Figuras Errantes na Época Vitoriana : a Preceptora,

a Prostituta e a Louca.

 

Maria Conceição Monteiro
UFF (Universidade Federal Fluminense)


Na Inglaterra do século XIX, mais precisamente no período vitoriano, o progresso das ciências e a sofisticação da técnica, com reflexos em todas as camadas sociais, criaram um ambiente propício para o surgimento de um tipo feminino cujo perfil se pode nitidamente traçar. Nessa época, com efeito, o questionamento religioso de par com um processo evolutivo indiferente aos anseios sociais suscitou a necessidade de se buscar um ponto de equilíbrio entre o público e o privado, uma base que refletisse solidez e estabilidade. Esta base, naturalmente, era o lar, e como seu representante elegeu-se alguém com as qualidades de guardião da moral e da castidade. A exigência de um anjo do lar fez nascer a mulher vitoriana.

A mulher com o perfil assim delineado tinha todo apoio da rainha Vitória, que atribuía o sucesso do seu reinado à moralidade da corte e à harmonia da vida doméstica. Conseqüentemente, olhava o movimento em defesa dos Direitos da Mulher como ameaça à virtude do sexo 'frágil'. Tal situação, obviamente, viria a repercutir, ainda que de forma silenciosa, na vida privada, onde a repressão, principalmente a sexual, se agrava e se intensifica incrivelmente.
A imagem de que a mulher era sexualmente passiva encontrou, na época, respaldo no mundo da medicina. Em 1857, William Acton (1813-1875), em The Functions and Disorders of the Reproductive Organs, corroborava a ideologia predominante, ao assegurar a seus leitores que as únicas paixões sentidas pelas mulheres eram pelo lar, filhos e deveres domésticos. Segundo o referido autor, a mulher submetia-se ao marido só para satisfazê-lo e, se não fosse pelo prazer da maternidade, preferia não ter atenção sexual.

Acton tornou-se o mais famoso defensor da 'mulher assexuada', paradigma da mulher vitoriana. Acreditava que para a felicidade da sociedade as mulheres, com exceção das ninfomaníacas e das prostitutas, sabem pouco ou são indiferentes às necessidades sexuais. (ACTON, 1995:260). Além disso, Acton entusiasticamente fala sobre a paixão incontrolável dos homens, acreditando que a negação dos seus impulsos sexuais poderia ser prejudicial para a saúde. Por outro lado, pregava que a mulher nunca poderia se negar sexualmente ao homem, quando este a requisitasse.

Na verdade, a discussão dos homens sobre a condição das mulheres apenas (re)velava o propósito de manter sob controle a vida sexual feminina. Se as mulheres eram também seres investidos de sexualidade, e não simplesmente seres morais, ou se a moralidade tida como 'adequada' para a mulher tornava-se problemática, por ela estar sujeita ao mesmo tipo de desejo sexual considerado como inato ao homem, então a diferença poderia ser menos facilmente 'fixada' entre o macho e a fêmea daquela sociedade historicamente localizada (POOVEY, 1989:49).
Excluída do mundo público dos negócios e recolhida ao mundo privado do lar, por injunções de uma estratificação social fundada na diferença dos sexos, era de se esperar que as jovens de 'boa família' recebessem uma educação ou (i)lustração destinada apenas a fazê-las reluzir nas salas de visita e a cativar com o seu brilho o olhar de algum pretendente.

No século passado, uma lady deveria ostentar determinados accomplishments, que incluiriam: falar francês (e, se possível, italiano), tocar piano, dançar e mostrar proficiência no trabalho com a agulha. O problema seria como e onde a mulher adquiriria tais accomplishments. As mulheres da alta classe média já não queriam ou não podiam ensinar seus próprios filhos, pois isto poderia comprometer o status de que gozavam e, além disso, nem sempre estavam suficientemente preparadas para fazer um syllabus elaborado. A solução imediatamente encontrada foi recorrer aos pensionatos da moda, cuja tarefa precípua era revestir a mulher de certo verniz cultural.
A aristocracia tinha, há muito, resolvido o problema de poupar a senhora-mãe das obrigações pedagógicas, contratando os serviços de uma professora residente (HUGHES, 1993:21). A principal função da preceptora era dar aos seus pupilos uma orientação moral e social. Por agir dentro de um ambiente refinado, próprio de uma lady, era necessário que a preceptora, como substituta da mãe, fosse uma gentlewoman. Em geral, ela era filha de pároco ou alguém da própria família, como uma prima ou sobrinha.

Por imitação da aristocracia, a alta classe média encontrou na professora particular a solução para educar os filhos no espaço reservado do lar. Desse modo, a preceptora se agrega à vida doméstica da burguesia, tornando-se a mais notável inglesa com trabalho remunerado e, ao mesmo tempo, transformando-se numa 'anomalia' (SPRINGER, 1977:144).
É preciso salientar que as condições de trabalho para as mulheres solteiras eram precárias e desvantajosas. As mulheres sem instrução, pertencentes às classes menos favorecidas, podiam se engajar em certos trabalhos braçais, tidos como inferiores. Já para as mulheres instruídas, a única oportunidade de trabalhar era como preceptora.

Elizabeth Sewell, de conformidade com as normas que ela própria estabelece no artigo "Governesses in Families", questiona: se a sociedade não pode prescindir da preceptora, por ser a forma mais barata de educação, por que ela é tão desprezada? Segundo a própria Sewell, existem duas razões para isto: primeira, a posição social em que o mundo a coloca; segunda, a posição social em que ela se coloca.

De acordo com Sewell, para sentir-se confortável no trabalho, bastaria à preceptora reconhecer o lugar que devia ocupar e mostrar desejo de encaixar-se bem nele (SEWELL, 1865:413).

Charlotte Brontë, numa carta que escreveu a sua irmã Emily em 1839, contradiz a idéia de Sewell. Segundo Charlotte,

A preceptora particular não tem existência, não é considerada como ser vivo e racional, exceto em relação aos deveres enfadonhos e cansativos que tem que cumprir. Enquanto está ensinando, trabalhando e divertindo as crianças, tudo bem, mas se rouba uns momentos para ela, torna-se incômoda (GASKELL, 1975:187-8).

Ainda que durante todo o século XIX as mulheres que prestavam serviços nas casas da alta burguesia trabalhassem sob severas condições, a partir de 1850 elas começaram a obter certas vantagens, por força da crescente necessidade de se recrutar e manter mão-de-obra experiente e especializada. A servente, ou seja, a cozinheira ou a parloumaid com, no mínimo dez anos de experiência, não precisava mais ter a preocupação de permanecer na mesma casa para o resto da vida. Uma vez que apresentasse referências, a servente podia mudar de emprego a cada dois anos, melhorando de vida. Ao contrário das operárias, a servente não tinha que pagar por acomodação; assim, ela podia poupar dinheiro para investir no próprio casamento com um lojista ou com um pequeno fazendeiro (Apud HUGHES, 1993:32).
Com a preceptora, as coisas se passavam de forma diferente: agregada ao lar de determinada família burguesa, aí permanecia como uma espécie de prisioneira, explorada pelo patrão. De certo modo encarcerada e espoliada, ela deixava, conseqüentemente, de ser um agente econômico que pudesse livremente levar o seu trabalho para segmentos mais proveitosos do mercado.

Os baixos salários e as difíceis condições de trabalho que as famílias burguesas impunham à preceptora provocavam nas elites vitorianas sérias preocupações. Na verdade, havia o temor de que se levasse para o espaço sagrado do lar a mesma onda de revolta que varreu a Inglaterra em meados do século passado, conduzindo às ruas levas de operários que reivindicavam melhores salários e condições mais dignas de trabalho. Suscetível de indignação e revolta com a situação vigente e, ao mesmo tempo, detentora de certo saber, a preceptora poderia instilar em seus pupilos novas idéias que provocassem uma subversão dos valores construídos pela burguesia.

Como já foi dito, era função da preceptora oferecer às jovens pupilas uma educação relacionada com os sentimentos mais finos, em vez de tópicos mais viris das disciplinas acadêmicas (EAGLETON, 1989:28). A mulher e o homem posicionavam-se como em uma gangorra: ela de um lado com as amenidades humanísticas; ele do outro com a ciência, as profissões técnicas, o poder.

Empregadas domésticas que haviam sido demitidas sem referência engrossavam o número das prostitutas na capital. Se a preceptora sem recomendação também enveredava por esse caminho não é muito claro, apesar de haver especulações a esse respeito. A preceptora combina características da nobreza, pela educação, com as da classe operária, pela independência. Ao executar por dinheiro tarefas da mulher doméstica, ela obscurece a distinção de que depende a noção de gender, questionando assim a distância rígida entre dever doméstico e trabalho remunerado. Essa distinção era tão marcada na mente do público que a figura da prostituta era sempre associada à da preceptora, razão por que se tornou conveniente insistir na relação entre a preceptora e a solteirona.

A figura da preceptora ameaçava combinar os mais inquietantes aspectos desses dois arquétipos, de modo que o desejo da solteirona, por segurança social e econômica, se fundia com a agressividade sexual da prostituta, para criar um ser cuja ambição seria seduzir o homem do lar e deixar a sala de aula para trás. A própria Harriet Martineau alertava contra a aventureira que esperava fisgar um marido e uma posição de valor (MARTINEAU, 1860:269).
Observe-se que os discursos sobre a situação da preceptora na década de 40 eram sobre relações domésticas que envolviam a questão de gender, classe e natureza do trabalho, servindo também, muito claramente, de alerta à ameaça em que a preceptora estava se transformando.

Com a publicação de Jane Eyre (1847), a preceptora se torna presença marcante tanto no cenário social quanto no literário. Charlotte Brontë (1816-55), através de sua heroína, Jane Eyre, desestabiliza todas as idéias anteriormente estabelecidas sobre a preceptora.

Em 1855, no Blackwood's Magazine, Margaret Oliphant diz:

Jane Eyre [...] uma pequena perigosa, inimiga da paz [...]. Tal era a impetuosidade do espírito que forçava o seu caminho no nosso bem ordenado mundo, rompendo fronteiras e desafiando princípios (OLIPHANT, 1855:118).

No Quarterly Review, Lady Eastlake assim considera Jane Eyre:

...personificação de um espírito degenerado e indisciplinado [...] o tom da mente e do pensamento que derrotou a autoridade, que violentou códigos divinos e humanos [...] e que causou rebelião no lar, é o mesmo que escreveu Jane Eyre (EASTLAKE, 1848:173).

O conhecimento da distância entre o ideal vitoriano de como a mulher deveria viver e o modo como na realidade vivia constitui justamente um dos temas que Charlotte Brontë aborda em Jane Eyre.
A primeira parte da narrativa de Jane Eyre é marcada por fantasias do desejo e pelo erotismo, de que é símbolo o red-room, onde Jane é duramente castigada para sufocar a sexualidade.

Presa no red-room, Jane declara: Meu coração batia forte, minha cabeça fervia. Entre soluços conclui: Creio ter tido um ataque (Jane Eyre, 49-50). O que parece mais importante para ela é recusar o papel de vítima, ou, como simboliza o red-room, ser tratada como prostituta ou louca. Essas figuras são representativas do status ambíguo de Jane Eyre como preceptora em Thornfield, uma preceptora da época vitoriana que se encontrava numa situação indefinida e conflituosa, por não ser propriamente um membro da família e por não ser também uma servente.

A própria Jane focaliza esses aspectos ao chegar a Thornfield: Leitor, embora pareça confortavelmente acomodada, a minha consciência não está tranquila (Jane Eyre, 125).

O estigma da mulher sem dinheiro e dependente pode ser visto quando Jane, ao deixar Rochester e abandonar a profissão de preceptora, vai para Whitcross. Aí, passa por louca, prostituta e mendiga: uma mendiga comum é freqüentemente objeto de suspeita; uma mendiga bem vestida também o é (Jane Eyre, 355). Ao fazer tão significativa constatação, a narradora revela o dilema social da mulher na época vitoriana. A classe média procurava transformar o problema da classe operária empobrecida numa tradução do dilema social em termos sexuais. Jane precisava ganhar controle dos sentidos para preservar a lucidez e a sanidade, uma proteção contra a louca e a prostituta. Ou seja, desconstruir a idéia de que o desejo tem suas origens numa classe inferior, desprivilegiada, para firmar a compreensão de que a sexualidade pertence às mulheres e aos homens.

A preocupação dos moralistas vitorianos não era exatamente com o fato de a preceptora não mais servir de baluarte contra a imoralidade. Temiam, sobretudo, que ela servisse de agente através do qual os hábitos da classe trabalhadora se infiltrariam no lar da classe média. Uma das causas desse temor era o fato de que filhas de comerciantes estavam ingressando na carreira de preceptora, o que inevitavelmente provocaria a degradação de um corpo tão importante para o interesse moral da comunidade (LEWIS, 1848:414).

Tanto o autor desconhecido de "Hints on the Modern Governess System" (1844) quanto a crítica feita por Lady Eastlake ao relatório anual do Governesses' Benevolent Institution (1847) observam que a maioria das mulheres jogadas em asilos para loucos tinham exercido a função de preceptora. O primeiro artigo associa essa triste realidade estatística à repressão sexual, enquanto o segundo, à agressão praticada contra a vaidade feminina.

Nota-se que a 'vaidade ferida' é deliberadamente obscura, mas parece referir-se ao desejo frustrado na preceptora de receber reconhecimento como ser social e político. Era mais fácil retirar a preceptora do contexto social e econômico e reemoldurar o seu dilema em termos de fracasso moral individual.

Em Madness and Civilization (1961) Michel Foucault (1926-1984) descreve a transformação significativa ocorrida no conceito de loucura no decorrer da civilização ocidental. Essa transformação deve-se à mudança de uma perspectiva filosófica para uma patológica. Segundo tal perspectiva, teria havido uma
[...] redução da experiência clássica de irracionalidade para uma percepção da loucura estritamente moral, a qual serviria, secretamente, como um núcleo para todos os conceitos que o século XIX sustentaria como científicos, positivos e experimentais
(Apud REED, 1975:193)
.

Observe-se que os termos normalidade e anormalidade em relação ao desempenho da mulher na sociedade sugerem insinuações favoráveis e desfavoráveis, respectivamente. Como assinala Richard Cardwell, esses termos

[...] adquiriram um significado moral e ideológico : normal (bom) e anormal (mau). Uma distinção binária se estabelece, privilegiando um termo e marginalizando o outro. O potencial da medicina de gerar um sistema de ordem e valores morais de utilidade social (isto é, de controle e autoridade) realizara-se [...]. A construção binária de normal (saudável, bom aprovado, aceitável) e anormal (degenerado, nocivo, rejeitado, inaceitável) passou a vingar. O método científico objetivo se transformara em uma questão de valor social e norma (CARDWELL, 1996:173).

Desse modo, vê-se a medicina, como ciência, legitimar o comentário crítico e, através dele, exercer autoridade, controle, ao mesmo tempo em que marginaliza o outro.
O autor de "Hints on the Modern Governess System" usa metáforas interessantes que ligam a preceptora ao asilo:

[...] como plantas na estufa perecem antes de perder o viço. Não é exagero dizer que centenas despedaçam do talo ou prolongam uma vida mirrada e doente até que afundam e são levadas para sucumbir miseravelmente às margens do mundo" (Fraser's Magazine, 1844:574).

Poovey observa que a sexualidade do louco podia ser retoricamente escondida sob o diagnóstico médico de histeria, mas a agressão sexual da prostituta era indisfarçável. De qualquer modo, a manifestação da sexualidade no lar vitoriano de classe média seria o mesmo que jogar um fósforo aceso dentro de uma jarra de álcool, especialmente num período em que mulheres decididas e insatisfeitas começavam a exigir reformas (POOVEY,1989:236).

Outra lutadora radical contra as restrições da moralidade convencional é Mary Elizabeth Braddon (1835-1915). Em Lady Audley's Secret (1862), a sua heroína revela a sociedade vitoriana no que esconde. Helen Maldon, passando-se por Lucy Graham, arranja emprego de preceptora na casa de um médico, Mr. Dawson, numa vila próxima a Audley Court. Sir Audley se casa com a preceptora sem saber que estava entrando num relacionamento bígamo. O sobrinho de Sir Audley não demorou a descobrir que a habilidade com que a heroína exercia o papel de lady era motivada por um segredo que, aparentemente, podia ser o primeiro marido, George Talboy. Este, por uma dessas coincidências oitocentistas, era amigo de Robert. Lady Audley é tão fria e calculista que não se permite ser objeto de desejo sexual, o que ela confessa a Sir Audley: As tentações comuns que atacam e desgraçam algumas mulheres não me aterrorizam. Teria sido tua verdadeira e pura esposa até o final da vida, mesmo tendo sido cercada por uma legião de sedutores (BRADDON, 1987:354).

Ela sem dúvida incorpora, na aparência, os atributos do ideal feminino para a sociedade vitoriana. Mas são exatamente esses atributos que a levam à bigamia e ao crime. O ideal feminino está longe de ser o ideal da mulher.
Robert, achando que o amigo foi assassinado pela própria mulher, age como detetive para descobrir a verdade. Descobre a real identidade de Lady Audley e um segredo ligado à sua vida: a mancha da loucura.
A bigamia de Lady Audley não é intencional, mas circunstancial. Precisava fugir da opressão da miséria. Para manter a posição que alcançou, não hesitou em cometer crimes. Quando confrontada com as provas do crime, Lady Audley se refugia na loucura para justificá-los: Eu o matei porque SOU LOUCA, porque o meu intelecto está a uma pequena distância do lado errado da tênue linha que separa a sanidade da insanidade (BRADDON,1987:345-6).
Segundo Showalter, em The Female Malady, numa sociedade que não somente percebia as mulheres como infantis, irracionais e sexualmente instáveis, mas que também lhes negava poder legal e econômico, não surpreende que elas constituam a maior parcela das pessoas rotuladas de anormais. A crença médica de que a instabilidade do sistema nervoso e reprodutivo da mulher a fazia mais vulnerável à loucura do que o homem acarretava certas conseqüências sociais. Tal crença era usada como pretexto para afastar a mulher de atividades profissionais, para negar-lhe direitos políticos e mantê-la sob o controle do homem, tanto por razões de família quanto por razões de Estado. Assim, política e medicina, por interesses excusos, juntavam forças, criando uma cruel cumplicidade para restringir os direitos da mulher (SHOWALTER, 1985:72).

Em termos da psicopatologia do século XIX, Foucault argumenta que o louco não é situado no espaço natural, mas num sistema jurídico e médico. O que começou como uma reforma social termina como uma limitação da liberdade. O processo é um duplo movimento de liberação e escravidão. Uma cultura dominante mantêm o seu status reduzindo diferenças a oposições estabelecidas por meio de divisões e exclusões. Desse modo, os que detêm o poder condenam os que estão no outro pólo ao silêncio e ao confinamento (Apud CARDWELL, 1996:174).
Talvez a chave do segredo de Lady Audley esteja nas palavras do próprio Robert:

Chamá-las de sexo frágil é pronunciar um escárnio repugnante. Elas são o sexo forte, mais barulhento, mais persistente, o sexo mais assertivo. Elas querem liberdade de opinião, variedade de ocupação, não querem? Deixe-as ter. Permita que sejam advogadas, médicas, pregadoras, professoras, soldados, legisladoras - qualquer coisa que queiram -, mas deixe-as em paz (BRADDON, 1987:207).

O segredo de Lady Audley estava exatamente no seu intelecto, no lado errado da tênue linha divisória entre o mundo do homem e o mundo da mulher.

Outra personagem enigmática que surge já no final do século XIX é a preceptora sem nome de The Turn of the Screw (1898), de Henry James (1843-1916). O narrador é uma jovem preceptora, mas a sua narrativa é primeiro lida por um homem chamado Douglas e, depois, por um outro narrador sem nome. Observa-se que a preceptora aqui, antes de fazer a sua focalização, já foi objeto focalizado de dois narradores que a antecederam. Dessa forma, a primeira idéia que a narrativa como um todo passa é que o narrar da preceptora, personagem mulher, só ganha validade numa moldura que envolve personagens masculinos contando estórias em volta da lareira. Paradoxalmente, é esse mesmo processo que vai contribuir para invalidar tudo que é visto e relatado pela preceptora, a quem se dá autoridade sobre a narrativa, mas que tem essa autoridade reduzida no momento em que a narrativa é configurada por homens dentro de um prólogo 'necessário' que emoldura a estória da preceptora: Parecia que a narrativa que ele (Douglas) nos havia prometido ler requeria, para uma melhor compreensão, um prólogo (JAMES, 1995:24).

A existência da estória é assim assegurada através da constituição de uma corrente narrativa em que os narradores retransmitem a estória de um para o outro. Conseqüentemente, a origem da estória não é atribuida a nenhuma voz. O que se tem é um efeito ecoante, algo que é produzido por vozes que reproduzem vozes anteriores (FELMAN, 1985:167). Felman questiona se a corrente de vozes narrativas que transmitem The Turn of the Screw não é também, ao mesmo tempo, uma corrente de leituras. Não seriam leituras que releram e reescreveram outras leituras? (FELMAN, 170). Nessa corrente transmissora da estória, cada narrador, para retransmiti-la, tem que ser primeiro um receptor, um leitor que grava a estória e a interpreta, tentando associá-la à própria experiência de vida: Eu perguntei se a experiência em questão tinha sido a sua (JAMES, 23).

Observa-se que o 'eu' que fala é deslocado. É um 'eu' que opera como uma sombra do 'eu' masculino. Luce Irigaray também questiona essa posição ao argumentar que a máscara deve ser compreendida como aquilo que as mulheres fazem para recuperar algum elemento de desejo, para participar do desejo do homem, mas a preço de renunciar ao seu próprio. Com essa postura, elas se submetem à economia dominante do desejo numa tentativa de permanecer 'no mercado'. Mas estão lá como objetos para o prazer sexual e não como aquelas que têm o prazer (IRIGARAY, 1985:133-4). Esse processo reflete a posição das mulheres numa sociedade patriarcal, onde são coisificadas, transformadas em objetos para escorar o sujeito masculino.

O sugestivo título não foi dado pela autora do manuscrito, mas pelo efeito que a leitura de Douglas causou no narrador sem nome. Assim o título é dado pelo leitor e não pela autora, fato que desautoriza a narrativa. A credibilidade da preceptora é diminuída ao ser revelado o seu desejo. O próprio grupo, as ladies, em volta da lareira, vão embora, o que mostra uma visão tradicional das mulheres como tendo que estar fora dessa economia sexual, ou, talvez, para deixar espaço para os homens descobrirem os 'segredos' da preceptora.

A preceptora sem nome se depara com duas figuras que apontam para os espaços tradicionalmente ocupados pela mulher: Mrs. Grose, a governanta, figura maternal; e Miss Jessel, a antiga preceptora, a 'prostituta' que se envolveu com Quint. Segundo Mrs. Grose, Miss Jessel era infame [...]; coitada, pagou por isso (JAMES, 56-7). O fato de Miss Jessel ter-se relacionado sexualmente com Quint levou-a à queda, porém não é o ceder que ameaça a preceptora, mas o fato de ela agir como sujeito, ou seja, de ocupar uma posição tradicionalmente atribuída ao homem. A preceptora sem nome fracassa tanto ao resistir à sexualidade da preceptora anterior , quanto ao tentar agir como Quint. Ela não pode ocupar o lugar do homem e não encontra um modelo feminino para seguir, tudo lhe foi roubado pelo prólogo.
Entretanto, a preceptora sem nome de The Turn of the Screw, como Jane Eyre, precisa escapar da loucura e ganhar equilíbrio que dependia do sucesso da sua vontade rígida [...]; somente outra virada no parafuso da virtude humana comum (JAMES,. 52, 108). Resta à preceptora nada mais que governar o sistema de controle sobre o significado: nem ser louca, nem prostituta, dando o empurrão na direção contrária, através do arrocho do parafuso.

Esses escritores souberam captar, em suas narrativas, o caráter inquietante e perturbador que parece emanar das preceptoras, pondo em relevo, assim, a tensão entre a força da moral vitoriana e a força que advém da fraqueza aparente daquelas sombras errantes, como uma afirmação da diferença na identidade de ser mulher.


Referências Bibliográficas:


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BRADDON, Elizabeth. Lady Audley's Secret. Oxford: Oxford University Press, 1987.
BRONTË, Charlotte. Jane Eyre. Middlesex: Penguin English Library, 1966.
CARDWELL, Richard. 'The Mad Doctors: Medicine and Literature in Fin de Siglo Spain'. Journal of the Institute of Romance Studies. Nottingham: Nottingham University Press,v.4,1996.
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FELMAN, Shoshana. Writing and Madness: Literature/Philosophy/ Psychoanalysis. New York: Cornell University Press, 1985.
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GASKELL, Elizabeth. The Life of Charlotte Brontë. Penguin Books: London, 1975.
'Hints on the Modern Governess System'. Fraser's Magazine. v.30, nov.1844.
HUGHES, Kathryn. The Victorian Governess. Hambledon Press: London, 1993.
IRIGARAY, Luce. This Sex Which is Not One. Trans. Catherine Porter. New York: Cornell University Press, 1985
JAMES, Henry. The Turn of the Screw. New York: Bedford Books, 1995.
LEWIS, Sarah. 'On the Social Position of Women'. Fraser's Magazine. London, v. 37, p. 411-14, 1848.
MARTINEAU, Harriet. 'The Governess'. Once a Week. London, v.3, p.269, 1860.
POOVEY, Mary. 'The Anathematized Race: The Governess and
Jane Eyre. In Feminism and Psychoanalysis, ed. Richard Feldstein and Judith Roof. Cornell University Press:Ithaca,1989.
OLIPHANT, Margaret. 'Jane Eyre & Villette'. Blackwood Magazine, London, May 1855.
REED, John. Victorian Conventions. Ohio: Ohio University Press, 1975.
SEWELL, Elizabeth. 'Governess in Families'. In Principles of Education. London, 1865.
SHOWALTER, Elaine. The Female Malady. Women, Madness and English Culture 1830-1980. New York: Virago Press,1985.
SPRINGER, Marlene. 'Angels and Other Women in Victorian Literature'. In What Manner of Woman, ed. Marlene Spinger. New York University Press: New York, 1977.


Maria Conceição Monteiro é Professora Adjunta de Literatura Inglesa - UFF - Universidade Federal Fluminense; Doutora em Literatura Comparada - UFF. Autora de Sombra Errante: a preceptora na narrativa inglesa do Século XIX. EDUFF: Niterói (no prelo). Endereço:Rua Prudente de Morais, 1234/202. Ipanema. 22420-042- Rio de Janeiro - RJ.Telefone: (021) 523-8238. E-mail: mcmont@marlin.com.br


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