HISTÓRIA DE CAVERNA*

 

Véra Lucia dos Reis
UFF - Universidade Federal Fluminense/CNPq


Resumo

A análise de Ceci est mon corps, de Robert Lalonde, autor canadense de Língua Francesa, busca verificar as marcas de repetição e diferença realizadas na e pela escrita, a partir da interpretação da paisagem de um texto que discute a mestiçagem e o mito. Procuramos identificar os discursos que se cruzam no texto e os cenários enunciativos que funcionam como uma espécie de estratégia subversiva realizada pelo jogo enunciativo.

Résumé
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L'analyse de Ceci est mon corps, de Robert Lalonde, auteur candien de Langue Française, cherche à repérer les traces de répétition et de différence qui s'effectuent dans et par l'écriture, à partir de l'interprétation du paysage d'un texte qui discute le métissage et le mythe. Nous cherchons à retracer les discours qui se croisent dans ce texte, ainsi que les scénarios énonciatifs qui fonctionnent comme une sorte de stratégie subversive rendue possible par le jeu énonciatif.

 


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One learns a landscape finally not by knowing the name or identity of everything in it, but by perceiving the relationships in it - like the sparrow and the twig..."

Barry Lopez

 

 

 

 

 

Compreender o mundo refletido no flanco do peixe que, ao saltar, traz consigo o rio; compreender o universo refratado, refletido, devolvido nessa água que se desenha no ar é o sonho de Robert Lalonde, autor canadense de língua francesa. Mestiço de branco com índio, romancista, poeta e contista; ator de teatro e de televisão, Lalonde produz um texto que parte da natureza e que é parte dela, pela força da imagem.

O aparecimento de seus livros tem sido saudado com entusiasmo. Contudo, as avaliações parecem associar muito diretamente a origem do escritor e seu gosto pela natureza. Jean-François Chételat (1997), por exemplo, situa Lalonde entre os escritores que são seduzidos por ela, que a tomam nos braços e apertam com força, revelando-se na sua existência telúrica. Para Chételat, Robert Lalonde é um autor fascinante e indispensável, pois se exprime numa língua francesa pura e irrepreensível, sendo ainda profundamente americano pelos grandes espaços que traz em si.

A avaliação não deixa de comportar algum risco, já que pode nos levar a supor que o crítico justifica o gosto da natureza pela origem "telúrica", ou seja, a situação de mestiço, que levaria fatalmente a uma ligação estreita com a natureza, longe da cultura. Por outro lado, caso não se possa esquecer essa origem, o uso de uma língua "pura", "irrepreensível", serviria como absolvição para a audácia de escrever, sendo quase um índio.

Ora, já se falou o suficiente sobre a questão de pureza da língua (ou das línguas) e não desejamos insistir aqui sobre o assunto. Interessa-nos, antes, lembrar o que próprio Lalonde apresenta como sendo sua língua: "un bouillon de langage", mistura da aprendizagem simultânea do francês, do inglês e do falar iroquês.

"(...) je n'ai jamais élucidé mon baragouin , désambiguisé le mélange. Parce que je l'aime et m'y suis habitué, comme Chamoiseau ou Confiant à leur français créolisé, comme Nabokov à son russe-américain. (...) Et j'en invente, c'est bien sûr, j'en ajoute encore, je fais mon prolixe, mon grand curieux, mon beau parleur, et j'aime ça et je vois bien - avec une joie maboule, buoyant, irrépressible, que ça n'a pas, n'aura pas de fin. (LALONDE, 1997, p. 49)

Na água que escorre do flanco da truta em saltos, na água dos lagos, dos rios, das correntes, das águas mortas, dos pântanos e das simples poças d’água, Lalonde vê o mundo que se oferece invertido, recriado. A água parece ser o elemento em que vive a escrita desse autor, exposta em Le monde sur le flanc de la truite. Notes sur l'art de voir, de lire et d'écrire (1997):

Le monde dans l'eau - y en a-t-il assez de criques, de lacs, de rivières, de courants, de sources, d'eaux mortes, de marécages et de simples trous d'eau de pluie, dans mes romans! Le monde pour ainsi dire redonné, sens dessus-dessous, recréé. Le monde revisité de la fiction. "L’echo du monde, cette création à l’envers et qui me donne l’illusion d’engendrer à mon tour". (p. 17).

Lalonde procura gerar a partir da paisagem, transformando-a, tirando-a do mundo para de novo inscrevê-la nele. A paisagem se torna natureza enxertada de memória, movente, escorregadia como o rio, sedutora como a água placentária.

Tem razão André Ricard, quando observa que "Les paysages sont là pour nous apprendre l’inconcevable: nous y sommes en transit; et nous transitons seuls. C’est dur comme une mise au monde et c’est pourquoi nous appartenons au paysage comme à la matrice qui nous aurait engendrés" (1991, p. 23) Na matriz, na caverna ou subterrâneo, o sentido prolifera: a escrita vai desfiando relações alquímicas, por meio das quais mitos e ritos surgem na paisagem que a letra desenha.

A criação literária funciona desse modo como landscape onde estão imbricadas as muitas paisagens - a interior e a exterior, a da invenção-criação e a da política, a da vida na história, em simultaneidade. O próprio Lalonde, ao falar de um ritual cantado dos índios navajos, que tem como objetivo "restaurer, chez l'individu prostré et mélancolique, la claire certitude de son immanence, de sa nécessaire présence au monde" (LALONDE, 1997, p. 179), conta que, para esses índios, nós existimos exatamente na interseção de dois mundos, de duas paisagens: o universo cosmológico e a alma - "the interior landscape". E quando traduz a palavra landscape, acrescenta: "Landscape signifie paysage mais aussi panorama et coin de pays" (p. 179).

Lembrar, nos dias de hoje, um relato que evoca o tempo circular, seria já começar com o que foi deslegitimado por práticas da performance e da descontinuidade? Ou ainda que a tradição de grupos que invocam as forças da natureza de nada servem para pensar uma escrita sofisticada, tecida de referências e alusões à mais complexa rede de autores no Ocidente? Pelo contrário. Os estudos antropológicos vêm mostrando a complexidade e a qualidade das relações que os grupos humanos mais isolados podem estabelecer com o meio natural e que há, segundo Marc Augé, em seu Por uma antropologia dos mundos contemporâneos, "uma relação entre homens subjacente e até inerente às relações do homem com a Natureza" (1997, p. 44). Os ritos funcionam como mediações entre os homens e, muitas vezes, a "relação com a Natureza e a relação com o inumano são indistinguíveis". (p. 45)

Ao examinar a atualidade e a exigência da Antropologia em seu livro manifesto, Augé nos encaminha para a necessidade de se fugir quer da defesa exclusiva do plural, quer da afirmação irrefutável da unidade. O adjetivo "contemporâneo" implica "a pluralidade dos mundos que ele qualifica", obrigando-nos a perceber que "cada um deles está em comunicação com os outros, que cada um possui pelo menos imagens dos outros (...)". (p. 141).

Neste sentido, a cena do texto literário é privilegiada, visto que se dá em recortes e recomposições de discursos vários. O texto de Lalonde é atravessado pela memória dos índios na América, pelos largos espaços do Continente, enlaçando histórias já contadas, e no qual o modo como se efetua a nomeação dos elementos da natureza constitui dado fundamental para a interpretação.

É essa ligação entre paisagem e texto que vamos procurar em "Ceci est mon corps", uma história de Robert Lalonde, do livro Où vont les sizerins flammés en été? (1996), entendendo que "uma narrativa só se oferece como assumida por um narrador inscrito num tempo e num espaço que compartilha com seu narratário" (MAINGUENEAU, 1995, p. 121), e que constitui a cenografia de uma obra. Ela define as condições de enunciador e co-enunciador, o espaço (topografia) e o tempo (cronografia), dos quais se desenvolve a enunciação. (p. 123). É importante lembrar que os textos reivindicam cenários enunciativos preexistentes, a fim de construírem antiespelhos ou estratégias subversivas através da enunciação. (p. 127). O jogo de qualificação e desqualificação de discursos precedentes constitui um procedimento cujo dinamismo só a leitura pode demonstrar.

Inventamos outra narrativa, tecendo nossas frases com as das "Notes sur l'art de voir, de lire et d'écrire" de Lalonde, a fim de mergulharmos na correnteza das histórias. Em seu deslizar, elas afloram sempre outras, porque sempre as mesmas, prontas a esfacelar a unidade do sujeito que recorda, esquece e se desintegra na ficção, mas que suspende o tempo, ajudando a "empêcher la déroute des espérances" (LALONDE, 1997, p. 85).

Desde o primeiro contato, o que surge em transparência em "Ceci est mon corps" é o Novo Testamento, não apenas no título, que se refere diretamente à Eucaristia, mas também no incipit que reduplica o modo como Mateus, Marcos e Lucas introduzem cada um dos capítulos de suas narrativas: "Naqueles dias" ("En ces jours-là"), dizem os Evangelistas; "C’est ce jour-là", ecoa o narrador de "Ceci est mon corps". A apropriação se faz em antiespelho, forma de estratégia subversiva, pois no texto dos Evangelhos usa-se o plural para sublinhar a continuidade das ações, enquanto aqui emprega-se o singular para demarcar um momento preciso, um recorte no tempo e na vida do personagem narrador. Aquele dia não anuncia uma boa nova, mas um sacrilégio. Gilles, o mestiço, havia roubado o Santo Sacramento do Tabernáculo da Igreja.

O anúncio do gesto de ruptura é imediatamente interrompido, dando lugar não só à descrição do espaço-tempo por onde caminha o personagem, mas também à narração da crise que experimenta. O incipit condensa essas marcações através da notação temporal que descreve o percurso daquele dia de verão. A chuva do entardecer transforma os caminhos da cidadezinha "en boue plus salope que la fange de la savane"; à tarde, tudo aparece ressecado, e as pessoas caminham sobre "une croûte épaisse, dure et qui (...) faisait songer au sol en crénage à gâteau séché de la lune, tel qu'avait commencé à nous montrer le magazine Life qui envoyait déjà des satelites-photographes dans la nuit des étoiles" (p.147) Essa referência introduz um indício que será negado pelo desdobramento mesmo do texto, mas que serve para caracterizar a cenografia, ou seja, a situação de enunciação. O narrador cria, por meio dela, uma oposição entre o mundo das imagens coaguladas na fotografia e a imensa noite das estrelas, assim como da terra que prefere palmilhar, embora "quente como o inferno".

A comparação entre o calor do verão e o inferno se desdobra e completa na situação que vive o narrador adolescente. Segundo Jean Delumeau, as imagens de inferno se produzem em atmosfera de crise, testemunham, entre outras manifestações, certo mal-estar na sociedade, como por exemplo, durante o Renascimento: "Conjointe au regret de l'âge d'or, la prédilection pour les thèmes - parents l'un de l'autre - de la folie et du monde renversé constitue une autre indication sur le pessimisme de la Renaissance". (DELUMEAU, 1983, p. 143).

Nessa época, todo um panorama social se desenha, a iconografia toma posse do tema do pecado. Inúmeras gravuras representam o orgulho reinando sobre a copa das árvores, ao mesmo tempo que, de cada ramo, brota a cabeça de um dragão da qual surge um personagem representando um vício. (p. 265).

Para Delumeau, Satã é um bode expiatório: "Il explique les maux et les malheurs qu'on ne peut comprendre autrement. Il y a dans l'humanité un besoin de justice, et on souhaite que ceux qui ont mal agi et qui ne sont pas punis sur terre le soient un jour d'une autre façon". (1997, p. 23)

No texto que analisamos, o mal-estar transparece em dois momentos. O primeiro, em nível pessoal, no desejo de adaptação e de inserção na comunidade dos adultos por parte do narrador. O segundo atingindo o imaginário do grupo social em que está inserido. Tratemos primeiramente da situação do narrador.

A observação do narrador - "J'avais pour ma part, les pieds drôlement sur terre, cet été-là, bien trop à mon goût", inserida imediatamente após a referência à lua reproduzida nas fotos da revista Life - é desmentida pela descrição das sensações que experimenta.

Do inferno citado no primeiro parágrafo passa-se ao limbo onde se debate o jovem que procura reproduzir a arrogância solene dos rapazes mais velhos, no andar e no modo de olhar. A marcação temporal ganha a forma do imperfeito, portanto da continuidade e do inacabado reproduzidos nos hábitos que o verão lhe impunha. A natureza ressequida apresenta-se ora antropomorfizada, ora igualando-se aos monstros que habitam o menino. Atraído pela água, contempla os peixes que nadam indiferentes, e os transforma em seres infernais, tal como no "Inferno" de Dante, ou na " Tentação de santo Antônio" de Brueghel, ao visualizar a própria transformação:

J'imaginais que des branchies et des nageoires me poussaient entre les côtes, et me voyais plonger, nager aisément jusqu'aux hauts-fonds que je frôlais, en quête de ces beaux monstres, mes pareils, lovés dans des replis rocheux qui faisaient briller dans l'eau verte leurs gros yeux globuleux de prédateurs embusqués.(147)

As árvores avançam em sua direção, "comme attirés par le goût de mort qui me mangeait tout dedans" (p. 147) Sentado à beira do rio, rolando pelas dunas, caminhando como um sonâmbulo "dans ce monde d'arbres, de ciel, d'eau et d'humains, apparemment tous accoutumés à cette nuit de plein jour où j'étais un "étrange" parmi les tranquilles" (p. 148), o narrador fala a partir de seu deslocamento. A inversão que vê no dia o atributo da noite, bem como o antagonismo "estranho"/tranqüilos, podem ser motivadores de uma reflexão de ordem cultural.

A passagem do limbo ao deserto se faz por dupla marcação. A primeira evoca a solidão em que vive ("J'étais plus seul dans la pinède que ces voyageurs de désert"); a segunda recupera as experiências de leitor. O narrador assume a situação daquele que atravessa o Sahara no qual foi lançado pelo universo dos livros de aventuras. A partir desse ponto intensificam-se as qualificações de fogo e de secura: são os pinheiros que flamejam, é o riacho que se esgota, são os olhos febris da galinha d’água que vão resultar na imagem de apocalipse e de recusa da vida. Tem a sensação de ser

le témoin spectral de la dernière journée de la terre. Cette impression m'exaltait et m'effrayait en même temps, et surtout, bien sûr, me confirmait dans mon idée générale que le monde était invivable pour les bêtes comme pour les humains. Nous étions tous, arbres, animaux et choses, des morceaux insensés de présence et de passion pour rien, éparpillés, jetés au hasard, en chute libre et folle. (149).

A topografia do texto está sempre em movimento de interiorização-exteriorização. O narrador representa a si mesmo como um réptil: "Je ne savais pas pourquoi je montais, sinon pour abandonner, comme un serpent ses vieilles écailles, la créature que j'étais au ras du sol, errante, inquiète et écrasée par le feu du ciel". (p. 150) Observamos que o léxico restitui as leituras bíblicas de tentação de deserto, significando a necessidade de afastamento que possibilite o mergulho na própria condição, mesmo arriscando-se a expor-se a outra forma de tentação, e nas soluções para se escapar a ela. Simultaneamente, o semantismo que acompanha o detalhamento dessa mesma condição leva a uma interpretação de redução da criatura à sua miséria. Essa seqüência de atributos associa-se a um quadro no qual o pinheiro, velha árvore cujas raízes semelham serpentes, e o rio, uma corrente de lava, remetem a inferno na condição de espaço de punição.

E é naquele dia, naquele momento preciso em que o mundo queimava, dentro e fora do narrador, que encontra Gilles Rézenne, como quem encontra o Tentador no retiro do deserto. Quem é Gilles? Um companheiro de classe, um gars étrange cujo nome faz eco ao de Gilles de Rais, o companheiro de Jeanne d'Arc, que teria perpetrado as ações mais terríveis e diabólicas depois do suplício da companheira de armas, resumindo em si o heróico e o monstruoso.

O índio Rézenne surge sonoramente na narrativa, do meio das árvores, imitando o grito de uma ave de rapina e distraindo, assim, o narrador que se preparava para rolar como um morto na terra crestada. Sua aparição provoca medo e uma certa inversão no enunciado. Os aspectos infernais que qualificavam o de fora a partir da situação interior, deslizam para a figura de Gilles e de seu comportamento na escola dos padres.

A descrição física do mestiço retoma e alarga a descrição do mundo agressivo que envolve o narrador, mas com uma diferença fundamental, a marca da impessoalidade. O narrador não assume integralmente as qualificações atribuídas a Gilles senão pelo que lhe é externamente perceptível. Repete o que dizem dele, uma lenda que conta sempre a aparição de uma entidade maléfica. Seria alguém que

se plantait devant vous quand vous croisiez son imprévisible chemin, vous dévisageait avec de grands yeux fous de court-les-bois et murmurait dans sa salive des imprécations en un parler incompréhensible tricoté de français, d'anglais et de syllabes d'iroquois. (p. 151)

Gilles possui os traços da atuação do demônio. Como o Maligno, surpreende suas vítimas no caminho, exala cheiros pútridos como o de lebre morta e de rãs estripadas, encara as pessoas com olhar enlouquecido. Vemos que as qualificações reproduzem as características da perversão e da loucura, na linguagem, no odor e no olhar, além de trazerem para a cena o coureur des bois.

Esse personagem, presente no imaginário quebequense na qualidade de amante da floresta, fascinado pelos grandes espaços e pela liberdade, nem sempre foi visto como um emblema do desbravamento do território. Suas atividades foram consideradas ilegais, pois era acusado de desertar as terras e as plantações, em troca do comércio de peles. (LACOURSIÈRE, 1995, p. 86). Muitos viam os hábitos dos coureurs como desregramentos, segundo os comentários do Mémoire de 1705:

la vie des coureurs des bois est une perpetuelle oisiveté, qui conduit à toute sorte de débauches. Ils dorment, ils fument, ils boivent de l'eau-de vie quoiqu'elle coûte; et souvent ils débauchent les femmes et les filles des Sauvages. (p. 87)

A violência que é atribuída ao grand métis, associada a uma herança histórica, vem narrada de modo impessoal, o que exime o narrador de qualquer concordância com esse discurso. Contam-se lendas a seu respeito, imagina-se que teria surrado irmão Léon, ritmando os golpes de strap com gargalhadas de animal enlouquecido à semelhança das figuras dantesca nos círculos infernais.

Observamos que, embora Gilles viva exilado no fundo da classe, seus desenhos são conhecidos e admirados: "extraordinaires bestioles à trois têtes ou à huit paires d'ailes, que nous admirions avec effroi et respect, sans oser lui demander où il les avait d'abord aperçues" (p. 151). Para os colegas, o silêncio diante dos desenhos é necessidade de segurança. De onde podem ter saído tais criaturas, senão da imaginação de quem compactua com o mal?

Para o leitor, essas figuras oníricas poderiam evocar os temas de Bosch e Brueghel em que a santidade e o pecado, o inferno e o paraíso coexistem sobre a tela, marcando a ambivalência da própria condição humana, assim como o transbordamento carnavalesco e os ritos populares. Entretanto, pode-se supor que, para o grupo social em que os personagens desse conto vivem, tais marcas se relacionam ao mal-estar cultural ao qual nos referimos, e que proviria da condição étnica de Gilles.

A teologia barroca que serve de base à colonização ensina ao índio que seus ancestrais foram entregues à danação, o que leva o branco a vê-lo inserido num quadro assustador. Em A história do medo no Ocidente, Jean Delumeau afirma que, na época da Renascença, "os ocidentais têm a surpresa de constatar que o império do diabo é muito mais vasto do que haviam imaginado antes de 1492" (1996, p. 260). Satã estava refugiado nas Índias e reinava na América como mestre absoluto.

Até aqui, as marcas do enunciado remetem ao modelo herdado da colonização. A partir do encontro dos dois rapazes na floresta, nesse verdadeiro mezzo del camin em que o narrador estava perdido, a enunciação começa a desconstruir a monstruosidade que recobre a pessoa de Gilles. Este força o colega a acompanhá-lo para descobrir "quelque chose funny". O qualificativo selecionado ultrapassa o sentido que a tradução imediata oferece, pois "funny", em inglês, além de "engraçado", pressupõe ainda "strange, queer; difficult to understand". Algo, portanto, tão difícil e amedrontador, talvez, quanto a imagem de ser monstruoso, de anjo do mal, que os olhos do narrador percebem para compor a descrição inicial da qual outro Gilles vai surgindo.

Aparecem primeiramente as mãos ( "où les veines paraissaient des petites couleuvres"), em seguida as omoplatas ("saillantes commes des commencement d'ailes"), finalmente, o nariz ("plein de la senteur de sang de mulot et de marais salé") que esboçam a imagem de anjo decaído que o jovem mestiço encarna. Mesmo assim, o narrador deixa-se levar e, como Dante, guiado por Virgílio, entra na caverna.

A topografia do texto muda. Da superfície passamos ao subterrâneo. O trajeto que leva de um espaço a outro vem aprofundar a interrogação cultural que indicamos, além de fazer circular as múltiplas interpretações de inferno. Etimologicamente a palavra designa o subterrâneo, o infra. Di Inferi remete aos deuses de baixo, em oposição aos Superi, os deuses do alto.

Chantal Labre, em artigo minucioso no qual estuda a descida aos infernos na Antigüidade, observa que o termo, a despeito da constelação de significados que contém, aparece sempre contaminado pela acepção cristã que o designa como lugar da punição, sobrepondo-se a outras que testemunham, como no caso dos gregos, a relação com a morte e com a cidade. Retomando a imagem da descida, Labre mostra que em Platão "la descente est l'occasion d'une remémoration multiple, d'un face à face avec le passé, pour mieux dépouiller le vieil homme: plaingénésie spirituelle" (Labre, p. 32). Experiência semelhante será oferecida ao narrador de "Ceci est mon corps" pela mediação do ser mais desprezado pelo grupo.

A caverna de Gilles surge aos olhos do rapaz como possibilidade de espaço maléfico, lugar dos perdidos, tal como é figurado na Divina Comédia, cegando-o par la sournoise noirceur du trou, assim como pela expressão felina do mestiço. Sombras terríveis se projetam na parede. Entretanto, no espaço de tempo que medeia a descida e a chegada ao fundo do antro, outras marcas dão conta da transformação no modo como o narrador vai percebendo Gilles.

Ao comparar seus olhos aos dos faiseurs de miracles, effrayants comme ces pupilles de martyrs sur les gravures de notre livre d'histoire sainte, o narrador parece sublinhar o sacrifício do mestiço. A partir daí, uma nova possiblidade vai se delinear, tanto mais perceptível quanto durante a descida à caverna, experimenta uma inesperada sensação de calma e frescor.

É na semi-escuridão que o narrador vai conhecer o deslumbramento do cruzado qui aurait soudainement, et par le plus invraisemblable des hasards, mis la main sur le Saint-Graal (p. 155), quando abre o pacote que continha o cibório roubado ao tabernáculo. O momento de inocência dura pouco, pois Gilles, com uma risada eqüina, traz o narrador à realidade da profanação: - I got you, là, hein? I got you OK!

Enquanto o narrador tenta recuperar-se do choque da profanação, cavalos passam a galope na superfície, sacudindo a gruta onde, deitado no chão, o "ogro" espalha sobre o ventre as hóstias que figuram pequenas manchas brancas. Logo o narrador se imagina morto, cercado pelo choro dos irmãos, ao som do Dies irae.

Mais uma vez Gilles vem tirá-lo do torpor, anunciando: - Yeah, les chevals de Fred Nolet, qui ronnent au galop, avec le monde de la ville grimpés dessur, pis qui se pensent cow-boys de movie! (156) Não estavam vivendo o Apocalipse, não era o Julgamento Final, nem a cena estava de acordo com o texto do catecismo que o descreve como enorme jubilação.

Enfeitiçado, o narrador contempla de novo a face malvada de Gilles que resmunga, imitando a voz do pároco: Ceci est mon corps. (p. 157), e leva à boca uma hóstia que suspendeu segundo o ritual, para, em seguida, forçar o companheiro a fazer o mesmo. Este imagina desculpas para aceitar o que lhe parece brincadeira, entendendo que, se as hóstias não foram consagradas, como afirmava Gilles, conhecedor do princípio da Eucaristia, não houve profanação.

Curioso, porém, é observar que, se a comunhão foi desmitologizada pelo sacrilégio, foi também remitologizada pelos resultados atingidos. O primeiro desses resultados diz respeito à pacificação do narrador que reconhece aquele que sempre fora ignorado pela comunidade; o segundo aprofunda esse reconhecimento através dos sentidos. Deitado ao lado do companheiro, o narrador inspira os eflúvios, não mais os cheiros, que emanam do corpo de Gilles:

Les effluves de marais et de poils salés qu'exhalait mon ami étaient maintenant avenants comme un arôme de jardin mouillé, et son flanc chaud achevait de m'apaiser, comme la hanche de mon ange gardien, dans mes endormissement d'enfant. (p. 159)

 

Sobretudo, preenche o narrador com um desejo novo, o da reconciliação que desse margem à reescritura da história de Abel e Caim. A amizade se estabelece entre os dois, apagando as diferenças de ordem cultural, construídas pelos discursos reguladores da sociedade que colocaram à margem aquele descendente dos filhos de Satã. Ele conhece tão bem, a doutrina que lhe foi transmitida, que anula a oposição que o narrador lhe oferecia numa comunhão de corpos: je flottais, avec Gilles dans une sorte d'état de grâce que ne m'avait jamais apporté la communion bénie. (p. 159)

Também o mestiço é capaz de resumir o precioso momento de união, embora o faça pela negativa:

- Personne sait c'qui leu z'arrive. On mélange toute, comme des fils de fishing rod quand tu pognes une branche de saule en castant. On tournaille dans le gros bouillon d'une waterfall pis on aboutit dans les shallows de la rivière, pis on reste là, à se laisser swinger par l'eau, à attendre la fin de notre temps sua terre. (p. 160)

Os semas da negatividade e do medo são substituídos pelos da positividade e da paz - jardin e état de grâce - em referência explícita ao Édem conquistado no encontro iniciático, semelhante àquele simbolizado em outra narrativa de Robert Lalonde, Le dernier été des Indiens e comentada por Jean Morency em Le Mythe Américain dans les Fictions d'Amérique (1994). Para Morency,

le mythe américain demeure dans Le dernier été des Indiens et il se trouve justement où il doit se trouver: en marge de l'Histoire, qui se sert de lui dans sa progression inéluctable, sans pour autant l'entamer. Certes, Lalonde nous livre un constat du divorce historique des populations blanche et indienne au Québec, mais en même temps il nous permet d'assister à la rencontre mythique du Blanc et de l'Indien. (p. 205).

Nossa compreensão do mito leva-nos a um outro caminho que nos faz pensar na transformação (e permanência) dos mitos, na sua lógica ambígua, na sua racionalidade densa como a do poema.

Quando Gilles guarda o cibório, o narrador ainda pergunta por que ele o havia roubado. Ao que o mestiço responde: - I didn'nt steel it! Y est à tout le monde, c'est lui même qui l'a dit! (p. 162). Essa fala comprova a apropriação realizada pelo índio e sua efetiva participação na trama dos discursos.

Fora da caverna, a noite vai caindo com a tempestade de verão. Sob os relâmpagos e trovões, dois universos míticos se defrontam, ainda uma vez: Les anges qui déménagent, observa o narrador, introduzindo o imaginário não de todo familiar ao mestiço. Depois, afastam-se, pedindo e jurando segredo, para mergulharem na tempestade.

A relação que se estabelece entre os dois, deitados lado a lado na caverna, como se tivessem podido regressar ao ventre materno, efetiva a Eucaristia pela fraternidade: Où et quand, sinon ici et maintenant, parlerons-nous la même langue, serons-nous ensemble dans le même paradis, le même enfer, la même vie, le même pays? (p.159). Naquele momento e lugar, as fronteiras de língua e de espaço estavam apagadas. Ali se realizava o paraíso possível.

Na caverna ou na aridez da paisagem de verão adolescente, o que se procurou foi um lugar para ser. Nas cavernas da Escritura, ou da escrita como movimento de busca na palavra, Lalonde nos oferece um fragmento da errância humana e nos chama a ser co-enunciadores de sua enunciação, num certo espaço, num certo tempo, nosso, aqui e agora.

A cenografia desse conto reivindica cenários enunciativos pré-existentes. Temos a cenografia bíblica, a clássica e a colonizadora, articuladas segundo uma estratégia subversiva que vai legitimar o discurso da mestiçagem, e não o da via de mão única que se dá pela simples assimilação. Separando-se da cidade para afundar no cenário natural, o conto inverte a expectativa da simples contemplação da paisagem para sugerir que a visão da natureza não pode se separar de uma reflexão sobre a história e a cultura, atualizada indefinidamente na ficção.

Podemos procurar na História e na Geografia as justificativas para a configuração dada aos comportamentos dos índios, lembrando Gilles Ritchot, no artigo "Le sens du Québec: une mémoire inscrite dans l'espace géographique". (1995). Ao examinar o paradigma utópico e o povoamento colonial do Québec, Richot mostra que os exploradores do Renascimento, antes e depois da descoberta da América, valorizam a natureza, en l'absence de toute médiation politique. Les aborigènes sont apparus à leurs visiteurs comme en fusion avec la nature et furent définis selon des critères "ethniques" en ce sens. (p. 178)

O personagem do índio, entretanto, não repete o sujeito que permanece em estado de simbiose perfeita com a natureza, como era do gosto dos colonizadores, pois lhes facilitava o programa utópico de ocupação territorial. Ao contrário, poderíamos trazer aqui, para garantir uma interpretação da obra de Lalonde, as palavras de Simon Shama em seu livro Paisagem e memória: Ao invés de postular o caráter mutuamente exclusivo da cultura e da natureza ocidentais, (...) mostrar a força e os elos que as unem. Essas forças são os veios do mito e da memória existentes sob a superfície. (1996, p. 25).

Como talvez já soubesse Gilles Rézenne.


Referências bibliográficas

AUGÉ, Marc. Por uma antropologia dos mundos contemporâneos. Tradução de Clarisse Meireles e Leneide Duarte. Rio de Janeiro: Bertrand-Brasil, 1997.

CHÉTELAT, Jean-François. Robert Lalonde, Le monde sur le flanc de la truite. Présentation du livre de la semaine. Montréal. Disponível: http://www. gallimard-mtl.com/archives. [Capturado em 12 de outubro de 1997].

DELUMEAU, Jean. Le péché et la peur: la culpabilisation en Occident. XIIIe - XVIIIe. Paris: Fayard, 1983.

______. História do medo no Ocidente. Tradução de Maria Lúcia Machado. 3. impressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

LABRE, Chantal. "Descente aux enfers". L'Enfer. Magazine Littéraire. Paris, n. 356, p. 29-33, juil-août. 1997.

LALONDE, Robert. Où vont les sizerins flammés en été?. Québec: Boréal, 1996.

______. Le monde sur le flanc de la truite: Notes sur l'art de voir, de lire et d'écrire. Québec: Boréal, 1997.

LACOURSIÈRE, Jacques. Histoire populaire du Québec: Des origines à 1791. Sillery: Septentrion, 1995.

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SHAMA, Simon. Paisagem e Memória. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo, Companhia das Letras, 1996.


* Uma primeira vers‹o deste trabalho foi apresentada no VII Congresso da ASSEL-Rio (1997).


Véra Lucia dos Reis é Professora Adjunta de Língua Francesa e Literaturas Francófonas na Universidade Federal Fluminense. Doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ. Publicou, entre outros,
- O perfeito escriba. Política e Letras em Alceu Amoroso Lima. São Paulo: Annablume, 1998.
- "Sobre monstros e mutações (Efeitos de tradução em textos literários)". In: FIGUEIREDO, Eurídice. Recortes transculturais. Niterói: EDUFF/ NECAN, 1997.


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