Ano II - 1999


 


 

Um livro clássico

 

Luis Filipe Ribeiro

São 329 páginas de texto, 163 títulos efetivamente citados, 4 partes e 11 capítulos. Esta contabilidade revela uma primeira aproximação com esta obra em tudo e por tudo importante. Ela aponta para um dos traços definidores de Psicologia da Arte, de Vigotski. Trata-se de um estudo teórico atado rigidamente às regras acadêmicas. Para tratar de seu assunto o autor percorre uma vastíssima bibliografia que o antecede nesse campo de problemas, discute-a e, só então, adianta suas hipóteses e propõe suas alternativas.
Este é um dos problemas para a sua leitura, hoje. Escrito entre 1924 e 1926, quando o autor deslizava dos 28 para os 30 anos de idade, Psicologia da Arte constitui-se num alentado ensaio de erudição. Sendo assim nenhuma concessão é feita ao leitor em termos de leveza de estilo ou elegância de linguagem. É uma obra dura. Onde se entende, não sem equívoco, a seriedade como uma forma de escrever que pressupõe do leitor conhecimento e leituras equivalentes às do autor. Leituras estas quase todas inacessíveis em nossa contemporaneidade. Pressupõe, ademais, que o trabalho científico não pode nem deve permitir-se um didatismo um pouco mais amplo que o acatado nos fechados portões da academia.
Mas, nada disso pode empanar a importância e a seriedade desta obra, consagrada por muitas décadas de referências e muitos anos de espera, entre nós, por uma tradução brasileira. Nesta edição da Martins Fontes, ela esteve a cargo de Paulo Bezerra, o que por si só é uma garantia de fidelidade à fonte, uma vez que é um dos raros tradutores, entre nós, que conhece a língua russa como se sua fora. A produção gráfica do trabalho é primorosa, havendo, entretanto dois sérios reparos a serem feitos. O primeiro diz respeito à manutenção da bibliografia no formato provavelmente do original, em que a ordem alfabética por autores, hoje universalizada, é abandonada a favor de um critério numérico que não se explica, nem ajuda as pesquisas. O outro é relativo à inexistência de um índice temático, algo inexplicável numa obra de erudição como esta, o que dificulta enormemente não só a leitura, como qualquer consulta dela derivada.
A obra está dividida em quatro partes ‹ "Metodologia do Problema", "Crítica", "Análise de Reação Estética" e "Psicologia da Arte" ‹ e, cada parte em capítulos, que somam onze no total. Isto revela um travejamento rigoroso no seu desenho e na sua execução.
A primeira parte ‹ "Metodologia do Problema" ‹ é composta por um único capítulo " O problema psicológico da arte", em que se discute e se desenha o campo específico da Psicologia da Arte, separando-a cuidadosamente da Sociologia da Arte. O que, como se verá, não é despido de conseqüências para o conjunto do livro.
A partir daí, em "Crítica", o autor vai resenhar os principais trabalhos já existentes, mapeando-os em três grandes vertentes que dão nome aos capítulos que a compõem: "A arte como conhecimento", "A arte como procedimento" e "Arte e Psicanálise". Nestes capítulos repassa, com impressionante erudição, os principais títulos que trataram, antes dele, os assuntos em estudo. Aponta-lhes as falhas e limitações, não sem antes haver-lhes revelado os méritos e as contribuições. Exemplar comportamento acadêmico que peca apenas por não revelar explicitamente o que o próprio autor pensa.
Isto só começará a acontecer na seção seguinte ‹ "Análise de reação estética" ‹ em que Vigostski se dedica à análise concreta de obras literárias. Parte da análise de fábulas, para chegar às expressões mais complexas da novela e do drama shakesperiano. Nos dois primeiros capítulos, o primeiro de corte mais teórico ‹ "Análise de fábula" ‹ e o segundo mais propriamente analítico ‹ "'Veneno sutil'. A síntese" ‹ ele se debruça sobre a produção de Krilov, fabulista russo do final do século XVII e inícios do XVIII. Sua discussão aqui é travada principalmente com Lessing, expressão romântica por excelência, e com Potiebnyá, brilhante paladino do chamado "formalismo russo". Leva à exaustão as questões teóricas levantadas pela estudo da fábula, mas sempre num panorama em que o texto em si mesmo é tudo e como se as condições históricas de sua produção nada fossem. Estabelece radicais diferenças entre as fábulas em prosa e aquelas em verso, de forma a privilegiar estas últimas, às quais dedica análise minuciosa de procedimentos formais. Nessa etapa revela sua dívida e concordância com os formalistas russos, apesar de haver-lhes dirigido certeiras críticas epistemológicas.
A análise de uma novela chamada Leve alento de Ivan Búnin, autor russo deste século e a dissecação cuidadosa do Hamlet, de Shakespeare, encerram esta seção, seguramente a mais rica do livro. Usa como instrumento privilegiado de análise a distinção, estabelecida pelos formalistas, entre fábula e enredo. Consegue, com esta estratégia, demonstrar a anulação do enredo pelos procedimentos formais com que é construído e concluir pela perene dialética da forma com o material. Introduz, assim, no campo da literatura, o movimento como lei geral, onde antes reinava a estática infecunda de uma forma hipostasiada.
A última seção, "Psicologia da Arte", divide-se em três capítulos. Neles se discutem as questões teóricas que as análises concretas terminaram por estabelecer. Aí Vigotski propõe um novo conteúdo para o clássico conceito de catarse e que se revelará como a sua grande contribuição ao estudo da literatura. Termina estabelecendo uma intrincada dialética entre forma e conteúdo, como a forma de ser da obra de arte, cuja síntese seria exatamente este ponto de solução (ou de colisão) e que ele denomina de "catarse". Sem demorar-se nisto, mas explicitando que não pode dar uma definição formal completa do conceito, atribui-lhe a função básica de conciliar os contrários, na consciência do leitor. Indo de encontro às idéias clássicas de uma harmonia entre a forma e o conteúdo, ele propõe que, na luta entre eles, a forma termina vencedora anulando o oponente. Ao conceber desta maneira a especificidade da obra artística, coloca-se, contra a sua vontade explícita, no mesmo campo dos formalistas a quem dedicara severas críticas nos capítulos iniciais.
Não por acaso, no último capítulo do livro, "Arte e vida", procura estabelecer, com o rigor possível, os laços que ligariam a arte e a vida social, como se esta fosse uma tarefa possível, depois de haver separado forma de conteúdo, privilegiando aquela e anulando este último. Seu fracasso nesta parte pode ser resumido por uma expressão sua, estranhamente conservadora para um pensador revolucionário: "Isto mostra que a arte é a mais importante concentração de todos os processos biológicos e sociais do indivíduo na sociedade, que é um meio de equilibrar o homem com o mundo nos momentos mais críticos e responsáveis da vida."(p. 328/329)
Não resta dúvida de que é um clássico e como tal merece toda a nossa reverência, mas não uma necessária concordância. Até porque seu projeto e conclusões estão ligados firmemente ao solo histórico em que nasceram e prosperaram. Vigotski é assim, e ainda hoje, um material importantíssimo para o entendimento de como as cabeças russas dos primeiras décadas do século XX entendiam o mundo e tentavam transformá-lo.

Luis Filipe Ribeiro é Professor de Teoria da Literatura na UFF, autor de Mulheres de Papel: um estudo do imaginário em José de Alencar e Machado de Assis (Niterói: Eduff, 1996) e editor da Revista Brasil de Literatura


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