BAKHTIN: A REVOLUÇÃO DA TEORIA*
Paulo Azevedo Bezerra
Universidade do Estado de São Paulo - USP
Resumo.
Este estudo traz uma breve abordagem da presença de Bakhtin no Brasil, expõe os motivos que levaram o tradutor a modificar alguns conceitos da primeira edição de Problemas da poética de Dostoiévski e tece considerações sobre o sistema categorial do pensamento bakhtiniano. Aborda algumas incompreensões do pensamento bakhtiniano entre nós, a importância de Bakhtin para a a atualidade e, também, alguns absurdos cometidos na aplicação apressada desse pensamento à nossa atualidade literária.
Resumée
Étude de quelques questiones fondamentales sur tradutcion de livre Problèmes de le poétique de Dostoiévski, de la pensée bakhtinianne au Brésil et de la contribution de cet auteur pour une compréhension plus ample des thémes essentielles de la littérature et de la actualité.
Obzór
Analiz trúdnosti perevoda osnovnikh kategórii bakhtínskoi misli v knige "Problemi poetiki Dostpoievskovo", náchevo rechéniya étikh trúdnostei a takje vospriyatii idei Bakhtina v Brazili. Ótcherk rassmatrivaet nékorie nedorazumenii i daje absurdi v ponimanii bakhtinskoi misli u nas, pokazivaet vaznost idei Bakhtina dlya ponimaniya vajnéichikh problem sobremnnoi literaturi e sovreménnovo mira.
Para a segunda edição de Problemas da poética de Dostoiévski, achamos indispensável proceder a uma cuidadosa revisão da primeira edição a fim de corrigir algumas imprecisões ali observadas e tornar o texto conceitualmente mais preciso e mais claro, contribuindo, assim, para uma melhor apreensão das reflexões teóricas de Bakhtin pelo leitor brasileiro. Uma reflexão teórica com o nível de profundidade e abrangência e construída com o rigor conceitual como o faz Bakhtin tem de encontrar no tradutor a consciência e a responsabilidade de produzir, em sua língua, um texto calcado numa linguagem qualitativamente à altura do objeto traduzido. É o mínimo que se exige de um tradutor, e foi essa a nossa preocupação ao rever o texto inicial deste livro, após duas décadas de estudo permanente da obra bakhtiniana e quinze anos após a sua primeira edição no Brasil.
Na primeira edição havíamos traduzido o termo russo siujét por tema. Embora em certos casos se possa traduzi-lo assim, nesta revisão resolvemos substituir tema por enredo sempre que aparecia siujét, pois se trata do processo de construção da narrativa e, neste caso, o termo enredo é o mais adequado. Por essa razão o título do IV Capítulo, que na primeira edição saíra como "Propriedades do Gênero e Temático-Composicionais das Obras de Dostoiévski", foi substituído por "Peculiaridades do Gênero, do Enredo e da Composição das Obras de Dostoiévski". Nesse mesmo capítulo, onde Bakhtin lança a sua teoria do carnaval e da carnavalização, aparece como elemento dessa teoria o gênero do cômico-sério. Embora assim consagrado na história da crítica literária, a reflexão de Bakhtin deixa patente que não é o cômico que se torna sério mas o contrário: na história da cultura, particularmente no clima que envolve o riso ou momentos carnavalescos, os símbolos elevados, oficiais e sérios são destronados do seu pedestal, postos em contigüidade com manifestações e símbolos culturais populares e, uma vez desfeita a distância que antes os separava desse outro universo, tornam-se cômicos. Logo, é o sério que se torna cômico. Por essa razão substituímos cômico-sério por sério-cômico, como, aliás, está grafado em russo. Ainda procedemos a outra modificação conceitual. O conceito smislováya pozítsiya ávtora, que na primeira edição havíamos traduzido como posição interpretativa do autor, foi substituído por posição semântica porque, mesmo estando implícito o componente interpretativo, o termo smisl (sentido) está mais diretamente vinculado à semântica e, em se tratando do autor, à produção de sentidos característica do método polifônico. Aplicamos idêntico tratamento ao conceito smislováya orientátsiya, que traduzimos como orientação semântica para substituir o conceito orientação interpretativa empregado na primeira edição. No quinto capítulo, p. 174 da primeira edição, havíamos incorporado pouco mais de uma página da tradução brasileira do texto de Bakhtin, feita do inglês, pois naquela ocasião faltavam duas páginas na xerox do texto original russo de onde traduzíamos. Nesta edição restauramos o texto bakhtiniano na sua forma integral. Houve outras pequenas modificações conceituais, todas justificadas em notas de rodapé. Efetuamos outras modificações na ordem sintática com o fim de tornar mais claro o discurso bakhtiniano.
Esta segunda edição já
encontra o nome de Bakhtin amplamente consagrado no meio
universitário brasileiro graças à
publicação de outras obras fundamentais como
Marxismo e filosofia da linguagem (já em quarta
edição), A cultura popular na Idade Média e
no Renascimento: o contexto de François Rabelais
(já em segunda edição), Questões
de literatura e estética (em segunda
edição), todos editados pela Hucitec, São Paulo,
e A estética da criação verbal, Martins
Fontes. Paralelamente, a obra de Bakhtin foi objeto de estudo em
vários livros, como Saudades do carnaval, de
José Guilherme Merquior (Ed. Forense, 1972), Uma
introdução a Bakhtin, de Carlos Alberto Faraco,
Cristóvão Tezza, Elizabeth Brait, Luís Roncari e
Rosse Marye Bernardi (Ed. Hatier, Joinvile, 1988),
Turbilhão e semente, de Bóris Schnaiderman (Duas
Cidades, 1983), livro que reúne artigos pioneiros na
interpretação dos temas mais complexos da obra
bakhtiniana entre nós. Publicados em diferentes momentos, em
vários jornais e revistas, os artigos foram reelaborados por
mestre Bóris, que os repensou em profundidade e lhes deu um
novo tratamento consentâneo com as preocupações
que o foram invadindo à medida que ele se embrenhava mais
fundo na obra bakhtiniana. Há vários outros livros
sobre Bakhtin ou que tentam aplicar as suas concepções
teóricas. Além desses estudos, já se produziu um
grande número de dissertações e teses
acadêmicas que se baseiam nas teorias bakhtinianas para estudar
aspectos da literatura e outras áreas da cultura brasileira
até então negligenciados, as reflexões
teóricas de Bakhtin encontram hoje ampla
aplicação nos cursos de lingüística (como o
demonstrou o "Seminário Internacional" dedicado ao
centenário de nascimento de Bakhtin, realizado na USP em
novembro de 1995), antropologia, filosofia e história. Este
prefaciador, que fez a primeira tradução de Bakhtin
diretamente do russo no Brasil, vem estudando de forma
sistemática o acervo teórico bakhtiniano e já
ministrou vários cursos de pós-graduação
e seminários, proferiu conferências, publicou artigos e
produziu uma dissertação de mestrado -
Carnavalização e história em
Incidente em Antares - uma tese de doutorado -
A Gênese do Romance na Teoria de Mikhail Bakhtin - uma
tese de Livre-Docência Bobók:
Polêmica e Dialogismo - USP, 1997 - e
atualmente orienta três pesquisas de mestrado fundadas no
escopo teórico bakhtiniano e desenvolve estudo comparado de
Dostoievski e Machado de Assis apoiado na teoria bakhtiniana do
discurso polifônico. Bakhtin é hoje estudado em
praticamente todos os cursos de pós-graduação em
literatura brasileira, teoria da literatura e lingüística
e em outros cursos congêneres de história, antropologia
e filosofia, o que torna seus livros bibliografia obrigatória
na nossa vida acadêmica.
Problemas da poética de
Dostoiévski (1929) revela um autor que se
caracteriza pelo mais absoluto destemor teórico, fato que se
manifesta de imediato na maneira ousada e inusitada com que Bakhtin
discute a função do autor na obra dostoievskiana.
Desenvolvida em tom polêmico franco ou velado (não
é por acaso que o primeiro capítulo traz um amplo
levantamento do que a crítica produziu de mais importante
sobre Dostoiévski), sua abordagem desconcerta o leitor de
formação teórica mais ou menos tradicional pela
absoluta novidade que ele traz ao relativizar, até certo
ponto, a posição do autor no romance polifônico
criado por Dostoiévski. Parte ele da hipótese segundo a
qual as personagens de Dostoiévski revelam uma notória
independência interior em relação ao autor na
estrutura do romance, independência essa que, em certos
momentos, permite-lhes até rebelar-se contra seu criador. Cabe
observar, porém, que se trata mais de uma independência
em face de definições exteriorizantes e conclusivas que
não levariam em conta a interioridade das personagens e suas
individualidades enquanto sujeitos dotados de consciências
diversas, procurariam resolver tudo no âmbito de uma
única consciência - a do autor - e tornariam essas
personagens simples marionetes e objeto cego da ação do
autor, carentes de iniciativa própria no plano da linguagem,
surdas a vozes que não fossem mera irradiação da
voz e da consciência do autor. Ora, Bakhtin mostra com plena
clareza que a representação das personagens em
Dostoiévski é, acima de tudo, a
representação de consciências, que não se
trata da consciência de um eu único e indiviso,
mas da interação de muitas consciências, de
consciências isônomas e plenivalentes que dialogam entre
si, interagem, preenchem com suas vozes as lacunas e evasivas
deixadas por seus interlocutores, mantêm-se imiscíveis
enquanto consciências individuais que não se
objetificam, isto é, não se tornam objeto dos discursos
dos outros falantes nem do próprio autor e produzem o que ele
chama de grande diálogo do romance. Ele efetivamente admite
liberdade e independência das personagens em
relação ao autor na obra dostoievskiana, mas deixa
claro que, sendo dialógica a totalidade no romance
dostoievskiano, o autor também participa do diálogo mas
é ao mesmo tempo o seu organizador. Portanto, por maiores que
sejam a liberdade e a independência das personagens,
serão sempre relativas e nunca se situam fora do plano do
autor, que as promove como estratégia de
construção dos seus romances, onde as vozes
múltiplas dão o tom de toda a sua
arquitetônica. Porque, segundo Bakhtin, Dostoiévski
não cria escravos mudos (como Zeus) mas pessoas livres,
capazes de colocar-se lado a lado com seu criador, de discordar dele
e até de rebelar-se contra ele. Bem mais tarde, em um texto
sintomaticamente denominado "Para uma reelaboração de
Problemas da poética de Dostoiévski" (1963),
Bakhtin compara o autor a Prometeu e diz que ele cria, ou melhor,
recria (sic!) seres vivos com os quais vem a encontrar-se em
isonomia. Não pode concluí-los, pois descobriu o que
difere o indivíduo de tudo o que não é
indivíduo. Este está imune ao poder do existir. Nessa
visão filosófica de Bakhtin, Dostoiévski
não conclui as suas personagens porque estas são
inconcluíveis enquanto indivíduos imunes ao efeito
redutor e modelador das leis da existência imediata. Esta se
fecha em dado momento, ao passo que o homem avança sempre e
está sempre aberto a mudanças decorrentes da sua
condição de estar no mundo enquanto agente, enquanto
sujeito. E como o homem-personagem é produto de discurso,
está aberto igualmente em termos de discurso, aberto como
falante em diálogo com outros falantes e com o seu criador.
Trata-se do procedimento natural de construção do
universo polifônico do romance, no qual tanto o discurso do
herói quanto o discurso sobre o herói derivam do
tratamento dialógico que se assenta numa posição
de abertura em face de si mesmo e do outro, deixando a este liberdade
suficiente para se manifestar como sujeito articulador do seu
próprio discurso, veículo da sua consciência
individual. Porque, como entende Bakhtin no referido projeto de
reformulação de Problemas da poética de
Dostoiévski, o seu enfoque dialógico e
polifônico recai sobre personagens-indivíduos que
resistem ao conhecimento objetificante e só se revelam na
forma livre do diálogo tu-eu. Aqui o autor
participa do diálogo, em isonomia com as personagens, mas
exerce funções complementares muito complexas, uma
espécie de correia de transmissão entre o
diálogo ideal da obra e o diálogo real da realidade.
Portanto, Bakhtin reitera a presença indispensável do
autor na construção do objeto estético e sua
posição especialíssima na arquitetônica do
romance especificamente polifônico.
Dostoiévski conhece a fundo a alma humana,
sabe que o universo humano é constituído de seres cuja
característica mais marcante é a diversidade de
personalidades, pontos de vista, posições
ideológicas, religiosas, anti-religiosas, nobreza, vilania,
gostos, manias, taras, franquezas, excentricidades, brandura,
violência, timidez, exibicionismo, enfim, sabe que o ser humano
é esse amálgama de vicissitudes que o tornam
irredutível a definições exatas. Sua
visão realista o faz nutrir um respeito profundo e irrestrito
a essas vicissitudes, perceber o ser humano como unidade do diverso
sobre a qual é impossível dizer uma palavra
última e conclusiva. Porque, ao partir de uma
concepção profunda da multiplicidade
caracterológica e da natureza dialógica da vida social
e do homem social, Dostoiévski aguça ao máximo o
seu ouvido e ausculta essa vida social como um grande diálogo
inconcluível, por ser um diálogo que as
instâncias falantes, representativas dessa vida social em
formação, travam com um sentido polifônico
em processo de formação. A imagem realista que ele
constrói do universo e dessa vida social é
profundamente elástica e não pode esgotar-se numa
avaliação previamente conclusiva do autor, sob pena de
perder sua pluridimensionalidade estética e pôr em xeque
o princípio dinâmico e pluralista do método
polifônico. Por isso Bakhtin entende que os momentos
concludentes, uma vez conscientizados pelo próprio homem,
inserem-se na cadeia da sua consciência, tornando-se
autodefinições passageiras e perdendo sua força
concludente. As palavras concludentes estariam fora do todo
dialógico, coisificariam e humilhariam o ser humano enquanto
indivíduo, razão por que se faz necessário
escutá-lo, deixá-lo falar, provocá-lo
socraticamente para que externe em discurso e como discurso a sua
visão de mundo. Tudo isso Dostoiévski incorpora ao seu
método polifônico de construção romanesca
e, enquanto autor, seu discurso não pode abranger plenamente,
fechar e concluir de fora o herói em detrimento da vida
interior, da sua individualidade, pois isso acarretaria sua
transformação em objeto mudo do discurso do autor,
privando-o da da sua seiva que é o discurso auto-revelador e
da condição de agente autêntico da sua
própria palavra-consciência. Daí a necessidade
natural de dialogar com o herói partindo de dentro do contexto
polifônico, pois essa orientação dialógica
e co-participante leva a sério a palavra do outro como
posição racional e ponto de vista desse outro. Por isso
o diálogo do autor com o herói é, no romance
polifônico de Dostoiévski, um procedimento de
construção das personagens e, ao mesmo tempo, a
afirmação da presença não ostensiva
porém eficaz do autor nesse processo. Portanto, sem ferir
jamais a integridade da personagem como constituinte do arranjo
polifônico, o polifonismo de Dostoiévski tampouco apaga
ou neutraliza a presença do autor e sua
concepção ativa no conjunto romanesco, conseguindo, ao
contrário, criar condição efetivamente nova e
original de materialização dessa presença e
dessa concepção na estrutura do diálogo
polifônico.
Cabe ressaltar, ainda, que Bakhtin desenvolve o
tema do autor como fenômeno estético, e neste sentido
reveste-se de importância primordial seu conceito de imagem do
autor como uma das muitas imagens da obra que um autor real criou
pelos mesmos mecanismos de que se valeu para criar as outras imagens.
Tal imagem pode assumir características variadíssimas
em função das modalidades de narrador, mas em qualquer
dessas modalidades ela será sempre uma imagem
construída à semelhança das outras, e nela o
autor se apresenta como sujeito que veicula o processo criador e ao
mesmo tempo representa a si mesmo. Portanto, visto como
fenômeno estético, o tema do autor em Bakhtin é
inseparável da imagem do autor.
Ao compararmos o ensaio "O autor e o herói na atividade artística" (incluído no livro A estética da criação verbal) , escrito por volta de 1924, com Problemas da poética de Dostoiévski (1929), verificamos uma mudança de nuance no enfoque do autor que irá perdurar pelo resto da vida de Bakhtin. Se ali a consciência do autor é "a consciência da consciência, isto é, uma consciência que abrange a consciência do herói e seu mundo", se ali o autor não só vê e sabe tudo o que sabe cada herói em particular e todos os heróis em conjunto", se ali a consciência, o sentimento e o desejo de mundo do herói "estão envolvidos de todos os lados, como em um círculo, pela consciência concludente do autor", poderíamos ter a impressão de estarmos diante do tradicional enfoque monológico que conclui o herói de fora, sem lhe deixar alternativa enquanto indivíduo. Mas prossegue o raciocínio bakhtiniano:
Não só os heróis criados se separam do processo que os criou e começam a levar uma vida independente no mundo, como o mesmo ocorre com o seu real autor-criador. É nessa relação que cabe ressaltar a natureza criativamente produtiva do autor...
O tratamento da mesma questão em
Problemas da poética de Dostoiévski é
conceitualmente mais preciso, apresenta pequenas diferenças e
é definitivo em todo o pensamento bakhtiniano. É o que
constatamos ao lermos o referido texto de 1963 sobre a
reelaboração do livro sobre Dostoiévski, onde
Bakhtin reitera, apenas precisando melhor alguns conceitos, as
questões fundamentais levantadas no livro de 1929. Neste
sentido, podemos afirmar, sem qualquer receio, que Problemas da
poética de Dostoiévski é a chave para a
compreensão do conjunto da teoria bakhtiniana do romance,
incluindo-se aí o livro sobre Rabelais e as questões
fundamentais do discurso romanesco levantadas em Questões
de literatura e estética e A estética da
criação verbal. Cabe observar, ainda, que no
livro sobre Dostoiévski a metalingüística
já se esboça como método de análise do
discurso e hipótese de uma futura síntese da filologia
com a filosofia, que Bakhtin imaginava como disciplina humana nova e
específica capaz de reunir em contigüidade a
lingüística, a filosofia, a antropologia e a teoria da
literatura.
No Brasil já houve quem afirmasse haver
pouca sociologia em Bakhtin. Paciência! Felizmente Bakhtin
não é bíblia. Mas há quem consiga fazer
pior: incluir Bakhtin no besteirol pós-moderno, descobrindo em
sua obra coisitas originalíssimas e atuais como a morte do
autor. Um achado genial! Só falta fazer de sua obra letra de
samba-enredo. A propósito, no referido texto "O autor e o
herói na atividade estética", escrito quando o autor
ainda dava os primeiros passos no sentido da construção
de sua grande obra, lemos: "O autor-criador nos ajuda a entender
também o autor-homem, e já depois as suas
opiniões sobre a sua arte ganham significação
elucidativa e complementar". Como se vê, existe uma
relação direta entre a criação
artística e o ser humano enquanto essência criadora, uma
criando a outra, dando significação, elucidando e
complementando a outra. Logo, criação artística
e criação do homem se assemelham, o fenômeno
homem se apresenta como fonte do sentido artístico ou
estético, a unidade entre ser-estético e
"ser-físico" constitui a própria unidade
semântica e humanística da arte, uma espécie de
imagem dialética da criação: o artista produz
uma consciência nova, uma consciência outra, penetra
nessa consciência mas nela não se dissolve. Porque a
idéia central do pensamento de Bakhtin é a idéia
do outro, idéia da familiarização, do
entendimento, do diálogo. Neste sentido, sua estética
humanística pode ser sintetizada no par comunicativo
"eu-outro".
É ainda de Bakhtin a
afirmação segundo a qual o autor é o novo
sujeito da criação que substituiu os sacerdotes, os
profetas, os juízes, os pais patriarcais, etc., isto é,
só existindo o sujeito da criação é
possível transformar a coisa, o objeto, o mundo material em
discurso. Para ele o autor é um demiurgo, é o sujeito
que transforma a matéria bruta em discurso humanizado e assim
dá vida a novas criaturas que só conseguem humanizar-se
no ato da fala. A atividade desse demiurgo começa por
anteceder o processo criativo propriamente dito, e nessa atividade
pré- vão surgindo e se concatenando sentidos
estéticos inusitados. Conclui-se o processo com a
enformação da matéria coligida nessa atividade
pré-, concretizando em forma de diálogos e
discursos sempre abertos aqueles impulsos que se esboçaram nos
primeiros lampejos criativos desse demiurgo. Portanto, sendo a arte
semelhante à criação do próprio homem,
matar o autor-sujeito da criação equivaleria matar a
própria arte.
Bakhtin tem a sensibilidade
aguçadíssima para captar em cada palavra a
existência de uma segunda voz, o que o leva, em um plano mais
amplo e mais profundo, a perceber em cada obra de arte
literária elementos de estilização, de ironia,
de paródia, elementos esses que ele sintetiza no conceito de
discurso do outro. Ele ouve vozes de mundos e existências
inacabadas, vê o mundo como um processo em
formação e o homem como um ser em
formação, donde sua aversão a toda idéia
do dogmaticamente acabado, do monologicamente fechado, da
conclusão como ponto final. Sua concepção
é polifônica, para ele a polifonia é o discurso
do diálogo inacabado; não é possível
dizer tudo sobre uma época por mais que dela se saiba.
Daí a saída na polifonia, que é o discurso sobre
os problemas insolúveis no âmbito de uma época,
é o discurso da verdade dialética de uma realidade em
transformação e renovação. Por isso, faz
a sua catarse do mundo de Dostoiévski ao dizer que "no
mundo ainda não ocorreu nada definitivo, a última
palavra do mundo e sobre o mundo ainda não foi pronunciada, o
mundo é aberto e livre, tudo ainda está por vir e
sempre estará por vir".
Traduzidas para o nosso contexto atual, essas concepções filosóficas de Bakhtin são um suporte teórico fundamental para aqueles que não aceitam a nova (?) concepção monológica do mundo e o discurso autoritário e pretensamente indiviso produzido pelos arautos da globalização neoliberal e do chamado fim da história.
Este trabalho saiu inicialmente como
Prefácio à segunda edição de Problemas
da poética de Dostoiévski , Forense
Universitária, Rio de Janeiro, 1997. Para sua inclusão
na Revista Brasil de Literatura, fizemos algumas
alterações, poucas, apenas a título de
adição de alguns dados ausentes no prefácio
já publicado, sem modificar nenhuma das suas
características iniciais.
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