a Prostituta e a Louca.
Maria
Conceição Monteiro
UFF (Universidade Federal Fluminense)
Na Inglaterra do século XIX, mais
precisamente no período vitoriano, o progresso das
ciências e a sofisticação da técnica, com
reflexos em todas as camadas sociais, criaram um ambiente
propício para o surgimento de um tipo feminino cujo perfil se
pode nitidamente traçar. Nessa época, com efeito, o
questionamento religioso de par com um processo evolutivo indiferente
aos anseios sociais suscitou a necessidade de se buscar um ponto de
equilíbrio entre o público e o privado, uma base que
refletisse solidez e estabilidade. Esta base, naturalmente, era o
lar, e como seu representante elegeu-se alguém com as
qualidades de guardião da moral e da castidade. A
exigência de um anjo do lar fez nascer a mulher vitoriana.
A mulher com o perfil assim delineado tinha todo
apoio da rainha Vitória, que atribuía o sucesso do seu
reinado à moralidade da corte e à harmonia da vida
doméstica. Conseqüentemente, olhava o movimento em defesa
dos Direitos da Mulher como ameaça à virtude do sexo
'frágil'. Tal situação, obviamente, viria a
repercutir, ainda que de forma silenciosa, na vida privada, onde a
repressão, principalmente a sexual, se agrava e se intensifica
incrivelmente.
A imagem de que a mulher era sexualmente passiva encontrou, na
época, respaldo no mundo da medicina. Em 1857, William Acton
(1813-1875), em The Functions and Disorders of the Reproductive
Organs, corroborava a ideologia predominante, ao assegurar a seus
leitores que as únicas paixões sentidas pelas mulheres
eram pelo lar, filhos e deveres domésticos. Segundo o referido
autor, a mulher submetia-se ao marido só para
satisfazê-lo e, se não fosse pelo prazer da maternidade,
preferia não ter atenção sexual.
Acton tornou-se o mais famoso defensor da 'mulher
assexuada', paradigma da mulher vitoriana. Acreditava que para a
felicidade da sociedade as mulheres, com exceção das
ninfomaníacas e das prostitutas, sabem pouco ou são
indiferentes às necessidades sexuais. (ACTON, 1995:260).
Além disso, Acton entusiasticamente fala sobre a paixão
incontrolável dos homens, acreditando que a
negação dos seus impulsos sexuais poderia ser
prejudicial para a saúde. Por outro lado, pregava que a mulher
nunca poderia se negar sexualmente ao homem, quando este a
requisitasse.
Na verdade, a discussão dos homens sobre a
condição das mulheres apenas (re)velava o
propósito de manter sob controle a vida sexual feminina. Se as
mulheres eram também seres investidos de sexualidade, e
não simplesmente seres morais, ou se a moralidade tida como
'adequada' para a mulher tornava-se problemática, por ela
estar sujeita ao mesmo tipo de desejo sexual considerado como inato
ao homem, então a diferença poderia ser menos
facilmente 'fixada' entre o macho e a fêmea daquela sociedade
historicamente localizada (POOVEY, 1989:49).
Excluída do mundo público dos negócios e
recolhida ao mundo privado do lar, por injunções de uma
estratificação social fundada na diferença dos
sexos, era de se esperar que as jovens de 'boa família'
recebessem uma educação ou (i)lustração
destinada apenas a fazê-las reluzir nas salas de visita e a
cativar com o seu brilho o olhar de algum pretendente.
No século passado, uma lady deveria
ostentar determinados accomplishments, que incluiriam: falar
francês (e, se possível, italiano), tocar piano,
dançar e mostrar proficiência no trabalho com a agulha.
O problema seria como e onde a mulher adquiriria tais
accomplishments. As mulheres da alta classe média
já não queriam ou não podiam ensinar seus
próprios filhos, pois isto poderia comprometer o status de que
gozavam e, além disso, nem sempre estavam suficientemente
preparadas para fazer um syllabus elaborado. A
solução imediatamente encontrada foi recorrer aos
pensionatos da moda, cuja tarefa precípua era revestir a
mulher de certo verniz cultural.
A aristocracia tinha, há muito, resolvido o problema de poupar
a senhora-mãe das obrigações pedagógicas,
contratando os serviços de uma professora residente (HUGHES,
1993:21). A principal função da preceptora era dar aos
seus pupilos uma orientação moral e social. Por agir
dentro de um ambiente refinado, próprio de uma lady, era
necessário que a preceptora, como substituta da mãe,
fosse uma gentlewoman. Em geral, ela era filha de
pároco ou alguém da própria família, como
uma prima ou sobrinha.
Por imitação da aristocracia, a alta
classe média encontrou na professora particular a
solução para educar os filhos no espaço
reservado do lar. Desse modo, a preceptora se agrega à vida
doméstica da burguesia, tornando-se a mais notável
inglesa com trabalho remunerado e, ao mesmo tempo, transformando-se
numa 'anomalia' (SPRINGER, 1977:144).
É preciso salientar que as condições de trabalho
para as mulheres solteiras eram precárias e desvantajosas. As
mulheres sem instrução, pertencentes às classes
menos favorecidas, podiam se engajar em certos trabalhos
braçais, tidos como inferiores. Já para as mulheres
instruídas, a única oportunidade de trabalhar era como
preceptora.
Elizabeth Sewell, de conformidade com as normas
que ela própria estabelece no artigo "Governesses in
Families", questiona: se a sociedade não pode prescindir da
preceptora, por ser a forma mais barata de educação,
por que ela é tão desprezada? Segundo a própria
Sewell, existem duas razões para isto: primeira, a
posição social em que o mundo a coloca; segunda, a
posição social em que ela se coloca.
De acordo com Sewell, para sentir-se
confortável no trabalho, bastaria à preceptora
reconhecer o lugar que devia ocupar e mostrar desejo de encaixar-se
bem nele (SEWELL, 1865:413).
Charlotte Brontë, numa carta que escreveu a sua irmã Emily em 1839, contradiz a idéia de Sewell. Segundo Charlotte,
A preceptora particular não tem existência, não é considerada como ser vivo e racional, exceto em relação aos deveres enfadonhos e cansativos que tem que cumprir. Enquanto está ensinando, trabalhando e divertindo as crianças, tudo bem, mas se rouba uns momentos para ela, torna-se incômoda (GASKELL, 1975:187-8).
Ainda que durante todo o século XIX as
mulheres que prestavam serviços nas casas da alta burguesia
trabalhassem sob severas condições, a partir de 1850
elas começaram a obter certas vantagens, por força da
crescente necessidade de se recrutar e manter mão-de-obra
experiente e especializada. A servente, ou seja, a cozinheira ou a
parloumaid com, no mínimo dez anos de experiência,
não precisava mais ter a preocupação de
permanecer na mesma casa para o resto da vida. Uma vez que
apresentasse referências, a servente podia mudar de emprego a
cada dois anos, melhorando de vida. Ao contrário das
operárias, a servente não tinha que pagar por
acomodação; assim, ela podia poupar dinheiro para
investir no próprio casamento com um lojista ou com um pequeno
fazendeiro (Apud HUGHES, 1993:32).
Com a preceptora, as coisas se passavam de forma diferente: agregada
ao lar de determinada família burguesa, aí permanecia
como uma espécie de prisioneira, explorada pelo patrão.
De certo modo encarcerada e espoliada, ela deixava,
conseqüentemente, de ser um agente econômico que pudesse
livremente levar o seu trabalho para segmentos mais proveitosos do
mercado.
Os baixos salários e as difíceis
condições de trabalho que as famílias burguesas
impunham à preceptora provocavam nas elites vitorianas
sérias preocupações. Na verdade, havia o temor
de que se levasse para o espaço sagrado do lar a mesma onda de
revolta que varreu a Inglaterra em meados do século passado,
conduzindo às ruas levas de operários que reivindicavam
melhores salários e condições mais dignas de
trabalho. Suscetível de indignação e revolta com
a situação vigente e, ao mesmo tempo, detentora de
certo saber, a preceptora poderia instilar em seus pupilos novas
idéias que provocassem uma subversão dos valores
construídos pela burguesia.
Como já foi dito, era função
da preceptora oferecer às jovens pupilas uma
educação relacionada com os sentimentos mais finos, em
vez de tópicos mais viris das disciplinas acadêmicas
(EAGLETON, 1989:28). A mulher e o homem posicionavam-se como em uma
gangorra: ela de um lado com as amenidades humanísticas; ele
do outro com a ciência, as profissões técnicas, o
poder.
Empregadas domésticas que haviam sido
demitidas sem referência engrossavam o número das
prostitutas na capital. Se a preceptora sem
recomendação também enveredava por esse caminho
não é muito claro, apesar de haver
especulações a esse respeito. A preceptora combina
características da nobreza, pela educação, com
as da classe operária, pela independência. Ao executar
por dinheiro tarefas da mulher doméstica, ela obscurece a
distinção de que depende a noção de
gender, questionando assim a distância rígida entre
dever doméstico e trabalho remunerado. Essa
distinção era tão marcada na mente do
público que a figura da prostituta era sempre associada
à da preceptora, razão por que se tornou conveniente
insistir na relação entre a preceptora e a
solteirona.
A figura da preceptora ameaçava combinar os
mais inquietantes aspectos desses dois arquétipos, de modo que
o desejo da solteirona, por segurança social e
econômica, se fundia com a agressividade sexual da prostituta,
para criar um ser cuja ambição seria seduzir o homem do
lar e deixar a sala de aula para trás. A própria
Harriet Martineau alertava contra a aventureira que esperava fisgar
um marido e uma posição de valor (MARTINEAU,
1860:269).
Observe-se que os discursos sobre a situação da
preceptora na década de 40 eram sobre relações
domésticas que envolviam a questão de gender, classe e
natureza do trabalho, servindo também, muito claramente, de
alerta à ameaça em que a preceptora estava se
transformando.
Com a publicação de Jane Eyre
(1847), a preceptora se torna presença marcante tanto no
cenário social quanto no literário. Charlotte
Brontë (1816-55), através de sua heroína, Jane
Eyre, desestabiliza todas as idéias anteriormente
estabelecidas sobre a preceptora.
Em 1855, no Blackwood's Magazine, Margaret Oliphant diz:
Jane Eyre [...] uma pequena perigosa, inimiga da paz [...]. Tal era a impetuosidade do espírito que forçava o seu caminho no nosso bem ordenado mundo, rompendo fronteiras e desafiando princípios (OLIPHANT, 1855:118).
No Quarterly Review, Lady Eastlake assim considera Jane Eyre:
...personificação de um espírito degenerado e indisciplinado [...] o tom da mente e do pensamento que derrotou a autoridade, que violentou códigos divinos e humanos [...] e que causou rebelião no lar, é o mesmo que escreveu Jane Eyre (EASTLAKE, 1848:173).
O conhecimento da distância entre o ideal
vitoriano de como a mulher deveria viver e o modo como na realidade
vivia constitui justamente um dos temas que Charlotte Brontë
aborda em Jane Eyre.
A primeira parte da narrativa de Jane Eyre é marcada
por fantasias do desejo e pelo erotismo, de que é
símbolo o red-room, onde Jane é duramente castigada
para sufocar a sexualidade.
Presa no red-room, Jane declara: Meu
coração batia forte, minha cabeça fervia. Entre
soluços conclui: Creio ter tido um ataque (Jane Eyre,
49-50). O que parece mais importante para ela é recusar o
papel de vítima, ou, como simboliza o red-room, ser
tratada como prostituta ou louca. Essas figuras são
representativas do status ambíguo de Jane Eyre como preceptora
em Thornfield, uma preceptora da época vitoriana que se
encontrava numa situação indefinida e conflituosa, por
não ser propriamente um membro da família e por
não ser também uma servente.
A própria Jane focaliza esses aspectos ao
chegar a Thornfield: Leitor, embora pareça confortavelmente
acomodada, a minha consciência não está tranquila
(Jane Eyre, 125).
O estigma da mulher sem dinheiro e dependente pode
ser visto quando Jane, ao deixar Rochester e abandonar a
profissão de preceptora, vai para Whitcross. Aí, passa
por louca, prostituta e mendiga: uma mendiga comum é
freqüentemente objeto de suspeita; uma mendiga bem vestida
também o é (Jane Eyre, 355). Ao fazer tão
significativa constatação, a narradora revela o dilema
social da mulher na época vitoriana. A classe média
procurava transformar o problema da classe operária
empobrecida numa tradução do dilema social em termos
sexuais. Jane precisava ganhar controle dos sentidos para preservar a
lucidez e a sanidade, uma proteção contra a louca e a
prostituta. Ou seja, desconstruir a idéia de que o desejo tem
suas origens numa classe inferior, desprivilegiada, para firmar a
compreensão de que a sexualidade pertence às mulheres e
aos homens.
A preocupação dos moralistas
vitorianos não era exatamente com o fato de a preceptora
não mais servir de baluarte contra a imoralidade. Temiam,
sobretudo, que ela servisse de agente através do qual os
hábitos da classe trabalhadora se infiltrariam no lar da
classe média. Uma das causas desse temor era o fato de que
filhas de comerciantes estavam ingressando na carreira de preceptora,
o que inevitavelmente provocaria a degradação de um
corpo tão importante para o interesse moral da comunidade
(LEWIS, 1848:414).
Tanto o autor desconhecido de "Hints on the Modern
Governess System" (1844) quanto a crítica feita por Lady
Eastlake ao relatório anual do Governesses' Benevolent
Institution (1847) observam que a maioria das mulheres jogadas em
asilos para loucos tinham exercido a função de
preceptora. O primeiro artigo associa essa triste realidade
estatística à repressão sexual, enquanto o
segundo, à agressão praticada contra a vaidade
feminina.
Nota-se que a 'vaidade ferida' é deliberadamente obscura, mas parece referir-se ao desejo frustrado na preceptora de receber reconhecimento como ser social e político. Era mais fácil retirar a preceptora do contexto social e econômico e reemoldurar o seu dilema em termos de fracasso moral individual.
Em Madness and Civilization (1961) Michel Foucault (1926-1984) descreve a transformação significativa ocorrida no conceito de loucura no decorrer da civilização ocidental. Essa transformação deve-se à mudança de uma perspectiva filosófica para uma patológica. Segundo tal perspectiva, teria havido uma
[...] redução da experiência clássica de irracionalidade para uma percepção da loucura estritamente moral, a qual serviria, secretamente, como um núcleo para todos os conceitos que o século XIX sustentaria como científicos, positivos e experimentais (Apud REED, 1975:193).
Observe-se que os termos normalidade e anormalidade em relação ao desempenho da mulher na sociedade sugerem insinuações favoráveis e desfavoráveis, respectivamente. Como assinala Richard Cardwell, esses termos
[...] adquiriram um significado moral e ideológico : normal (bom) e anormal (mau). Uma distinção binária se estabelece, privilegiando um termo e marginalizando o outro. O potencial da medicina de gerar um sistema de ordem e valores morais de utilidade social (isto é, de controle e autoridade) realizara-se [...]. A construção binária de normal (saudável, bom aprovado, aceitável) e anormal (degenerado, nocivo, rejeitado, inaceitável) passou a vingar. O método científico objetivo se transformara em uma questão de valor social e norma (CARDWELL, 1996:173).
Desse modo, vê-se a medicina, como
ciência, legitimar o comentário crítico e,
através dele, exercer autoridade, controle, ao mesmo tempo em
que marginaliza o outro.
O autor de "Hints on the Modern Governess System" usa
metáforas interessantes que ligam a preceptora ao
asilo:
[...] como plantas na estufa perecem antes de perder o viço. Não é exagero dizer que centenas despedaçam do talo ou prolongam uma vida mirrada e doente até que afundam e são levadas para sucumbir miseravelmente às margens do mundo" (Fraser's Magazine, 1844:574).
Poovey observa que a sexualidade do louco podia ser retoricamente escondida sob o diagnóstico médico de histeria, mas a agressão sexual da prostituta era indisfarçável. De qualquer modo, a manifestação da sexualidade no lar vitoriano de classe média seria o mesmo que jogar um fósforo aceso dentro de uma jarra de álcool, especialmente num período em que mulheres decididas e insatisfeitas começavam a exigir reformas (POOVEY,1989:236).
Outra lutadora radical contra as
restrições da moralidade convencional é Mary
Elizabeth Braddon (1835-1915). Em Lady Audley's Secret (1862),
a sua heroína revela a sociedade vitoriana no que esconde.
Helen Maldon, passando-se por Lucy Graham, arranja emprego de
preceptora na casa de um médico, Mr. Dawson, numa vila
próxima a Audley Court. Sir Audley se casa com a preceptora
sem saber que estava entrando num relacionamento bígamo. O
sobrinho de Sir Audley não demorou a descobrir que a
habilidade com que a heroína exercia o papel de lady
era motivada por um segredo que, aparentemente, podia ser o primeiro
marido, George Talboy. Este, por uma dessas coincidências
oitocentistas, era amigo de Robert. Lady Audley é tão
fria e calculista que não se permite ser objeto de desejo
sexual, o que ela confessa a Sir Audley: As tentações
comuns que atacam e desgraçam algumas mulheres não me
aterrorizam. Teria sido tua verdadeira e pura esposa até o
final da vida, mesmo tendo sido cercada por uma legião de
sedutores (BRADDON, 1987:354).
Ela sem dúvida incorpora, na
aparência, os atributos do ideal feminino para a sociedade
vitoriana. Mas são exatamente esses atributos que a levam
à bigamia e ao crime. O ideal feminino está longe de
ser o ideal da mulher.
Robert, achando que o amigo foi assassinado pela própria
mulher, age como detetive para descobrir a verdade. Descobre a real
identidade de Lady Audley e um segredo ligado à sua vida: a
mancha da loucura.
A bigamia de Lady Audley não é intencional, mas
circunstancial. Precisava fugir da opressão da miséria.
Para manter a posição que alcançou, não
hesitou em cometer crimes. Quando confrontada com as provas do crime,
Lady Audley se refugia na loucura para justificá-los: Eu o
matei porque SOU LOUCA, porque o meu intelecto está a uma
pequena distância do lado errado da tênue linha que
separa a sanidade da insanidade (BRADDON,1987:345-6).
Segundo Showalter, em The Female Malady, numa sociedade que
não somente percebia as mulheres como infantis, irracionais e
sexualmente instáveis, mas que também lhes negava poder
legal e econômico, não surpreende que elas constituam a
maior parcela das pessoas rotuladas de anormais. A crença
médica de que a instabilidade do sistema nervoso e reprodutivo
da mulher a fazia mais vulnerável à loucura do que o
homem acarretava certas conseqüências sociais. Tal
crença era usada como pretexto para afastar a mulher de
atividades profissionais, para negar-lhe direitos políticos e
mantê-la sob o controle do homem, tanto por razões de
família quanto por razões de Estado. Assim,
política e medicina, por interesses excusos, juntavam
forças, criando uma cruel cumplicidade para restringir os
direitos da mulher (SHOWALTER, 1985:72).
Em termos da psicopatologia do século XIX,
Foucault argumenta que o louco não é situado no
espaço natural, mas num sistema jurídico e
médico. O que começou como uma reforma social termina
como uma limitação da liberdade. O processo é um
duplo movimento de liberação e escravidão. Uma
cultura dominante mantêm o seu status reduzindo
diferenças a oposições estabelecidas por meio de
divisões e exclusões. Desse modo, os que detêm o
poder condenam os que estão no outro pólo ao
silêncio e ao confinamento (Apud CARDWELL, 1996:174).
Talvez a chave do segredo de Lady Audley esteja nas palavras do
próprio Robert:
Chamá-las de sexo frágil é pronunciar um escárnio repugnante. Elas são o sexo forte, mais barulhento, mais persistente, o sexo mais assertivo. Elas querem liberdade de opinião, variedade de ocupação, não querem? Deixe-as ter. Permita que sejam advogadas, médicas, pregadoras, professoras, soldados, legisladoras - qualquer coisa que queiram -, mas deixe-as em paz (BRADDON, 1987:207).
O segredo de Lady Audley estava exatamente no seu
intelecto, no lado errado da tênue linha divisória entre
o mundo do homem e o mundo da mulher.
Outra personagem enigmática que surge
já no final do século XIX é a preceptora sem
nome de The Turn of the Screw (1898), de Henry James
(1843-1916). O narrador é uma jovem preceptora, mas a sua
narrativa é primeiro lida por um homem chamado Douglas e,
depois, por um outro narrador sem nome. Observa-se que a preceptora
aqui, antes de fazer a sua focalização, já foi
objeto focalizado de dois narradores que a antecederam. Dessa forma,
a primeira idéia que a narrativa como um todo passa é
que o narrar da preceptora, personagem mulher, só ganha
validade numa moldura que envolve personagens masculinos contando
estórias em volta da lareira. Paradoxalmente, é esse
mesmo processo que vai contribuir para invalidar tudo que é
visto e relatado pela preceptora, a quem se dá autoridade
sobre a narrativa, mas que tem essa autoridade reduzida no momento em
que a narrativa é configurada por homens dentro de um
prólogo 'necessário' que emoldura a estória da
preceptora: Parecia que a narrativa que ele (Douglas) nos havia
prometido ler requeria, para uma melhor compreensão, um
prólogo (JAMES, 1995:24).
A existência da estória é
assim assegurada através da constituição de uma
corrente narrativa em que os narradores retransmitem a estória
de um para o outro. Conseqüentemente, a origem da estória
não é atribuida a nenhuma voz. O que se tem é um
efeito ecoante, algo que é produzido por vozes que reproduzem
vozes anteriores (FELMAN, 1985:167). Felman questiona se a corrente
de vozes narrativas que transmitem The Turn of the Screw
não é também, ao mesmo tempo, uma corrente de
leituras. Não seriam leituras que releram e reescreveram
outras leituras? (FELMAN, 170). Nessa corrente transmissora da
estória, cada narrador, para retransmiti-la, tem que ser
primeiro um receptor, um leitor que grava a estória e a
interpreta, tentando associá-la à própria
experiência de vida: Eu perguntei se a experiência em
questão tinha sido a sua (JAMES, 23).
Observa-se que o 'eu' que fala é deslocado.
É um 'eu' que opera como uma sombra do 'eu' masculino. Luce
Irigaray também questiona essa posição ao
argumentar que a máscara deve ser compreendida como aquilo que
as mulheres fazem para recuperar algum elemento de desejo, para
participar do desejo do homem, mas a preço de renunciar ao seu
próprio. Com essa postura, elas se submetem à economia
dominante do desejo numa tentativa de permanecer 'no mercado'. Mas
estão lá como objetos para o prazer sexual e não
como aquelas que têm o prazer (IRIGARAY, 1985:133-4). Esse
processo reflete a posição das mulheres numa sociedade
patriarcal, onde são coisificadas, transformadas em objetos
para escorar o sujeito masculino.
O sugestivo título não foi dado pela
autora do manuscrito, mas pelo efeito que a leitura de Douglas causou
no narrador sem nome. Assim o título é dado pelo leitor
e não pela autora, fato que desautoriza a narrativa. A
credibilidade da preceptora é diminuída ao ser revelado
o seu desejo. O próprio grupo, as ladies, em volta da lareira,
vão embora, o que mostra uma visão tradicional das
mulheres como tendo que estar fora dessa economia sexual, ou, talvez,
para deixar espaço para os homens descobrirem os 'segredos' da
preceptora.
A preceptora sem nome se depara com duas figuras
que apontam para os espaços tradicionalmente ocupados pela
mulher: Mrs. Grose, a governanta, figura maternal; e Miss Jessel, a
antiga preceptora, a 'prostituta' que se envolveu com Quint. Segundo
Mrs. Grose, Miss Jessel era infame [...]; coitada, pagou
por isso (JAMES, 56-7). O fato de Miss Jessel ter-se relacionado
sexualmente com Quint levou-a à queda, porém não
é o ceder que ameaça a preceptora, mas o fato de ela
agir como sujeito, ou seja, de ocupar uma posição
tradicionalmente atribuída ao homem. A preceptora sem nome
fracassa tanto ao resistir à sexualidade da preceptora
anterior , quanto ao tentar agir como Quint. Ela não pode
ocupar o lugar do homem e não encontra um modelo feminino para
seguir, tudo lhe foi roubado pelo prólogo.
Entretanto, a preceptora sem nome de The Turn of the Screw,
como Jane Eyre, precisa escapar da loucura e ganhar equilíbrio
que dependia do sucesso da sua vontade rígida
[...]; somente outra virada no parafuso da virtude humana
comum (JAMES,. 52, 108). Resta à preceptora nada mais que
governar o sistema de controle sobre o significado: nem ser louca,
nem prostituta, dando o empurrão na direção
contrária, através do arrocho do parafuso.
Esses escritores souberam captar, em suas
narrativas, o caráter inquietante e perturbador que parece
emanar das preceptoras, pondo em relevo, assim, a tensão entre
a força da moral vitoriana e a força que advém
da fraqueza aparente daquelas sombras errantes, como uma
afirmação da diferença na identidade de ser
mulher.
Referências Bibliográficas:
ACTON, William. 'The Functions and Disorders of the Reproductive
Organs" In Desire and Imagination, ed. Regina Barreca. Penguin
Books: New York, 1995.
BRADDON, Elizabeth. Lady Audley's Secret. Oxford: Oxford
University Press, 1987.
BRONTË, Charlotte. Jane Eyre. Middlesex: Penguin English
Library, 1966.
CARDWELL, Richard. 'The Mad Doctors: Medicine and Literature in
Fin de Siglo Spain'. Journal of the Institute of Romance
Studies. Nottingham: Nottingham University Press,v.4,1996.
EAGLETON, Terry. Literary Theory. University of Minnesota:
Minneapolis, 1989.
EASTLAKE, Lady. 'Vanity Fair, Jane Eyre and The Governess
Benevolent Institution'. Quarterly Review. London, v.84,
p.153-185, 1848.
FELMAN, Shoshana. Writing and Madness: Literature/Philosophy/
Psychoanalysis. New York: Cornell University Press, 1985.
FOUCAULT, Michel. 'Madness and Civilization' In The Foucault
Reader, ed. Paul Rabinow. Penguin Books: London, 1984.
GASKELL, Elizabeth. The Life of Charlotte Brontë. Penguin
Books: London, 1975.
'Hints on the Modern Governess System'. Fraser's Magazine.
v.30, nov.1844.
HUGHES, Kathryn. The Victorian Governess. Hambledon Press:
London, 1993.
IRIGARAY, Luce. This Sex Which is Not One. Trans. Catherine
Porter. New York: Cornell University Press, 1985
JAMES, Henry. The Turn of the Screw. New York: Bedford Books,
1995.
LEWIS, Sarah. 'On the Social Position of Women'. Fraser's
Magazine. London, v. 37, p. 411-14, 1848.
MARTINEAU, Harriet. 'The Governess'. Once a Week. London, v.3,
p.269, 1860.
POOVEY, Mary. 'The Anathematized Race: The Governess and
Jane Eyre. In Feminism and Psychoanalysis, ed.
Richard Feldstein and Judith Roof. Cornell University
Press:Ithaca,1989.
OLIPHANT, Margaret. 'Jane Eyre & Villette'.
Blackwood Magazine, London, May 1855.
REED, John. Victorian Conventions. Ohio: Ohio University
Press, 1975.
SEWELL, Elizabeth. 'Governess in Families'. In Principles
of Education. London, 1865.
SHOWALTER, Elaine. The Female Malady. Women, Madness and
English Culture 1830-1980. New York: Virago Press,1985.
SPRINGER, Marlene. 'Angels and Other Women in Victorian Literature'.
In What Manner of Woman, ed. Marlene Spinger. New York
University Press: New York, 1977.