Poesia de Jayro José Xavier
LINHAGEM
O canto pessimista de Lucrécio
o canto pessimista de Drummond
o canto pessimista de Antero
o canto pessimista de Pessoa
Quem sabe
onde começo eu e terminam meus pares
um filete de sangue escorrendo do canto
da boca
TRÊS GRAFITOS
A Bolsa fechou em alta.
Nós nos fechamos em nós.
As fechaduras e os dias
onde encontrar a chave?
Assumimos um ar
barroco. Alheio e doce.
Suportamos a dor
o tédio, a hierarquia.
Na soleira da noite
caímos de joelhos
pedindo perdão.
Mas de quê? Mas a quem?
POEMA DA POUSADA
Hotel. Canoas.
Rumor de vento
nas frondes altas
das araucárias
Me deito. Nu
sob a folhagem.
O céu à mão
na terra, mansa.
Oh doce estar:
nenhum desejo.
Como se um fruto
pendesse, intacto,
anterior
à nossa fome.
Como se ainda
houvesse um rio
-- e não, apenas,
este intervalo
de nossa fúria.
Por um momento
(porém tão breve)
apaziguada.
TRÊS QUARTETOS E UM CREPÚSCULO
Minha janela é um pedaço do mundo
-- um pedaço pequeno do mundo.
Minha vida sou eu debruçado na janela
gastando o peitoril, ferindo o peito.
A janela apodrece sob o sol
que se põe. Com ela apodreço e caio.
Nas janelas em frente apodrecem outros homens
como eu. Sem sonhos, nos prédios altos.
Pela boca da noite a lembrança de um bonde
me espanta os pardais. Como um velho fantasma.
E a noite cai com seu poder de síntese
sobre o que um dia foi mundo
e é, apenas, memória.
SONETO DA PRAIA
Eu lhe disse que o mundo era odioso
com seus deuses de farda. E ela me disse
que havia no ar um cheiro bom de amêndoas,
sinal de um tempo de úberes intactos.
Paramos frente ao mar. Floriam cactos.
A poesia me dói como um espinho,
eu disse. Ela afundava no mistério
e não feria o dedo nas raízes.
Eram dias sombrios. E houve sol.
Ela abriu a toalha e se deitou:
recendiam a mel suas virilhas.
Quanto tempo escorreu! A areia fina
cobriu, com seu silêncio, nossas bocas,
ó mundo sem perdão, que se perdeu!
O CARACOL
Mora entre as sombras eternas do fundo do pátio
e não canta
antes inclina as antenas
e capta o áspero dia
À noite sai
tece uma seda líquida nos ladrilhos de cimento
Nem é um bicho, é
um silêncio
feito de cálcio e gengiva
Sábio molusco
No estio adverso encolhe-se feito feto
na valva em espiral. E dorme
o sono dos que ouvem
o canto do Universo
É assim (como eu)
que resiste aos desertos
CÂNTICO
Só a carne é sábia
só a carne é santa
Só a carne
saciada
pode subir aos céus
(para perder-se
e achar
nos labirintos
de Deus)
Ó meu amor
ouve o meu canto
e vem
Vem com o ondear
de teu negro rebanho
de cabras,
vem
com teu púbis
de velcro
Aleluia
A alegria da carne que goza alça vôo mais alto
que as aladas
asceses
da alma
Vem, pastora,
vem
mais nua
-- vem sem a pele de loba
da alma
Só a carne
é pura
palpitação de pássaro
MEU CORAÇÃO
Estranho anuro
meu coração
-- esse exilado
Deixou o rabo
no paraíso
Eis por que pulsa
expectante
à luz da lâmpada
e salta
com essa fome
insaciável
de asas
Jayro José Xavier (1936) é natural do Rio de Janeiro, poeta e professor, publicou Idade do Urânio (Cátedra, 1974), Enquanto vivemos (Achiamé, 1981), Estória de uma vaquinha (Globo, 1987). Ganhou o prêmio Associação Paulista de Críticos de Arte em 1988, com o livro Ulysses: canto para ajudar um menino a atravessar a noite (Melhoramentos, 1988).