Uma geração em pedaços

 

Ficção e história se cruzam em romance que fala

sobre fim dos mitos dos anos 70

 

 

Jair Ferreira dos Santos

 

Como ensinou singelamente ao país o ex-presidente Collor, não existe psicopata festivo. Ele pega duro sempre, a exemplo de seus modelos, os predadores. Uma das duas linhas narrativas de Lobos, segundo romance do jornalista carioca (por adoção) Rubem Mauro Machado, recria com altas doses de realismo e coragem cenas da vida militar para descrever como se fabrica um general de extrema-direita. Em certas passagens, a barbárie faz a recente blitz da PM em Diadema, São Paulo, parecer uma canção de ninar.

Humilhado quando bicho, isto é, calouro, o cadete Dornier tem sua revanche quando veterano. É o sistema. À sua disposição está um repertório de exercícios e valores que, se em boas mãos já são discutíveis, nas de personalidades desviantes dão automaticamente num rosário de perversões: tortura, desmando, subserviência, onipotência e, estupidez oblige, ordem unida sem fim. Esse perfil é o legado, no general Dornier, da paranóia anticomunista gerada pela Guerra Fria entre os anos 50 e 80. A doutrina da Escola Superior de Guerra fez o resto e sua carreira culmina com um plano de sabotagem que mandaria parte do Rio para os ares. Aqui Rubem Mauro ficcionaliza um episódio real posto em marcho em 1968 por certo brigadeiro, que a desobediência do capitão Sérgio Macaco felizmente abortou.

Voltar aos anos de chumbo está na moda (há pelo menos quatro novos romances sobre a ditadura na praça), mas Rubem Mauro explora no tema, com bem-vinda sofisticação formal, uma variante inédita. Uma segunda linha narrativa, centrada em Raul, jornalista e romancista quarentão que mora em Ipanema, mergulha nas ambigüidades e decepções vividas pela pós-militância de esquerda, tendo como limite as Diretas Já, em 1984. Raul é particularmente afetado pelo fim das utopias, então no seu começo. Atravessado por lembranças da repressão, não tem mais a crença no sonho socialista, como o colega Álvaro. Transa mal no cotidiano a mercantilização de tudo, apegando-se à camaradagem reinante no jornal onde trabalha. As alegrias e angústias da criação literária, por sua vez, fazem dele um missionário amarrado a um fugitivo, ou pior, a um perdedor. Resta-lhe o amor. Um artista porém namora mesmo é a solidão e sua cama esfria rápido: Isabel é feiosa, Luciana é sensual mas ignorante, Clarisse é tão envolvente quanto apática e a velha amiga Júlia, que não consegue salvar do suicídio, ele vai trair com Marcinha, a filha dela. A certa altura se pergunta: "Era então possível ser melancólico e feliz?" Esta, parece, foi a exigência imposta a uma geração que precisou conciliar a culpa com a invenção de uma arte de viver.

Dornier é o personagem criado por Raul no romance que escreve para acertar contas com o passado. A cada um sua opressão e ambos, retrabalhando experiências de Rubem Mauro, exercem o que o autor considera o papel da literatura engajada, segundo Sartre: pôr a liberdade do imaginário a serviço do imaginário da liberdade.

Mas o livro tira ainda sua dinâmica e interesse de uma estrutura não linear. Fragmentário, sem curva dramática, o texto joga alternadamente com os dois enredos, submetidos a cortes cinematográficos em diferentes planos e focos narrativos. Esse universo móvel, instável, é a própria consciência de Raul e permite, por exemplo, que jornalistas em noitadas de azaração no Luna sejam precedidos por violências na caserna. Um tempo impreciso, ao acaso, obriga o leitor a buscar referências no nosso passado recente, mas são as frases com seu ritmo sincopado, arquejante, que transmitem a "sensação" de uma época histórica marcada pela perplexidade, a dívida e, sem dúvida, o mal-estar.

Rico em observação, Lobos tem lá seus problemas por ter sido escrito também com intensa energia moral. Certo maniqueísmo maltrata o esclarecimento. Dornier se resume a uma máquina de matar, enquanto Raul é a bela alma vítima da História. Um populismo latente faz Copacabana e a gafieira, de repente, degenerarem em samba-exaltação, e num trecho de ingenuidade quase cômica o capitalismo é excomungado porque, em Nova Iorque, um wasp americano olhou torto discriminando Raul. Além disso, eventualmente Rubem Mauro decide poetizar o mundo sem necessidade e assim temos mãos "mimosas", "A lua no mar competia com sua irmã no céu" e "um casal arma um bolerante pião".

São lapsos e resistências que não comprometem o romance, até porque, afinal, ele enfrenta com brio uma questão crucial: como destruir nossos mitos e seguir vivendo? A resposta é sugerida por um movimento do próprio Raul que, no final, dançando, se diz: "Eu quero a vertigem. Apenas a provisória vertigem". A metáfora da dança indica uma outra revolução, uma conversão ética face à dor, que não é mais argumento, na esteira de Nietsche quando via no "dançar com as correntes" a melhor auto-superação.


[Resenha do romance Lobos, de Rubem Mauro Machado (Editora Record, Rio de Janeiro, 1997) - 214 páginas, R 20,00 - publicada no caderno Idéias/Livros, do Jornal do Brasil de 26 de abril de 1997.]


Jair Ferreira dos Santos, paranaense do norte, vive no Rio de Janeiro e é ficcionista, poeta e ensaísta. Tem colaborado com os principais cadernos literários do país e publicou, entre outros títulos: Kafka na cama (Civilização Brasileira, 1980) e A inexistente arte da decpeção (Agir, 1997).


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