Katerina Clark e Michael Holquist
Paulo Azevedo Bezerra
Poucos livros foram aguardados com tanta ansiedade
entre os estudiosos brasileiros de Bakhtin quanto Mikhail
Bakhtin de Katerina Clark e Michael Holquist, que acaba de ser
publicado pela editora Perspectiva com tradução do
inglês realizada por Jacó Guinsburg.
Em relação a Bakhtin, acontecia entre nós uma
coisa absolutamente sui generis: bastante conhecido em
teoria da literatura, lingüística, antropologia,
pedagogia e filosofia através de seus livros Marxismo e
filosofia da linguagem (Hucitec), Problemas da poética
de Dostoiévski (Forense Universitária, Rio),
Questões de literatura e estética (Hucitec) A
cultura popular na Idade Média e no Renascimento; o contexto
de François Rabelais (Hucitec) e Estética
da criação verbal (Martins Fontes), além de
estudado em cursos de graduação e
pós-graduação e ser objeto de vários
livros e ensaios publicados por autores brasileiros, ainda assim a
sua personalidade continuava envolta nas trevas do desconhecido. O
livro de Clark e Holquist vem lançar luz definitiva sobre
essas trevas e criar um novo clima para os estudos bakhtinianos entre
nós.
Conscientes das dificuldades de precisar o ponto de vista de Bakhtin
sobre questões cruciais pela falta de
informações a respeito de sua pessoa, de construir um
esboço claro de sua personalidade através de atitudes
que respaldassem o seu modo de pensar, os dois autores tiveram de
sair à procura do seu Graal: fizeram várias viagens
à ex-União Soviética, enfrentaram labirintos
vasculhando arquivos, viajaram a diferentes lugares (quem conheceu a
União Soviética sabe o que isso representava em
matéria de obstáculos) à cata de pessoas que
tivessem convivido com Bakhtin ou ao menos pudessem dar alguma
informação sobre ele, descobriram matérias
publicadas em jornais do interior no período da
Revolução, revolveram arquivos escolares, cartas
inéditas e depoimentos de gente próxima ou distante mas
detentora de alguma pista que levasse a ele, em suma, realizaram uma
espécie de restauração dos passos perdidos nas
brumas de mais de meio século de história. E como
resultado conseguiram montar um impressionante painel do
espaço em que Bakhtin conviveu, no qual se cruzaram sociedades
religiosas com as quais ele teve contato próximo ou distante,
correntes filosóficas, estéticas,
político-ideológicas e sociológicas com que
esteve em comunhão ou polêmica aberta ou velada, em
suma, construíram um cronótopo no qual as vozes que
deram a tônica do século XX se cruzaram, polemizaram,
buscaram cada uma a sua supremacia, resultando daí ora a
polifonia que mantinha as vozes convergentes ou divergentes em algum
tipo de diálogo, ora o monologismo que, ciente de não
conseguir colocá-las na sua "moldura concludente", procurava
abafá-las quer pela proibição de que publicassem
suas próprias obras, quer pelo silêncio da morte, mas
sem nunca conseguir refutá-las porque, com diz Bakhtin, "matar
não significa refutar". Nesse grande cronótopo os
autores contextualizaram a obra de Bakhtin, rastrearam as
motivações da sua obra, dando, com isto, uma
inestimável contribuição para melhor lhe
entendermos os movimentos do pensamento, a sinuosidade da
reflexão. Nisto reside a contribuição principal
do livro.
Comparado aos outros livros sobre Bakhtin, a maior novidade que o
livro traz é estudá-lo como filósofo, e
seus autores partem de uma relação direta que
estabelecem entre a obra bakhtiniana e duas vertentes de pensamento:
um ramo da religião ortodoxa russa, por um lado, e a filosofia
de Kant, mais especificamente o neokantismo, por outro. Tomando essas
duas vertentes como substrato do pensamento de Bakhtin, eles
fazem a sua leitura da obra bakhtiniana e procuram mostrar que
o criador da teoria da carnavalização e do dialogismo
escreveu com um olho na tradição do pensamento
filosófico e estético e outro na sua atualidade, isto
é, em polêmica com as duas. Neste sentido, veio a ser de
importância capital a influência dos estudos do Helenismo
na Rússia, o que marcou profundamente a formação
de Bakhtin e, sem dúvida, refletiu-se decisivamente na sua
teoria do romance baseada na desintegração do
gênero épico, ma qual ele percebeu a
germinação da prosa e seus primeiros passos nos
"diálogos socráticos" e na "sátira
menipéia". Com a parodização das imagens dos
antigos heróis elevados da epopéia e da tragédia
na época do Helenismo, essa desintegração
culminou no surgimento de todo um campo de narrativas orais que ele
chama de "grande território romanesco" e considera o ponto de
partida de formação do futuro gênero do romance.
Mostrar esse clima intelectual em torno do qual viveu Bakhtin
é uma contribuição essencial de Clark e
Holquist.
Em face da nebulosidade que envolvia o nome de Bakhtin, durante anos
perdurou a dúvida quanto à autoria dos livros
Marxismo e filosofia da linguagem, O freudismo e O
método formal nos estudos de literatura, assinados os dois
primeiros por Valentin N. Volochínov e o último por
Pável Miedviédiev, amigos e discípulos de
Bakhtin. Graças a um trabalho exaustivo de levantamento de
informações, Clark e Holquist conseguiram mostrar que
Bakhtin é o verdadeiro autor dessas obras e de outros textos a
ele atribuídos, e esta é mais uma
importantíssima contribuição do livro para uma
visão de conjunto da obra bakhtiniana.
Em Mikhail Bakhtin, seus autores dão menos
espaço à teoria do romance e mais à teoria da
linguagem, por considerá-la filosofia e estabelecerem de
antemão uma estratégia de leitura centrada na
combinação de um pensamento filosófico baseado
na tradição da religião ortodoxa russa e no
neokantismo. Neste sentido, estudam categorias centrais do pensamento
bakhtiniano como o dialogismo, a relação
autor-personagem e a categoria de inacabamento (prefiro
inconclusibilidade) numa perspectiva kantiano-ortodoxa. A
análise dessas categorias revela uma grande habilidade no
trato de questões teóricas de extrema complexidade,
como a percepção de que a categoria de
simultaneidade é fundamental no pensamento bakhtiniano,
o que está em perfeita consonância com a categoria de
formação, núcleo central de todo esse
pensamento, do qual derivam as categorias de inacabamento das
personagens e seu mundo, de grande tempo e a própria
concepção de romance em Bakhtin como gênero em
formação, nascido em plena luz do dia da
história, esta um processo igualmente em
formação e eternamente inconcluso. Mas se a
combinação das vertentes filosófico-religiosas
lança luz sobre matrizes da reflexão teórica
bakhtiniana, ela corre o risco de restringir essas matrizes com o
desprezo de outras e moldar essa reflexão em um conduto
estreito suscetível de resvalos reducionistas. Os autores
fazem uma bela análise do dialogismo na relação
entre simples falantes ou entre autor e personagens no processo de
construção da obra literária. Mas quando lemos
que "Bakhtin logrou traduzir seus interesses teológicos numa
filosofia do discurso", que sua meta era "repensar todas (sic!) as
categorias do pensamento moderno em termos de tradição
ortodoxa", que "o pensamento de Bakhtin é... uma
meditação sobre os mistérios inerentes à
ação de Deus fazendo pessoas", "o caráter
distintivo que a imagem de Cristo tem em Dostoiévski resulta
no papel central da polifonia em sua ficção", "a
relação dos autores com suas personagens é
análoga às relações de Deus com as
criaturas humanas", deparamos com um reducionismo teológico
que, como estudiosos de Bakhtin, não podemos aceitar porque,
embora encontre algum fundamento em um texto de 1919, estende-se a
toda a obra do autor sem considerar a sua evolução.
Quando lemos que "a polifonia dostoievskiana deve ser concebida em
contraposição (sic!) ao significado mais amplo do
diálogo na existência humana", vemos uma flagrante
contradição com tudo o que Bakhtin afirma em
Problemas da poética de Dostoiévski e toda a sua
reflexão posterior sobre dialogismo e polifonia, termos que
traduzem a interação de vozes nos diálogos
entabulados no universo social e representadas no romance. Esse
reducionismo estende-se também à teoria bakhtiniana do
romance e até mesmo à carnavalização,
pois os autores consideram que Bakhtin construiu essa teoria em
polêmica com a atualidade soviética, particularmente com
o chamado realismo socialista. Trata-se de uma tese que, como tal,
é discutível. O importante, porém, é que
em si ela não depõe contra a excelente qualidade do
livro.
Há em Bakhtin uma polêmica com a dialética
hegeliana, particularmente com algumas de suas categorias. Para
Bakhtin o eu só existe em interação com o outro,
porque "ser significa ser para o outro e, através dele, para
si mesmo". Na dialética de Hegel existe a categoria do ser no
outro (anderssein): trata-se do "seu outro", que se distingue
do outro em sentido geral, não é uma
oposição a qualquer outro mas a um objeto rigorosamente
definido, de onde o "seu outro" medrou como negação
daquele. É claro que a solução de Bakhtin
não passa pelo viés da dialética hegeliana,
porque Bakhtin não opera com tese e antítese mas com
interação eu-outro. Bakhtin constrói sua teoria
do romance também em polêmica com Hegel e com certa
interação com Lukacs, que vê o romance como algo
em formação, como um processo, tese cara a Bakhtin.
A tradução de Jacó Guinsbur é clara, ele
venceu com galhardia o desafio de traduzir um livro que inventaria a
maioria das categorias do complexo pensamento bakhtiniano. Com
exceção da manutenção do termo
inglês self como tradução do
yá (eu) russo, que a mim parece um elemento estranho no
corpo do dialogismo, para o qual a palavra estrangeira já
é um outro e, por isso, o par self-outro se
afigura outro-outro, ele desenvolveu um trabalho altamente complexo
de recriação de neologismos russos já vertidos
para o inglês. Se outros termos nos suscitam
objeção, esta não se estende ao tradutor
brasileiro. A despeito da complexidade terminológica, seu
texto tem o grande mérito de ser seguro e claríssimo, o
que facilita muito a compreensão.
Por tudo o que dissemos acima, Mikhail Bakhtin de Katerina
Clark e Michael Holquist é livro obrigatório para o
estudioso de Bakhtin e preenche a grande lacuna que antes dificultava
a compreensão do pensamento bakhtiniano.
* Este artigo foi originalmente publicado no Jornal de Resenhas da Folha de São Paulo.
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