IDENTIDADES RACIAIS E CULTURAIS,

GLOBALIZAÇÃO E O BUSTIÊ DA

MADONNA *

 

Sonia Torres

Universidade Federal Fluminense

 


RESUMO

As identidades raciais nos EUA e no Brasil são construídas a partir de diferentes mitos de nacionalidade. Os norte-americanos partem de uma ideologia expansionista, vinculado ao mito da supremacia racial branca, ao passo que o Brasil sustenta o sonho da democracia racial. Tomando como ponto de partida uma entrevista com dois intelectuais norte-americanos, um afro-americano e outro mexicano-americano, a autora discute a dificuldade de se tratar de etnia, poder econômico e cultura separadamente. A "nova ordem mundial" aponta para a crescente hibridização cultural e racial das nações, mas, embora o projeto de globalização crie novas identidades baseadas no consumo, não garante a todos o acesso ao consumo de forma igual.

 

ABSTRACT

The construction of racial identities in the USA and in Brazil are based on distinct national myths. United States expansionistic strategies have always had as an undercurrent an ideology of white supremacy , whereas Brazil sustains its myth of racial democracy. Taking as a point of departure an interview with two North American intellectuals, Professors Cornel West and Jorge Klor de Alva - the former African-American and the latter Chicano - the author discusses the difficulty of dealing separately with the embricated concepts of ethnics, economics and culture. The "new world order" signals a growing racial and cultural hybridization of nations; however, the globalizing project, in spite of creating new consumer identities, does not guarantee a democratic access to commodities.


.Ao final dos próximos quinze anos, o número de hispânicos ultrapassará a população negra dos EUA - o que já acontece em vinte e um de seus cinqüenta estados. Cada um destes grupos, por sua vez, constitui uma porcentagem cada vez maior da população norte-americana como um todo, e é numeroso o bastante para determinar uma virada na eleição presidencial daquele país. Resta saber, no entanto, se eles votam contra ou a favor um do outro, e se compartilham uma mesma visão da América branca. Em um mundo globalizado, cada vez mais multi-cultural, as questões de etnia e poder já não se limitam a uma clara divisão entre negro e branco.

Levando em conta estas novas inquietações, a Harper's Magazine , em seu número de abril de 1996, publicou matéria intitulada Our next race question: the uneasiness between blacks and latinos. Nela, o editor da Harper's, Earl Shorris, entrevista dois intelectuais, o professor e antropólogo chicano da Universidade de Berkeley, Jorge Klor de Alva, e o professor de estudos afro-americanos e filosofia da religião da universidade de Harvard, Cornel West. Ao ser perguntado por Shorris (que é branco) se considerava Cornel West um negro, Klor de Alva responde negativamente, postulando que, para que alguém seja identificado como negro, ou hispânico, é necessário lançar-se mão de uma tradição de categorização onde coubesse esta pergunta, no sentido de poder ser respondida com um simples "sim" ou "não". Nos EUA, onde as identidades, via de regra, são construídas a partir de uma definição racial sem ambigüidades, Cornel seria, obviamente, negro. Mas, em um país africano, ele seria identificado como um cidadão ocidental de ascendência africana ( implicando heterogeneidade), o que é diferente de ser identificado pela cor - como negro, em oposição a branco. O que pode ser observado, a partir das questões levantadas por Klor de Alva, é que , ao contrário do Brasil, onde uma gota de sangue branco já parece servir de alçapão para que se escape (ou se sonhe escapar) da categorização acima, nos EUA basta uma gota de sangue africano para que o indivíduo seja identificado, e se identifique, como negro.

A fim de tentarmos compreender as diferenças, na construção de identidades raciais ou étnicas, de lá e de cá, é necessário pararmos um pouco para considerar os diferentes mitos a partir dos quais americanos e brasileiros narram suas nações. O grande mito que sempre contribuiu para a construção de nossa comunidade imaginária tupiniquin é o da democracia racial, da harmonia interracial. É desta ficção que se alimenta, paradoxalmente, o racismo nacional. Sem barreiras claras que opõem branco/negro, em nosso paraíso tropical, edênico, vemos que subjacente ao discurso que busca apagar as diferenças, encontramos uma ideologia de homogeneidade branca, com suas conhecidas variantes atenuadoras e igualmente ideológicas ("moreno", "escurinho", etc.). O grande mito norte-americano é, sem sombra de dúvida, o da fronteira: lembremos o puritano, cuja "missão colonizadora" desaguaria, mais tarde, na obsessão pela expansão em direção ao Oeste, com a conseqüente dizimação dos povos indígenas. Conquistada esta última fronteira, surge um impulso imperialista que rivalizaria o europeu. Desmanteladas as grandes estruturas coloniais européias, após a Segunda Guerra, testemunhamos o crescimento da hegemonia neoimperialista norte-americana, dirigindo capital, armamentos e a mídia, em escala global. Por detrás das estratégias expansionistas norte-americanas, jaz a ideologia da supremacia racial branca.

Cornel West, na referida entrevista, lembra que o escritor Richard Wright costumava dizer que o negro é a metáfora da América. Não se pode falar de um sem se falar da outra. West acrescenta que "Uma das razões pelas quais não gostamos de falar sobre raça, especialmente em relação aos negros, é porque somos forçados a levantar todas as questões fundamentais sobre o que significa ser americano, o que significa ser parte da democracia americana. São perguntas exaustivas e desafiadoras." Se os negros são a metáfora central da alteridade e da opressão nos EUA, como esta metáfora pode ser repensada, a partir dos latinos (como lá se denominam os hispânicos)? Klor de Alva observa que a distinção crítica entre negros e latinos passa pelo viés da cultura, e sugere - provocando veementes protestos por parte de West -- serem os negros mais "anglos" do que os hispânicos, por não se identificarem com um estado-nação fora dos EUA. São prisioneiros da América do Norte, por assim dizer. Por mais injustas e dolorosas que sejam suas experiências, elas foram moldadas pela experiência americana. Os latinos, além de se identificarem com seus países de origem (México, Porto Rico, Cuba, El Salvador, República Dominicana, Guatemala, Filipinas, etc.), fogem a uma classificação racial homogênea (o censo dos EUA os classifica simplesmente como Hispanics): podem ser brancos, mestiços com ascendência indígena ou asiática, ou negros.

Na verdade, porém, quando se trata de práticas excludentes, tanto os afro-americanos quanto os mexicano-americanos ou outros hyphenated Americans são vítimas de discriminação. Com o aumento da população hispânica, os representantes do status quo norte-americano demonstram uma ansiedade crescente em relação às práticas culturais dos latinos, que "invadem" o Centro com sua língua, com seus costumes, com sua música. Haja vistas as English operations em estados como a Flórida, com o intuito de evitar que os EUA se tornem "uma nação de mestiços" , com o espanhol como segunda língua - o que já acontece na prática em inúmeros estados. West e Klor de Alva discutem a possibilidade ou não da formação de alianças entre os grupos minoritários, e apontam para os perigos das alianças passageiras, quando o inimigo é comum, como no caso da mudança do Código Criminal da Califórnia para homicídio, o polêmico decreto 187.

Na entrevista com Cornel West e Jorge Klor de Alva, o que acaba tornando-se patente é que etnia, poder econômico e cultura são conceitos embricados uns nos outros, e difíceis de discutir separadamente. Se a construção da auto-imagem norte-americana baseia-se fortemente na ideologia da supremacia racial branca, é igualmente verdade que um latino branco não sofre o mesmo tipo de discriminação que atinge o negro, Por outro lado, ele não deixará de ser latino aos olhos do branco pertencente a uma classe mais privilegiada. Enfim, as categorias são infinitas e complexas, e, acrescente-se a elas, como pano-de-fundo, a briga por melhores empregos, problemas com a imigração, etc. Para não falar das culture wars, em que a guerra contra a hegemonia branca freqüentemente desencadeia brigas entre as próprias minorias oprimidas e excluídas, como ocorreu em Los Angeles, em 1992, ocasião em que foram saqueadas as lojas de comerciantes coreanos, por afro-americanos. O quebra-quebra terminou de forma apoteótica, com o roubo do bustiê de Madonna, exibido em uma vitrine, ícone máximo do desejo do Outro, epítome do sonho de consumo alimentado pelo Centro.

A trajetória rumo a um contexto multicultural das nações, com a inevitável hibridização racial de seus povos, assinala alguns percalços, portanto: se supostamente já não temos um mundo polarizado, com a queda do Muro de Berlim, e com a dissolução da União Soviética, a nova configuração aponta para a divisão entre centro e periferia, tanto dentro quanto fora das nações. Se, por um lado, as fronteiras já não são nítidas, se hoje, por exemplo, a segunda maior cidade mexicana é Los Angeles, por outro, o projeto globalizante não garante o acesso ao consumo de maneira igual para todos - embora o apelo para que se consuma seja, perversamente, idêntico para todos. Enquanto os países do centro brigam pela hegemonia no próximo milênio, e vão construindo a forma assimétrica de globalização que testemunhamos neste final de século, interessará cada vez mais a eles que os Outros aqui apontados permaneçam em seus gueto, sem criar alianças. Seria interessante que nós, aqui na periferia, puséssemos nossas barbas de molho. Torna-se cada vez mais importante e urgente que nós, dos países periféricos nos mostremos dispostos a nos ouvir uns aos outros - e, eu acrescentaria, aos Outros que residem nos países do centro. Talvez através deste diálogo dos Outros de cá com os Outros de lá, possamos desobstruir o caminho de mão-única, excludente, que vem tomando o projeto de globalização das nações, com seu viés nitidamente neoliberal.


* Este artigo foi publicado originalmente, com pequenas modificações, na revista Cência Hoje, 22(127): 22-24. SBPC: Rio de Janeiro, 1997


Sonia Torres é professora de Literatura Norte-americana na Universidade Federal Fluminense, e doutoranda em Literatura Comparada na Universidade Federal do Rio de Janeiro. É também tradutora e crítica literária, tendo publicado vários ensaios tratando de questões como multi-culturalismo, transculturação/transnacionalização e hibridização. É pesquisadora em literatura produzida por hispânicos nos EUA, e autora da primeira dissertação sobre literatura chicana no Brasil - Escritos Chicanos: para a leitura de uma América outra (UFRJ/1992). No momento, está em fase de elaboração de sua tese de doutorado, intitulada "Etnógrafos nativos, mapas culturais, e o final de século".

E-mail: storres@netgate.com.br


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