A CULTURA E A AGONIA DA HISTÓRIA:
Os escombros e o mito
Bóris Schnaidermann
Paulo Bezerra,Livre-Docente em Literatura Russa pela USP.
Retzénziya na knigu "Mif i ievó razválini" professora Borisa Schnaidermana. Kniga issléduet otnochéniya mejdu intellignetsiei i vlástiu na protiajénii vsevó soviétskovo perioda, pokázivaiet traguítcheskuiu subdú kulturi i mnóguikh intelligentov v trúdnikh uslóviyakh totalitárnovo gossudarstva. No ona ne ogranítchiváietsia otritsátelnimi yavleniyakh: ona pokázivaiet takje uspiékhi kulturi vo vsêi soviétskoi territórii i ieió ótkliki v mirovóm mashtabe.
O MITO E SEUS ESCOMBROS
Três trabalhadores soviéticos estão conversando em um campo de trabalhos forçados, e surge entre eles a curiosidade de saber as razões que os levaram àquele local. Trava-se entre eles o seguinte diálogo.
Primeiro trabalhador.
- Eu era um trabalhador exemplar, sempre chegava ao meu emprego meia hora antes do início, acabei sendo acusado de espião da produção socialista e condenado a alguns anos de prisão.
Segundo trabalhador.
- Eu era de uma pontualidade exemplar, chegava sempre na hora exata de começar a trabalhar, fui acusado de comodismo pequeno burguês e condenado a alguns anos de prisão em regime de trabalho forçado.
Terceiro trabalhador.
- Eu sempre chegava atrasado, fui acusado de sabotador da produção socialista e condenado a alguns anos de prisão.
Essa piada mostra a profunda instabilidade da condição do ser humano em um regime totalitário, a imensa dificuldade de pôr o seu relógio histórico em sincronia com o relógio do sistema. O humor negro que ela encerra traduz o espírito sinistro que esteve por trás de toda a vida soviética desde o momento em que Stálin começou a escalada devastadora em direção ao poder absoluto e à montagem do sistema nefasto que ficaria conhecido como stalinismo. Apesar do pessimismo que encerra, esse humor traduz, igualmente, a capacidade de resistência da cultura ao escamoteamento da verdade histórica em um país que sempre procurou vender a imagem de paraíso do trabalho, da liberdade e da cultura. As diversas formas de resistência da cultura ao escamoteamento daquela verdade e a relação difícil e muitas vezes trágica da intelectualidade com o poder soviético desde os seus primeiros dias e depois com o sistema stalinista são tema central de Os escombros e o mito (Companhia das Letras, São Paulo, 1997), livro através do qual Bóris Schnaiderman mergulha em amplo e profundo na história dessa relação e procura respostas para questões que até hoje nos perturbam a mente.
Mestre Bóris concatena fatos e
idéias com uma habilidade que revela um pensamento dotado de
uma impressionante pujança juvenil, arrola mais de seiscentos
autores e personalidades diversas e visita número aproximado
de fontes entre livros, jornais, revistas, diários,
biografias, cartas, poemas, peças musicais, além de
fotografias, quadros e filmes, entrevistas e depoimentos pessoais,
recriando um quadro histórico e cultural de vastidão e
densidade que ultrapassam os limites do objeto que se propõe
analisar. Assim, ele nos coloca em um redemoinho de fragmentos
históricos, fazendo-nos deparar ora com momentos que antecedem
a Revolução de Outubro, ora com os seus primeiros dias
de vida e seu desdobramento nas sete décadas que sucederam
1917. Coerente com a proposta contida no subtítulo do livro,
concentra sua atenção no período propriamente
soviético e nos dá uma visão diacrônica do
todo, permitindo-nos acompanhar o movimento pendular em que
irá estribar-se a relação da arte, da
ciência e de outras formas de pensamento com o poder
soviético, mostrando a profunda complexidade dessa
relação desde os primeiros momentos da
Revolução até o desmoronamento final da
União Soviética.
Em A era das revoluções, no capítulo
especialmente dedicado às artes, Eric Hobsbawm mostra que toda
revolução coloca suas necessidades e exigências
específicas diante das artes e estas sempre gravitam em torno
de idéias que, em diferentes formas e
proporções, estão vinculadas a ideais
revolucionários. Com a Revolução de Outubro
não poderia ser diferente, ainda mais considerando que as
artes russas, especialmente a literatura, estiveram constantemente
ligadas às idéias avançadas de sua época.
A relação entre literatura e ideais
revolucionários na Rússia remonta ao romantismo, mas
foi com a Revolução que o problema se radicalizou, pois
ela colocou na ordem do dia o tema "arte e revolução",
que se desdobrou posteriormente em "arte e luta de classes", "arte e
povo", "arte e ideologia". Como a ideologia assumia um sentido
estritamente pragmático e era ela que sedimentava a arte, esta
ganhava importância não tanto pela verdade que podia
ensejar quanto pelo fato de servir como instrumento à "classe"
que estava no poder. Aí residem as fontes dos problemas que
acabaram redundando em tragédia da melhor parcela da
intelectualidade soviética, tema marcante no livro de mestre
Bóris.
O livro começa discutindo o período da
glásnost, enfatizando a vez do jornalismo, que, depois
de desempenhar durante décadas meras funções de
boletins oficiais de estilo triunfalista, passa a expor as mazelas da
sociedade, mostrando um mundinho bastante torpe, uma sociedade que,
em muitos aspectos, quase nada difere das sociedades mais atrasadas e
desumanas do chamado terceiro mundo. É o caso de uma
reportagem sobre a exploração e o mal trato dispensado
a crianças, que um repórter publica com tintura de
esquerda em um periódico de direita. E Bóris observa
que a penetração do capitalismo mais selvagem e
predatório acaba favorecendo a "estranha aliança entre
os comunistas e os direitistas mais extremados". Será que essa
aliança é mesmo estranha?
Em livro publicado em 1994 (que me chegou às mãos
recentemente) e que leva o título sintomático de
Navajdiénie (Alucinação), Aliesksandr
Yákovliev, ex-acessor de Gorbatchóv, considera o
bolchevismo a variante russa do fascismo. Sem entrar no mérito
dessa tese, em si mesma muitíssimo discutível, a
análise desenvolvida por esse cientista político,
respaldada em dados reais, demonstra, de forma inequívoca, que
o stalinismo foi um sistema descaradamente direitista, e dirigentes
soviéticos até do período do degelo, como
Mikoyan e Khruschóv, sancionaram pessoalmente as
repressões e o extermínio de milhares de pessoas. Dessa
perspectiva, a aliança entre comunistas e direitistas
extremados na Rússia deixa de ser "estranha", uma vez que os
comunistas russos (há exceções, evidentemente!)
são produto desse sistema descaradamente direitista e
totalitário que foi o stalinismo, que Khruschóv tentou
suavizar mas que devorou o próprio Khruschóv e
conseguiu reimplantar-se com Briéjniev sob a forma hoje
conhecida de neo-stalinismo. Aliás, só depois das
publicações da glásnost ficou-se
sabendo da simpatia de Stálin por Hitler, a quem o ditador
soviético chamou certa vez de "gênio", que em pouco
tempo transformara em potência mundial um país arruinado
e subordinara o seu povo à sua vontade. Em fins de junho de
1940 Churchill enviou uma carta a Stálin, prevenindo-o contra
a expansão alemã. Além de não responder
à carta de Churchill, Stálin ainda transmitiu seu
conteúdo a Hitler através de Mólotov. Hitler
ficou comovido com a lealdade de Stálin. A essa altura
já estava assinado o tristemente famoso pacto
Mólotov-Ribbentrop, mas antes Stálin removera um
sério obstáculo chamado Litvínov, medida
aplaudida pelo chefe da diplomacia hitlerista, segundo quem
Stálin agiu com muita sabedoria, substituindo o judeu
Litvínov pelo ariano Mólotov[1].
O pacto militar foi seguido de um Tratado de Amizade entre a URSS e a
Alemanha fascista, celebrado no Krêmlin com discursos amistosos
de Stálin, Mólotov e Ribbentrop, coisa de deixar
estupefato qualquer democrata moderado. Mas Stálin
lançou a célebre frase "apenas troquei o fuzil de
ombro!", que seus devotos seguidores interpretaram como medida para
ganhar tempo.
Os pontos em comum entre os dois tiranos
estendem-se também ao campo das artes. A arte de vanguarda foi
furiosamente perseguida como "sabotagem ideológica" tanto na
URSS quanto na Alemanha fascista. Aliás as semelhanças
entre a URSS stalinista e a Alemanha fascista foram brilhantemente
mostradas no filme documentário soviético
"Obiknoviénni Fachizm" (parece-me que passou no Brasil como "O
fascismo Ordinário"), a que assisti mais de uma vez em Moscou
e literalmentre sacudiu corações e mentes
soviéticas na década de sessenta. Outro elemento em
comum: a demagogia social em sua forma mais evoluída
caracterizou tanto o fascismo alemão quanto o stalinismo. Essa
demagogia baseava-se em um amplo sistema de propaganda, que tinha a
mentira como alimento principal. Não há como esquecer
as palavras de Goebbels: uma mentira, mil vezes repetida, acaba se
tornando verdade. Bóris Schnaiderman cita as seguintes
palavras do poeta Eduard Bagritzki: "Se o século exige do
escritor 'mente', 'mente', se o século exige 'mata', 'mata!'".
E o escritor cazaque Anuar Alimjanov arremata: "Nossa mentira foi
duradoura, insistente, estatal...". É evidente que as
semelhanças não param por aí.
Graças à liberdade de expressão trazida pela
glásnost, foi possível à imprensa
publicar depoimentos pungentes sobre vítimas do terror
stalinista, lançando luz sobre questões antes
proibidas. Bóris articula os fatos jornalísticos numa
forma em que eles vão se disseminando ao longo do livro e
combinando-se com documentos oriundos da literatura, das
ciências e de outros campos do conhecimento e, à medida
que avançamos na leitura do livro, vamos nos inteirando de
fatos novos que só fazem aumentar as dimensões da
tragédia que se abateu sobre toda uma sociedade, aniquilando
pessoas fisicamente ou destruindo-as moralmente, instituindo um
sistema de delação como norma de "bom comportamento" e
criando nos indivíduos uma censura interna, além da
terrível censura externa que tudo controlava. Assim, vemos um
Tvardovski, poeta e intelectual muito estimado e considerado
democrata, censurando Borís Pasternak, já depois de
morto, pela publicação romance Doutor Jivago no
Ocidente, vemos Iúri Oliecha se auto-avacalhando e
reconhecendo uma "linha única" de comportamento do
cidadão e do escritor como se essa "linha única"
não fosse senão a expressão acabada do
totalitarismo. A violência, institucionalizada como norma de
conduta das autoridades no trato com os cidadãos, faz estes
assumirem a culpa por atos que jamais haviam praticado. Assim,
Meyerhold - o dramaturgo revolucionário que entendeu a
revolução socialista como um ato de
libertação das massas e das artes e, por isso, destruiu
a distância entre público e palco - é preso,
confessa-se espião a serviço da Inglaterra e do
Japão e líder do "grupo anti-soviético da
revista LEF", órgão de esquerda nas artes antes
dirigida por Maiakóvski. A revista é porta-voz de uma
facção da arte moderna, e seus integrantes, que
apoiaram o poder soviético, recebem tratamento igual ao que a
Alemanha hitlerista dispensaria à arte moderna. A
prisão de Meyerhold é acompanhada de um ato der
barbárie nazista com a invasão do seu apartamento e o
assassinato de sua esposa Zinaída Reich, que ficou
terrivelmente mutilada. Pouco depois o próprio Meyerhold seria
fuzilado em 1940, já em plena guerra da URSS com a Alemanha.
Assistimos, através da leitura, à
destruição da velha guarda bolchevique, da qual o
julgamento e posterior fuzilamento de Bukhárin, Rikov e outros
revolucionários sinceros são apenas
ilustrações sinistras do sistema que Bóris chama
de "máquina de triturar gente". Aliás, no
Navajdiénie Yákovliev mostra com dados
que eram freqüentes os fuzilamentos de membros do NKVD, isto
é, os agentes da repressão de ontem acabavam sendo
objeto da mesma máquina que antes haviam usado para destruir
pessoas, numa confirmação macabra da instabilidade das
pessoas numa sociedade totalitária, sugerida pela piada de
abertura deste ensaio. E o mais trágico em tudo isso é
que a maioria das pessoas considerava as vítimas do stalinismo
como inimigos do povo, conforme o depoimento de M. A. Marov,
juiz da Suprema Corte da URSS, ao jornal Izvéstia em
1987 e citado por Schnaiderman.
Aliás, esse rótulo de "inimigo do povo" decorre
diretamente dos fundamentos do próprio sistema stalinista,
que, necessitando de bodes expiatórios para justificar o
estado permanente de repressão que o caracterizou, foi buscar
no folclore e nos mitos os modelos simbólicos capazes de
entorpecer as mentes e criar a maior empatia possível com o
repressor e um clima de condenação popular antecipada
da vítima. Ao esquema mitofolclórico o sistema
stalinista tomou de empréstimo modelos como o "herói",
o "inimigo", ou "antagonista", o causador de danos transfigurado no
"sabotador" ou no "espião", a "traição", etc.,
em suma, uma série de elementos simbólicos que,
evocados a torto e a direito, iriam provocar no psiquismo social a
sensação de perigo ou desamparo que só seria
aliviada com a inserção do arquétipo do
grande chefe ou guia. Este é o depositário da
plena sabedoria, é infalível, infinitamente bondoso e
preocupado com o bem-estar e a segurança do povo, em quem
está sempre pensando, segundo um poema popular. Ao inimigo
aplica-se o estereótipo tradicional de inimigo do gênero
humano, de monstro, de "inimigo do povo". A partir dessa
imagem-modelo não há meio termo: quem resvalar para a
"esquerda" ou para a "direita" cairá naturalmente na categoria
de "inimigo", e as regras do jogo, respaldadas por uma
consciência social forjada na empatia do guia com os guiados,
justificarão qualquer medida drástica aplicada aos
"culpados", sobre quem, mais uma vez arquetipicamente, recairá
a maldição de Can. "Justiçado" o pai,
caberá ao filho carregar o estigma de "filho de inimigo do
povo", tormento que lhe estará à espera onde quer que
ele esteja ou pretenda ir. Foi essa a situação de
milhares de soviéticos ao longo de decênios.
A tragédia foi o condimento mais comum no destino de muitos
dos melhores escritores. Maiakóvski, Mikhail Bulgákov,
Isaac Bábel, Olga Bergholtz, Marina Tsvietáieva,
Óssip Mandelstam, apenas para ficar em alguns mais famosos,
viram suas vidas transformadas em verdadeiro inferno. Em termos de
inferno Bulgákov respondeu com o romance O mestre e
Margarida, onde aparecem parodiadas as figuras de Stálin
no diabo Voland e a de Béria no seu lugar-tenente Azazelo.
Essa paródia de Bulgákov certamente não passou
despercebida a Stálin. Uma das histórias mais
terríveis foi certamente a do grande poeta Óssip
Mandelstam, que Bóris narra em detalhes sintéticos
porém abrangentes. Foi Mandelstam quem disse que em
país nenhum se dá tanta importância à
poesia quanto na Rússia: aqui se fuzila um poeta por causa de
um verso. E escreveu um poema sobre Stálin, do qual damos
alguns dísticos
Sem sentir o país sob os pés vivemos nós
A dez passos não se ouve a nossa voz,
Onde ela chega para meia conversinha -
Ali nos lembram o montanhês do Krêmlin.
Gordos como vermes são seus grossos dedos
E as palavras exatas qual do pud [2] os pesos.
O bigode de barata em eterno rir
E os canos das botas sempre a luzir
Ao seu redor, pescoços finos, os chefes canalhas
E ele brinca com os préstimos dessa gentalha
.....................................................................
Esse poema pôs Stálin furioso e desencadeou o processo
que iria culminar na destruição total de Mandelstam.
Como Bóris mostra, o poeta resolveu escrever uma ode a
Stálin e, como conta sua mulher Nadiéjda Mandelstam,
ele passou a experimentar um verdadeiro martírio, porque, como
era poeta de verdade, não conseguia violentar-se e descer ao
estilo rasteiro dos poetas que decantavam a torto e a direito o "guia
dos povos". Depois de esforços titânicos conseguiu
escrever a tal ode, cujo conteúdo Bóris expõe em
palavras breves e se pergunta se isso seria uma tentativa de
salvar-se ou uma identificação com o agressor. Uma
coisa é certa: Stálin conseguira matar Mandelstam como
poeta, matá-lo fisicamente já era questão
secundária.
Curiosamente, esse vaivém de Mandelstam está
rigorosamente enraizado na tradição da literatura
russa. Púchkin, depois de escrever o célebre poema em
que conclama os dezembristas presos na Sibéria a acreditarem
que a liberdade triunfará e eles terão seus nomes
escritos nos escombros da autocracia, acaba escrevendo "Stansi"
(Estâncias), uma ode a Nicolau I, o mesmo que executou e
confinou os rebeldes, e nessa ode ele diz olhar para o futuro sem
medo, na expectativa de glória e bondade. Dostoiévski
esteve diante do pelotão de fuzilamento por atividades contra
o governo, foi confinado na Sibéria e de lá voltou
defendendo a monarquia. Tolstói ameaçou incendiar o
mundo e acabou pregando a não resistência ao mal.
Maiakóvski foi o mais terrível crítico da
burocracia nos anos vinte, e acabou escrevendo, em 1925, o poema
"Domói" (Para Casa), no qual pede que o Gosplan
(Órgão central encarregado do planejamento) transpire e
lhe dê tarefas para o ano inteiro, isto é, planeje as
suas atividades de poeta. Portanto, numa época em que ainda
não havia o controle rigoroso das artes, pelo menos aquele que
já encontramos nos anos trinta, o poeta pede para ser
controlado. Paradoxal não fosse trágico! Mas o mesmo
Maiakóvski continuou fustigando a burocracia, que via como
principal inimiga do socialismo, e acabou escrevendo O
percevejo, produzindo uma visão pessimista da sociedade do
futuro.
Ler Os escombros e o mito é um desafio que nos obriga o
tempo todo a contextualizar os fatos na sofreguidão de
apreendê-los, o que nos leva a constantes digressões
pela história da Rússia e sua literatura. O
método aparentemente simples com que mestre Bóris
concatena fatos e transita pelos mais diversos campos do conhecimento
nos mostra uma erudição enciclopédica claramente
voltada para um projeto grandioso de resgatar nomes e obras que foram
silenciadas nos esconderijos do spietzkhran, o famoso
depósito especial que, quando aberto, revelou a
existência de mais de 300 mil títulos de livros, mais de
560 mil títulos de revistas e pelo menos um milhão de
jornais, em suma, descobriu-se ali uma espécie de sítio
arqueológico da memória cultural soviética que o
stalinismo havia condenado ao esquecimento. Como um arqueólogo
que de repente se vê diante de uma descoberta inusitada,
Bóris mergulha nesse imenso acervo e vai estabelecendo pontes
com obras publicadas dentro e fora da ex-URSS, sempre na tentativa de
resgatar para o leitor o que a barbárie stalinista silenciou.
E aí nos deparamos com três momentos nessa
trágica história cultural: o que foi publicado, mas
sofreu mutilações, o que foi simplesmente proibido, e o
que foi publicado fora da URSS. Em cada caso há um pouco de
tragédia. Por falta de liberdade para publicar em casa suas
próprias obras, muitos autores soviéticos
constantemente as publicavam fora, correndo um duplo risco: risco de
vida por ter sua obra publicada fora, e risco de
deformação da própria obra em
função de interesses escusos de editores oportunistas.
Tanta coisa foi relegada ao ostracismo na URSS e publicada no
Ocidente que o russo, para restaurar a ordem mais ou menos
cronológica das suas publicações e reatar os
fios da sua própria memória cultural, terá de
desenvolver um trabalho conjunto com pesquisadores ocidentais, sem o
que corre o risco de deixar que essa memória continue
esfacelada. Porque o resgate do vivido na história e na
ficção é o resgate da real experiência
humana e, no caso dos russos, do próprio sentido da identidade
da cultura nacional tão escamoteado por várias
décadas de silêncio e falsificação dos
fatos do cotidiano.
Os escombros e o mito é um livro de resgate, no qual o
autor assume a posição de historiador e exegeta
imparcial da cultura, capaz de ouvir todas as vozes abafadas ao longo
de tantas décadas. Ao tratar a história cultural como
um objeto polifônico, faz falarem as vozes que tiveram vez e as
vozes que foram silenciadas e, assim, deixa que a História
fale através das suas múltiplas facetas personificadas
nas suas múltiplas vozes. Aí estão as vozes da
prosa, da poesia, da crítica literária, da filosofia,
do teatro, das artes plásticas, da música, do cinema,
da fotografia, das mais diferentes tendências da literatura e
das artes russas, em suma, os ecos daquele grande tempo que pareceram
abafados ao longo de décadas mas de repente reapareceram como
sombras redivivas a dizerem que a criação humana
é imorredoura porque imortal é o homem na sua infinita
inquietude. E isto graças à persistência de um
homem que imprime à pesquisa aquela aristotélica
paixão epistêmica sem a qual a própria
existência humana perde o sentido.
Toda pesquisa, por mais ampla e abrangente que seja, deixa sempre
algumas omissões. Coisa natural, porque nada é
perfeito. No caso de Os escombros e o mito, que trata
da cultura e do fim da União Soviética, senti falta de
um ou outro nome, como Constantin Símonov, autor de Os
vivos e os mortos, uma espécie de ciclo romanesco que
procura rever sem triunfalismo e com objetividade a história
soviética a partir da experiência trágica da
Segunda Guerra. Símonov foi um intelectual coerente, um homem
que pensava com autonomia e, por sua importância, era tolerado
pelas autoridades. Senti falta também de alguma
referência a Iúri Bondariev, especificamente ao seu
romance Tichiná (O silêncio), uma das primeiras
tentativas de ver criticamente a realidade soviética no
início do período khruschoviano. Quando começou
a pierestroika-glásnost, Bondariev assumiu uma atitude
radicalmente negativa em face das mudanças e acabou
descambando para uma posição abertamente
reacionária. Aliás foi idêntico o comportamento
de Vassili Bielóv e Valentin Raspútin, dois
ótimos romancistas que não aceitaram as mudanças
em curso e perderam o bonde da história. Há outras
omissões que, evidentemente, não depõem contra
um livro de alcance tão vasto que, em si, já é
uma contribuição fundamental para se entender os
descaminhos que redundaram no fim da primeira experiência
socialista da história.
Os escombros e o mito é uma viagem pelo imenso
território do sonho de milhões, uma viagem pelos
espaços da façanha de tentar converter em realidade o
milenar sonho humano de liberdade, igualdade e fraternidade, viagem
dorida porque registra muito mais o desvirtuamento do sonho do que os
seus acertos. Mas mostra também que se um povo é capaz
de sair à rua para protestar contra a tentativa de fechamento
de uma biblioteca, então nem tudo está perdido, e em
meio aos escombros desse sonho ainda há algumas réstias
alumiando sementes que um dia poderão medrar em jardim.
Bóris Schnaiderman pertence àquele seleto grupo de
pessoas sobre cuja mente o tempo parece não surtir efeito,
pois sua escrita e sua capacidade de articular e associar fatos
diversos e distantes continua com o mesmo vigor que encontramos no
seu delicioso Guerra em surdina. Ao fecharmos este Os
escombros e o mito, já ficamos na expectativa do
próximo livro.