UM OLHAR SOBRE O EROTISMO

 

 Ana Maria Macêdo Valença

Universidade Federal de Sergipe

 


RESUMO


Originalmente o trabalho constitui o primeiro capítulo da dissertação de mestrado intitulada O amor é o fim do cerco: o erotismo em História do Cerco de Lisboa, de José Saramago, defendida na PUC/RS, em dezembro de 1993. O texto redimensiona o erotismo propondo uma ampliação conceitual para o termo. Discute a controvérsia entre erotismo e pornografia com base em Jean Baudrillard, Roland Barthes e Susan Sontag. A partir das categorias do interdito e da transgressão, propostas por Georges Bataille, o trabalho encaminha uma conceituação do erotismo entendendo-o como uma modalidade do conhecimento humano. O erótico ganha um novo sentido: é visto como um caminho epistêmico que permite ao ser humano ultrapassar os limites do possível vencendo o cerco do conhecimento convencional.

RESUMÉ


Ce travail a été en son origine le premier chapitre d'une thèse de "mestrado" nommée "O amor é o fim do cerco: o erotismo em História do Cerco deLisboa" (L'amour c'est la léveé du siège: l'érotisme dans Histoire du siège de Lisbonne), de José Saramago, soutenue en décembre 1993.Ce texte prétend une nouvelle dimension de l'érotisme et pour cela il faut en casser les définitions figées. Au centre du débat se situe la différence entre la pornographie et l'érotisme, d'après la lecture de Jean Baudrillard, Roland Barthes et Susan Sontag.Ayant comme point de départ les catégories de l'interdit et de la transgression, proposées par Georges Bataille, on visera une conceptualisation de l'érotisme comme une modalité de la connaissance humaine. L'érotique prend donc ainsi un nouveau sens: il est envisagé comme une voie epistémologique qui permet à l'être humain de dépasser les limites du possible, en levant le siège de la connaissance conventionelle.


1. Em busca do erotismo

Sobre o entendimento da dimensão erótica do ser humano pairam alguns equívocos. Foi estabelecida hoje, na sociedade brasileira, uma identificação entre erotismo e visualização do sexo de tal forma que o sentido do erótico foi aos poucos sendo reduzido a uma visão em que prevalece a explicitação. Vivemos um momento em que a divulgação do sexo tornou-se a tônica nas mais diversas representações culturais:

Com o relaxamento da censura, que acompanhou a liberação política durante os últimos anos da década de 1970, publicações de sexo explícito tornaram-se muito comuns no Brasil urbano e são encontradas até, embora em muito menor quantidade, em muitas comunidades rurais. Vendidas abertamente em qualquer banca de jornal e compradas quase que exclusivamente por homens e rapazes, revistas ilustradas como Playboy, Fiesta e muitas outras tornaram-se mania da cultura masculina brasileira. (Parker, 1991:99)

Embora benéfica, a liberação de certos preconceitos que impediam a modernização de vida sexual não abriu o caminho para a percepção do sentido mas profundo que subjaz no erotismo. Paradoxalmente, na maioria dos casos, quanto mais as representações são explícitas, menos se alcança a semântica da experiência erótica.

Esses equívocos decorrem, talvez, da própria sutileza do fato erótico. Ou de sua complexidade. A busca alucinada em direção ao erótico pode transformar-se na impossibilidade de encontrá-lo. Talvez não seja preciso buscar; ele está em nós e nos outros, invisível e tão sutil quanto tentador.
Podemos, então, alargar o sentido do erotismo. Podemos também percebê-lo, misticamente, como uma das formas de emanação energética do ser. Pode estar em tudo e em todos mas não se deixa tão facilmente desvendar. Por isso, o erotismo pode gerar obsessões, desejos fixos cuja realização se torna possível.
Para onde vamos nesse caminho tão fascinante quanto assustador? Move-nos talvez a alucinação de querer ver no escuro. Violenta-nos o desejo epistêmico, cujo limite é a consciência de que há zonas indevassáveis. O erotismo não se deixa dizer e a luta será desigual. O tema vai além da banalidade das palavras. A tentativa poderá não passar da frustração, mas manter-se-á eroticamente no desejo.
Assim, sem entrever certezas conceituais, afirmamos que o erotismo está no Homem. Mas é o Homem, na evidência dos seus contrários, na sua antinomia, na interseção da sua humanidade com a sua animalidade. Por causa disso, a verbalização do erotismo implica afirmações que podem negar-se entre si. Estabelecer modelos verbais ou procurar métodos científicos é a via contrária. Se se trata de uma questão que envolve a totalidade, somem todos os ramos do conhecimento e observemos que a insuficiência permanece.
Tudo o que já se escreveu sobre a sexualidade humana, por exemplo, fica aquém do desvanecimento que a experiência erótica possibilita. O perigo é reduzir o erotismo à sexualidade e desconhecer o que ficou além, o que alcançou o inaudível.
Estamos no campo do excêntrico.
Talvez esteja na arte de modo geral e na literatura, em particular, o caminho epistêmico da experiência erótica para além de si mesma. Por isso, a opção deste trabalho é a literatura. Mas é preciso, antes, estender o olhar à representação cultural do erotismo, cujos problemas refletem a natureza paradoxal do tema.

2. Erotismo: cultura e representação

É preciso discernir a controvérsia em torno da representação cultural do erotismo. Como estamos vivendo na era da imagem visual, as diversas representações aceitas como eróticas vêm-se caracterizando, em sua maioria, pelo centramento na visualização da nudez e das cenas sexuais. Revistas, filmes, romances produzidos e consumidos hoje como eróticos se têm, por um lado, o efeito de promover a erotização das relações humanas, estão, por outro, fortemente ligados à cultura do voyeurismo, entendida aqui como tendência cultural que se enraíza no desejo de ver. Tornou-se uma tendência constante a representação de cenas sexuais ou o desnudamento de pessoas famosas: é a estratégia do marketing adotada para incentivar o consumidor, que aceita o pacto de "ver" o erótico e poder adquiri-lo. Centrada no binômio mostrar/ver que corresponde à estrutura produção/recepção, a representação do erotismo tem tido como efeito um consumismo crescente, que vai do adolescente ao adulto.
É em conseqüência da representação sedimentada no mostrar/ver que a identificação entre erotismo e obsceno vem-se impondo, trazendo como conseqüência obstáculos para a percepção de um sentido mais profundo da dimensão erótica do ser humano. Em primeiro lugar, generaliza-se o conceito de que uma produção cultural é erótica à medida que nela predomina a visualização do nu e do sexo. Essa compreensão, arraigada na cultura da imagem, estende-se não só à literatura como às artes em geral. Um filme ou um romance, por exemplo, serão considerados mais eróticos quanto maior for a relevância concedida ao sexo.
Colocando o erótico no mesmo nível da representação visível da nudez sexual, o marketing termina por favorecer a dificuldade para o estabelecimento de limites conceituais. A idntificação erótico/sexo/visual generaliza-se na cultura dos anos 90 (já previamente caracterizados como a década do voyeur), dificultando o discernimento. Diagnosticando a situação, Jean Baudrillard (1991:51) diz que o sexual triunfou sobre a sedução, anexando-a de forma subalterna. Trata-se segundo ele, da subversão de uma ordem primeira: nesta, quem vem em primeiro plano é a sedução, da qual o sexo seria conseqüência. É contundente o diagnóstico de Baudrillard acerca da prevalência do sexo sobre a sedução na cultura hodierna.

Somos a cultura da ejaculação precoce. Cada vez mais, qualquer sedução, qualquer forma de sedução, que é um processo altamente ritualizado apaga-se por trás do imperativo sexual naturalizado, por trás da realização imediata e imperativa de um desejo. (1991:47)

Defendendo a tese da morte da sedução dentro da cultura burguesa ligada não só à produção e consumo de mercadorias como também à instantaneidade do visual, Baudrillard vê na cultura de hoje a relevância concedida ao sexo, erigido em instância autônoma, desvinculado do ritual inerente à sedução. Nesse contexto, o corpo absorve o mesmo fetiche que caracteriza a mercadoria, tendo como base o modelo ligado à produção e ao exibicionismo das formas. Autonomiza-se e insere-se na cultura da demonstração.

Assim, o que se busca hoje não é tanto a saúde, que é um estado de equilíbrio orgânico, mas um brilho efêmero, higiênico e publicitário do corpo - bem mais uma performance do que um estado ideal. Em termos de moeda e de aparência, busca não tanto a beleza ou a sedução, mas o visual. (Baudrillard, 1992:30)

O privilégio concedido ao corpo como um fetiche e ao sexo como função autônoma se, por um lado, decorre da neutralização da sedução,, por outro, determina a gênese de uma representação em que predomina o visual. Para muitos autores, trata-se, nesse caso, da representação pornográfica, definida por Baudrillard através do excesso de visualização do real:

O único fantasma em jogo no pornô, se existe um, não é sexo, portanto, mas o real e sua absorção em outra coisa que não real, no hiper-real.
O voyeurismo do pornô é não um voyeurismo sexual mas um voyeurismo da representação e de sua perda, uma vertigem de perda da cena e da irrupção do obsceno. (1991:36)

Caracterizando-se pelo hiper-real, a representação pornográfica, nessa visão, é marcada pela presença de detalhes microscópicos relativos às cenas sexuais. Constituindo o mostrar, que atende o desejo do voyeurismo da exatidão, revelando microscopicamente a nudez e o sexo, a representação pornográfica esgotar-se-ia em si mesma: fim do segredo, do imaginário e da ilusão. Nenhum espaço para acréscimos: visualidade hiper-real, representação total em que tudo é signo visivelmente indispensável. Segundo Baudrillard (1991:42) triunfo total do corpo obsceno implicando o desaparecimento do rosto: qualquer rosto torna-se inconveniente, pois quebra o rítmo da obscenidade, a espetacularidade única do sexo.
Roland Barthes, ao estudar a fotografia vê diferença entre a representação pornográfica e a erótica de forma bastante clara:

Uma outra foto unária é a foto pornográfica (não digo erótica): a erótica é um pornográfico desviado, fissurado). Nada de mais homogêneo que uma fotografia pornográfica. É sempre uma foto ingênua, sem intenção e sem cálculo. Como uma vitrine que mostrasse, iluminada, apenas uma única jóia, ele é inteiramente constituída pela apresentação de uma única coisa, o sexo: jamais objeto segundo, intempestivo, que venha ocultar pela metade, retardar ou distrair. (1984:67)

A posição de Barthes assemelha-se à de Baudrillard: ambos vêem a pornografia como representação unitária do sexo. Para Barthes, a representação erótica, ao contrário, pode não fazer do sexo um objeto central, pode mesmo não mostrá-lo. Por isso, enquanto na pornografia o efeito é o do tédio causado pelo excesso de visual, na representação erótica o espectador é levado para fora do enquadramento, como se a imagem lançasse o desejo para além daquilo que ela dá a ver:

Não somente para o resto da nudez, não somente para o fantasma de uma prática, mas para a excelência absoluta de um ser, alma e corpo intrincados. (Barthes, 1984:89)

Enquanto Baudrillard condena a representação da cultura pornô, ligada, segundo ele, ao concreto, à produção e ao prazer como produto de cópula ilimitadamente mecânica, Barthes (1984:89) distingue o desejo pesado - o da pornografia - do desejo leve, do desejo bom, o do erotismo, traçando também um juízo de valor negativo segundo o qual o pornográfico desvirtua o erótico. Uma posição diferente é a defendida por Susan Sontag, que tenta reverter a visão condenadora, posicionando-se contra a redução da pornografia a uma mercadoria social problemática, uma doença da cultura ou uma deformação do imaginário. Abordando a pornografia no interior das artes, Sontag (1987:44) defende que há livros pornográficos com potencial artístico; obras de interesse e importância, indicando novas possibilidades estéticas. O exame do valor literário dessas obras ainda não foi genuinamente realizado, gerando uma conotação pejorativa para a palavra pornografia - rótulo duvidoso que Sontag (1987:41) diz aceitar na falta de outro melhor. Argumentando que a representação visual de órgãos e atos sexuais não se faz necessariamente obscena, a ensaísta resgata a pornografia, situando-a como possibilidade artística:

O que faz de uma obra de pornografia parte da história da arte, ao invés da pura escória, não é a distância, a superposição de uma consciência mais conformável à da realidade comum sobre a "consciência desordenada" do eroticamente obscecado. Em vez disso, é a originalidade, a integridade, a autenticidade e o poder dessa própria consciência insana, enquanto corporificada em uma obra. Do ponto de vista da arte, a exclusividade da consciência incorporada nos livros pornográficos não é, em si mesma, nem anômala, nem antiliterária. (1987:52)

Através das posições de Barthes, Baudrillard e Sontag, podemos entrever a complexidade das questões que envolvem a representação do erotismo. Hoje, falar em erótico implica considerar o pornográfico. Mas entre Baudrillard e Barthes que condenam, e Sontag, que reabilita a pornografia, situa-se o problema central: a dificuldade dos limites, causada pela sobreposição erótico/sexo-visual que se corporifica em livros, revistas, filmes, enfim, nas mais diversas produções da cultura. É, portanto, dentro da relatividade, característica do que é cultural, que o problema pode ser encarado:

Sabe-se muito bem que aquilo que uns consideram pornográfico não o é para outros, e aí pesam não só as diferenças históricas, étnicas ou culturais, mas, também as subjetivas e individuais.
A variabilidade dos critérios que julgam se uma obra é ou não pornográfica é tão grande que além da referência geral à sexualidade, pouco mais pode se dizer deles. Vários livros que hoje são considerados clássicos da literatura, outrora foram acusados de obscenos e proibidos sumariamente. (Moras, 1985:11)

Dessa forma, nosso olhar sobre o erotismo não se dirige em busca de definições, de verdades a encontrar e proclamar. Estamos dentro do caminho do risco, sem dados a assegurar fatos, sem modelos a oferecer, sem garantias. O conceito de erotismo e sua representação encontra-se interligado a tudo o que a sociedade vê como erótico, recebe-o e assim o rotula. Reconhecendo a dificuldade para o esboço de fronteiras, não vamos instituir a representação pornográfica como antítese da erótica.
O que temos a constatar é que há, por vezes, a sobreposição, porque em se tratando de cultura não há fatos estanques, há possibilidades que se interligam. Entretanto, se, por um lado, não podemos relegar a possibilidade de interseção entre a representação erótica e a pornográfica, por outro, veremos a impossibilidade da redução. O erotismo não pode ser reduzido ao obsceno, porque nele não se esgota: o que perfaz o erotismo é sua dimensão intrinsecamente humana.
Há um saber inerente à experiência erótica, um saber específico, diferente, tão diferente e inusitado que promove a constituição de um sentido que nenhuma outra experiência humana comporta. Por isso, o erotismo não pode transformar-se em mercadoria nem assimilar o fetiche dos objetos.
Entendendo a relatividade cultural do conceito e da representação e rejeitando posições proscritivas ou preconceituosas, acreditamos que há um sentido subjacente no erotismo, em busca do qual direcionamos esse trabalho. Dessa forma vamos, em seguida, reconsiderar o termo erotismo através dos conceitos da transgressão erótica e do conhecimento que ela faculta ao sujeito.

3. A transgressão erótica

Seguindo Georges Bataille, vamos considerar a transgressão aos interditos culturais como impulso fundamental para a gênese do erótico e seu desenvolvimento. Estamos adotando uma posição conceitual que dilata as fronteiras de sentido do termo erotismo, o que nos permite considerá-lo como uma das vertentes culturais do homem.
Inserindo erotismo na cultura, Bataille situa-o como elemento diferenciador entre o Homem e o animal:

Primeiramente, o erotismo difere da sexualidade dos animais no ponto em que a sexualidade humana é limitada pelos interditos, cuja transgressão pertence ao campo do erotismo. O desejo do erotismo é o desejo que triunfa do interdito. (1987:238

Nessa perspectiva, a gênese do erotismo está ligada à constituição dos traços definidores do Homem, que se desvencilha da animalidade ao transformar a sexualidade em erotismo. Através do trabalho, da compreensão e consciência da morte, e da passagem da sexualidade livre à sexualidade envergonhada, da qual nasce o erotismo, o Homem desvencilha-se da animalidade. Assim, enquanto elemento que confere ao Homem sua especificidade em relação ao animal, o erotismo não deve ser visto como uma coisa, um objeto ou um fato concreto. Contrário à reificação do tema, Bataille diz tratar-se de uma experiência que não se deve apreciar de fora como uma coisa porque a intimidade ("o que profundamente está em nós") (1987:153) é uma das suas marcas centrais. É dessa forma que o erotismo identifica-se com a experiência interior, assim definida:

Chamo experiência uma viagem ao término do possível do homem. Cada um pode não fazer esta viagem, mas, se ele a faz, isso supõe negar as autoridades, os valores existentes, que limitam o possível. (Bataille, 1992:15)
O homem ignorante do erotismo é tão alheio ao término do possível quanto ele é sem experiência interior. (Bataille, 1992:31).

Se se trata de uma experiência que nega os valores existentes, é porque ela se situa no plano da ruptura com o ordinário, implicando uma oposição ao habitual, ao comum, e estabelecendo-se como diferença. Para atingir o término do possível é necessário promover uma cisão no mundo estabelecido, negando as formas autoritárias do conhecimento. Em outras palavras, a passagem do habitual ao erótico implica o rompimento do equilíbrio da ordem e dos limites impostos pela razão.

Em primeiro lugar, no extremo do possível, tudo se desmorona: até memsmo o edifício da razão, um instante de coragem insensata, e sua majestade dissipa-se; o que subsiste, no limite, como um pedaço de muro vacilando, aumenta, e não acalma, o sentimento vertiginoso. (Bataille, 1992:46)

Ora, se o erotismo puder ser entendido dessa forma, veremos como seu conceito pode ser redimensionado. A condição para a realização da viagem que desloca o sujeito ao término do possível não é outra senão o desvio das normas em que está sedimentado o real. É transgredindo, rompendo o cerco dos limites impostos pelos interditos culturais, que se torna possível a experiência interior, capaz de proporcionar a percepção de um novo tipo de conhecimento.
Dessa forma, visto como experiência que implica a reversão dos limites instituídos pela realidade e seus interditos epistêmicos, o erotismo pode ser compreendido em sua natureza essencialmente transgressora. Nas sociedades, de modo geral, independente do tempo e do espaço, o interdito está na gênese da conduta erótica, cuja transgressão é possível porque existem as proibições. Assim, a relação entre o erotismo, o interdito e a transgressão é profunda e essencial para a compreensão do tema:

O conhecimento do erotismo ou da religião exige uma experiência pessoal, igual e contraditória do interdito e da transgressão. (Bataille, 1987:33)

Na verdade, o conjunto de normas, limites ou imposições, que varia de época para época ou de lugar para lugar, paradoxalmente, não suprime o erótico, mas torna-se ao contrário, a força necessária para a afirmação da sua existência, fazendo da transgressão a condição fundamental da experiência erótica. Em primeiro lugar, pensemos no mundo do trabalho, para o qual o homem destina grande parte da sua força. A energia canalizada para o trabalho representa perda na erotização:

Aliás, uma sexualidade livremente transbordante diminui a aptidão para o trabalho, da mesma forma que um trabalho contínuo diminui a fome sexual. (Bataille, 1987:152)

Ora, inserido no mundo do trabalho, que se ordena pela razão convencional e para o qual destina parte da sua energia, o ser humano, ao viver a experiência interior do erotismo, sente-a como uma oposição violenta e violadora a tudo o que o cerca. Enquanto o trabalho representa o possível dentro de seus limites, a experiência interior traz a possibilidade de reversão desses limites. Nisso reside a natureza da transgressão erótica: de um lado estão as proibições ligadas à ordem; de outro, a possibilidade de ultrapassar o ordinário e resgatar o que o mundo do trabalho e da razão sonegam.
A essência da transgressão erótica está, portanto, na eclosão do cerco da limitação racional constituída pelos interditos. Nesse sentido, Bataille entende o erótico como o domínio da violência, elemento que escapa ao controle da razão e que o mundo do trabalho exclui através dos interditos.
O conceito de violência em Bataille apresenta uma bifurcação: em sentido mais geral, trata-se do elemento anti-racional que se opõe à ordem do mundo do trabalho; em sentido mais restrito trata-se da força que anima os órgãos sexuais distendendo-os até o limite máximo. É a pletora, momento em que o corpo passa do repouso à excitação física, cuja base - a dilatação dos canais sangüíneos - desfaz o equilíbrio orgânico habitual. Por isso, a violência erótica carrega em si uma negação desordenada que põe fim a toda possibilidade de discurso: ela é contrária ao princípio da linguagem. Nesse ponto, Bataille identifica a violência como resgate da animalidade e faz desta a base da atividade erótica:

O erotismo é, de forma geral, infração à regra dos interditos: é uma atividade humana. Mais ainda que ele comece onde termina o animal, a animalidade não deixa de ter o seu fundamento. (1987:88)

Eis então que se delineia o paradoxo da transgressão erótica: em sua gênese o conjunto interdito/transgressão transforma a sexualidade humana em erotismo opondo o homem ao animal. Em seu desenvolvimento o resgate da animalidade perdida torna-se o fundamento do processo.
Pensando no erotismo dos corpos, Bataille concede amplo espaço à violência, que encaminha a perda da razão e leva o homem ao resgate da animalidade. Esse é um ponto fulcral no entendimento da transgressão erótica, mas vemos que, na experiência interior que conduz o Homem ao término do possível, não é a animalidade que predomina. Na transgressão erótica é, antes, a interseção entre humanidade/animalidade, e violência/razão e interdito/transgressão o que faz dela uma experiência diferenciadora das outras infrações. Por isso, acreditamos que no erotismo nenhum elemento é exclusivo. Se acatarmos que domina a violência por exclusividade encontraremos a pura animalidade. Da mesma formaa, se aceitarmos a perda total da consciência, perderemos o momento crucial em que violência e consciência completam-se, fazendo do "fora de si" um novo "estar em si", a constituição de uma outra forma de razão, da qual advém o prazer. Dessa forma, a transgressão erótica situa-se como uma possibilidade de rompimento dos limites que impedem a visão da multiplicidade humana na interseção das suas oposições. É essa ruptura provoca o abalo, a eclosão. A viagem interior, de base íntima, que descortina o que vai além do possível não se realiza sem o eclodir de tantas barreiras.
Por tudo isso, o resgate da dimensão erótica, permanentemente aniquilada pelas regras do real, é sempre difícil e promove variados conflitos. É preciso dizer não, é preciso violar, rompendo o cerco do medo. A passagem de uma vida deserotizada à luminosidade do conhecimento erótico transforma-se numa negação transgressora, que se estende como oposição aos limites do mundo do trabalho e da razão convencional. Sem essa violência, a ninguém será possível a experiência do erotismo - essa viagem múltipla, não uniforme, que coloca o homem na interseção dos seus contrários, descortinando-lhe a possibilidade de um novo saber - o conhecimento erótico - cuja especificidade torna-se importante considerar.

4. O conhecimento erótico

Entendido como experiência interior, de base íntima, o erotismo pode ser visto como uma modalidade epist^mica que possibilita ao sujeito vencer os limites do possível. Nesse sentido, a experiência apresenta um caráter singular, porque favorece a apreensão de um tipo extremamente específico de conhecimento. Não é fácil precisar, objetivamente, a natureza desse saber. É preciso pensar, inicialmente, na inserção existencial problemática dos indivíduos, cercados pelas limitações do real. Inerente à própria condição humana, a existência individual é marcada por uma ausência atemporal e trans-histórica. Para além do conforto material a que os grupos sociais têm acesso e, por melhor que seja a qualidade de vida, há uma busca interior, perene e nostálgica, que devolve o ser à melancolia do existir. Persiste a vontade de mudar, de ter coragem, de romper para preencher o que falta. A essa vontade ontológica que permeia a vida social, Guattari (1986:215) denomina desejo:

Por não querer me atrapalhar com definições complicadas, eu própria denominar desejo a todas as formas de vontade de viver, de vontade de criar, de vontade de amar, de vontade de inventar uma outra sociedade, outra percepção de mundo, outros sistemas de valores.

É, pois, enquanto vontade de rompimento dos limites socialmente instituídos que se situa o desejo ontológico, de modo geral, e em particular, o desejo erótico. Como forma de resistência ao tédio, à náusea de existir, à inadaptação, enfim, contra a angústia decorrente de uma inserção sócio-existencial falaciosa, o desejo do erotismo constitui-se como uma vontade de tornar possível o resgate de uma dimensão humana cotidianamente amputada pelo cerco das condições inerentes à existência.
Bataille (1987:15) traduziu perfeitamente bem o abismo em que se constitui a vida humana ao contrapor duas noções ontológicas fundamentais: a descontinuidade e a continuidade. Entre um ser e outro há um abismo produtor do isolamento, do fechamento do ser dentro dos limites da sua individualidade: é a descontinuidade, sentimento da nostalgia da continuidade perdida que comanda as três formas de erotismo:

Mas essa nostalgia comanda em todos os homens as três formas de erotismo. Falarei sucessivamente dessas três formas, a saber: o erotismo dos corpos, o erotismo dos corações e, finalmente, o erotismo sagrado. Falarei dessas formas a fim de deixar bem claro que nelas o que está em questão é substituir o isolamento do ser, a sua descontinuidade, por um sentimento de continuidade profunda. (Bataille, 1987:15)

A substituição do descontínuo pelo sentimento da continuidade, presente nas três formas que Bataille postula, constitui ponto fulcral para o entendimento do erotismo como passagem de um estado de conhecimento a outro essencialmente distinto. A recusa do fechamento em si mesmo leva o ser a abrir-se para o erotismo, através de uma experiência que, apesar de interior e íntima, tem por base a procura do outro como forma de vencer o solipsismo e constituir um novo modo de inserção no mundo. Caracterizando-se por produzir um novo estado ontológico, cujas etapas encaminham a negação do fechamento do ser em si mesmo, a experiência erótica implicará, sempre, nessa visão, o rompimento do cerco da descontinuidade. Essa ruptura formará a base epistêmica para a constituição de um novo saber em que se dá a passagem do secreto à epifania, aqui entendida como revelação de um novo conhecimento cuja essência é a percepção do sentimento da continuidade ontológica. O entendimento acerca dessa semântica é fundamental para a compreensão da peculiaridade do saber proporcionado pela passagem de um estado epistêmico a outro. Não se trata de um conhecimento objetivo sedimentado em certezas: ao vencer os limites da descontinuidade, não há mais a objetividade do real. Ao sentimento de continuidade que se vai apoderando do ser corresponde a fluidez, o desabar das certezas, a dúvida entre o possível - que se rompe e o impossível que se descortina. É nesse ponto movediço, quase uma fissura, que o conhecimento erótico permite a percepção desse saber em que predomina a disponibilidade da emoção.
O segredo do erotismo, seu sentido mais profundo, tem raízes na ultrapassagem de uma ordem de conhecimento para outra. A abertura do descontínuo para o extraordinário da continuidade implica a dissolução do ser constituído na descontinuidade e sua imersão na luminosidade que o saber erótico pode proporcionar. Por isso, Bataille (1987:211) aproxima a experiência erótica da experiência mística, vendo as semelhanças ou mesmo equivalências e trocas entre os dois sistemas de efusão.
A continuidade que se revela ao ser descontínuo é para Bataille (1987:77), o sagrado, que se opõe ao mundo profano da descontinuidade. Nesse sentido, a diferença entre as três formas de erotismo (dos corpos, do coração, e o erotismo sagrado) oblitera-se em prol da redução do erótico ao místico à medida que "todo erotismo é sagrado". Bataille (1987:15). O que está, portanto, em pauta é o caráter extraordinário de uma experiência interior que, por sua singularidade, é aproximada, por Bataille, à santidade:
"A experiência erótica, entretanto, talvez seja vizinha da santidade". (1987:235)
A aproximação místico-erótico toma por base a intensidade extrema que caracteriza as duas experiências. Bataille (1987:25) não chega a identificar a natureza do erotismo com a da santidade, mas insiste no ponto em comum:

Por enquanto, contento-me com olhar a emoção da santidade de um lado e a emoção erótica de outro, enquanto objetos de extrema intensidade. (1987:235)

Ora, o erótico e o místico tocam-se porque constituem experiências que rompem com o mundo ordenado em que impera a descontinuidade. Constituem estados emocionais que permitem a passagem do descontínuo ao contínuo e, enquanto tal, inserem-se contra a angústia inerente à existência, ao estar no mundo.
Surgem como formas de preenchimento do vazio e respondem à procura incessante, à busca perene e nostálgica, ao desejo de preencher a falta, ou à vontade de inventar uma outra sociedade, ou uma outra percepção de mundo, como nos disse Guattari (1986:215) em sua definição de desejo.
Acreditamos que, visto dessa forma, o conceito de erotismo pode ser redimensionado, permitindo o discernimento entre o que hoje se encontra produzido e recebido como erótico e o que, de fato, constitui a singularidade do erotismo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


1. BARTHES, Roland. A Câmara Clara. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984.
2. BATAILLE, Georges. O Erotismo. 2. ed., Porto Alegre, L & PM, 1987.
3. . . A Experiência Interior. São Paulo, Ática, 1992.
4. BAUDRILLARD, Jean. A Transparência do Mal. 2. ed. Campinas, SP, Papirus, 1992.
5. . Da Sedução. Campinas, SP, Papirus, 1991.
6. GUATTARI, Felix & ROLNIK, Sueli. Micropolítica. Catografias do Desejo. 2. ed. Petrópolis, Vozes, 1986.
7. MORAES, Eliane & LAPEIZ, Sandra. O que é Pornografia. Sao Paulo, Abril Cultural Brasiliense, 1985 (Col. Primeiros Passos).
8. PARKER, Richard G. Corpos, prazeres e paixões. A Cultura Sexual no Brasil Contemporâneo. São Paulo, Best Seller, 1991.
9. SONTAG, Susan. "A Imaginação Pornográfica". In: A vontade Radical. São Paulo, Companha das Letras, 1987.


Ana Maria Macêdo Valença é Mestre em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Professora de Crítica Literária, Literatura Portuguesa e Produção de Texto da Universidade Federal de Sergipe.
Endereço residencial:
Rua José Ramos da Silva, 306 ap. 402 Ed. Antares
49020-200 - Aracaju - SE


Retorna ao índice