordas, s.d.p.37
[14] HURBON,
L. El barbaro imaginario. Mexico: Fondo de cultura
económica, 1993 (edição francesa de 1987)
[15] LAROCHE,
M. "Le mythe du zombi: nouvelle interprétation". In
Tradution et modernité dans les littératures
francophones d'Afrique et d'Amérique. Quebec: GRELCA/Univ.
Laval, 1988.
[16]
Texto extraído da quarta capa da edição
Gallimard de 1988.